A Cidade e as Serras - 15

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desabrigadas, e fundas poltronas, fundos sofás, para que os repousos,
por que elle suspirára, fossem mais lentos e suaves. Attribui esta
moderação a minha prima Joanninha, que amava Tormes na sua nudez rude.
Ella jurou que assim o ordenára o seu Jacintho. Mas, decorridas semanas,
tremi. Apparecera, vindo de Lisboa, um contra-mestre, com operarios, e
mais caixotes, para installar um telephone!
--Um telephone, em Tormes, Jacintho?
O meu Principe explicou, com humildade:
--Para casa de meu sogro!... Bem vês.
--Era rasoavel e carinhoso. O telephone porém, subtilmente, mudamente,
estendeu outro longo fio, para Valverde. E Jacintho, alargando os
braços, quasi supplicante:
--Para casa do medico. Comprehendes...
Era prudente. Mas, certa manhã, em Guiães, accordei aos berros da tia
Vicencia! Um homem chegára, mysterioso, com outros homens, trazendo
arame, para installar na nossa casa o novo invento. Soceguei a tia
Vicencia, jurando que essa machina nem fazia barulho, nem trazia
doenças, nem attrahia as trovoadas. Mas corri a Tormes. Jacintho sorrio,
encolhendo os hombros:
--Que queres? Em Guiães está o boticario, está o carniceiro... E,
depois, estás tu!
Era fraternal. Todavia pensei: Estamos perdidos! Dentro d'um mez temos a
pobre Joanna a apertar o vestido por meio d'uma machina! Pois não! o
Progresso, que, á intimação de Jacintho, subira a Tormes a estabelecer
aquella sua maravilha, pensando talvez que conquistára mais um reino
para desfear, desceu, silenciosamente, desilludido, e não avistamos mais
sobre a serra a sua hirta sombra côr de ferro e de fuligem. Então
comprehendi que, verdadeiramente, na alma de Jacintho se estabelecera o
equilibrio da vida, e com elle a Gran-Ventura, de que tanto tempo elle
fôra o principe sem Principado. E uma tarde, no pomar, encontrando o
nosso velho Grillo, agora reconciliado com a serra, desde que a serra
lhe dera meninos para trazer ás cavalleiras, observei ao digno preto,
que lia o seu _Figaro_, armado de immensos oculos redondos:
--Pois, Grillo, agora realmente bem podemos dizer que o Snr. D. Jacintho
está firme.
O Grillo arredou os oculos para a testa, e levantando para o ar os cinco
dedos em curva como petalas d'uma tulipa:
--S. ex.^a brotou!
Profundo sempre o digno preto! Sim! Aquelle resequido galho de Cidade,
plantado na serra, pegára, chupára o humus do torrão herdado, creára
seiva, afundára raizes, engrossára de tronco, atirára ramos, rebentára
em flôres, forte, sereno, ditoso, benefico, nobre, dando fructos,
derramando sombra. E abrigados pela grande arvore, e por ella nutridos,
cem casaes em redor a bemdiziam.


XVI

Muitas vezes Jacintho, durante esses annos, fallára com prazer n'um
regresso de dous, tres mezes, ao 202, para mostrar Paris á prima
Joanninha. E eu seria o companheiro fiel, para archivar os espantos da
minha serrana ante a Cidade! Depois conveio em esperar que o Jacinthinho
completasse dous annos, para poder jornadear sem desconforto, e
apontando já com o seu dedo para as cousas da Civilisação. Mas, quando
elle, em Outubro, fez esses dous annos desejados, a prima Joanninha
sentiu uma preguiça immensa, quasi aterrada, do comboio, do estridor da
Cidade, do 202, e dos seus esplendores. «Estamos aqui tão bem! está um
tempo tão lindo!» murmurava, deitando os braços, sempre deslumbrada, ao
rijo pescoço do seu Jacintho. Elle desistia logo de Paris, encantado.
«Vamos para Abril, quando os castanheiros dos Campos-Elyseos estiverem
em flôr!» Mas em Abril vieram aquelles cansaços que immobilisavam a
prima Joanninha no divan, ditosa, risonha, com umas pintas na pelle, e o
roupão mais solto. Por todo um longo anno estava desfeita a alegre
aventura. Eu andava então soffrendo de desoccupação. As chuvas de Março
promettiam uma farta colheita. Uma certa Anna Vaqueira, córada e bem
feita, viuva, que surtia as necessidades do meu coração, partira com o
irmão para o Brazil, onde elle dirigia uma venda. Desde o inverno,
sentia tambem no corpo como um começo de ferrugem, que o emperrava, e,
certamente, algures, na minha alma, nascera uma pontinha de bolor.
Depois a minha egoa morreu... Parti eu para Paris.
Logo em Hendaya, apenas pisei a doce terra de França, o meu pensamento,
como pombo a um velho pombal, voou ao 202,--talvez por eu vêr um enorme
cartaz em que uma mulher nua, com flôres bacchanticas nas tranças, se
estorcia, segurando n'uma das mãos uma garrafa espumante, e brandindo na
outra, para o annunciar ao Mundo, um novo modelo de saca-rolhas. E oh
surpresa! eis que, logo adeante, na estação quieta e clara de Saint
Jean-de-Luz, um moço esbelto, de perfeita elegancia, entra vivamente no
meu compartimento, e, depois de me encarar, grita:
--Eh, Fernandes!
Marizac! O duque de Marizac! Era já o 202... Com que reconhecimento lhe
sacudi a mão fina, por elle me ter reconhecido! E, atirando para o canto
do vagon um paletó, um masso de jornaes, que o escudeiro lhe passára, o
bom Marizac exclamava na mesma surpreza alegre:
--E Jacintho?
Contei Tormes, a serra, o seu primeiro amor pela Natureza, o seu outro
grande amor por minha prima, e os dous filhos, que elle trazia
escarranchados no pescoço.
--Ah que canalha! exclamou Marizac com os olhos espetados em mim! É
capaz de ser feliz!
--Espantosamente, loucamente... Qual! não ha adverbios...
--Indecentemente--murmurou Marizac muito serio. Que canalha!
Eu então desejei saber do nosso rancho familiar do 202. Elle encolheu os
hombros, accendendo a cigarette:
--Todo esse mundo circula...
--Madame d'Oriol?
--Continúa.
--Os Trèves? o Ephraim?
--Continuam, todos tres.
Lançou um gesto languido.
--Durante cinco annos, em Paris, tudo continúa... As mulheres com um
pouco mais de pós d'arroz, e a pelle um pouco mais molle, e melada. Os
homens com um tanto mais de dispepsia. E tudo segue. Tivemos os
Anarchistas. A princeza de Carman abalou com um acrobata do Circo de
Inverno... E--e voilà!
--Dornan?
--Continúa... Não o encontrei mais desde o 202. Mas vejo ás vezes o nome
d'elle, no _Boulevard_, com versos preciosos, obscenidades muito
apuradas, muito subtis.
--E o Psychologo?... Ora, como se chamava elle?...
--Continúa tambem. Sempre com as feminices a tres francos e cincoenta...
Duquezas em camisa, almas núas... Cousas que se vendem bem!
Mas quando eu, encantado, ia indagar de Todelle, do Grão-Duque, o
comboio entrou na estação de Biarritz:--e rapidamente, apanhando o
paletot e os jornaes, depois de me apertar a mão, o delicioso Marizac
saltou pela portinhola, que o seu creado abrira, gritando:
--Até Paris!... Sempre rue Cambori.
Então, no compartimento solitario, bocejei, com uma estranha sensação de
monotonia, de saciedade, como cercado já de gentes muito vistas,
murmurando historias muito sabidas, e cousas muito ditas, atravez de
sorrisos estafados. Dos dous lados do comboio era a longa planicie
monotona, sem variedade, muito miudamente cultivada, muito miudamente
retalhada, d'um verde de rezeda, verde cinzento e apagado, onde nenhum
lampejo, nem tom alegre de flôr, nem acidente do solo, desmanchavam a
mediocridade discreta e ordeira. Pallidos choupos, em renques pautados e
finos, bordavam canaesinhos muito direitos e claros. Os casaes, todos da
mesma côr pardacenta, mal se elevavam do solo, mal se destacavam da
verdura desbotada, como encolhidos na sua mediocridade e cautella. E o
ceu, por cima, liso, sem uma nuvem, com um sol descórado, parecia um
vasto espelho muito lavado a grande agoa, até que de todo se lhe safasse
o esmalte e o brilho. Adormeci n'uma doce insipidez.
Com que linda manhã de Maio entrei em Paris! Tão fresca e fina, e já
macia, que, apesar de cansado, mergulhei com repugnancia no profundo,
sombrio leito do Grand-Hotel, todo fechado de espessos velludos, grossos
cordões, pesadas borlas, como um palanque de gala. N'essa profunda cova
de pennas sonhei que em Tormes se construira uma torre Eiffel e que em
volta d'ella as senhoras da Serra, as mais respeitaveis, a propria tia
Albergaria, dançavam, núas, agitando no ar saca-rolhas immensos. Com as
commoções d'este pesadello, e depois o banho, e o desemmalar da mala, já
se acercavam as duas horas quando emfim emergi do grande portão, pisei,
ao cabo de cinco annos, o Boulevard. E immediatamente me pareceu que
todos esses cinco annos eu ali permanecera á porta do Grand-Hotel, tão
estafadamente conhecido me era aquelle estridente rolar da cidade, e as
magras arvores, e as grossas taboletas, e os immensos chapeus emplumados
sobre tranças pintadas d'amarello, e as empertigadas sobrecasacas com
grossas rosetas da legião d'honra, e os garotos, em voz rouca e baixa,
offerecendo baralhos de cartas obscenas, caixas de phosphoros
obscenas... Santo Deus! pensei, ha que annos eu estou em Paris! Comprei
então, n'um kiosque, um jornal, a Voz de Paris, para que elle me
contasse, durante o almoço, as novas da Cidade. A mesa do kiosque
desapparecia, alastrada de jornaes illustrados:--e em todos se repetia a
mesma mulher, sempre núa, ou meia despida, ora mostrando as costellas
magras, de gata faminta, ora voltando para o Leitor duas tremendas
nadegas... Eu outra vez murmurei:--Santo Deus! No café da Paz, o creado
livido, e com um resto de pó de arroz sobre a sua lividez, aconselhou ao
meu appetite, por ser tão tarde, um lingoado frito e uma costelleta.
--E que vinho, snr. Conde?
--Chablis, snr. Duque!
Elle sorrio á minha deliciosa pilheria,--e eu abri, contente, a Voz de
Paris. Na primeira columna, atravez d'uma prosa muito retorcida, toda em
brilhos de joia barata, entrevi uma Princesa núa, e um Capitão de
Dragões, que soluçava. Saltei a outras columnas, onde se contavam feitos
de cocottes de nomes sonoros. Na outra pagina escriptores eloquentes
celebravam vinhos digestivos e tonicos. Depois eram os crimes do
costume.--Não ha nada de novo! Puz de parte a Voz de Paris,--e então
foi, entre mim e o lingoado, uma lucta pavorosa. O miseravel, que se
frigira rancorosamente contra mim, não consentia que eu descollasse da
sua espinha uma febra escassa. Todo elle se ressequira n'uma sola
impenetravel e tostada, onde a faca vergava, impotente e tremula. Gritei
pelo môço livido, o qual, com faca mais rija, fincando no soalho os
sapatos de fivella, arrancou emfim áquelle malvado duas tirinhas, finas
e curtas como palitos, que engoli juntas, e me esfomearam. D'uma garfada
findei a costelleta. E paguei quinze francos com um bom luiz d'ouro. No
trôco, que o moço me deu, com a polidez requintada d'uma civilisação
muito diffundida, havia dous francos falsos. E por aquella dôce tarde de
Maio sahi para tomar no terraço um café côr de chapéo côco, que sabia a
fava.
Com o charuto acceso contemplei o Boulevard, áquella hora em toda a
pressa e estridor da sua grossa sociabilidade. A densa torrente dos
omnibus, calhambeques, carroças, parelhas de luxo, rolava vivamente,
como toda uma escura humanidade formigando entre patas e rodas, n'uma
pressa inquieta. Aquelle movimento continuado e rude bem depressa
entonteceu este espirito, por cinco annos affeito á quietação das serras
immutaveis. Tentava então, puerilmente, repousar n'alguma forma immovel,
omnibus parado, fiacre que estacára, n'um brusco escorregar da pileca:
mas logo algum dorso apressado se encafuava pela portinhola da tipoia,
ou um cacho de figuras escuras trepava sofregamente para o omnibus:--e,
rapido, recomeçava o rolar retumbante. Immoveis, de certo, estavam os
altos predios hirtos, ribas de pedra e cal, que continham,
disciplinavam, aquella torrente offegante. Mas da rua aos telhados, em
cada varanda, por toda a fachada, eram taboletas encimando taboletas,
que outras taboletas apertavam:--e mais me cançava o perceber a tenaz
incessancia do trabalho latente, a devorante canceira do lucro,
arquejante por traz das frontarias decorosas e mudas. Então, emquanto
fumava o meu charuto, extranhamente se apossaram de mim os sentimentos
que Jacintho outr'ora experimentára no meio da Natureza, e que tanto me
divertiam. Ali, á porta do café, entre a indifferença e a pressa da
Cidade, tambem eu senti, como elle no campo, a vaga tristeza da minha
fragilidade e da minha solidão. Bem certamente estava ali como perdido
n'um mundo, que me não era fraternal. Quem me conhecia? Quem se
interessaria por Zé Fernandes? Se eu sentisse fome, e o confessasse,
ninguem me daria metade do seu pão. Por mais afflictamente que a minha
face revelasse uma angustia, ninguem na sua pressa pararia para me
consolar. De que me serviriam tambem as excellencias d'alma, que só na
alma florescem? Se eu fosse um santo, aquella turba não se importaria
com a minha santidade; e se eu abrisse os braços e gritasse, ali no
Boulevard--«ó homens, meus irmãos!» os homens, mais ferozes que o lôbo
ante o Pobresinho d'Assis, ririam e passariam indifferentes. Dous
impulsos unicos, correspondendo a duas funcções unicas, parecia estarem
vivos n'aquella multidão,--o lucro e o gôso. Isolada entre elles, e ao
contagio ambiente da sua influencia, em breve a minha alma se
contrahiria, se tornaria n'um duro calhau de Egoismo. Do ser que eu
trouxera da Serra só restaria em pouco tempo esse calhau, e n'elle,
vivos, os dous appetites da Cidade,--encher a bolsa, saciar a carne! E
pouco a pouco as mesmas exagerações de Jacintho perante a Natureza me
invadiam perante a Cidade. Aquelle Boulevard reçumava para mim um bafo
mortal, extrahido dos seus milhões de microbios. De cada porta me
parecia sahir um ardil para me roubar. Em cada face, avistada á
portinhola d'um fiacre, suspeitava um bandido em manobra. Todas as
mulheres me pareciam caiadas como sepulchros, tendo só podridão por
dentro. E considerava d'uma melancolia funambulesca as fórmas de toda
aquella Multidão, a sua pressa aspera e vã, a affectação das attitudes,
as immensas plumas das chapeletas, as expressões postiças e falsas, a
pompa dos peitos alteados, o dorso redondo dos velhos olhando as imagens
obscenas das vitrines. Ah! tudo isto era pueril, quasi comico da minha
parte, mas é o que eu sentia no Boulevard, pensando na necessidade de
remergulhar na Serra, para que ao seu puro ar se me despegasse a crosta
da Cidade, e eu resurgisse humano, e Zé-Fernandico!
Então, para dissipar aquelle pesadume de solidão, paguei o café e parti,
lentamente, a visitar o 202. Ao passar na Magdalena, deante da estação
dos omnibus, pensei:--Que será feito de Madame Colombe? E, oh miseria!
pelo meu miseravel ser subiu uma curta e quente baforada de desejo bruto
por aquella besta suja e magra! Era o charco onde eu me envenenara, e
que me envolvia nas emanações subtis do seu veneno. Depois, ao dobrar da
rue Royale para a Praça da Concordia, topei com um robusto e possante
homem, que estacou, ergueu o braço, ergueu o vozeirão, n'um modo de
commando:
--Eh, Fernandes!
O Grão-Duque! O bello Grão-Duque, de jaquetão alvadio e chapeu tyrolez
côr de mel! Apertei com gratidão reverente a mão do Principe, que me
reconhecera.
--E Jacintho? Em Paris?...
Contei Tormes, a serra, o rejuvenescimento do nosso amigo entre a
Natureza, a minha dôce prima, e os bravos pequenos, que elle trazia ás
cavalleiras. O Grão-Duque encolheu os hombros, desolado:
--Oh lá, lá, lá!... Peuh! Casado, na aldeia, com filharada... Homem
perdido! Ora não ha!... E um rapaz util! que nos divertia, e tinha
gosto! Aquelle jantar côr de rosa foi uma festa linda... Não se fez, não
se tornou a fazer nada tão brilhante em Paris... E Madame d'Oriol...
Ainda ha dias a vi no Palacio de Gelo... Potavel, mulher ainda muito
potavel... Não é todavia o meu genero... Adocicada, leitosa, pommadada,
neve á la vanille!... Ora esse Jacintho!...
--E Vossa Alteza, em Paris com demora?
O formidavel homem baixou a face, franzida e confidencial:
--Nenhuma. Paris não se aguenta... Está estragado, positivamente
estragado... Nem se come! Agora é o Ernest, da Praça Gaillon, o Ernest,
que era maitre-d'hotel do Maire... Já lá comeu? Um horror. Tudo é o
Ernest, agora! Onde se come? No Ernest. Qual! Ainda esta manhã lá
almocei... Um horror! Uma salada Chambord... palhada, indecentemente
palhada! Não tem, não tem a noção da salada! Paris foi! Theatros, uma
estopada. Mulheres, hui! Lambidas todas. Não ha nada! Ainda assim, n'um
dos theatritos de Montmartre, na Roulotte, está uma revista, que se vê:
_Para cá as mulheres_!--engraçada, bem despida... A Celestine tem uma
cantiga, meia sentimental, meia porca, o _Amor no Water-Closet_, que
diverte, tem topete... Onde está, Fernandes?
--No Grand-Hotel, meu senhor.
--Que barraca!... E o seu Rei sempre bom?
Curvei a cabeça:
--Sua Magestade, bem.
--Estimo! Pois, Fernandes, tive prazer... Esse Jacintho é que me desola!
Vá vêr a Revista... Boas pernas, a Celestine... E tem graça o tal _Amor
no Water-Closet_.
Um rijissimo aperto de mão,--e S. Alteza subiu pesadamente para a
victoria, ainda com um aceno amavel, que me penhorou... Excellente
homem, este Grão-Duque! Mais reconciliado com Paris, atravessei para os
Campos-Elyseos. Em toda a sua nobre e formosa larguesa, toda verde, com
os castanheiros em flôr, corriam, subindo, descendo, velocipedes. Parei
a contemplar aquella fealdade nova, estes innumeraveis espinhaços
arqueados, e gambias magras, agitando-se desesperadamente sobre duas
rodas. Velhos gordos, de cachaço escarlate, pedalavam, gordamente.
Galfarros esguios, de tibias descarnadas, fugiam n'uma linha esfusiada.
E as mulheres, muito pintadas, de bolero curto, calções bufantes,
giravam, mais rapidamente ainda, no prazer equivoco da carreira,
escarranchadas em hastes de ferro. E a cada instante outras medonhas
machinas passavam, victorias e phaetons a vapor, com uma complicação de
tubos e caldeiras, torneiras e chaminés, rolando n'uma trepidação
estridente e pesada, espalhando um grosso fedor de petroleo. Segui para
o 202, pensando no que diria um grego do tempo de Phidias, se visse esta
nova belleza e graça do caminhar humano!...
No 202, o porteiro, o velho Vian, quando me reconheceu, mostrou uma
alegria enternecedora. Não se fartou de saber do casamento de Jacintho,
e d'aquelles queridos meninos. E era para elle uma felicidade que eu
apparecesse, justamente quando tudo se andára limpando para a entrada da
primavera. Quando penetrei na amada casa senti mais vivamente a minha
solidão. Não restava em toda ella nem um dos costumados aspectos que
fizessem reviver a velha camaradagem com o meu Principe. Logo na
ante-camara grandes lonas cobriam as tapessarias heroicas, e egual lona
parda escondia os estofos das cadeiras e dos muros, e as largas estantes
d'ebano da Bibliotheca, onde os trinta mil volumes, nobremente
enfileirados como Doutores n'um Concilio, pareciam separados do mundo
por aquelle panno que sobre elles descera depois de finda a comedia da
sua força e da sua auctoridade. No gabinete de Jacintho, de sobre a mesa
d'escripta, desapparecera aquella confusão de instrumentosinhos, de que
eu perdera já a memória: e só a Mechanica sumptuosa, por sobre peanhas e
pedestaes, recentemente espanejada, reluzia, com as suas engrenagens,
tubos, rodas, rigidezes de metaes, n'uma frieza inerte, na inactividade
definitiva das cousas desusadas, como já dispostas n'um Museu, para
exemplificar a instrumentação caduca d'um mundo passado. Tentei mover o
telephone, que se não moveu; a mola da electricidade não accendeu nenhum
lume: todas as forças universaes tinham abandonado o serviço do 202,
como servos despedidos. E então, passeando atravez das salas, realmente
me pareceu que percorria um museu d'antiguidades; e que mais tarde
outros homens, com uma comprehensão mais pura e exacta da Vida e da
Felicidade, percorreriam como eu, longas salas, atulhadas com os
instrumentos da Super-Civilisação, e, como eu, encolheriam
desdenhosamente os hombros ante a grande Illusão que findára, agora para
sempre inutil, arrumada como um lixo historico, guardada debaixo de
lona.
Quando sahi do 202 tomei um fiacre, subi ao Bosque de Bolonha. E apenas
rolára momentos pela avenida das Acacias, no silencio decoroso,
unicamente cortado pelo tilintar dos freios e pelas rodas vagarosas
esmagando a areia, comecei a reconhecer as velhas figuras, sempre com o
mesmo sorriso, o mesmo pó d'arroz; as mesmas palpebras amortecidas, os
mesmos olhos farejantes, a mesma immobilidade de cêra! O romancista da
_Couraça_ passou n'uma victoria, fixou em mim o monoculo defumado, mas
permaneceu indifferente. Os bandós negros de Madame Verghane,
tapando-lhe as orelhas, pareciam ainda mais furiosamente negros entre a
harmonia de todo o branco que a vestia, chapéo, plumas, flôres, rendas e
corpete, onde o seu peito immenso se empolava como uma onda. No passeio,
sob as Acacias, espapado em duas cadeiras, o director do _Boulevard_
mamava o resto do seu charuto. E n'um grande landeau, Madame de Trèves
continuava o seu sorriso de ha cinco annos, com duas pregasinhas mais
molles aos cantos dos labios seccos.
Abalei para o Grand-Hotel, bocejando,--como outr'ora Jacintho. E findei
o meu dia de Paris, no Theatro das Variedades, estonteado com uma
comedia muito fina, muito acclamada, toda faiscante do mais vivo
parisianismo, em que todo o enredo se enrodilhava á volta d'uma Cama,
onde alternadamente se espojavam mulheres em camisa, sujeitos gordos em
ceroulas, um coronel com papas de linhaça nas nadegas, cosinheiras de
meias de sêda bordadas, e ainda mais gente, ruidosa e saltitante, a
esfusiar de cio e de pilheria. Tomei um chá melancolico no Julien, no
meio de um aspero e lugubre namoro de prostitutas, fariscando a preza.
Em duas d'ellas, de pelle oleosa e cobreada, olhos obliquos, cabellos
duros e negros como clinas, senti o Oriente, a sua provocação felina...
Interroguei o creado, um medonho ser, d'uma obesidade balofa e livida,
d'eunuco. O monstro explicou n'uma voz roufenha e surda:
--Mulheres de Madagascar... Foram importadas quando a França occupou a
ilha!
Arrastei então por Paris dias d'immenso tedio. Ao longo do Boulevard
revi nas vitrines todo o luxo, que já me enfartára havia cinco annos,
sem uma graça nova, uma curta frescura de invenção. Nas livrarias, sem
descobrir um livro, folheava centenas de volumes amarellos, onde, de
cada pagina que ao acaso abria, se exhalava om cheiro môrno d'alcova e
de pós d'arroz, entre linhas trabalhadas com effeminado arrebique, como
rendas de camisas. Ao jantar, em qualquer restaurante, encontrava,
ornando e disfarçando as carnes ou as aves, o mesmo môlho, de côres e
sabores de pomada, que já de manhã, n'outro restaurante, espelhado e
dourejado, me enjoára no peixe e nos legumes. Paguei por grossos preços
garrafas do nosso adstringente e rustico vinho de Torres, ennobrecido
com o titulo de Château isto, Château aquillo, e pó postiço no gargalo.
Á noite, nos theatros, encontrava a Cama, a costumada cama, como centro
e unico fim da vida, attrahindo, mais fortemente que o monturo attrahe
os moscardos, todo um enxame de gentes, estonteadas, frementes
d'erotismo, zumbindo chacotas senis. Esta sordidez da Planicie me levou
a procurar melhor aragem d'espirito nas alturas da Collina, em
Montmartre; e ahi, no meio d'uma multidão elegante de Senhoras, de
Duquezas, de Generaes, de todo o alto pessoal da Cidade, eu recebia, do
alto do palco, grossos jorros de obscenidades, que faziam estremecer de
goso as orelhas cabelludas de gordos banqueiros, e arfar com delicia os
corpetes de Worms e de Doucet, sobre os peitos postiços das nobres
damas. E recolhia enjoado com tanto relento d'Alcova, vagamente
dispeptico com os môlhos de pomada do jantar, e sobre tudo descontente
comigo, por me não divertir, não comprehender a Cidade, e errar atravez
d'ella e da sua Civilisação Superior, com a reserva ridicula d'um
Censor, d'um Catão austero. Oh senhores!--pensava,--pois eu não me
divertirei nesta deliciosa Cidade? Entrará comigo o bolor da velhice?
Passei as pontes, que separam em Paris o Temporal do Espiritual,
mergulhei no meu doce Bairro Latino, evoquei, deante de certos cafés, a
memoria da minha Nini; e, como outr'ora, preguiçosamente, subi as
escadas da Sorbonne. N'um amphitheatro, onde sentira um grosso susurro,
um homem magro, com uma testa muito branca e larga, como talhada para
alojar pensamentos altos e puros, ensinava, falando das instituições da
Cidade Antiga. Mas, mal eu entrára, o seu dizer elegante e limpido foi
suffocado por gritos, urros, patadas, um tumulto rancoroso de troça
bestial, que sahia da mocidade apinhada nos bancos, a mocidade das
Escolas, Primavera sagrada, em que eu fôra flôr murcha. O Professor
parou, espalhando em redor um olhar frio, e remexendo as suas notas.
Quando o grosso grunhido se moderou em susurro desconfiado, elle
recomeçou com alta serenidade. Todas as suas ideias eram frias e
substanciaes, expressas n'uma lingoa pura e forte; mas, immediatamente,
rompe uma furiosa rajada de apitos, uivos, relinchos, cacarejos de
gallo, por entre magras mãos, que se estendiam levantadas para
estrangular as ideias. Ao meu lado um velho, encolhido na alta gola d'um
macfrelane de xadrezes, contemplava o tumulto com melancolia, pingando
endefluxado. Perguntei ao velho:
--Que querem elles? É embirração com o professor... é politica?
O velho abanou a cabeça, espirrando:
--Não... É sempre assim, agora, em todos os cursos... Não querem
ideias... Creio que queriam cançonetas. É o amor da porcaria e da troça.
Então, indignado, berrei:
--Silencio, brutos!
E eis que um abortosinho de rapaz, amarellado e sebento, de longas
melenas, umas enormes lunetas rebrilhantes, se arrebita, me fita, e me
berra:
--_Sale Maure_!
Ergui o meu grosso punho serrano,--e o desgraçado, n'uma confusão de
melenas, com sangue por toda a face, alluio, como um montão de trapos
molles, ganindo desesperadamente, em quanto o furacão de uivos e
cacarejos, guinchos e silvos, envolvia o Professor, que cruzára os
braços, esperando, com uma serenidade simples.
Desde esse momento decidi abandonar a fastidiosa Cidade; e o unico dia
alegre e divertido que n'ella passei foi o derradeiro, comprando para os
meus queridinhos de Tormes brinquedos consideraveis, tremendamente
complicados pela Civilisação,--vapores de aço e cobre, providos de
caldeiras para viajar em tanques; leões de pelle veridica rugindo
pavorosamente, bonecas vestidas pela Laferrière, com phonographo no
ventre...
Finalmente abalei uma tarde, depois de lançar da minha janella, sobre o
Boulevard, as minhas despedidas á Cidade:
--Pois adeusinho, até nunca mais! Na lama do teu vicio e na poeira da
tua vaidade, outra vez, não me pilhas! O que tens de bom, que é o teu
genio, elegante e claro, lá o receberei na Serra pelo correio.
Adeusinho!
Na tarde do seguinte Domingo, debruçado da janella do comboio, que
vagarosamente deslisava pela borda do rio lento, n'um silencio todo
feito d'azul e sol, avistei, na plata-forma da quieta estação da minha
aldeia, os Senhores de Tormes, com a minha afilhada Thereza, muito
vermelha, arregalando os seus soberbos olhos, e o bravo Jacinthinho, que
empunhava uma bandeira branca. O alvoroço ditoso com que abracei e
beijei aquella tribu bem amada conviria perfeitamente a quem voltasse
vivo d'uma guerra distante, na Tartaria. Na alegria de recuperar a
Serra, até beijoquei o chefe Pimentinha, que a estalar d'obesidade se
açodava gritando ao carregador todo o cuidado com as minhas malas.
Jacintho, magnifico, de grande chapéo serrano e jaqueta, de novo me
abraçou:
--E esse Paris?
--Medonho!
Abri depois os braços para o bravo Jacintinho.
--Então para que é essa bandeira, meu cavalleiro?
--É a bandeira do Castello! declarou elle, com uma bella seriedade nos
seus grandes olhos.
A mãe ria. Desde essa manhã, logo que soubera da chegada do Ti-Zé,
appareceu de bandeira, feita pelo Grillo, e não a largára mais; com ella
almoçára, com ella descera de Tormes!
--Bravo! E, prima Joanninha, olhe que está magnifica! Eu, tambem, venho
d'aquellas pelles meladas de Paris... Mas acho-a triumphal! E o tio
Adrião, e a tia Vicencia?
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