A Cidade e as Serras - 06

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natural, e busca tristemente os recantos lobregos de Sodoma ou de
Lesbos!... Mas o que a Cidade mais deteriora no homem é a Intelligencia,
por que ou lh'a arregimenta dentro da banalidade ou lh'a empurra para a
extravagancia. N'esta densa e pairante camada d'Idéas e Formulas que
constitue a atmosphera mental das Cidades, o homem que a respira, n'ella
envolto, só pensa todos os pensamentos já pensados, só exprime todas as
expressões já exprimidas:--ou então, para se destacar na pardacente e
chata Rotina e trepar ao fragil andaime da gloriola, inventa n'um
gemente esforço, inchando o craneo, uma novidade disforme que espante e
que detenha a multidão como um mostrengo n'uma Feira. Todos,
intelectualmente, são carneiros, trilhando o mesmo trilho, balando o
mesmo balido, com o focinho pendido para a poeira onde pisam, em fila,
as pégadas pisadas;--e alguns são macacos, saltando no topo de mastros
vistosos, com esgares e cabriolas. Assim, meu Jacintho, na Cidade,
n'esta creação tão anti-natural onde o solo é de pau e feltro e
alcatrão, e o carvão tapa o ceu, e a gente vive acamada nos predios como
o panninho nas lojas, e a claridade vem pelos canos, e as mentiras se
murmuram através d'arames--o homem apparece como uma creatura
anti-humana, sem belleza, sem força, sem liberdade, sem riso, sem
sentimento, e trazendo em si um espirito que é passivo como um escravo
ou impudente como um histrião... E aqui tem o bello Jacintho o que é a
bella Cidade!
E ante estas encanecidas e veneraveis invectivas, retumbadas
pontualmente por todos os Moralistas bucolicos, desde Hesiodo, atravez
dos seculos--o meu Principe vergou a nuca docil, como se ellas
brotassem, inesperadas e frescas, d'uma Revelação superior, n'aquelles
cimos de Montmartre:
--Sim, com effeito, a Cidade... É talvez uma illusão perversa!
Insisti logo, com abundancia, puchando os punhos, saboreando o meu facil
philosophar. E se ao menos essa illusão da Cidade tornasse feliz a
totalidade dos sêres, que a manteem... Mas não! Só uma estreita e
reluzente casta goza na Cidade os gozos especiaes que ella cria. O
resto, a escura, immensa plebe, só n'ella soffre, e com soffrimentos
especiaes que só n'ella existem! D'este terraço, junto a esta rica
Basilica consagrada ao Coração que amou o Pobre e por elle sangrou, bem
avistamos nós o lobrego casario onde a plebe se curva sob esse antigo
opprobrio de que nem Religiões, nem Philosophias, nem Moraes, nem a sua
propria força brutal a poderão jámais libertar! Ahi jaz, espalhada pela
Cidade, como esterco vil que fecunda a Cidade. Os seculos rolam; e
sempre immutaveis farrapos lhe cobrem o corpo, e sempre debaixo d'elles,
através do longo dia, os homens labutarão e as mulheres chorarão. E com
este labor e este pranto dos pobres, meu Principe, se edifica a
abundancia da Cidade! Eil-a agora coberta de moradas em que elles se não
abrigam; armazenada de estofos, com que elles se não agasalham;
abarrotada de alimentos, com que elles se não saciam! Para elles só a
neve, quando a neve cáe, e entorpece e sepulta as creancinhas aninhadas
pelos bancos das praças ou sob os arcos das pontes de Paris... A neve
cáe, muda e branca na treva: as creancinhas gelam nos seus trapos: e a
policia, em torno, ronda attenta para que não seja perturbado o tépido
somno d'aquelles que amam a neve, para patinar nos lagos do Bosque de
Bolonha com pelliças de tres mil francos. Mas quê, meu Jacintho! a tua
Civilisação reclama insaciavelmente regalos e pompas, que só obterá,
n'esta amarga desharmonia social, se o Capital dér ao Trabalho, por cada
arquejante esfôrço, uma migalha ratinhada. Irremediavel é, pois, que
incessantemente a plebe sirva, a plebe péne! A sua esfalfada miseria é a
condição do esplendor sereno da Cidade. Se nas suas tigellas fumegasse a
justa ração de caldo--não poderia apparecer nas baixellas de prata a
luxuosa porção de _foie-gras_ e tubaras que são o orgulho da
Civilisação. Ha andrajos em trapeiras--para que as bellas Madamas
d'Oriol, resplandecentes de sêdas e rendas, subam, em doce ondulação, a
escadaria da Opera. Ha mãos regeladas que se estendem, e beiços sumidos
que agradecem o dom magnanimo d'um _sou_--para que os Ephrains tenham
dez milhões no Banco de França, se aqueçam á chamma rica da lenha
aromatica, e surtam de collares de saphiras as suas concubinas, netas
dos Duques d'Athenas. E um povo chora de fome, e da fome dos seus
pequeninos--para que os Jacinthos, em janeiro, debiquem, bocejando,
sobre pratos de Saxe, morangos gelados em Champagne e avivados d'um fio
d'ether!
--E eu comi dos teus morangos, Jacintho! Miseraveis, tu e eu!
Elle murmurou, desolado:
--É horrivel, comemos d'esses morangos... E talvez por uma illusão!
Pensativamente deixou a borda do terraço, como se a presença da Cidade,
estendida na planicie, fosse escandalosa. E caminhamos devagar, sob a
molleza cinzenta da tarde, philosophando--considerando que para esta
iniquidade não havia cura humana, trazida pelo esforço humano. Ah, os
Ephrains, os Trèves, os vorazes e sombrios tubarões do mar humano, só
abandonarão ou affrouxarão a exploração das Plebes, se uma influencia
celeste, por milagre novo, mais alto que os milagres velhos, lhes
converter as almas! O burguez triumpha, muito forte, todo endurecido no
peccado--e contra elle são impotentes os prantos dos Humanitarios, os
raciocinios dos Logicos, as bombas dos Anarchistas. Para amollecer tão
duro granito só uma doçura divina. Eis pois esperança da terra novamente
posta n'um Messias!... Um decerto desceu outrora dos grandes Ceus; e,
para mostrar bem que mandado trazia, penetrou mansamente no mundo pela
porta d'um curral. Mas a sua passagem entre os homens foi tão curta! Um
meigo sermão n'uma montanha, ao fim d'uma tarde meiga; uma reprehensão
moderada aos Phariseus que então redigiam o _Boulevard_; algumas
vergastadas nos Ephrains vendilhões; e logo, através da porta da morte,
a fuga radiosa para o Paraiso! Esse adoravel filho de Deus teve
demasiada pressa em recolher a casa de seu Pae! E os homens a quem elle
incumbira a continuação da sua obra, envolvidos logo pelas influencias
dos Ephrains, dos Trèves, da gente do _Boulevard_, bem depressa
esqueceram a lição da Montanha e do lago de Tiberiade--e eis que por seu
turno revestem a purpura, e são Bispos, e são Papas, e se alliam á
oppressão, e reinam com ella, e edificam a duração do seu Reino sobre a
miseria dos sem-pão e dos sem-lar! Assim tem de ser recomeçada a obra da
Redempção. Jesus, ou Guatama, ou Christna, ou outro d'esses filhos que
Deus por vezes escolhe no seio d'uma Virgem, nos quietos vergeis da
Asia, deverá novamente descer á terra de servidão. Virá elle, o
desejado? Porventura já algum grave rei d'Oriente despertou, e olhou a
estrella, e tomou a myrrha nas suas mãos reaes, e montou pensativamente
sobre o seu dromedario? Já por esses arredores da dura Cidade, de noute,
emquanto Caiphaz e Magdalena ceam lagosta no Paillard, andou um Anjo,
attento, n'um vôo lento, escolhendo um curral? Já de longe, sem moço que
os tanja, na gostosa pressa d'um divino encontro, vem trotando a vacca,
trotando o burrinho?
--Tu sabes, Jacintho?
Não, Jacintho não sabia--e queria accender o charuto. Forneci um
phosphoro ao meu Principe. Ainda rondamos no terraço, espalhando pelo ar
outras idéas solidas que no ar se desfaziam. Depois penetravamos na
Basilica--quando um Sachristão nedio, de barrete de velludo, cerrou
fortemente a porta, e um Padre passou, enterrando na algibeira, com um
cançado gesto final e como para sempre, o seu velho Breviario.
--Estou com uma sêde, Jacintho... Foi esta tremenda Philosophia!
Descemos a escadaria, armada em arraial devoto. O meu pensativo camarada
comprou uma imagem da Basilica. E saltavamos para a vittoria, quando
alguem gritou rijamente, n'uma surpreza:
--Eh Jacintho!
O meu Principe abriu os braços, tambem espantado:
--Eh Mauricio!
E, n'um alvoroço, atravessou a rua, para um café, onde, sob o toldo de
riscadinho, um robusto homem, de barba em bico, remexia o seu absintho,
com o chapéo de palha descahido na nuca, a quinzena solta sobre a camisa
de sêda, sem gravata, como se descançasse n'um banco, entre as sombras
do seu jardim.
E ambos, apertando as mãos, se admiravam d'aquelle encontro, n'um
domingo de verão, sobre as alturas de Montmartre.
--Oh! eu estou aqui no meu bairro! exclamava alegremente Mauricio. Em
familia, em chinellos... Ha tres mezes que subi para estes cimos da
Verdade... Mas tu na Santa Colina, homem profano da planicie e das ruas
d'Israel!
O meu Principe mostrou o seu Zé Fernandes:
--Com este amigo, em peregrinação á Basilica... O meu amigo Fernandes
Lorena... Mauricio de Mayolle, velho camarada.
Mr. de Mayolle (que, pela face larga e nariz nobremente grosso, lembrava
Francisco de Valois, Rei de França) ergueu o seu chapeu de palha. E
empurrava uma cadeira, insistia que nos accommodassemos para um absintho
ou para um bock.
--Toma um bock, Zé Fernandes! lembrou Jacintho. Tu estavas a ganir com
sêde!
Corri lentamente a lingua sobre os beiços, mais sêcos que pergaminhos:
--Estou a guardar esta sêdesinha para logo, para o jantar, com um
vinhosinho gelado!
Mauricio saudou, com silenciosa admiração, esta minha avisada malicia. E
immediatamente, para o meu Principe:
--Ha tres annos que te não vejo, Jacintho... Como tem sido possivel,
n'este Paris que é uma aldeola e que tu atravancas?
--A vida, Mauricio, a espalhada vida... Com effeito! Ha tres annos,
desde a casa dos Lamotte-Orcel. Tu ainda visitas esse santuario?
Mauricio atirou um gesto desdenhoso e largo, que sacudia um mundo:
--Oh! Ha mais d'um anno que me separei d'essa bicharia heretica... Uma
turba indisciplinada, meu Jacintho! Nenhuma fixidez, um dilletantismo
estonteado, carencia completa e comica de toda a base experimental...
Quando tu ias aos Lamotte-Orcel, e á Parola do 37, e á _Cerveja ideal_,
o que reinava?...
Jacintho catou lentamente as suas recordações por entre os pêllos do
bigode:
--Eu sei!... Reinava Wagner e a Mithologia Eddica, e o Raganarock, e as
Nornas... Muito Pre-Raphaelismo tambem, e Montagna, e Fra-Angelico... Em
moral, o Renanismo.
Mauricio sacudia os hombros. Oh, tudo isso pertencia a um passado
archaico, quasi lacustre! Quando Madame de Lamotte-Orcel remobilára a
sala com velludos Morris, grossas alcachofras sobre tons d'açafrão, já o
Renanismo passára, tão esquecido como o Cartesianismo...
--Tu ainda és do tempo do culto do _Eu_?
O meu Principe suspirou risonhamente:
--Ainda o cultivei.
--Pois bem! Logo depois foi o Hartmanismo, o Inconsciente. Depois o
Nietzismo, o Feudalismo espiritual... Depois grassou o Tolstoïsmo, um
furor immenso de renunciamento neo-cenobitico. Ainda me lembro d'um
jantar em que appareceu um mostrengo d'um slavo, de guedelha sordida,
que atirava olhos medonhos para o decote da pobre condessa d'Arche, e
que grunhia com o dedo espetado:--«Busquemos a luz, muito por baixo, no
pó da terra!»--E á sobremeza bebemos á delicia da humildade e do
trabalho servil, com aquelle Champagne Marceaux granitado que a Mathilde
dava nos grandes dias em copos da fórma do San-Gral! Depois veio
Emersonismo... Mas a praga cruel foi Ibsenismo! Emfim, meu filho, uma
Babel de Ethicas e Estheticas. Paris parecia demente. Já havia uns
desgarrados que tendiam para o Luciferismo. E amiguinhas nossas,
coitadas, iam descambando para o Phallismo, uma moxinifada
mystico-brejeira, prégada por aquelle pobre La Carte que depois se fez
Monge Branco, e que anda no Deserto... Um horror! E uma tarde, de
repente, toda esta massa se precipita com ancia para o Ruskinismo!
Eu, agarrado á bengala, bem fincada no chão, sentia como um vendaval que
redemoinhava, me torcia o craneo! E até Jacintho balbuciou, esgazeado:
--O Ruskinismo?
--Sim, o velho Ruskin,... John Ruskin!
O meu ditoso Principe comprehendeu:
--Ah, Ruskin!... _As sete lampadas da Architectura_, _A Corôa de
Oliveira Brava_... É o culto da Belleza.
--Sim! O culto da Belleza, confirmou Mauricio. Mas a esse tempo eu,
enojado, já descera de todas essas nuvens vãs... Pisava um chão mais
seguro, mais fertil.
Deu um sorvo lento ao absintho, cerrando as palpebras. Jacintho
esperava, com o seu fino nariz dilatado, como para respirar a Flôr de
Novidade que ia desabrochar:
--E então? então?...
Mas o outro murmurou, dispersamente, por entre reticencias em que se
velava:
--Vim para Montmartre... Tenho aqui um amigo, um homem de genio, que
percorreu toda a India... Viveu com os Toddas, esteve nos mosteiros de
Garma-Khian e de Dashi-Lumbo, e estudou com Gegen-Chutu no retiro santo
de Urga... Gegen-Chutu foi a decima-sexta encarnação de Guatama, e era
portanto um Boddi-sattva... Trabalhamos, procuramos... Não são visões.
Mas factos, experiencias bem antigas, que vem talvez desde os tempos de
Christna...
Através d'estes nomes, que exhalavam um perfume triste de vetustos
ritos, arredára a cadeira. E de pé, deixando cair sobre a mesa,
distrahidamente, para pagar o absintho, moedas de prata e moedas de
cobre, murmurava com os olhos descançados em Jacintho, mas perdidos
n'outra visão:
--Por fim tudo se reduz ao supremo desenvolvimento da Vontade dentro da
suprema pureza da Vida. É toda a sciencia e força dos grandes mestres
Hindus... Mas a pureza absoluta da vida, eis a lucta, eis o obstaculo!
Não basta mesmo o Deserto, nem o bosque do mais velho templo no alto
Thibet... Ainda assim, meu Jacintho, já obtivemos resultados bem
extranhos. Sabes as experiencias de Tyndall, com as chammas
sensitivas... O pobre chimico, para demonstrar as vibrações do som,
tocou quasi ás portas da verdade isoterica. Mas què! homem de sciencia,
portanto homem d'estupidez, ficou áquem, entre as suas placas e as suas
retortas! Nós fômos além. Verificámos as _ondulações da Vontade_! Deante
de nós, pela expansão da energia do meu companheiro, e em cadencia com o
seu mandado, uma chamma, a tres metros, ondulou, rastejou, despediu
linguas ardentes, lambeu uma alta parede, rugiu furiosa e negra,
resplandeceu direita e silenciosa, e bruscamente abatida em cinza
morreu!
E o extranho homem, com o chapeu para a nuca, ficou immovel, de braços
abertos e os olhares esgazeados, como no renovado assombro e no transe
d'aquelle prodigio. Depois, recahindo no seu modo facil e sereno,
accendendo de vagar um cigarro:
--Uma d'estas manhãs, Jacintho, appareço no 202, para almoçar comtigo, e
levo o meu amigo. Elle só come arrôz, uma pouca de salada, e fructa. E
conversamos... Tu tinhas um exemplar do _Sepher-Zerijah_ e outro do
_Targum d'Onkelus_. Preciso folhear esses livros.
Apertou a mão do meu Principe, saudou este assombrado Zé Fernandes, e
serenamente seguiu pela quieta rua, com o chapeu de palha para a nuca,
as mãos enterradas nas algibeiras, como um homem natural entre cousas
naturaes.
--Oh Jacintho! Quem é este bruxo? Conta!... Quem é elle, santissimo nome
de Deus?
Recostado na vittoria, ageitando o vinco das calças, o meu Principe
contou, concisamente. Era um nobre e leal rapaz, muito rico, muito
intelligente, da antiga casa soberana de Mayolle, descendente dos Duques
de Septimania... E murmurou, através do costumado bocejo:
--O desenvolvimento supremo da vontade!... Theosophia, Buddhismo
isoterico... Aspirações, decepções... Já experimentei... Uma massada!
Atravessamos, callados, o rumôr de Paris, sob a molleza abafada do
crepusculo de verão, para jantar no Bosque, no Pavilhão d'Armenonville,
onde os Tziganes, avistando Jacintho, tocaram o _Hymno da Carta_ com
paixão, com langor, n'uma cadencia de _czarda_ dolorosa e aspera.
E eu, desdobrando regaladamente o guardanapo:
--Pois venha agora para a minha rica sêde esse vinhosinho gelado!
Grandemente o mereço, caramba, que superiormente philosophei!... E creio
que estabeleci definitivamente no espirito do Snr. D. Jacintho o salutar
horror da cidade!
O meu Principe percorria, catando o bigode, a Lista-dos-Vinhos, em
quanto o Copeiro, esperava com pensativa reverencia:
--Mande gelar duas garrafas de champagne S.^t Marceaux... Mas antes, um
Barsac velho, apenas refrescado... Agoa de Evian... Não, de Bussang!
Bem, d'Evian e de Bussang! E, para começar, um bock.
Depois, bocejando, desabotoando lentamente a sobrecasaca cinzenta:
--Pois estou com vontade de construir uma casa nos cimos de Montmartre,
com um miradouro no alto, todo de vidro e ferro, para descançar de tarde
e dominar a Cidade...


VII

Julho findára com uma chuva refrescante e consoladora:--e eu pensava em
realisar finalmente a minha romagem ás cidades da Europa, sempre
retardada, através da primavera, pelas surprezas do Mundo e da Carne.
Mas, de repente, Jacintho começou a rogar e a reclamar que o seu Zé
Fernandes o acompanhasse, todas as tardes, a casa de Madame d'Oriol! E
eu comprehendi que o meu Principe (á maneira do divino Achilles, que,
sob a tenda, e junto da branca, insipida e docil Briseis, nunca
dispensava Patoclo) desejava ter, no retiro do Amor, a presença, o
confôrto e o soccorro da Amizade. Pobre Jacintho! Logo pela manhã
combinava pelo telephone com Madame d'Oriol essa hora de quietação e
doçura. E assim encontravamos sempre a superfina Dama prevenida e
solitaria n'aquella sala da rua de Lisbonne, onde Jacintho e eu mal
cabiamos, suffocavamos na confusão, entre os cestos de flôres, e os
ouros rocalhados, e os monstros do Japão, e a galante fragilidade dos
Saxes, e as pelles de feras estiradas aos pés de sophás adormecedores, e
os biombos de Aubusson formando alcôvas favoraveis e languidas...
Aninhada n'uma cadeira de bambú lacada de branco, entre almofadas
aromatisadas de verbena da India, com um romance pousado no regaço, ella
esperava o seu amigo, n'uma certa indolencia passiva e mansa que me
lembrava sempre o Oriente e um Harem. Mas, pelas frescas sedinhas
Pompadour, parecia tambem uma marquezinha de Versalhes cançada do grande
seculo; ou então, com brocados sombrios e largos cintos cravejados, era
como uma veneziana, preparada para um Doge. A minha intrusão, na
intimidade d'aquellas tardes, não a contrariava--antes lhe trazia um
vassallo novo, com dous olhos novos para a contemplar. Eu era já o seu
_cher Fernandez_!
E apenas descerrava os labios avivados de vermelho, semelhantes a uma
ferida fresca, e começava a chalrar--logo nos envolvia o burburinho e a
murmuração de Paris. Ella só sabia chalrar sobre a sua pessoa que era o
resumo da sua Classe, e sobre a sua existencia que era o resumo do seu
Paris:--e a sua existencia, desde casada, consistira em ornar com
suprema sciencia o seu lindo corpo; entrar com perfeição n'uma sala e
irradiar; remexer em estofos e conferenciar pensativamente com o grande
costureiro; rolar pelo Bois pousada na sua vittoria como uma imagem de
cêra; decotar e branquear o collo; debicar uma perna de gallinhola em
mezas de luxo; fender turbas ricas em bailes espessos; adormecer com a
vaidade esfalfada; percorrer de manhã, tomando chocolate, os «Echos» e
as «Festas» do _Figaro_; e de vez em quando murmurar para o marido--«Ah,
és tu?...» Além d'isso, ao lusco-fusco, n'um sophá, alguns certos
suspiros, entre os braços d'alguem a quem era constante. Ao meu
Principe, n'esse anno, pertencia o sophá. E todos estes deveres de
Cidade e de Casta os cumpria sorrindo. Tanto sorrira, desde casada, que
já duas prégas lhe vincavam os cantos dos beiços, indelevelmente. Mas
nem na alma, nem na pelle, mostrava outras maculas de fadiga. A sua
Agenda de Visitas continha mil e tresentos nomes, todos do Nobiliario.
Através, porém, desta fulgurante sociabilidade arranjára no cerebro
(onde de certo penetrára o pó d'arroz que desde o collegio acamava na
testa) algumas Idéas Geraes. Em Politica era pelos Principes; e todos os
outros «horrores», a Republica, o Socialismo, a Democracia que se não
lava, os sacudia risonhamente, com um bater de leque. Na Semana Santa
juntava ás rendas do chapeu a Corôa amarga de espinhos--por serem esses,
para a gente bem-nascida, dias de penitencia e dôr. E, deante de todo o
Livro ou de todo o Quadro, sentia a emoção e formulava finamente o
juizo, que no seu Mundo, e n'essa Semana, fôsse elegante formular e
sentir. Tinha trinta annos. Nunca se embaraçára nos tormentos d'uma
paixão. Marcava, com rigida regularidade, todas as suas despezas n'um
Livro de Contas encadernado em pellucia verde-mar. A sua religião intíma
(e mais genuina do que a outra, que a levava todos os domingos á missa
de S. Philippe du Roule) era a Ordem. No inverno, logo que na amavel
cidade começavam a morrer de frio, debaixo das pontes, creancinhas sem
abrigo--ella preparava com commovido cuidado os seus vestidos de
patinagem. E preparava tambem os de Caridade--porque era boa, e
concorria para Bazares, Concertos e Tombolas, quando fossem patrocinados
pelas Duquezas do seu «rancho». Depois, na primavera, muito
methodicamente, regateando, vendia a uma adela os vestidos e as capas de
inverno. Paris admirava n'ella uma suprema flôr de Parisianismo.
Pois respirando esta macia e fina flôr passamos nós as tardes d'esse
julho em quanto as outras flôres pendiam e murchavam na calma e no pó.
Mas, na intimidade do seu perfume, Jacintho não parecia encontrar esse
contentamento d'alma, que entre tudo que cança jámais cança. Era já com
a paciente lentidão com que se sobem todos os Calvarios, os mais bem
tapetados, que elle subia a escadaria de Madame d'Oriol, tão suave e
orlada de tão frescas palmeiras. Quando a appetitosa creatura, com
dedicação, para o entreter, desdobrava a sua vivacidade como um pavão
desdobra a cauda, o meu pobre Principe puxava os pêllos do bigode
murcho, na murcha postura de quem, por uma manhã de Maio, em quanto os
melros cantam nas sebes, assiste, n'uma egreja negra, a um responso
funebre por um Principe. E no beijo que elle chuchurreava sobre a mão da
sua dôce amiga, para se despedir, havia sempre alacridade e allivio.
Mas ao outro dia, ao começar da tarde, depois de errar através da
Bibliotheca e do Gabinete, puxando sem curiosidade a tira do telegrapho,
atirando algum recado molle pelo telephone, espalhando o olhar
desalentado sobre o saber immenso dos trinta mil livros, remexendo a
collina dos Jornaes e Revistas, terminava por me chamar, já com a
preguiça triste da façanha a que se impellia:
--Vamos a casa de Madame d'Oriol, Zé Fernandes? Eu tinha marcadas para
hoje seis ou sete coisas, mas não posso, é uma secca! Vamos a casa de
Madame d'Oriol... Ao menos lá, ás vezes, ha um bocado de frescura e paz.
E foi n'uma d'essas tardes, em que o meu Principe assim procurava
desesperadamente um «bocado de frescura e paz», que encontramos, ao meio
da escadaria suave, entre as palmeiras, o marido de Madame d'Oriol. Eu
já o conhecia--porque Jacintho m'o mostrára uma noite, no Grand Café,
ceiando com dançarinas do _Moulin Rouge_. Era um moço gordalhufo,
indolente, de uma brancura crúa de toucinho, com uma calvice já séria e
já lustrosa, constantemente acariciada pelos seus gordos dedos
carregados de anneis. N'essa tarde, porém, vinha vermelho, todo
emocionado, calçando as luvas com colera. Estacou diante de Jacintho--e
sem mesmo lhe apertar a mão, atirando um gesto para o patamar:
--Visita lá acima? Vai achar a Joanna em pessima disposição... Tivemos
uma scena, e tremenda.
Deu outro puxão desesperado á luva côr de palha, já esgaçada:
--Estamos separados, cada um vive como lhe appetece, é excellente! Mas
em tudo ha medida e fórma... Ella tem o meu nome, não posso consentir
que em Paris, com conhecimento de todo o Paris, seja a amante do
trintanario. Amantes na nossa roda, vá! Um lacaio, não!... Se quer
dormir com os creados que emigre para o fundo da provincia, para a sua
casa de Corbelle. E lá até com os animaes!... Foi o que eu lhe disse!
Ficou como uma fera.
Sacudiu então a mão do Jacintho que «era da sua roda»--rebolou pela
escadaria florida e nobre. O meu Principe, immovel nos degraus, de face
pendida, cofiava lentamente os fios pendidos do bigode. Depois, olhando
para mim, como um sèr saturado de tedio e em quem nenhum tedio novo póde
caber:
--Já agora subamos, sim?
* * * * *
Parti então, com muita alegria, para a minha appetecida romagem ás
Cidades da Europa.
Ia viajar!... Viajei. Trinta e quatro vezes, á pressa, bufando, com todo
o sangue na face, desfiz e refiz a mala. Onze vezes passei o dia n'um
wagon, envolto em poeirada e fumo, suffocado, a arquejar, a escorrer de
suor, saltando em cada estação para sorver desesperadamente limonadas
mornas que me escangalhavam a entranha. Quatorze vezes subi
derreadamente, atraz de um creado, a escadaria desconhecida d'um Hotel;
e espalhei o olhar incerto por um quarto desconhecido; e estranhei uma
cama desconhecida, d'onde me erguia, estremunhado, para pedir em linguas
desconhecidas um café com leite que me sabia a fava, um banho de tina
que me cheirava a lôdo. Oito vezes travei bulhas abominaveis na rua com
cocheiros que me espoliavam. Perdi uma chapelleira, quinze lenços, tres
ceroulas, e duas botas, uma branca, outra envernizada, ambas do pé
direito. Em mais de trinta mezas-redondas esperei tristonhamente que me
chegasse o _boeuf-a-la-mode_, já frio, com môlho coalhado--e que o
copeiro me trouxesse a garrafa de Bordeus que eu provava e repellia com
desditosa carantonha. Percorri, na fresca penumbra dos granitos e dos
marmores, com pé respeitoso e abafado, vinte e nove Cathedraes. Trilhei
mollemente, com uma dôr surda na nuca, em quatorze muzeus, cento e
quarenta salas revestidas até aos tectos de Christos, heroes, santos,
nymphas, princezas, batalhas, architecturas, verduras, nudezes, sombrias
manchas de betume, tristezas das formas immoveis!... E o dia mais dôce
foi quando em Veneza, onde chovia desabaladamente, encontrei um velho
inglez de penca flammejante que habitára o Porto, conhecêra o Ricardo, o
José Duarte, o Visconde do Bom Successo, e as Limas da Boa Vista...
Gastei seis mil francos. Tinha viajado.
Emfim, n'uma bemdita manhã d'outubro, na primeira friagem e nevoa
d'outomno, avistei com enternecido alvoroço as cortinas de seda ainda
fechadas do meu 202! Affaguei o hombro do Porteiro. No patamar, onde
encontrei o ar macio e tepido que deixára em Florença, apertei os ossos
do Grillo excellente:
--E Jacintho?
O digno negro murmurou, d'entre os altos, reluzentes collarinhos:
--S. Exc.^a circula... Pesadote, fartote. Entrou tarde do baile da
Duqueza de Loches. Era o contracto de casamento de Mademoiselle de
Loches... Ainda tomou antes de se deitar um chá gelado... E disse a
coçar a cabeça: «Eh! que massada! Eh! que massada!»
Depois do banho e do chocolate, ás dez horas, consolado e quentinho
dentro do roupão de velludo, rompi pelo quarto do meu Principe, de
braços abertos e sedentos:
--Oh Jacintho!
--Oh viajante!...
Quando nos estreitamos, fartamente, eu recuei para lhe contemplar a
face--e n'ella a alma. Encolhido n'uma quinzena de panno côr de malva
orlada de pelles de martha, com os pellos do bigode murchos, as suas
duas rugas mais cavadas, uma molleza nos hombros largos, o meu amigo
parecia já vergado sob o pezo e a oppressão e o terror do seu dia. Eu
sorri, para que elle sorrisse:
--Valente Jacintho... Então como tens vivido?
Elle respondeu, muito serenamente:
--Como um morto.
Forcei uma gargalhada leve, como se o seu mal fôsse leve:
--Aborrecidote, hein?
O meu Principe lançou, n'um gesto tão vencido, um _oh_ tão cansado--que
eu compadecido de novo o abracei, o estreitei, como para lhe communicar
uma parte d'esta alegria solida e pura que recebi do meu Deus!
* * * * *
Desde essa manhã, Jacintho começou a mostrar claramente,
escancaradamente, ao seu Zé Fernandes, o tédio de que a existencia o
saturava. O seu cuidado realmente e o seu esfôrço consistiram então em
sondar e formular esse tédio--na esperança de o vencer logo que lhe
conhecesse bem a origem e a potencia. E o meu pobre Jacintho reproduziu
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