A Cidade e as Serras - 07

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a comedia pouco divertida d'um Melancolico que perpetuamente raciocina a
sua Melancolia! N'esse raciocinío, elle partia sempre do facto
irrecusavel e massiço--que a sua vida especial de Jacintho continha
todos os interesses e todas as facilidades, possiveis no seculo XIX,
n'uma vida de homem que não é um Genio, nem um Santo. Com effeito!
Apezar do appetite embotado por doze annos de Champagnes e môlhos ricos
elle conservava a sua rijeza de pinheiro bravo; na luz da sua
intelligencia não apparecêra nem tremor nem morrão; a boa terra de
Portugal, e algumas Companhias macissas, pontualmente lhe forneciam a
sua doce centena de contos; sempre activas e sempre fieis o cercavam as
sympathias d'uma Cidade inconstante e chasqueadora; o 202 estourava de
confôrtos; nenhuma amargura de coração o atormentava;--e todavia era um
Triste. Porque?... E d'aqui saltava, com certeza fulgurante, á conclusão
de que a sua tristeza, esse cinzento burel em que a sua alma andava
amortalhada, não provinham da sua individualidade de Jacintho--mas da
Vida, do lamentavel, do desastroso facto de Viver! E assim o saudavel,
intellectual, riquissimo, bem-acolhido Jacintho tombára no Pessimismo.
E um Pessimismo irritado! Porque (segundo affirmava) elle nascera para
ser tão naturalmente optimista como um pardal ou um gato. E, até aos
doze annos, emquanto fôra um bicho superiormente amimado, com a sua
pelle sempre bem coberta, o seu prato sempre bem cheio, nunca sentira
fadiga, ou melancolia, ou contrariedade, ou pena--e as lagrimas eram
para elle tão incomprehensiveis que lhe pareciam viciosas. Só quando
crescêra, e da animalidade penetrára na humanidade, despontára n'elle
esse fermento de tristeza, muito tempo indesenvolvido no tumulto das
primeiras curiosidades, e que depois alastrára, o invadira todo, se lhe
tornára consubstancial e como o sangue das suas veias. Soffrer portanto
era inseparavel de Viver. Soffrimentos differentes nos destinos
differentes da Vida. Na turba dos humanos é a angustiada lucta pelo pão,
pelo tecto, pelo lume; n'uma casta, agitada por necessidades mais altas,
é a amargura das desillusões, o mal da imaginação insatisfeita, o
orgulho chocando contra obstaculo; n'elle, que tinha os bens todos e
desejos nenhuns, era o tédio. Miseria do Corpo, tormento da Vontade,
fastio da Intelligencia--eis a Vida! E agora aos trinta e tres annos a
sua occupação era bocejar, correr com os dedos desalentados a face
pendida para n'ella palpar e appetecer a caveira.
Foi então que o meu Principe começou a ler apaixonadamente, desde o
_Ecclesiastes_ até Schopenhauer, todos os lyricos e todos os theoricos
do Pessimismo. N'estas leituras encontrava a reconfortante comprovação
de que o seu mal não era mesquinhamente «Jacinthico»--mas grandiosamente
resultante d'uma Lei Universal. Já ha quatro mil annos, na remota
Jerusalém, a Vida, mesmo nas suas delicias mais triumphaes, se resumia
em Illusão. Já o Rei incomparavel, de sapiencia divina, summo Vencedor,
summo Edificador, se enfastiava, bocejava, entre os despojos das suas
conquistas, e os marmores novos dos seus Templos, e as suas tres mil
concubinas, e as Rainhas que subiam do fundo da Ethiopia para que elle
as fecundasse e no seu ventre depozésse um Deus! Não ha nada novo sob o
sol, e a eterna repetição das coisas é a eterna repetição dos males.
Quanto mais se sabe mais se pena. E o justo como o perverso, nascidos do
pó, em pó se tornam. Tudo tende ao pó ephemero, em Jerusalém e em Paris!
E elle, obscuro no 202, padecia por ser homem e por viver--como no seu
throno d'ouro, entre os seus quatro leões d'ouro, o filho magnifico de
David.
Não se separava então do _Ecclesiastes_. E circulava por Paris trazendo
dentro do coupé Salomão, como irmão de dôr, com quem repetia o grito
desolado que é a summa da verdade humana--_Vanitas Vanitatum_! Tudo é
Vaidade! Outras vezes, logo de manhã o encontrava estendido no sophá,
n'um roupão de sêda, absorvendo Schopenhauer--emquanto o pedicuro,
ajoelhado sobre o tapete, lhe polia com respeito e pericia as unhas dos
pés. Ao lado pousava a chavena de Saxe, cheia d'esse café de Moka
enviado por emires do Deserto, que não o contentava nunca, nem pela
força, nem pelo aroma. A espaços pousava o livro no peito, resvalava um
olhar compassivo para o pedicuro, como a procurar que dôr o
torturaria--pois que a todo o viver corresponde um soffrer. Decerto o
remexer assim, perpetuamente, em pés alheios... E quando o pedicuro se
erguia, Jacintho abria para elle um sorriso de confraternidade--com um
«adeus, meu amigo» que era «um adeus, meu irmão!»
Esse foi o periodo esplendido e soberbamente divertido do seu tédio.
Jacintho encontrára emfim na vida uma occupação grata--maldizer a Vida!
E para que a podésse maldizer em todas as suas fórmas, as mais ricas, as
mais intellectuaes, as mais puras, sobrecarregou a sua vida propria de
novo luxo, de interesses novos d'espirito, e até de fervores
humanitarios, e até de curiosidades supernaturaes.
O 202, n'esse inverno, refulgiu de magnificencia. Foi então que elle
iniciou em Paris, repetindo Heliogabalo, os Festins de Côr contados na
Historia Augusta: e offereceu ás suas amigas esse sublime jantar côr de
rosa, em que tudo era roseo, as paredes, os moveis, as luzes, as louças,
os crystaes, os gelados, os Champagnes, e até (por uma invenção da
Alta-Cozinha) os peixes, e as carnes, e os legumes, que os escudeiros
serviam, empoados de pó rosado, com librés da côr da rosa, em quanto do
tecto, d'um velario de seda rosada, cahiam petalas frescas de rosas... A
Cidade, deslumbrada, clamou--«Bravo, Jacintho!» E o meu Principe, ao
rematar a festa fulgurante, plantou deante de mim as mãos nas ilhargas e
gritou triumphalmente:--«Hein? Que massada!...»
Depois foi o Humanitarismo: e fundou um Hospicio no campo, entre
jardins, para velhinhos desamparados, outro para creanças debeis á beira
do Mediterraneo. Depois com o major Dorchas, e Mayolle, e o Hindù de
Mayolle penetrou no Theosophismo: e montou tremendas experiencias para
verificar a mysteriosa _exteriorisação da motilidade_. Depois,
desesperadamente, ligou o 202 com os fios telegraphicos do _Times_, para
que no seu gabinete, como n'um coração, palpitasse toda a vida Social da
Europa.
E a cada um d'estes esforços da elegancia, do humanitarismo, da
sociabilidade, e da intelligencia indagadora, voltava para mim, de
braços alegres, com um grito victorioso:--«Vês tu, Zé Fernandes? Uma
massada!»--Arrebatava então o seu _Ecclesiastes_, o seu Schopenhauer, e,
estendido no sophá, saboreava voluptuosamente a concordancia da Doutrina
e da Experiencia. Possuia uma Fé--o Pessimismo: era um apostolo rico e
esforçado: e tudo tentava, com sumptuosidade, para provar a verdade da
sua Fé! Muito gozou n'esse anno o meu desgraçado Principe!
No começo do inverno, porém, notei com inquietação que Jacintho já não
folheava o _Ecclesiastes_, desleixava Schopenhauer. Nem festas, nem
Theosophismos, nem os seus Hospicios, nem os fios do _Times_, pareciam
interessar agora o meu amigo, mesmo como demonstrações gloriosas da sua
Crença. E a sua abominavel funcção de novo se limitou a bocejar, a
passar os dedos molles sobre a face pendida palpando a caveira.
Incessantemente alludia á morte como a uma libertação. Uma tarde mesmo,
no melancolico crepusculo da Bibliotheca, antes de refulgirem as luzes,
consideravelmente me aterrou, fallando n'um tom regelado de mortes
rapidas, sem dôr, pelo choque d'uma vasta pilha electrica ou pela
violencia compassiva do acido cyanidrico. Diabo! O Pessimismo, que
apparecera na Intelligencia do meu Principe como um conceito
elegante--atacára bruscamente a Vontade!
Todo o seu movimento então foi o d'um boi inconsciente que marcha sob a
canga e o aguilhão. Já não esperava da Vida contentamento--nem mesmo se
lastimava que ella lhe trouxesse tédio ou pena. «Tudo é indifferente, Zé
Fernandes!» E tão indifferentemente sahiria á sua janella para receber
uma Corôa Imperial offerecida por um Povo--como se estenderia n'uma
poltrona rôta para emmudecer e jazer. Sendo tudo inutil, e não
conduzindo senão a maior desillusão, que podia importar a mais rutilante
actividade ou a mais desgostada inercia? O seu gesto constante, que me
irritava, era encolher os hombros. Perante duas ideias, dois caminhos,
dois pratos, encolhia os hombros! Que importava?... E no minimo acto,
raspar um phosphoro ou desdobrar um Jornal, punha uma morosidade tão
desconsolada que todo elle parecia ligado, desde os dedos até á alma,
pelas voltas apertadas d'uma corda que se não via e que o travava.
* * * * *
Muito desagradavelmente me recordo do dia dos seus annos, a 10 de
Janeiro. Cêdo, de manhã, recebèra, com uma carta de Madame de Trèves, um
açafate de camelias, azaleas, orchideas e lyrios do valle. E foi este
mimo que lhe recordou a data consideravel. Soprou sobre as petalas o
fumo do cigarro e murmurou com um riso de lento escarneo:
--Então, ha trinta e quatro annos que eu ando n'esta massada?
E como eu propunha que telephonassemos aos amigos para beberem no 202 o
Champagne do «Natalicio»--elle recusou, com o nariz enojado. Oh! Não!
Que horrivel sécca!... E bradou mesmo para o Grillo:
--Eu hoje não estou em Paris para ninguem. Abalei para o campo, abalei
para Marselha... Morri!
E a sua ironia não cessou até ao almoço perante os bilhetes, os
telegrammas, as cartas, que subiam, se arredondavam em collina sobre a
meza d'ebano, como um preito da Cidade. Outras flôres que vieram, em
vistosos cestos, com vistosos laços, foram por elle comparadas ás que se
depõe sobre uma tumba. E apenas se interessou um momento pelo presente
de Ephraim, uma engenhosa meza, que se abaixava até ao tapete ou se
alteava até ao tecto--para que, senhor Deus meu?
Depois do almoço, como chovia sombriamente, não arredamos do 202, com os
pés estendidos ao lume, em preguiçoso silencio. Eu terminára por
adormecer beatificamente. Acordei aos passos açodados do Grillo...
Jacintho, enterrado na poltrona, com umas tesouras, recortava um papel!
E nunca eu me compadeci d'aquelle amigo, que cançára a mocidade a
accumular todas as noções formuladas desde Aristoteles e a juntar todos
os inventos realisados desde Tharamenes, como n'essa tarde de festa, em
que elle, cercado de Civilisação nas maximas proporções para gozar nas
maximas proporções a delicia de viver, se encontrava reduzido, junto ao
seu lar, a recortar papeis com uma tesoura!
O Grillo trazia um presente do Gran-Duque--uma caixa de prata, forrada
de cedro, e cheia d'um chá precioso, colhido, flôr a flôr, nas veigas de
Kiang-Sou por mãos puras de virgens, e conduzido através da Asia, em
caravanas, com a veneração d'uma reliquia. Então, para despertar o nosso
torpôr, lembrei que tomassemos o divino chá--occupação bem harmonica com
a tarde triste, a chuva grossa alagando os vidros, e a clara chamma
bailando no fogão. Jacintho accedeu--e um escudeiro acercou logo a meza
de Ephraim para que nós lhe estreassemos os serviços destros. Mas o meu
Principe, depois de a altear, para meu espanto, até aos crystaes do
lustre, não conseguiu, apezar de uma suada e desesperada batalha com as
molas, que a meza regressasse a uma altura humana e cazeira. E o
escudeiro de novo a levou, levantada como um andaime, chimerica,
unicamente aproveitavel para o gigante Adamastor. Depois veio a caixa do
chá entre chaleiras, lampadas, coadores, filtros, todo um fausto de
alfaias de prata, que communicavam a essa occupação, tão simples e dôce
em caza de minha tia, _fazer chá_, a magestade d'um rito. Prevenido pelo
meu camarada da sublimidade d'aquelle chá de Kiang-Sou, ergui a chavena
aos labios com reverencia. Era uma infusão descorada que sabia a malva e
a formiga. Jacintho provou, cuspiu, blasphemou... Não tomamos chá.
Ao cabo d'outro pensativo silencio, murmurei, com os olhos perdidos no
lume:
--E as obras de Tormes? A egreja... Já haverá egreja nova?
Jacintho retomára o papel e a thesoura:
--Não sei... Não tornei a receber carta do Silverio... Nem imagino onde
param os ossos... Que lugubre historia!
Depois chegou a hora das luzes e do jantar. Eu encommendára pelo Grillo
ao nosso magistral cozinheiro uma larga travessa d'arroz dôce, com as
iniciaes de Jacintho e a data ditosa em canella, á moda amavel da nossa
meiga terra. E o meu Principe á meza, percorrendo a lamina de marfim
onde no 202 se inscreviam os pratos a lapis vermelho, louvou com fervôr
a ideia patriarchal:
--Arrôz dôce! Está escripto com dois _ss_, mas não tem dúvida...
Excellente lembrança! Ha que tempos não cômo arrôz dôce!... Desde a
morte da avó.
Mas quando o arrôz dôce appareceu triumphalmente, que vexâme! Era um
prato monumental, de grande arte! O arrôz, massiço, moldado em fórma de
pyramide do Egypto, emergia d'uma calda de cereja, e desapparecia sob os
fructos seccos que o revestiam até ao cimo, onde se equilibrava uma
corôa de Conde feita de chocolate e gomos de tangerina gelada! E as
iniciaes, a data, tão lindas e graves na canella ingenua, vinham
traçadas nas bordas da travessa com violetas pralinadas! Repellimos,
n'um mudo horror, o prato acanalhado. E Jacintho, erguendo o copo de
Champagne, murmurou como n'um funeral pagão:
--_Ad Manes_, aos nossos mortos!
Recolhemos á Bibliotheca, a tomar o café no conchego e alegria do lume.
Fóra, o vento bramava como n'um êrmo serrano: e as vidraças tremiam,
alagadas, sob as bategas da chuva irada. Que dolorosa noite para os dez
mil pobres que em Paris erram sem pão e sem lar! Na minha aldeia, entre
cêrro e valle, talvez assim rugisse a tormenta. Mas ahi cada pobre, sob
o abrigo da sua telha vã, com a sua panella atestada de couves, se
agacha no seu mantéo ao calor da lareira. E para os que não tenham lenha
ou couve, lá está o João das Quintas, ou a tia Vicencia, ou o abbade,
que conhecem todos os pobres pelos seus nomes, e com elles contam, como
sendo dos seus, quando o carro vae ao matto e a fornada entra no fôrno.
Ah Portugal pequenino, que ainda és dôce aos pequeninos!
Suspirei, Jacintho preguiçava. E terminamos por remexer languidamente os
jornaes que o mordomo trouxera, n'um monte facundo, sobre uma salva de
prata--jornaes de Paris, jornaes de Londres, Semanarios, Magazines,
Revistas, Illustrações... Jacintho desdobrava, arremessava: das Revistas
espreitava o summario, logo farto; ás Illustrações rasgava as folhas com
o dedo indifferente, bocejando por cima das gravuras. Depois, mais
estirado para o lume:
--É uma sécca... Não ha que lêr.
E de repente, revoltado contra este fastio oppressor que o escravisava,
saltou da poltrona com um arranque de quem despedaça algemas, e ficou
erecto, dardejando em torno um olhar imperativo e duro, como se
intimasse aquelle seu 202, tão abarrotado de Civilisação, a que por um
momento sequer fornecesse á sua alma um interesse vivo, á sua vida um
fugitivo gôsto! Mas o 202 permaneceu insensivel: nem uma luz, para o
animar, avivou o seu brilho mudo: só as vidraças tremeram sob o embate
mais rude de agua e vento.
Então o meu Principe, succumbido, arrastou os passos até ao seu
gabinete, começou a percorrer todos os apparelhos completadores e
facilitadores da Vida--o seu Telegrapho, o seu Telephone, o seu
Phonographo, o seu Radiometro, o seu Graphophono, o seu Microphono, a
sua Machina d'Escrever, a sua Machina de Contar, a sua Imprensa
Electrica, a outra Magnetica, todos os seus utensilios, todos os seus
tubos, todos os seus fios... Assim um Supplicante percorre altares
d'onde espera soccorro. E toda a sua sumptuosa Mechanica se conservou
rigida, reluzindo frigidamente, sem que uma roda girasse, nem uma lamina
vibrasse, para entreter o seu Senhor.
Só o relogio monumental, que marcava a hora de todas as capitaes e o
curso de todos os planetas, se compadeceu, batendo a meia-noite,
annunciando ao meu amigo que mais um Dia partira levando o seu
pêzo--diminuindo esse sombrio pêzo da Vida, sob que elle gemia, vergado.
O Principe da Gran-Ventura, então, decidiu recolher para a cama--com um
livro... E durante um momento, estacou no meio da Bibliotheca,
considerando os seus setenta mil volumes estabelecidos com pompa e
magestade como Doutores n'um Concilio--depois as pilhas tumultuarias dos
livros novos que esperavam pelos cantos, sobre o tapete, o repouso e a
consagração das estantes d'ebano. Torcendo mollemente o bigode caminhou
por fim para a região dos Historiadores: espreitou seculos, farejou
raças: pareceu attrahido pelo explendor do Imperio Byzantino: penetrou
na Revolução Franceza d'onde se arredou desencantado: e palpou com mão
indeliberada toda a vasta Grecia desde a creação de Athenas até a
aniquilação de Corintho. Mas bruscamente virou para a fila dos Poetas,
que reluziam em marroquins claros, mostrando, sobre a lombada, em ouro,
nos titulos fortes ou languidos, o interior das suas almas. Não
appeteceu nenhuma d'essas seis mil almas--e recuou, desconsolado, até
aos Biologos... Tão massiça e cerrada era a estante de Biologia que o
meu pobre Jacintho estarreceu, como ante uma cidadella inaccessivel!
Rolou a escada--e, fugindo, trepou, até ás alturas da Astronomia:
destacou astros, recollocou mundos: todo um Systema Solar desabou com
fragor. Aturdido, desceu, começou a procurar por sobre as rimas das
obras novas, ainda brochadas, nas suas roupas leves de combate.
Apanhava, folheava, arremessava: para desentulhar um volume, demolia uma
torre de doutrinas: saltava por cima dos Problemas, pisava as Religiões:
e relanceando uma linha, esgravatando além n'um indice, todos
interrogava, de todos se desinteressava, rolando quasi de rastos, nas
grossas vagas de tomos que rolavam, sem se poder deter, na ancia de
encontrar um Livro! Parou então no meio da immensa nave, de cocoras, sem
coragem, contemplando aquelles muros todos forrados, aquelle chão todo
alastrado, os seus setenta mil volumes--e, sem lhes provar a substancia,
já absolutamente saciado, abarrotado, nauseado pela opressão da sua
abundancia. Findou por voltar ao montão de jornaes amarrotados, ergueu
melancholicamente um velho _Diario de Noticias_, e com elle debaixo do
braço subiu ao seu quarto, para dormir, para esquecer.


VIII

Ao fim d'esse inverno escuro e pessimista, uma manhã que eu preguiçava
na cama, sentindo através da vidraça cheia de sol ainda pallido um bafo
de Primavera ainda timido--Jacintho assomou á porta do meu quarto,
revestido de flanellas leves, d'uma alvura de açucena. Parou lentamente
á beira dos colxões, e, com gravidade, como se annunciasse o seu
casamento ou a sua morte, deixou desabar sobre mim esta declaração
formidavel:
--Zé Fernandes, vou partir para Tormes.
O pulo com que me sentei abalou o rijo leito de pau preto do velho D.
Galião:
--Para Tormes? Oh Jacintho, quem assassinaste?...
Deleitado com a minha emoção, o Principe da Gran Ventura tirou da
algibeira uma carta, e encetou estas linhas, já decerto relidas,
fundamente estudadas:
--«Ill.^{mo} e exc.^{mo} snr.--Tenho grande satisfação em communicar a
v. exc.^a que por toda esta semana devem ficar promptas as obras da
capella...»
--É do Silverio? exclamei.
--É do Silverio. «...as obras da capella nova. Os venerandos restos dos
excelsos avós de v. exc.^a, senhores de todo o meu respeito, podem pois
ser em breve trasladados da egreja de S. José, onde têm estado
depositados por bondade do nosso Abbade, que muito se recommenda a v.
exc.^a... Submisso, aguardo as prestantes ordens de v. exc.^a a respeito
d'esta magestosa e afflictiva ceremonia...»
Atirei os braços, comprehendendo:
--Ah! bem! Queres ir assistir á trasladação...
Jacintho sumiu a carta no bolso.
--Pois não te parece, Zé Fernandes? Não é por causa dos outros avós, que
são ossos vagos, e que eu não conheci. É por causa do avô Galião...
Tambem não o conheci. Mas este 202 está cheio d'elle; tu estás deitado
na cama d'elle; eu ainda uso o relogio d'elle. Não posso abandonar ao
Silverio e aos caseiros o cuidado de o installarem no seu jazigo novo.
Ha aqui um escrupulo de decencia, de elegancia moral... Emfim, decidi.
Apertei os punhos na cabeça, e gritei--_vou a Tormes_! E vou!... E tu
vens!
Eu enfiara as chinellas, apertava os cordões do roupão:
--Mas tu sabes, meu bom Jacintho, que a casa de Tormes está
inhabitavel...
Elle cravou em mim os olhos aterrados.
--Medonha, hein?
--Medonha, medonha, não... É uma bella casa, de bella pedra. Mas os
caseiros, que lá vivem ha trinta annos, dormem em catres, comem o caldo
á lareira, e usam as salas para seccar o milho. Creio que os unicos
moveis de Tormes, se bem recordo, são um armario, e uma espinetta de
charão, côxa, já sem teclas.
O meu pobre Principe suspirou, com um gesto rendido em que se abandonava
ao Destino:
--Acabou!... _Alea jact est!_ E como só partimos para abril, ha tempo de
pintar, d'assoalhar, d'envidraçar... Mando d'aqui de Paris tapetes e
camas... Um estofador de Lisboa vae depois forrar e disfarçar algum
buraco... Levamos livros, uma machina para fabricar gelo... E é mesmo
uma occasião de pôr emfim n'uma das minhas casas de Portugal alguma
decencia e ordem. Pois não achas? E então essa! Uma casa que data de
1410... Ainda existia o Imperio Byzantino!
Eu espalhava, com o pincel, sobre a face, flocos lentos de sabão. O meu
Principe accendeu muito pensativamente um cigarro; e não se arredou do
toucador, considerando o meu preparo com uma attenção triste que me
incommodava. Por fim, como se remoesse uma sentença minha, para lhe
reter bem a moral e o succo:
--Então, definitivamente, Zé Fernandes, entendes que é um dever, um
absoluto dever, ir eu a Tormes?
Afastei do espelho a cara ensaboada para encarar com divertido espanto o
meu Principe:
--Oh Jacintho! foi em ti, só em ti que nasceu a ideia d'esse dever! E
honra te seja, menino... Não cedas a ninguem essa honra!
Elle atirou o cigarro--e, com as mãos enterradas nas algibeiras das
pantalonas, vagou pelo quarto, topando nas cadeiras, embicando contra os
postes torneados do velho leito de D. Galião, n'um balanço vago, como
barco já desamarrado do seu seguro ancoradouro, e sem rumo no mar
incerto. Depois encalhou sobre a mesa onde eu conservava enfileirada,
por gradações de sentimentos, desde o dagarreotypo do papá até á
photographia do _Carocho_ perdigueiro, a galeria da minha Familia.
E nunca o meu Principe (que eu contemplava esticando os suspensorios) me
pareceu tão corcovado, tão minguado, como gasto por uma lima que desde
muito o andasse fundamente limando. Assim viera findar, desfeita em
Civilisação, n'aquelle super-requintado magricellas sem musculo e sem
energia, a raça fortissima dos Jacinthos! Esses guedelhudos Jacinthões,
que nas suas altas terras de Tormes, de volta de bater o moiro no Salado
ou o castelhano em Valverde, nem mesmo despiam as fuscas armaduras para
lavrar as suas chans e amarrar a vide ao olmo, edificando o Reino com a
lança e com a enxada, ambas tão rudes e rijas! E agora, alli estava
aquelle ultimo Jacintho, um Jacinthiculo, com a macia pelle embebida em
aromas, a curta alma enrodilhada em Philosophias, travado e suspirando
baixinho na miuda indecisão de viver.
--Oh Zé Fernandes, quem é esta lavradeirona tão rechonchuda?
Estendi o pescoço para a Photographia que elle erguera d'entre a minha
galeria, no seu honroso caixilho de pellucia escarlate:
--Mais respeito, Snr. D. Jacintho... Um pouco mais de respeito,
cavalheiro!... É minha prima Joanninha, de Sandofim, da Casa da Flôr da
Malva.
--Flôr da Malva, murmurou o meu Principe. É a casa do Condestavel, de
Nun'alvares.
--Flôr da Rosa, homem! A casa do Condestavel era na Flôr da Rosa, no
Alemtejo... Essa tua ignorancia trapalhona das coisas de Portugal!
O meu Principe deixou escorregar mollemente a photographia da minha
prima d'entre os dedos molles--que levou á face, no seu gesto horrendo
de palpar atravez da face a caveira. Depois, de repente, com um soberbo
esforço, em que se endireitou e cresceu:
--Bem! _Alea jacta est!_ Partamos pois para as serras!... E agora nem
reflexão, nem descanço!... Á obra! E a caminho!
Atirou a mão ao fecho dourado da porta como se fosse o negro loquete que
abre os Destinos--e no corredor gritou pelo Grillo, com uma larga e
açodada voz que eu nunca lhe conhecera, e me lembrou a d'um Chefe
ordenando, n'alvorada, que se levante o Acampamento, e que a Hoste
marche, com pendões e bagagens...
Logo n'essa manhã (com uma actividade em que eu reconheci a pressa
enjoada de quem bebe oleo-de-ricino), escreveu ao Silverio mandando
caiar, assoalhar, envidraçar o casarão. E depois do almoço appareceu na
Bibliotheca, chamado violentamente pelo telephone, para combinar a
remessa de mobilias e confortos, o director da _Companhia Universal de
Transportes_.
Era um homem que parecia o cartaz da sua Companhia, apertado n'um
jaquetão de xadrezinho escuro, com polainas de jornada sobre botas
brancas, uma sacola de marroquim a tiracolo, e na botoeira uma roseta
multicor resumindo as suas condecorações exoticas de Madagascar, de
Nicaragua, da Persia, outras ainda, que provavam a universalidade dos
seus serviços. Apenas Jacintho mencionou «Tormes, no Douro...»--elle
logo, atravez d'um sorriso superior, estendeu o braço, detendo outros
esclarecimentos, na sua intimidade minuciosa com essas regiões.
--Tormes... Perfeitamente! Perfeitamente!
Sobre o joelho, na carteira, escrevinhou uma fugidia nota--emquanto eu
considerava, assombrado, a vastidão do seu saber Chorographico, assim
familiar com os recantos d'uma serra de Portugal e com todos os seus
velhos solares. Já elle atirára a carteira para o bolso... E «nós, seus
caros senhores, não tinhamos senão a encaixotar as roupas, as mobilias,
as preciosidades! Elle mandaria as suas carroças buscar os caixotes, a
que poria, em grossa letra, com grossa tinta, o endereço...»
--Tormes, perfeitamente! Linha Norte-Hespanha-Medina-Salamanca...
Perfeitamente! Tormes... Muito pittoresco! E antigo, historico!
Perfeitamente, perfeitamente!
Desengonçou a cabeça n'uma venia profundissima--e sahiu da Bibliotheca,
com passos que devoravam leguas, annunciavam a presteza dos seus
Transportes.
--Vê tu, murmurou Jacintho muito serio. Que promptidão, que
facilidade!... Em Portugal era uma tragedia. Não ha senão Paris!
Começou então no 202 o collossal encaixotamento de todos os confortos
necessarios ao meu Principe para um mez de serra aspera--camas de penna,
banheiras de nickel, lampadas Carcel, divans profundos, cortinas para
vedar as gretas rudes, tapetes para amaciar os soalhos broncos. Os
sotãos, onde se arrecadavam os pesados trastes do avô Galião, foram
esvasiados--porque o casarão medieval de 1410 comportava os tremós
romanticos de 1830. De todos os armazens de Paris chegavam cada manhã
fardos, caixas, temerosos embrulhos que os emmaladores desfaziam,
atulhando os corredores de montes de palha e de papel pardo, onde os
nossos passos açodados se enrodilhavam. O cozinheiro, esbaforido,
organisava a remessa de fornalhas, geleiras, bocaes de trufas, latas de
conservas, bojudas garrafas de aguas mineraes. Jacintho, lembrando as
trovoadas da serra, comprou um immenso pára-raios. Desde o amanhecer,
nos pateos, no jardim, se martellava, se pregava, com vasto fragor, como
na construcção d'uma cidade. E o desfilar das bagagens, através do
portão, lembrava uma pagina de Herodoto contando a marcha dos Persas.
Das janellas, Jacintho com o braço estendido, saboreava aquella
actividade e aquella disciplina:
--Vê tu, Zé Fernandes, que facilidade!... Sahimos do 202, chegamos á
serra, encontramos o 202. Não ha senão Paris!
Recomeçára a amar a Cidade, o meu Principe, emquanto preparava o seu
Exodo. Depois de ter, toda a manhã, apressado os encaixotadores,
descortinado confortos novos para o abandonado solar, telephonado gordas
listas de encommendas a cada loja de Paris--era com delicia que se
vestia, se perfumava, se floria, se enterrava na vittoria ou saltava
para a almofada do phaeton, e corria ao Bosque, e saudava a barba
talmudica do Ephraim, e os bandós furiosamente negros da Verghane, e o
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