A Cidade e as Serras - 04

Total number of words is 4464
Total number of unique words is 1821
28.7 of words are in the 2000 most common words
42.5 of words are in the 5000 most common words
49.6 of words are in the 8000 most common words
Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
«caro conde»! N'um relance, rebuscando charutos sobre a mesa de
limoeiro, comprehendi que se tramava a _Companhia das Esmeraldas da
Birmania_, medonha empreza em que scintillavam milhões, e para que os
dous confederados de bolsa e d'alcôva, desde o começo do anno, pediam o
nome, a influencia, o dinheiro de Jacintho. Elle resistira, n'um enfado
dos negocios, desconfiado d'aquellas esmeraldas soterradas n'um valle da
Asia. E agora o conde de Treves, um homem esgrouviado, de face
rechupada, erriçada de barba rala, sob uma fronte rotunda e amarella
como um melão, assegurava ao meu pobre Principe que no Prospecto já
preparado, demonstrando a grandeza do negocio, perpassava um fulgôr das
_Mil e Uma noites_. Mas sobretudo aquella excavação de esmeraldas
convidava todo o espirito culto pela sua acção civilisadora. Era uma
corrente de idéas occidentaes, invadindo, educando a Birmania. Elle
acceitára a direcção por patriotismo...
--De resto é um negocio de joias, de arte, de progresso, que deve ser
feito, n'um mundo superior, entre amigos...
E do outro lado o terrivel Ephraim, passando a mão curta e gorda sobre a
sua bella barba, mais frisada e negra que a d'um Rei Assyrio, affiançava
o triumpho da empreza pelas grossas forças que n'ella entravam, os
Nagayers, os Bolsans, os Saccart...
Jacintho franzia o nariz, enervado:
--Mas, ao menos, estão feitos os estudos? Já se provou que ha
esmeraldas?
Tanta ingenuidade exasperou Ephraim:
--Esmeraldas! Está claro que ha esmeraldas!... Ha sempre esmeraldas
desde que haja accionistas!
E eu admirava a grandeza d'aquella maxima--quando appareceu, esbaforido,
desdobrando o lenço muito perfumado, um dos familiares do 202, Todelle
(Antonio de Todelle), moço já calvo, d'infinitas prendas, que conduzia
Cotillons, imitava cantores de Café Concerto, temperava saladas raras,
conhecia todos os enredos de Paris.
--Já veio?... Já cá está o Gran-Duque?
Não, S. Alteza ainda não chegára. E Madame de Todelle?
--Não poude... No sophá... Esfolou uma perna.
--Oh!
--Quasi nada... Cahiu do velocipede!
Jacintho, logo interessado:
--Ah! Madame de Todelle anda já de velocipede?
--Aprende. Nem tem velocipede!... Agora, na quaresma, é que se applicou
mais, no velocipede do padre Ernesto, do cura de S. José! Mas hontem, no
Bosque, zás, terra!... Perna esfolada. Aqui.
E na sua propria côxa, com a unha, vivamente, desenhou o esfolão.
Ephraim, brutal e serio, murmurou:--«Diabo! é no melhor sitio!» Mas
Todelle nem o escutára, correndo para o director do _Boulevard_, que se
avançava, lento e barrigudo, com o seu monoculo negro semelhante a um
pacho. Ambos se collaram contra uma estante, n'um cochichar profundo.
Jacintho e eu entramos então no bilhar, forrado de velhos couros de
Cordova, onde se fumava. Ao canto d'um divan, o grande Dornan, o poeta
neo-platonico e mystico, o Mestre subtil de todos os rithmos, espapado
nas almofadas, com um dos pés sob a côxa gorda, como um Deus indio, dois
botões do collete desabotoados, a papeira cahida sobre o largo decote do
collarinho, mamava magestosamente um immenso charuto. Ao pé d'elle,
também sentado, um velho que eu nunca encontrára no 202, esbelto, de
cabellos brancos em anneis passados por traz das orelhas, a face coberta
de pó de arroz, um bigodinho muito negro e arrebitado, findára
certamente alguma historia de bom e grosso sal--porque deante do divan,
de pé, Joban, o suprèmo Critico de Theatro, ria com a calva escarlate de
gôso, e um moço muito ruivo (descendente de Colygny), de perfil de
periquito, sacudia os braços curtos como azas, e gania: «delicioso!
divino!» Só o poeta idealista permanecera impassivel, na sua magestade
obesa. Mas, quando nos acercamos, esse Mestre do rythmo perfeito, depois
de soprar uma farta fumarada e me saudar com um pesado mover das
palpebras, começou n'uma voz de rico e sonoro metal:
--Ha melhor, ha infinitamente melhor... Todos aqui conhecem Madame
Noredal. Madame Noredal tem umas immensas nadegas...
Desgraçadamente para o meu regalo Todelle invadiu o bilhar, reclamando
Jacintho com alarido. Eram as senhoras que desejavam ouvir no
Phonographo uma aria da Patti! O meu amigo sacudiu logo os hombros,
n'uma surda irritação:
--Aria da Patti... Eu sei lá! Todos esses rolos estão em confusão. Além
d'isso o Phonographo trabalha mal. Nem trabalha! Tenho tres. Nenhum
trabalha!
--Bem! exclamou alegremente Todelle. Canto eu a _Pauvre fille_... É mais
de ceia! _Oh, la pauv', pauv', pauv'_...
Travou do meu braço, e arrastou a minha timidez serrana para o salão côr
de rosa murcha, onde, como Deusas n'um circulo escolhido do Olympo,
resplandeciam Madame d'Oriol, Madame Verghane, a princeza de Carman, o
uma outra loura, com grandes brilhantes nas grandes farripas, e
d'hombros tão nús, e braços tão nús, e peitos tão nús, que o seu vestido
branco com bordados d'ouro pallido parecia uma camisa, a escorregar.
Impressionado, ainda retive Todelle, rugi baixinho:--«Quem é?» Mas já o
festivo homem correra para Madame d'Oriol, com quem riam, n'uma
familiaridade superior e facil, Marizac (o duque de Marizac) e um moço
de barba côr de milho e mais leve que uma penugem, que se balouçava
gracilmente sobre os pés, como uma espiga ao vento. E eu, encalhado
contra o piano, esfregava lentamente as mãos, amassando o meu embaraço,
quando Madame Verghane se ergueu do sophá onde conversava com um velho
(que tinha a Gran-Cruz de Santo André), e avançou, deslizou no tapete,
pequena e nedia, na sua copiosa cauda de velludo verde-negro. Tão fina
era a cinta, entre os encontros fecundos e a vastidão do peito, todo nú
e côr de nacar, que eu receava que ella partisse pelo meio, no seu lento
ondular. Os seus famosos bandós negros, d'um negro furioso, inteiramente
lhe tapavam as orelhas; e, no grande aro d'ouro que os circumdava,
reluzia uma estrella de brilhantes, como na fronte dos anjos de
Boticelli. Conhecendo sem dúvida a minha auctoridade no 202, ella
despediu sobre mim ao passar, como raio benefico, um sorriso que lhe
liquescia mais os olhos liquidos, e murmurou:
--O Gran-Duque vem, com certeza?
--Oh com certeza, minha senhora, para o peixe!
--P'ra o peixe?...
Mas justamente, na antecamara, rompeu, em rufos e arcadas triumphaes, a
marcha de Rakoczy. Era elle! Na Bibliotheca, o nosso retumbante mordomo
annunciava:
--S. Alteza o Gran-Duque Casimiro!
Madame de Verghane, com um curto suspiro d'emoção, alteou o peito, como
para lhe expôr melhor a magnificencia eburnea. E o homem do _Boulevard_,
o velho da Gran-Cruz, Ephraim, quasi me empurraram, investindo para a
porta, na immensa sofreguidão de Pessoa Real.
Precedido por Jacintho, o Gran-Duque surgiu. Era um possante homem, de
barba em bico, já grisalha, um pouco calvo. Durante um momento hesitou,
com um balanço lento sobre os pés pequeninos, calçados de sapatos rasos,
quasi sumidos sob as pantalonas muito largas. Depois, pesado e risonho,
veio apertar a mão ás senhoras que mergulhavam nos velludos e sêdas, em
mesuras de Côrte. E immediatamente, batendo com carinhosa jovialidade no
hombro de Jacintho:
--E o peixe?... Preparado pela receita que mandei, hein?
Um murmurio de Jacintho tranquillisou S. Alteza.
--Ainda bem, ainda bem! exclamou elle, no seu vozeirão de commando. Que
eu não jantei, absolutamente não jantei! É que se está jantando
deploravelmente em casa do Joseph. Mas porque se vai jantar ainda ao
Joseph? Sempre que chego a Paris, pergunto: «Onde é que se janta agora?»
Em casa do Joseph!... Qual! não se janta! Hoje, por exemplo,
gallinholas... Uma peste! Não tem, não tem a noção da gallinhola!
Os seus olhos azulados, d'um azul sujo, rebrilhavam, alargados pela
indignação:
--Paris está perdendo todas as suas superioridades. Já se não janta, em
Paris!
Então, em redor, aquelles senhores concordaram, desolados. O conde de
Treves defendeu o Bignon, onde se conservavam nobres tradições. E o
director do _Boulevard_, que se empurrava todo para S. Alteza, attribuia
a decadencia da cozinha, em França, á Republica, ao gosto democratico e
torpe pelo barato.
--No Paillard, todavia...--começou o Ephraim.
--No Paillard! gritou logo o Gran-Duque. Mas os Borgonhas são tão maus!
os Borgonhas são tão maus!...
Deixára pender os braços, os hombros, descorçoado. Depois, com o seu
lento andar balançado como o d'um velho piloto, atirando um pouco para
traz as lapellas da casaca, foi saudar Madame d'Oriol, que toda ella
faiscou, no sorriso, nos olhos, nas joias, em cada préga das suas sêdas
côr de salmão. Mas apenas a clara e macia creatura, batendo o leque como
uma aza alegre, começára a chalrar, S. Alteza reparou no apparelho do
Theatrophone, pousado sobre uma mesa entre flôres, e chamou Jacintho:
--Em communicação com o Alcazar?... O Theatrophone?
--Certamente, meu senhor.
Excellente! Muito chic! Elle ficára com pena de não ouvir a Gilberte
n'uma cançoneta nova, as _Casquettes_. Onze e meia! Era justamente a
essa hora que ella cantava, no ultimo acto da _Revista
Electrica_...--Collou ás orelhas os dous «receptores» do Theatrophone, e
quedou embebido, com uma ruga séria na testa dura. De repente, n'um
commando forte:
--É ella! Chut! Venham ouvir!... É ella! Venham todos! Princeza de
Carman, para aqui! Todos! É ella! Chut...
Então, como Jacintho installára prodigamente dois Theatrophones, cada um
provido de doze fios, as senhoras, todos aquelles cavalheiros, se
apressaram a acercar submissamente um receptor do ouvido, e a permanecer
immoveis para saborear _Les Casquettes_. E no salão côr de rosa murcha,
na nave da Bibliotheca, onde se espalhára um silencio augusto, só eu
fiquei desligado do Theatrophone, com as mãos nas algibeiras e ocioso.
No relogio monumental, que marcava a hora de todas as Capitaes e o
movimento de todos os Planetas, o ponteiro rendilhado adormeceu. Sobre a
mudez e a immobilidade pensativa d'aquelles dorsos, d'aquelles decotes,
a Electricidade refulgia com uma tristeza de sol regelado. E de cada
orelha attenta, que a mão tapava, pendia um fio negro, como uma tripa.
Dornan, esbroado sobre a mesa, cerrára as palpebras, n'uma meditação de
monge obeso. O historiador dos Duques d'Anjou, com o «receptor» na ponta
delicada dos dedos, erguendo o nariz agudo e triste, gravemente cumpria
um dever palaciano. Madame d'Oriol sorria, toda languida, como se o fio
lhe murmurasse doçuras. Para desentorpecer arrisquei um passo timido.
Mas cahiu logo sobre mim um _chut_ severo do Gran-Duque! Recuei para
entre as cortinas da janella, a abrigar a minha ociosidade. O Philologo
da _Couraça_, distante da mesa, com o seu comprido fio esticado, mordia
o beiço, n'um esforço de penetração. A beatitude de S. Alteza, enterrado
n'uma vasta poltrona, era perfeita. Ao lado o collo de Madame Verghane
arfava como uma onda de leite. E o meu pobre Jacintho, n'uma applicação
conscienciosa, pendia sobre o Theatrophone tão tristemente como sobre
uma sepultura.
Então, ante aquelles seres de superior civilisação, sorvendo n'um
silencio devoto as obscenidades que a Gilberte lhes gania, por debaixo
do solo de Paris, atravez de fios mergulhados nos esgotos, cingidos aos
canos das fezes,--pensei na minha aldeia adormecida. O crescente de lua,
que, seguido d'uma estrellinha, corria entre nuvens sobre os telhados e
as chaminés negras dos Campos-Elyseos, tambem andava lá fugindo, mais
lustrosa e mais dôce, por cima dos pinheiraes. As rãs coaxavam ao longe
no Pego da Dona. A ermidinha de S. Joaquim branquejava no cabeço,
nuasinha e candida...
Uma das senhoras murmurou:
--Mas, não é a Gilberte!...
E um dos homens:
--Parece um cornetim...
--Agora são palmas...
--Não, é o Paulin!
O Gran-Duque lançou um _chut_ feroz... No pateo da nossa casa ladravam
os cães. D'além do ribeiro respondiam os cães do João Saranda. Como me
encontrei descendo por uma quelha, sob as ramadas, com o meu varapau ao
hombro? E sentia, entre a sêda das cortinas, n'um fino ar macio, o
cheiro das pinhas estalando nas lareiras, o calor dos curraes atravez
das sebes altas, e o susurro dormente das levadas...
Despertei a um brado que não sahia nem dos eidos, nem das sombras. Era o
Gran-Duque que se erguera, encolhia furiosamente os hombros:
--Não se ouve nada!... Só guinchos! E um zumbido! Que massada!... Pois é
uma belleza, a cançoneta:
Oh les casquettes,
Oh les casque-e-e-tes!...
Todos largaram os fios--proclamavam a Gilberte deliciosa. E o mordomo
bemdito, abrindo largamente os dous batentes, annunciou:
--_Monseigneur est servi_!
Na mesa, que pelo esplendor das orchideas mereceu os louvores ruidosos
de S. Alteza, fiquei entre o ethereo poeta Dornan e aquelle moço de
pennugem loura que balouçava como uma espiga ao vento. Depois de
desdobrar o guardanapo, de o accomodar regaladamente sobre os joelhos,
Dornan desenvencilhou da corrente do relogio uma enorme luneta para
percorrer o _menu_--que approvou. E inclinando para mim a sua face de
Apostolo obeso:
--Este Porto de 1834, aqui era casa do Jacintho, deve ser authentico...
Hein?
Assegurei ao Mestre dos Rythmos que o «Porto» envelhecêra nas adegas
classicas do avô Galião. Elle afastou, n'uma preparação methodica, os
longos, densos fios do bigode que lhe cobriam a bocca grossa. Os
escudeiros serviram um consommé frio com trufas. E o moço côr de milho,
que espalhára pela mesa o seu olhar azul e dôce, murmurou, com uma
desconsolação risonha:
--Que pena!... Só falta aqui um general e um bispo!
Com effeito! Todas as Classes Dominantes comiam n'esse momento as trufas
do meu Jacintho... Mas defronte Madame d'Oriol lançára um riso mais
cantado que um gorgeio. O Gran-Duque, n'uma silva de orchideas que
orlava o seu talher, notára uma, sombriamente horrenda, semelhante a um
lacrau esverdinhado, de azas lustrosas, gordo e tumido de veneno: e
muito delicadamente offertára a flôr monstruosa a Madame d'Oriol, que,
com trinado riso, solemnemente, a collocou no seio. Collado áquella
carne macia, d'uma brancura de nata fina, o lacrau inchára, mais verde,
com as azas frementes. Todos os olhos se accendiam, se cravavam no lindo
peito, a que a flôr disforme, de côr venenosa, apimentava o sabor. Ella
reluzia, triumphava. Para ageitar melhor a orchidea os seus dedos
alargaram o decote, aclararam bellezas, guiando aquellas curiosidades
flammejantes que a despiam. A face vincada de Jacintho pendia para o
prato vasio. E o alto lyrico do _Crepusculo Mystico_, passando a mão
pelas barbas, rosnou com desdem:
--Bella mulher... Mas ancas seccas, e aposto que não tem nadegas!
No emtanto o moço de loura pennugem voltára á sua estranha mágoa. Não
possuirmos um general com a sua espada, e um bispo com seu baculo!...
--Para que, meu caro senhor?
Elle atirou um gesto suave em que todos os seus anneis faiscaram:
--Para uma bomba de dynamite... Temos aqui um explendido ramalhete de
flôres de Civilisacão, com um Gran-Duque no meio. Imagine uma bomba de
dynamite, atirada da porta!... Que bello fim de ceia, n'um fim de
seculo!
E como eu o considerava assombrado, elle, bebendo golos de
Chateau-Yquem, declarou que hoje a unica emoção, verdadeiramente fina,
seria aniquillar a Civilisação. Nem a sciencia, nem as artes, nem o
dinheiro, nem o amor, podiam já dar um gosto intenso e real ás nossas
almas saciadas. Todo o prazer que se extrahíra de _crear_ estava
esgotado. Só restava, agora, o divino prazer de _destruir_!
Desenrolou ainda outras enormidades, com um riso claro nos olhos claros.
Mas eu não attendia o gentil pedante, colhido por outro
cuidado--reparando que em torno, subitamente, todo o serviço estacára
como no conto do Palacio Petrificado. E o prato agora devido era o peixe
famoso da Dalmacia, o peixe de S. Alteza, o peixe inspirador da festa!
Jacintho, nervoso, esmagava entre os dedos uma flôr. E todos os
escudeiros sumidos!
Felizmente o Gran-Duque contava a historia d'uma caçada, nas coutadas de
Sarvan, em que uma senhora, mulher de um banqueiro, saltára bruscamente
do cavallo, n'um descampado, sem arvores. Elle e todos os caçadores
param--e a galante senhora, livida, com a amazona arregaçada, corre para
traz d'uma pedra... Mas nunca soubemos em que se occupava a banqueira,
n'esse descampado, agachada atraz da pedra--porque justamente o mordomo
appareceu, relusente de suor, e balbuciou uma confidencia a Jacintho,
que mordeu o beiço, trespassado. O Gran-Duque emmudecera. Todos se
entre-olhavam, n'uma anciedade alegre. Então o meu Principe, com
paciencia, com heroicidade, forçando pallidamente o sorriso:
--Meus amigos, ha uma desgraça...
Dornan pulou na cadeira:
--Fogo?
Não, não era fogo. Fôra o elevador dos pratos, que inesperadamente, ao
subir o peixe de S. Alteza, se desarranjára, e não se movia, encalhado!
O Gran-Duque arremessou o guardanapo. Toda a sua polidez estalava como
um esmalte mal posto:
--Essa é forte!... Pois um peixe que me deu tanto trabalho! Para que
estamos nós aqui então a cear? Que estupidez! E porque o não trouxeram á
mão, simplesmente? Encalhado... Quero vêr! Onde é a copa?
E, furiosamente, investiu para a copa, conduzido pelo mordomo que
tropeçava, vergava os hombros, ante esta esmagadora colera de Principe.
Jacintho seguiu, como uma sombra, levado na rajada de S. Alteza. E eu
não me contive, tambem me atirei para a copa, a contemplar o desastre,
emquanto Dornan, batendo na côxa, clamava que se ceasse sem peixe!
O Gran-Duque lá estava, debruçado sobre o poço escuro do elevador, onde
mergulhára uma vela que lhe avermelhava mais a face esbraseada.
Espreitei, por sobre o seu hombro real. Em baixo, na treva, sobre uma
larga prancha, o peixe precioso alvejava, deitado na travessa, ainda
fumegando, entre rodellas de limão. Jacintho, branco como a gravata,
torturava desesperadamente a mola complicada do ascensor. Depois foi o
Gran-Duque que, com os pulsos cabelludos, atirou um empuxão tremendo aos
cabos em que elle rolava. Debalde! O apparelho enrijára n'uma inercia de
bronze eterno.
Sêdas roçagaram á entrada da copa. Era Madame d'Oriol, e atraz Madame
Verghane, com os olhos a faiscar, na curiosidade d'aquelle lance em que
o Principe soltára tanta paixão. Marizac, nosso intimo, surgiu tambem,
risonho, propondo uma descida ao poço com escadas. Depois foi o
Psychologo, que se abeirou, psychologou, attribuindo intenções sagazes
ao peixe que assim se recusava. E a cada um o Gran-Duque, escarlate,
mostrava com dedo tragico, no fundo da cova, o seu peixe! Todos
afundavam a face, murmuravam: «lá está!» Todelle, na sua precipitação,
quasi se despenhou. O periquito descendente de Colygny batia as azas,
ganindo:--«Que cheiro elle deita, que delicia!» Na copa atulhada os
decotes das senhoras roçavam a farda dos lacaios. O velho caiado de pó
d'arroz metteu o pé n'um balde de gelo, com um berro ferino. E o
Historiador dos Duques d'Anjou movia por cima de todos o seu nariz
bicudo e triste.
De repente, Todelle teve uma idéa!
--É muito simples... É pescar o peixe!
O Gran-Duque bateu na côxa uma palmada triumphal. Está claro! Pescar o
peixe! E no gozo d'aquella facecia, tão rara e tão nova, toda a sua
colera se sumíra, de novo se tornára o Principe amavel, de magnifica
polidez, desejando que as senhoras se sentassem para assistir á pesca
miraculosa! Elle mesmo seria o pescador! Nem se necessitava, para a
divertida façanha, mais que uma bengala, uma guita e um gancho.
Immediatamente Madame d'Oriol, excitada, offereceu um dos seus ganchos.
Apinhados em volta d'ella, sentindo o seu perfume, o calor da sua pelle,
todos exaltamos a amoravel dedicação. E o Psychologo proclamou que nunca
se pescára com tão divino anzol!
Quando dois escudeiros estonteados voltaram, trazendo uma bengala e um
cordel, já o Gran-Duque, radiante, vergára o gancho em anzol. Jacintho,
com uma paciencia livida, erguia uma lampada sobre a escuridão do poço
fundo. E os senhores mais graves, o Historiador, o director do
_Boulevard_, o Conde de Treves, o homem de cabeça á Van-Dick, sorriam,
amontoados á porta, n'um interesse reverente pela phantasia de S.
Alteza. Madame de Treves, essa, examinava serenamente, com a sua nobre
luneta, a installação da copa. Só Dornan não se erguera da mesa, com os
punhos cerrados sobre a toalha, o gordo pescoço encovado, no tedio
sombrio de fera a quem arrancaram a posta.
No emtanto S. Alteza pescava com fervor! Mas debalde! O gancho, pouco
agudo, sem presa, bamboleando na extremidade da guita frouxa, não
fisgava.
--Oh Jacintho, erga essa luz! gritava elle, inchado e suado. Mais!...
Agora! Agora! É na guelra! Só na guelra é que o gancho o póde prender.
Agora... Qual! Que diabo! Não vae!
Tirou a face do poço, resfolgando e affrontado. Não era possivel! Só
carpinteiros, com alavancas!... E todos, anciosamente, bradamos que se
abandonasse o peixe!
O Principe, risonho, sacudindo as mãos, concordava que por fim «fôra
mais divertido pescal-o do que comêl-o!» E o elegante bando refluiu
sofregamente para a mesa, ao som d'uma valsa de Strauss, que os Tziganes
arremeçaram em arcadas de languido ardôr. Só Madame de Treves se demorou
ainda, retendo o meu pobre Jacintho, para lhe assegurar quanto admirava
o arranjo da sua copa... Oh perfeita! Que comprehensão da vida, que fina
intelligencia do conforto!
S. Alteza, encalmado pelo esforço, esvasiou poderosamente dous copos de
Chateau-Lagrange. Todos o acclamavam como um pescador genial. E os
escudeiros serviram o _Barão de Pauillac_, cordeiro das lezirias
marinhas, que, preparado com ritos quasi sagrados, toma este grande nome
sonoro e entra no Nobiliario de França.
Eu comi com o appetite d'um heroe de Homero. Sobre o meu copo e o de
Dornan o Champagne scintillou e jorrou ininterrompidamente como uma
fonte de inverno. Quando se serviram ortolans gelados, que se derretiam
na bocca, o divino poeta murmurou, para meu regalo, o seu soneto sublime
a «Santa Clara». E como, do outro lado, o moço de pennugem loura
insistia pela destruição do velho mundo, tambem concordei, e, sorvendo o
Champagne coalhado em sorvete, maldissemos o Seculo, a Civilisação,
todos os orgulhos da Sciencia! Através das flôres e das luzes, no
emtanto, eu seguia as ondas arfantes do vasto peito de Madame Verghane,
que ria como uma bacchante. E nem me apiedava de Jacintho que, com a
doçura de S. Jacintho sobre o cêpo, esperava o fim do seu martyrio e da
sua festa.
Ella findou. Ainda recordo, ás tres horas da noite, o Gran-Duque na
antecamara, muito vermelho, mal firme nos pés pequeninos, sem acertar
com as mangas da pelissa que Jacintho e eu lhe ajudamos a
enfiar--convidando o meu amigo, n'uma effusão carinhosa, a ir caçar ás
suas terras da Dalmacia...
--Devo ao meu Jacintho uma bella pesca, quero que elle me deva uma bella
caçada!
E emquanto o acompanhavamos, entre as alas dos escudeiros, pela vasta
escada onde o mordomo o precedia erguendo um candelabro de tres lumes,
S. Alteza repisava, pegajoso:
--Uma bella caçada... E tambem vae Fernandes! Bom Fernandes, Zé
Fernandes! Ceia superior, meu Jacintho! O _Barão de Pauillac_,
divino!... Creio que o devemos nomear Duque... O Senhor Duque de
Pauillac! Mais um bocado da perna do Senhor Duque de Pauillac. Ah!
Ah!... Não venham fóra! Não se constipem!
E do fundo do coupé, ao rodar, ainda bradou:
--O peixe, Jacintho, desencalha o peixe! Excellente, ao almoço, frio,
com môlho verde!
Trepando cançadamente os degraus, n'uma molleza de Champagne e somno em
que os olhos se me cerravam, murmurei para o meu Principe:
--Foi divertido, Jacintho! Sumptuosa mulher, a Verghane! Grande pena, o
elevador...
E Jacintho, n'um som cavo que era bocejo e rugido:
--Uma massada! E tudo falha!
* * * * *
Tres dias depois d'esta festa no 202 recebeu o meu Principe
inesperadamente, de Portugal, uma nova consideravel. Sobre a sua quinta
e solar de Tormes, por toda a serra, passára uma tormenta devastadora de
vento, corisco e agua. Com as grossas chuvas, «ou por outras causas que
os peritos dirão» (como exclamava na sua carta angustiada o procurador
Silverio), um pedaço de monte, que se avançava em socalco sobre o valle
da Carriça, desabára, arrastando a velha egreja, uma egrejinha rustica
do seculo XVI, onde jaziam sepultados os avós de Jacintho desde os
tempos de el-rei D. Manoel. Os ossos veneraveis d'esses Jacinthos jaziam
agora soterrados sob um montão informe de terra e pedra. O Silverio já
começára com os moços da quinta a desatulhar dos «preciosos restos». Mas
esperava anciosamente as ordens de sua exc.^a...
Jacintho empallidecêra, impressionado. Esse velho solo serrano, tão rijo
e firme desde os Godos, que de repente ruia! Esses jazigos de paz
piedosa, precipitados com fragor, na borrasca e na treva, para um negro
fundo de valle! Essas ossadas, que todas conservavam um nome, uma data,
uma historia, confundidas n'um lixo de ruina!
--Coisa estranha, coisa estranha!...
E toda a noite me interrogou ácerca da serra e de Tormes, que eu
conhecia desde pequeno, por que o velho solar, com a sua nobre alameda
de faias seculares, se erguia a duas legoas da nossa casa, no antigo
caminho de Guiães á estação e ao rio. O caseiro de Tormes, o bom
Melchior, era cunhado do nosso feitor da Roqueirinha:--e muitas vezes,
depois da minha intimidade com Jacintho, eu entrára no robusto casarão
de granito, e avaliára o grão espalhado pelas salas sonoras, e provára o
vinho novo nas adegas immensas...
--E a egreja, Zé Fernandes?... Entraste na egreja?
--Nunca... Mas era pittoresca, com uma torresinha quadrada, toda negra,
onde ha muitos annos vivia uma familia de cegonhas... Terrivel
transtorno para as cegonhas!
--Coisa estranha! murmurava ainda o meu Principe, agourado.
E telegraphou ao Silverio que desatulhasse o valle, recolhesse as
ossadas, reedificasse a Egreja, e, para esta obra de piedade e
reverencia, gastasse o dinheiro, sem contar, como a agua d'um rio largo.


V

No emtanto Jacintho, desesperado com tantos desastres humilhadores--as
torneiras que dessoldavam, os elevadores que emperravam, o Vapor que se
encolhia, a Electricidade que se sumia, decidiu valorosamente vencer as
resistencias finaes da Materia e da Força por novas e mais poderosas
accumulacões de Mechanismos. E n'essas semanas de Abril, emquanto as
rosas desabrochavam, a nossa agitada casa, entre aquellas quietas casas
dos Campos-Elyseos que preguiçavam ao sol, incessantemente tremeu,
envolta n'um pó de caliça e d'empreitada, com o bruto picar de pedra, o
retininte martelar de ferro. Nos silenciosos corredores, onde me era
dôce fumar antes do almoço um pensativo cigarro, circulavam agora, desde
madrugada, ranchos d'operarios, de blusas brancas, assobiando o
_Petît-Bleu_, e intimidando os meus passos quando eu atravessava em
fralda e chinellas para o banho ou para outros retiros. Apenas se varava
com pericia algum andaime obstruindo as portas--logo se esbarrava com
uma pilha de taboas, uma ceira de farramentas ou um balde enorme
d'argamassa. E os pedaços de soalho levantado mostravam tristemente,
como n'um cadaver aberto, todos os interiores do 202, a ossatura, os
sensiveis nervos d'arame, os negros intestinos de ferro fundido.
Cada dia estacava deante do portão alguma lenta carroça, d'onde os
creados, em mangas de camisa, descarregavam caixotes de madeira, fardos
de lona, que se despregavam e se descosiam n'uma sala asphaltada, ao
fundo do jardim, por traz da sebe de lilazes. E eu descia, reclamado
pelo meu Principe, para admirar uma nova Machina que nos tornaria a vida
mais facil, estabelecendo d'um modo mais seguro o nosso dominio sobre a
Substancia. Durante os calores, que apertaram depois da Ascenção,
ensaiamos esperançadamente, para refrescar as aguas mineraes, a
Soda-Water e os Medocs ligeiros, tres geleiras, que se amontoaram na
copa successivamente desprestigiadas. Com os morangos novos appareceu um
instrumentosinho astuto, para lhes arrancar os pés, delicadamente.
You have read 1 text from Portuguese literature.
Next - A Cidade e as Serras - 05
  • Parts
  • A Cidade e as Serras - 01
    Total number of words is 4534
    Total number of unique words is 1943
    28.6 of words are in the 2000 most common words
    44.0 of words are in the 5000 most common words
    51.4 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • A Cidade e as Serras - 02
    Total number of words is 4323
    Total number of unique words is 1899
    26.4 of words are in the 2000 most common words
    38.8 of words are in the 5000 most common words
    46.4 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • A Cidade e as Serras - 03
    Total number of words is 4412
    Total number of unique words is 1816
    28.6 of words are in the 2000 most common words
    41.8 of words are in the 5000 most common words
    49.5 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • A Cidade e as Serras - 04
    Total number of words is 4464
    Total number of unique words is 1821
    28.7 of words are in the 2000 most common words
    42.5 of words are in the 5000 most common words
    49.6 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • A Cidade e as Serras - 05
    Total number of words is 4606
    Total number of unique words is 1901
    25.9 of words are in the 2000 most common words
    39.3 of words are in the 5000 most common words
    48.0 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • A Cidade e as Serras - 06
    Total number of words is 4520
    Total number of unique words is 1951
    29.5 of words are in the 2000 most common words
    43.5 of words are in the 5000 most common words
    50.2 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • A Cidade e as Serras - 07
    Total number of words is 4487
    Total number of unique words is 1905
    28.2 of words are in the 2000 most common words
    40.6 of words are in the 5000 most common words
    49.0 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • A Cidade e as Serras - 08
    Total number of words is 4396
    Total number of unique words is 1839
    27.2 of words are in the 2000 most common words
    40.7 of words are in the 5000 most common words
    48.9 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • A Cidade e as Serras - 09
    Total number of words is 4500
    Total number of unique words is 1923
    27.1 of words are in the 2000 most common words
    40.9 of words are in the 5000 most common words
    48.6 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • A Cidade e as Serras - 10
    Total number of words is 4555
    Total number of unique words is 1852
    30.9 of words are in the 2000 most common words
    45.1 of words are in the 5000 most common words
    52.3 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • A Cidade e as Serras - 11
    Total number of words is 4575
    Total number of unique words is 1782
    32.4 of words are in the 2000 most common words
    46.5 of words are in the 5000 most common words
    53.6 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • A Cidade e as Serras - 12
    Total number of words is 4602
    Total number of unique words is 1747
    31.1 of words are in the 2000 most common words
    44.9 of words are in the 5000 most common words
    53.7 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • A Cidade e as Serras - 13
    Total number of words is 4626
    Total number of unique words is 1742
    32.8 of words are in the 2000 most common words
    48.8 of words are in the 5000 most common words
    56.2 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • A Cidade e as Serras - 14
    Total number of words is 4589
    Total number of unique words is 1722
    34.6 of words are in the 2000 most common words
    49.3 of words are in the 5000 most common words
    56.1 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • A Cidade e as Serras - 15
    Total number of words is 4462
    Total number of unique words is 1927
    28.4 of words are in the 2000 most common words
    42.4 of words are in the 5000 most common words
    50.8 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • A Cidade e as Serras - 16
    Total number of words is 555
    Total number of unique words is 333
    48.9 of words are in the 2000 most common words
    58.8 of words are in the 5000 most common words
    66.6 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.