A Cidade e as Serras - 09

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pesquizar, descortinar as nossas vinte e trez malas! Apenas encontramos
barris, cestos de vime, latas de azeite, um bahú amarrado com cordas...
Jacintho mordia os beiços, livido. E o Pimentinha, esgazeado:
--Oh filhos, eu não posso atrazar o comboio!...
A sineta repicou... E com um bello fumo claro o comboio desappareceu por
detraz das fragas altas. Tudo em torno pareceu mais calado e deserto.
Alli ficavamos pois baldeados, perdidos na serra, sem Grillo, sem
procurador, sem caseiro, sem cavallos, sem malas! Eu conservava o
paletot alvadio, d'onde surdia o _Jornal do Commercio_. Jacintho, uma
bengala. Eram todos os nossos bens!
O Pimentão arregalava para nós os olhinhos papudos e compadecidos.
Contei então áquelle amigo o atarantado trasfêgo em Medina sob a
borrasca, o Grillo desgarrado, encalhado com as vinte e trez malas, ou
rolando talvez para Madrid sem nos deixar um lenço...
--Eu não tenho um lenço!... Tenho este _Jornal do Commercio_. É toda a
minha roupa branca.
--Grande arrelia, caramba! murmurava o Pimenta, impressionado. E agora?
--Agora, exclamei, é trepar, para a quinta, á pata... A não ser que se
arranjassem ahi uns burros.
Então o carregador lembrou que perto, no casal da Giesta, ainda
pertencente a Tormes, o caseiro, seu compadre, tinha uma boa egua e um
jumento... E o prestante homem enfiou n'uma carreira para a
Giesta--emquanto o meu Principe e eu cahiamos para cima d'um banco,
arquejantes e succumbidos, como naufragos. O vasto Pimentinha, com as
mãos nas algibeiras, não cessava de nos contemplar, de murmurar:--«É de
arrelia».--O rio defronte descia, preguiçoso e como adormentado sob a
calma já pesada de maio, abraçando, sem um sussurro, uma larga ilhota de
pedra que rebrilhava. Para além a serra crescia em corcovas doces, com
uma funda prega onde se aninhava, bem junta e esquecida do mundo, uma
villasinha clara. O espaço immenso repousava n'um immenso silencio.
N'aquellas solidões de monte e penedia os pardaes, revoando no telhado,
pareciam aves consideraveis. E a massa rotunda e rubicunda do Pimentinha
dominava, atulhava a região.
--Está tudo arranjado, meu senhor! Vêm ahi os bichos!... Só o que não
calhou foi um selimsinho para a jumenta!
Era o carregador, digno homem, que voltava da Giesta, sacudindo na mão
duas esporas desirmanadas e ferrugentas. E não tardaram a apparecer no
corrego, para nos levarem a Tormes, uma egua ruça, um jumento com
albarda, um rapaz e um podengo. Apertamos a mão suada e amiga do
Pimentinha. Eu cedi a egua ao senhor de Tormes. E começamos a trepar o
caminho, que não se alisára nem se desbravára desde os tempos em que o
trilhavam, com rudes sapatões ferrados, cortando de rio a monte, os
Jacinthos do seculo XIV! Logo depois de atravessarmos uma tremula ponte
de pau, sobre um riacho quebrado por pedregulhos, o meu Principe, com o
olho de dono subitamente aguçado, notou a robustez e a fartura das
oliveiras...--E em breve os nossos males esqueceram ante a incomparavel
belleza d'aquella serra bemdita!
Com que brilho e inspiração copiosa a compozera o divino Artista que faz
as serras, e que tanto as cuidou, e tão ricamente as dotou, n'este seu
Portugal bem-amado! A grandeza egualava a graça. Para os valles,
poderosamente cavados, desciam bandos de arvoredos, tão copados e
redondos, d'um verde tão môço que eram como um musgo macio onde
appetecia cahir e rolar. Dos pendores, sobranceiros ao carreiro fragoso,
largas ramadas estendiam o seu toldo amavel, a que o esvoaçar leve dos
passaros sacudia a fragrancia. Atravez dos muros seculares, que sustem
as terras liados pelas heras, rompiam grossas raizes colleantes a que
mais hera se enroscava. Em todo o torrão, de cada fenda, brotavam flôres
silvestres. Brancas rochas, pelas encostas, alastravam a solida nudez do
seu ventre polido pelo vento e pelo sol; outras, vestidas de lichen e de
silvados floridos, avançavam como prôas de galeras enfeitadas: e,
d'entre as que se apinhavam nos cimos, algum casebre que para lá
galgára, todo amachucado e torto, espreitava pelos postigos negros, sob
as desgrenhadas farripas de verdura, que o vento lhe semeára nas telhas.
Por toda a parte a agua sussurrante, a agua fecundante... Espertos
regatinhos fugiam, rindo com os seixos, d'entre as patas da egua e do
burro; grossos ribeiros açodados saltavam com fragor de pedra em pedra;
fios direitos e luzidios como cordas de prata vibravam e faiscavam das
alturas aos barrancos; e muita fonte, posta á beira de veredas, jorrava
por uma bica, beneficamente, á espera dos homens e dos gados... Todo um
cabeço por vezes era uma ceára, onde um vasto carvalho ancestral,
solitario, dominava como seu senhor e seu guarda. Em socalcos verdejavam
laranjaes rescendentes. Caminhos de lages soltas circumdavam fartos
prados com carneiros e vaccas retouçando:--ou mais estreitos, entalados
em muros, penetravam sob ramadas de parra espessa, n'uma penumbra de
repouso e frescura. Trepavamos então alguma ruasinha de aldeia, dez ou
doze casebres, sumidos entre figueiras, onde se esgaçava, fugindo do lar
pela telha vã, o fumo branco e cheiroso das pinhas. Nos cerros remotos,
por cima da negrura pensativa dos pinheiraes, branquejavam ermidas. O ar
fino e puro entrava na alma, e n'alma espalhava alegria e força. Um
esparso tilintar de chocalhos de guizos morria pelas quebradas...
Jacintho adiante, na sua egua ruça, murmurava:
--Que belleza!
E eu atraz, no burro de Sancho, murmurava:
--Que belleza!
Frescos ramos roçavam os nossos hombros com familiaridade e carinho. Por
traz das sebes, carregadas d'amoras, as macieiras estendidas offereciam
as suas maçãs verdes, porque as não tinham maduras. Todos os vidros
d'uma casa velha, com a sua cruz no topo, refulgiram hospitaleiramente
quando nós passamos. Muito tempo um melro nos seguia, de azinheiro a
olmo, assobiando os nossos louvores. Obrigado, irmão melro! Ramos de
macieira, obrigado! Aqui vimos, aqui vimos! E sempre comtigo fiquemos,
serra tão acolhedora, serra de fartura e de paz, serra bemdita entre as
serras!
Assim, vagarosamente e maravilhados, chegamos áquella avenida de faias,
que sempre me encantára pela sua fidalga gravidade. Atirando uma
vergastada ao burro e á egua, o nosso rapaz, com o seu podengo sobre os
calcanhares, gritou:--«Aqui é que estêmos, meus amos!» E ao fundo das
faias, com effeito, apparecia o portão da quinta de Tormes, com o seu
brazão de armas, de secular granito, que o musgo retocava e mais
envelhecia. Dentro já os cães ladravam com furor. E quando Jacintho, na
sua suada egua, e eu atraz, no burro de Sancho, transpozemos o limiar
solarengo, desceu para nós, do alto do alpendre, pela escadaria de pedra
gasta, um homem nedio, rapado como um padre, sem collete, sem jaleca,
acalmando os cães que se encarniçavam contra o meu Principe. Era o
Melchior, o caseiro... Apenas me reconheceu, toda a bocca se lhe
escancarou n'um riso hospitaleiro, a que faltavam dentes. Mas apenas eu
lhe revelei, d'aquelle cavalheiro de bigodes louros que descia da egua
esfregando os quadris, o senhor de Tormes--o bom Melchior recuou,
colhido de espanto e terror como diante d'uma avantesma.
--Ora essa!... Santissimo nome de Deus! Pois então...
E, entre o rosnar dos cães, n'um bracejar desolado, balbuciou uma
historia que por seu turno apavorava Jacintho, como se o negro muro do
casarão pendesse para desabar. O Melchior não esperava s. ex.^a! Ninguem
esperava s. ex.^a!... (Elle dizia _sua incellencia_)... O snr. Silverio
estava para Castello de Vide desde março, com a mãe, que apanhára uma
cornada na virilha. E de certo houvera engano, cartas perdidas... Porque
o snr. Silverio só contava com s. exc.^a em setembro, para a vindima! Na
casa as obras seguiam devagarinho, devagarinho... O telhado, no sul,
ainda continuava sem telhas; muitas vidraças esperavam, ainda sem
vidros; e, para ficar, Virgem Santa, nem uma cama arranjada!...
Jacintho cruzou os braços n'uma colera tumultuosa que o suffocava. Por
fim, com um berro:
--Mas os caixotes? Os caixotes, mandados de Paris, em fevereiro, ha
quatro mezes?...
O desgraçado Melchior arregalava os olhos miudos, que se embaciavam de
lagrimas. Os caixotes?! Nada chegára, nada apparecera!... E na sua
perturbação mirava pelas arcadas do pateo, palpava na algibeira das
pantalonas. Os caixotes?... Não, não tinha os caixotes!
--E agora, Zé Fernandes?
Encolhi os hombros:
--Agora, meu filho, só vires commigo para Guiães... Mas são duas horas
fartas a cavallo. E não temos cavallos! O melhor é vêr o casarão, comer
a boa gallinha que o nosso amigo Melchior nos assa no espeto, dormir
n'uma enxerga, e ámanha cedo, antes do calor, trotar para cima, para a
tia Vicencia.
Jacintho replicou, com uma decisão furiosa:
--Ámanhã troto, mas para baixo, para a estação!... E depois, para
Lisboa!
E subiu a gasta escadaria do seu solar com amargura e rancor. Em cima
uma larga varanda acompanhava a fachada do casarão, sob um alpendre de
negras vigas, toda ornada, por entre os pilares de granito, com caixas
de pau onde floriam cravos. Colhi um cravo amarello---e penetrei atraz
de Jacintho nas salas nobres, que elle contemplava com um murmurio de
horror. Eram enormes, d'uma sonoridade de casa capitular, com os grossos
muros ennegrecidos pelo tempo e o abandono, e regeladas, desoladamente
núas, conservando apenas aos cantos algum monte de canastras ou alguma
enxada entre paus. Nos tectos remotos, de carvalho apainelado, luziam
através dos rasgões manchas de céo. As janellas, sem vidraças,
conservavam essas macissas portadas, com fechos para as trancas, que,
quando se cerram, espalham a treva. Sob os nossos passos, aqui e além,
uma taboa pôdre rangia e cedia.
--Inhabitavel! rugia Jacintho surdamente. Um horror! Uma infamia!...
Mas depois, n'outras salas, o soalho alternava com remendos de taboas
novas. Os mesmos remendos claros mosqueavam os velhissimos tectos de
rico carvalho sombrio. As paredes repelliam pela alvura crúa da cal
fresca. E o sol mal atravessava as vidraças--embaciadas e gordurentas da
massa e das mãos dos vidraceiros.
Penetramos emfim na ultima, a mais vasta, rasgada por seis janellas,
mobilada com um armario e com uma enxerga parda e curta estirada a um
canto: e junto d'ella paramos, e sobre ella depuzemos tristemente o que
nos restava de vinte e trez malas--o meu paletot alvadio, a bengala de
Jacintho, e o _Jornal do Commercio_ que nos era commum. Através das
janellas escancaradas, sem vidraças, o grande ar da serra entrava e
circulava como n'um eirado, com um cheiro fresco d'horta regada. Mas o
que avistavamos, da beira da enxerga, era um pinheiral cobrindo um
cabeço e descendo pelo pendor suave, á maneira d'uma hoste em marcha,
com pinheiros na frente, destacados, direitos, emplumados de negro; mais
longe as serras d'além rio, d'uma fina e macia côr de violeta; depois a
brancura do céo, todo liso, sem uma nuvem, d'uma magestade divina. E lá
debaixo, dos valles, subia, desgarrada e melancolica, uma voz de
pegureiro cantando.
Jacintho caminhou lentamente para o poial d'uma janella, onde cahiu
esbarrondado pelo desastre, sem resistencia ante aquelle brusco
desapparecimento de toda a Civilisação! Eu palpava a enxerga, dura e
regelada como um granito de inverno. E pensando nos luxuosos colchões de
pennas e molas, tão prodigamente encaixotados no 202, desafoguei tambem
a minha indignação:
--Mas os caixotes, caramba?... Como se perdem assim trinta e tantos
caixotes enormes?...
Jacintho saccudiu amargamente os hombros:
--Encalhados, por ahi, algures, n'um barracão!... Em Medina, talvez,
n'essa horrenda Medina. Indifferença das Companhias, inercia do
Silverio... Emfim a Peninsula, a barbarie!
Vim ajoelhar sobre o outro poial, alongando os olhos consolados por céo
e monte:
--É uma belleza!
O meu principe, depois de um silencio grave, murmurou, com a face
encostada á mão:
--É uma lindeza... E que paz!
Sob a janella vicejava fartamente uma horta, com repolho, feijoal,
talhões de alface, gordas folhas de abobora rastejando. Uma eira, velha
e mal alisada, dominava o valle, d'onde já subia tenuemente a nevoa
d'algum fundo ribeiro. Toda a esquina do casarão d'esse lado se
encravava em laranjal. E d'uma fontinha rustica, meio afogada em rosas
tremedeiras, corria um longo e rutilante fio d'agua.
--Estou com appetite desesperado d'aquella agoa! declarou Jacintho,
muito sério.
--Tambem eu... Desçamos ao quintal, hein? E passamos pela cosinha, a
saber do frango.
Voltamos á varanda. O meu Principe, mais conciliado com o destino
inclemente, colheu um cravo amarello. E por outra porta baixa, de
rigissimas hombreiras, mergulhamos n'uma sala, alastrada de caliça, sem
tecto, coberta apenas de grossas vigas, d'onde s'ergueu uma revoada de
pardaes.
--Olha para este horror! murmurava Jacintho arripiado.
E descemos por uma lobrega escada de castello, tenteando depois um
corredor tenebroso de lages asperas, atravancado por profundas arcas,
capazes de guardar todo o grão d'uma provincia. Ao fundo a cozinha,
immensa, era uma massa de fórmas negras, madeira negra, pedra negra,
densas negruras de felugem secular. E n'este negrume refulgia a um
canto, sobre o chão de terra negra, a fogueira vermelha, lambendo tachos
e panellas de ferro, despedindo uma fumarada que fugia pela grade aberta
no muro, depois por entre a folhagem dos limoeiros. Na enorme lareira,
onde se aqueciam e assavam as suas grossas peças de porco e boi os
Jacinthos medievaes, agora desaproveitada pela frugalidade dos caseiros,
negrejava um poeirento montão de cestas e ferramentas; e a claridade
toda entrava por uma porta de castanho, escancarada sobre um quintalejo
rustico em que se misturavam couves lombardas e junquilhos formosos. Em
roda do lume um bando alvoroçado de mulheres depennava frangos, remexia
as caçarolas, picava a cebola, com um fervor afogueado e palreiro. Todas
emmudeceram quando apparecemos--e d'entre ellas o pobre Melchior,
estonteado, com o sangue a espirrar na nedia face d'abbade, correu para
nós, jurando «que o jantarinho de suas Incellencias não demorava um
credo»...
--E a respeito de camas, oh amigo Melchior?
O digno homem ciciou uma desculpa encolhida «sobre enxergasinhas no
chão...»
--É o que basta! acudi eu, para o consolar. Por uma noite, com lençoes
frescos...
--Ah, lá pelos lençoesinhos respondo eu!... Mas um desgosto assim, meu
senhor! A gente apanhada sem um colxãosinho de lã, sem um lombosinho de
vacca... Que eu já pensei, até lembrei á minha comadre, V. Inc.^{as}
podiam ir dormir aos _Ninhos_, a casa do Silverio. Tinham lá camas de
ferro, lavatorios... Elle sempre é uma legoasita e mau caminho...
Jacintho, bondoso, accudiu:
--Não, tudo se arranja, Melchior. Por uma noite!... Até gósto mais de
dormir em Tormes, na minha casa da serra!
Sahimos ao terreiro, retalho de horta fechado por grossas rochas
encabelladas de verdura, entestando com os socalcos da serra onde
lourejava o centeio. O meu principe bebeu da agua nevada e lusidia da
fonte, regaladamente, com os beiços na bica; appeteceu a alface
rechonchuda e crespa; e atirou pulos aos ramos altos d'uma copada
cerejeira, toda carregada de cereja. Depois, costeando o velho lagar, a
que um bando de pombas branqueava o telhado, deslisámos até ao carreiro,
cortado no costado do monte. E andando, pensativamente, o meu Principe
pasmava para os milheiraes, para os vetustos carvalhos plantados por
vetustos Jacinthos, para os casebres espalhados sobre os cabeços á orla
negra dos pinheiraes.
De novo penetramos na avenida de faias e transpozemos o portão senhorial
entre o latir dos cães, mais mansos, farejando um dono. Jacintho
reconheceu «certa nobreza» na frontaria do seu lar. Mas sobretudo lhe
agradava a longa alameda, assim direita e larga, como traçada para
n'ella se desenrolar uma cavalgada de Senhores com plumas e pagens.
Depois, de cima da varanda, reparando na telha nova da capella, louvou o
Silverio, «esse ralaço», por cuidar ao menos da morada do Bom-Deus.
--E esta varanda tambem é agradavel, murmurou elle mergulhando a face no
aroma dos cravos. Precisa grandes poltronas, grandes divans de verga...
Dentro, na «nossa sala», ambos nos sentamos nos poiaes da janella,
contemplando o doce socego crepuscular que lentamente se estabelecia
sobre valle e monte. No alto tremeluzia uma estrellinha, a Venus
diamantina, languida annunciadora da noite e dos seus contentamentos.
Jacintho nunca considerára demoradamente aquella estrella, de amorosa
refulgencia, que perpetua no nosso Céo catholico a memoria da Deusa
incomparavel:--nem assistira jámais, com a alma attenta, ao magestoso
adormecer da Natureza. E este ennegrecimento dos montes que se embuçam
em sombra; os arvoredos emmudecendo, cançados de susurrar; o rebrilho
dos casaes mansamente apagado; o cobertor de nevoa, sob que se acama e
agasalha a frialdade dos valles; um toque somnolento de sino que rola
pelas quebradas; o segredado cochichar das aguas e das relvas
escuras--eram para elle como iniciações. D'aquella janella, aberta sobre
as serras, entrevia uma outra vida, que não anda sómente cheia do Homem
e do tumulto da sua obra. E senti o meu amigo suspirar como quem emfim
descança.
D'este enlevo nos arrancou o Melchior com o doce aviso do «jantarinho de
suas Incellencias». Era n'outra sala, mais núa, mais abandonada:--e ahi
logo á porta o meu super-civilisado Principe estacou, estarrecido pelo
desconforto, escassez e rudeza das coisas. Na mesa, encostada ao muro
denegrido, sulcado pelo fumo das candeias, sobre uma toalha de estopa,
duas velas de sêbo em castiçaes de lata alumiavam grossos pratos de
louça amarella, ladeados por colheres de estanho e por garfos de ferro.
Os copos, d'um vidro espesso, conservavam a sombra roxa do vinho que
n'elles passára em fartos annos de fartas vindimas. A malga de barro,
atestada de azeitonas pretas, contentaria Diogenes. Espetado na côdea
d'um immenso pão reluzia um immenso facalhão. E na cadeira senhoreal
reservada ao meu Principe, derradeira alfaia dos velhos Jacinthos, de
hirto espaldar de couro, com a madeira roída de caruncho, a clina fugia
em melenas pelos rasgões do assento poido.
Uma formidavel moça, de enormes peitos que lhe tremiam dentro das
ramagens do lenço cruzado, ainda suada e esbrazeada do calor da lareira,
entrou esmagando o soalho, com uma terrina a fumegar. E o Melchior, que
seguia erguendo a infusa do vinho, esperava que suas Incellencias lhe
perdoassem porque faltára tempo para o caldinho apurar... Jacintho
occupou a séde ancestral--e, durante momentos (de esgazeada anciedade
para o caseiro excellente) esfregou energicamente, com a ponta da
toalha, o garfo negro, a fusca colhér de estanho. Depois, desconfiado,
provou o caldo, que era de gallinha e rescendia. Provou--e levantou para
mim, seu camarada de miserias, uns olhos que brilharam, surprehendidos.
Tornou a sorver uma colherada mais cheia, mais considerada. E sorriu,
com espanto:--«Está bom!»
Estava precioso: tinha figado e tinha moela: o seu perfume enternecia:
tres vezes, fervorosamente, ataquei aquelle caldo.
--Tambem lá volto! exclamava Jacintho com uma convicção immensa. É que
estou com uma fome... Santo Deus! Ha annos que não sinto esta fome.
Foi elle que rapou avaramente a sopeira. E já espreitava a porta,
esperando a portadora dos piteus, a rija moça de peitos trementes, que
emfim surgiu, mais esbrazeada, abalando o sobrado--e pousou sobre a mesa
uma travessa a trasbordar de arroz com favas. Que desconsolo! Jacintho,
em Paris, sempre abominára favas!... Tentou todavia uma garfada
timida--e de novo aquelles seus olhos, que o pessimismo ennovoára,
luziram, procurando os meus. Outra larga garfada, concentrada, com uma
lentidão de frade que se regala. Depois um brado:
--Optimo!... Ah, d'estas favas, sim! Oh que fava! Que delicia!
E por esta santa gula louvava a serra, a arte perfeita das mulheres
palreiras que em baixo remexiam as panellas, o Melchior que presidia ao
brodio...
--D'este arroz com fava nem em Paris, Melchior amigo!
O homem optimo sorria, inteiramente desannuviado:
--Pois é cá a comidinha dos moços da quinta! E cada pratada, que até
suas Incellencias se riam... Mas agora, aqui, o Snr. D. Jacintho, tambem
vae engordar e enrijar!
O bom caseiro sinceramente cria que, perdido n'esses remotos Parizes, o
Senhor de Tormes, longe da fartura de Tormes, padecia fome e mingava...
E o meu Principe, na verdade, parecia saciar uma velhissima fome e uma
longa saudade da abundancia, rompendo assim, a cada travessa, em
louvores mais copiosos. Diante do louro frango assado no espeto e da
salada que elle appetecera na horta, agora temperada com um azeite da
serra digno dos labios de Platão, terminou por bradar:--«É divino!» Mas
nada o enthusiasmava como o vinho de Tormes, cahindo d'alto, da bojuda
infusa verde--um vinho fresco, esperto, seivoso, e tendo mais alma,
entrando mais na alma, que muito poema ou livro santo. Mirando, á vela
de sèbo, o copo grosso que elle orlava de leve espuma rosea, o meu
Principe, com um resplendôr d'optimismo na face, citou Virgilio:
--_Quo te carmina dicam, Rethica_? Quem dignamente te cantará, vinho
amavel d'estas serras?
Eu, que não gosto que me avantagem em saber classico, espanejei logo
tambem o meu Virgilio, louvando as doçuras da vida rural:
--_Hanc olim veteres vitam coluere Sabini_... Assim viveram os velhos
Sabinos. Assim Romolo e Remo... Assim cresceu a valente Etruria. Assim
Roma se tornou a maravilha do mundo!
E immovel, com a mão agarrada á infusa, o Melchior arregalava para nós
os olhos em infinito assombro e religiosa reverencia.
* * * * *
Ah! Jantamos deliciosissimamente, sob os auspicios do Melchior--que
ainda depois, próvido e tutelar, nos forneceu o tabaco. E, como ante nós
se alongava uma noite de monte, voltamos para as janellas desvidraçadas,
na sala immensa, a contemplar o sumptuoso céo de verão. Philosophámos
então com pachorra e facundia.
Na Cidade (como notou Jacintho) nunca se olham, nem lembram os
astros--por causa dos candieiros de gaz ou dos globos de electricidade
que os offuscam. Por isso (como eu notei) nunca se entra n'essa
communhão com o Universo que é a unica gloria e unica consolação da
Vida. Mas na serra, sem predios disformes de seis andares, sem a
fumaraça que tapa Deus, sem os cuidados que como pedaços de chumbo puxam
a alma para o pó rasteiro--um Jacintho, um Zé Fernandes, livres, bem
jantados, fumando nos poiaes d'uma janella, olham para os astros e os
astros olham para elles. Uns, certamente, com olhos de sublime
immobilidade ou de subllime indifferença. Mas outros curiosamente,
anciosamente, com uma luz que acena, uma luz que chama, como se
tentassem, de tão longe, revelar os seus segredos, ou de tão longe
comprehender os nossos...
--Oh Jacintho, que estrella é esta, aqui, tão viva, sobre o beiral do
telhado?
--Não sei... E aquella, Zé Fernandes, além, por cima do pinheiral?
--Não sei.
Não sabiamos. Eu, por causa da espessa crosta de ignorancia com que sahi
do ventre de Coimbra, minha Mãe espiritual. Elle, porque na sua
Bibliotheca possuia trezentos e oito tratados sobre Astronomia, e o
Saber, assim accumulado, fórma um monte que nunca se transpõe nem se
desbasta. Mas que nos importava que aquelle astro além se chamasse
Syrius e aquelle outro Aldebaran? Que lhes importava a elles que um de
nós fosse Jacintho, outro Zé? Elles tão immensos, nós tão pequeninos,
somos a obra da mesma Vontade. E todos, Uranos ou Lorenas de Noronha e
Sande, constituimos modos diversos d'um Sêr unico, e as nossas
diversidades esparsas sommam na mesma compacta Unidade. Molleculas do
mesmo Todo, governadas pela mesma Lei, rolando para o mesmo Fim... Do
astro ao homem, do homem á flôr do trevo, da flôr do trevo ao mar
sonoro--tudo é o mesmo Corpo, onde circula, como um sangue, o mesmo
Deus. E nenhum fremito de vida, por menor, passa n'uma fibra d'esse
sublime Corpo, que se não repercuta em todas, até ás mais humildes, até
ás que parecem inertes e invitaes. Quando um Sol que não avisto, nunca
avistarei, morre de inanição nas profundidades, esse esguio galho de
limoeiro, em baixo na horta, sente um secreto arrepio de morte:--e,
quando eu bato uma patada no soalho de Tormes, além o monstruoso Saturno
estremece, e esse estremecimento percorre o inteiro Universo! Jacintho
abateu rijamente a mão no rebordo da janella. Eu gritei:
--Acredita!... O sol tremeu.
E depois (como eu notei) deviamos considerar que, sobre cada um d'esses
grãos de pó luminoso, existia uma creação, que incessantemente nasce,
perece, renasce. N'este instante, outros Jacinthos, outros Zés
Fernandes, sentados ás janellas d'outras Tormes, contemplam o céo
nocturno, e n'elle um pequenininho ponto de luz, que é a nossa possante
Terra por nós tanto sublimada. Não terão todos esta nossa fórma, bem
fragil, bem desconfortavel, e (a não ser no Apollo do Vaticano, na Venus
de Milo e talvez na Princeza, de Carman) singularmente feia e burlesca.
Mas, horrendos ou de ineffavel belleza; collossaes e d'uma carne mais
dura que o granito, ou leves como gazes e ondulando na luz, todos elles
são sêres pensantes e teem consciencia da Vida--porque decerto cada
Mundo possue o seu Descartes, ou já o nosso Descartes os percorreu a
todos com o seu Methodo, a sua escura capa, a sua agudeza elegante,
formulando a unica certeza talvez certa, o grande _Penso logo existo_.
Portanto todos nós, Habitantes dos Mundos, ás janellas dos nossos
casarões, além nos Saturnos, ou aqui na nossa Terricula, constantemente
perfazemos um acto sacrosanto que nos penetra e nos funde--que é
sentirmos no Pensamento o nucleo commum das nossas modalidades, e
portanto realisarmos um momento, dentro da Consciencia, a Unidade do
Universo!--Hein, Jacintho?...
O meu amigo rosnou:
--Talvez... Estou a cahir com somno.
--Tambem eu. «Remontamos muito, Ex.^{mo} Snr.!» como dizia o Pestaninha
em Coimbra. Mas nada mais bello, e mais vão, que uma cavaqueira, no alto
das serras, a olhar para as estrellas!... Tu sempre vaes amanhã?
--Com certeza, Zé Fernandes! Com a certeza de Descartes. «Penso _logo
fujo_!» Como queres tu, n'este pardieiro, sem uma cama, sem uma
poltrona, sem um livro?... Nem só de arroz com fava vive o Homem! Mas
demoro em Lisboa, para conversar com o Cesimbra, o meu Administrador. E
tambem á espera que estas obras acabem, os caixotes surjam, e eu possa
voltar decentemente, com roupa lavada, para a trasladação...
--É verdade, os ossos...
--Mas resta ainda o Grillo... Que animal! Por onde andará esse perdido?
Então, passeando lentamente na sala enorme, onde a vela de sêbo já
derretida no castiçal de lata era como um lume de cigarro n'um
descampado, meditámos na sorte do Grillo. O estimado negro ou fôra
despejado nas lamas de Medina, com as vinte e sete malas, aos
gritos--ou, regaladamente adormecido, rolára com o Anatole no comboio
para Madrid. Mas ambos os casos appareciam ao meu Principe como
irremediavelmente destruidores do seu conforto...
--Não, escuta, Jacintho... Se o Grillo encalhou em Medina, dormiu na
Fonda, catou os percevejos, e esta madrugada correu para Tormes. Quando
ámanhã desceres á Estação, ás quatro horas, encontras o teu precioso
homem, com as tuas preciosas malas, mettido n'esse comboio que te leva
ao Porto e á Capital...
Jacintho saccudiu os braços como quem se debate nas malhas d'uma rede:
--E se seguiu para Madrid?
--Então, por esta semana, cá apparece em Tormes, onde encontra ordem
para regressar a Lisboa e reentrar no teu sequito... Resta o
interessante caso das minhas bagagens. Se ámanhã encontrares na Estação
o Grillo, separa a minha mala negra, e o sacco de lona, e a chapelleira.
O Grillo conhece. E pede ao Pimenta, ao gordalhufo, que me avise para
Guiães. Se o Grillo aportar Tormes, esfogueteado de Madrid, com toda
essa malaria, deixa as minhas cousas aqui, ao Melchior... Eu ámanhã
fallo ao Melchior.
Jacintho sacudiu furiosamente o collarinho:
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