A Cidade e as Serras - 08

Total number of words is 4396
Total number of unique words is 1839
27.2 of words are in the 2000 most common words
40.7 of words are in the 5000 most common words
48.9 of words are in the 8000 most common words
Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
Psychologo de fiacre, e a condessa de Trèves na sua nova caleche de
oito-molas fornecida pelas operações conjunctas da Bolsa e da alcôva.
Depois arrebanhava amigos para jantares de surpreza no Voisin ou no
Bignon, onde desdobrava o guardanapo com a impaciencia d'uma fome
alegre, vigiando fervorosamente que os Bordeus estivessem bem aquecidos
e os Champagnes bem granitados. E no theatro das _Nouveautés_, no
_Palais Royal_, nos _Buffos_, ria, batendo na côxa, com encanecidas
facecias d'encanecidas farças, antiquissimos tregeitos d'antiquissimos
actores, com que já rira na sua infancia, antes da guerra, sob o segundo
Napoleão!
De novo, em duas semanas, se abarrotaram as paginas da sua Agenda. A
magnificencia do seu trage, como imperador Frederico II de Suabia,
deslumbrou, no baile mascarado da Princesa de Cravon-Rogan (onde tambem
fui, de «moço de forcado».) E na _Associação para o Desenvolvimento das
Religiões Esotericas_ discursou e batalhou bravamente pela construcção
d'um Templo Budhista em Montmartre!
Com espanto meu recomeçou tambem a conversar, como nos tempos de Escóla,
da «famosa Civilisação nas suas maximas proporções.» Mandou encaixotar o
seu velho telescopio para o usar em Tormes. Receei mesmo que no seu
espirito germinasse a idéa de crear, no cimo da serra, uma Cidade com
todos os seus orgãos. Pelo menos não consentia o meu Jacintho que essas
semanas da silvestre Tormes interrompessem a illimitada accumulação das
noções--porque uma manhã rompeu pelo meu quarto, desolado, gritando que
entre tantos confortos e fórmas de Civilisação esqueceramos os livros!
Assim era--e que vexame para a nossa Intellectualidade! Mas que livros
escolher entre os facundos milhares sob que vergava o 202? O meu
Principe decidiu logo dedicar os seus dias serranos ao estudo da
Historia Natural--e nós mesmos, immediatamente, deitamos para o fundo
d'um vasto caixote novo, como lastro, os vinte e cinco tomos de Plinio.
Despejamos depois para dentro, ás braçadas, Geologia, Mineralogia,
Botanica... Espalhamos por cima uma camada aeria de Astronomia. E, para
fixar bem no caixote estas Sciencias oscillantes, entalamos em redor
cunhas de Metaphysica.
Mas quando a derradeira caixa, pregada e cintada de ferro, sahiu do
portão do 202 na derradeira carroça da _Companhia dos Transportes_, toda
esta animação de Jacintho se abateu como a efervescencia n'um copo de
Champagne. Era em meados já tepidos de Março. E de novo os seus
desagradaveis bocejos atroaram o 202, e todos os sophás rangeram sob o
peso do corpo que elle lhe atirava para cima, mortalmente vencido pela
fartura e pelo tedio, n'um desejo de repouso eterno, bem envolto de
solidão e silencio. Desesperei. O que! Aturaria eu ainda aquelle
Principe palpando amargamente a caveira, e, quando o crepusculo
entristecia a Bibliotheca, alludindo, n'um tom rouco, á doçura das
mortes rapidas pela violencia misericordiosa do acido cyanhidrico? Ah
não, caramba! E uma tarde em que o encontrei estirado sobre um divan, de
braços em cruz, como se fosse a sua estatua de marmore sobre o seu
jazigo de granito, positivamente o abanei com furor, berrando:
--Accorda, homem! Vamos para Tormes! O casarão deve estar prompto, a
reluzir, a abarrotar de cousas! Os ossos de teus avós pedem repouso, em
cova sua!... A caminho, a enterrar esses mortos, e a vivermos nós, os
vivos!... Irra! São cinco de Abril!... É o bom tempo da serra!
O meu Principe resurgiu lentamente da inercia de pedra:
--O Silverio não me escreveu, nunca me escreveu... Mas, com effeito,
deve estar tudo preparado... Já lá temos certamente creados, o
cosinheiro de Lisboa... Eu só levo o Grillo, e o Anatole que envernisa
bem o calçado, e tem geito como pedicuro... Hoje é Domingo.
Atirou os pés para o tapete, com heroismo:
--Bem, partimos no Sabbado!... Avisa tu o Silverio!
Começou então o laborioso e pensativo estudo dos Horarios--e o dedo
magro de Jacintho, por sobre o mappa, avançando e recuando entre Paris e
Tormes. Para escolher o «salão» que deviamos habitar durante a temida
jornada, duas vezes percorremos o deposito da Estação d'Orleans,
atolados em lama, atraz do Chefe do Trafico que entontecia. O meu
Principe recusava este salão por causa da côr tristonha dos estofos;
depois recusava aquelle por causa da mesquinhez afflictiva do
Water-Closet! Uma das suas inquietações era o banho, nas manhãs que
passariamos rolando. Suggeri uma banheira de borracha. Jacintho,
indeciso, suspirava... Mas nada o aterrou como o trasbordo em Medina del
Campo, de noite, nas trevas da Velha Castella. Debalde a Companhia do
Norte de Hespanha e a de Salamanca, por cartas, por telegrammas,
socegaram o meu camarada, affirmando que, quando elle chegasse no
comboio de Irun dentro do seu salão, já outro salão ligado ao comboio de
Portugal esperaria, bem aquecido, bem allumiado, com uma ceia que lhe
offertava um dos Directores, D. Esteban Castillo, ruidoso e rubicundo
conviva do 202! Jacintho corría os dedos anciosos pela face:--«E os
saccos, as pelles, os livros, quem os transportaria do salão de Irun
para o salão de Salamanca?» Eu berrava, desesperado, que os carregadores
de Medina eram os mais rapidos, os mais destros de toda a Europa! Elle
murmurava:--«Pois sim, mas em Hespanha, de noite!...» A noite, longe da
Cidade, sem telephone, sem luz electrica, sem postos de policia, parecia
ao meu Principe povoada de surprezas e assaltos. Só acalmou depois de
verificar no Observatorio Astronomico, sob a garantia do sabio professor
Bertrand, que a noite da nossa jornada era de lua cheia!
Emfim, na sexta-feira, findou a tremenda organisação d'aquella viagem
historica! O sabbado predestinado amanheceu com generoso sol, de
affagadora doçura. E eu acabava de guardar na mala, embrulhadas em papel
pardo, as photographias das creaturinhas suaves que, n'esses vinte e
sete mezes de Paris, me tinham chamado «_mon petit chou! mon rat
cheri!_»--quando Jacintho rompeu pelo quarto, com um soberbo ramo de
orchideas na sobrecasaca, pallido e todo nervoso.
--Vamos ao Bosque, por despedida?
Fomos--á grande despedida! E que encanto! Até nas almofadas e molas da
vittoria senti logo uma elasticidade mais emballadora. Depois, pela
Avenida do Bosque, quasi me pezava não ficar sempiternamente rolando, ao
trote rimado das eguas perfeitas, no rebrilho rico de metaes e vernizes,
sobre aquelle macadam mais alisado que marmore, entre tão bem regadas
flôres e relvas de tão tentadora frescura, cruzando uma Humanidade fina,
de elegancia bem acabada, que almoçára o seu chocolate em porcellanas de
Sevres ou de Minton, sahira d'entre sèdas e tapetes de tres mil francos,
e respirava a belleza de Abril com vagar, requinte e pensamentos
ligeiros! O Bosque resplandecia n'uma harmonia de verde, azul e ouro.
Nenhuma cova ou terra solta desalisava as polidas alleas que a Arte
traçou e enroscou na espessura--nenhum esgalho desgrenhado desmanchava
as ondulações macias da folhagem que o Estado escóva e lava. O piar das
aves apenas se elevava para espalhar uma graça leve de vida alada;--e
mais natural parecia, entre o arvoredo sociavel, o ranger das sellas
novas, onde pousavam, com balanço esbelto, as amazonas espartilhadas
pelo grande Redfern. Em frente ao Pavilhão de Armenonville cruzamos
Madame de Trèves, que nos envolveu ambos na caricia do seu sorriso, mais
avivado áquella hora pelo vermelhão ainda humido. Logo atraz a barba
talmudica de Ephraim negrejou, fresca tambem da brilhantine da manhã, no
alto d'um phaeton tilintante. Outros amigos de Jacintho circulavam nas
Acacias--e as mãos que lhe acenavam, lentas e affaveis, calçavam luvas
frescas côr de palha, côr de perola, côr de lilaz. Todelle relampejou
rente de nós sobre uma grande bycicleta. Dornan, alastrado n'uma cadeira
de ferro, sob um espinheiro em flôr, mamava o seu immenso charuto, como
perdido na busca de rimas sensuaes e nedias. Adeante foi o Psychologo,
que nos não avistou, conversando com um requebro melancolico para dentro
d'um coupé que rescendia a alcova, e a que um cocheiro obeso imprimia
dignidade e decencia. E rolavamos ainda, quando o Duque de Marizac, a
cavallo, ergueu a bengala, estacou a nossa vittoria para perguntar a
Jacintho se apparecia á noite nos «quadros vivos» dos Verghanes. O meu
Principe rosnou um--«não, parto para o sul...»--que mal lhe passou
d'entre os bigodes murchos... E Marizac lamentou--porque era uma festa
estupenda. Quadros vivos da Historia Sagrada e da Historia Romana!...
Madame Verghane, de Magdalena, de braços nús, peitos nús, pernas núas,
limpando com os cabellos os pés do Christo!--O Christo, um latagão
soberbo, parente dos Trèves, empregado no Ministerio da Guerra, gemendo,
derreado, sob uma cruz de papelão! Havia tambem Lucrecia na cama, e
Tarquinio ao lado, de punhal, a puxar os lençoes! E depois ceia, em
mezas soltas, todos nos seus trajes historicos. Elle já estava
aparceirado com Madame de Malbe, que era Agrippina! Quadro portentoso
esse--Agrippina morta, quando Nero a vem contemplar e lhe estuda as
fórmas, admirando umas, desdenhando outras como imperfeitas. Mas, por
polidez, ficára combinado que Nero admiraria sem reserva todas as fórmas
de Madame de Malbe... Emfim collossal, e estupendamente instructivo!
Acenamos um longo adeus áquelle alegre Marizac. E recolhemos sem que
Jacintho emergisse do silencio enrugado em que se abysmára, com os
braços rigidamente cruzados, como remoendo pensamentos decisivos e
fortes. Depois, em frente ao Arco de Triumpho, moveu a cabeça, murmurou:
--É muito grave, deixar a Europa!
* * * * *
Emfim, partimos! Sob a doçura do crepusculo que se enublára deixamos o
202. O Grillo e o Anatole seguiam n'um fiacre atulhado de livros, de
estojos, de paletots, de impermeaveis, de travesseiras, de agoas
mineraes, de saccos de couro, de rolos de mantas: e mais atraz um
omnibus rangia sob a carga de vinte e tres malas. Na Estação, Jacintho
ainda comprou todos os Jornaes, todas as Illustrações, Horarios, mais
livros, e um saca-rolhas de fórma complicada e hostil. Guiados pelo
Chefe do Trafico, pelo Secretario da Companhia, occupamos copiosamente o
nosso salão. Eu puz o meu bonet de sêda, calcei as minhas chinellas. Um
silvo varou a noite. Paris lampejou, fugiu n'um derradeiro clarão de
janellas... Para o sorver, Jacintho ainda se arremessou á portinhola.
Mas rolavamos já na treva da Provincia. O meu Principe então recahiu nas
almofadas:
--Que aventura, Zé Fernandes!
Até Chartres, em silencio, folheamos as Illustrações. Em Orleans, o
guarda veio arranjar respeitosamente as nossas camas. Derreado com
aquelles quatorze mezes de Civilisação adormeci--e só acordei em Bordeus
quando Grillo, zeloso, nos trouxe o nosso chocolate. Fóra, uma chuva
miudinha pingava mollemente d'um espesso ceu de algodão sujo. Jacintho
não se deitára, desconfiado da aspereza e da humidade dos lençoes. E,
mettido n'um roupão de flanella branco, com a face arripiada e
estremunhada, ensopando um bolo no chocolate, rosnava sombriamente:
--Este horror!... E agora com chuva!
Em Biarritz, ambos observamos com uma certeza indolente:
--É Biarritz.
Depois Jacintho, que espreitava pela janella embaciada, reconheceu o
lento caminhar pernalto, o nariz bicudo e triste, do Historiador Danjon.
Era elle, o facundo homem, vestido de xadrezinho, ao lado d'uma dama
roliça que levava pela trella uma cadellinha felpuda. Jacintho baixou a
vidraça violentamente, berrou pelo Historiador, na ancia de communicar
ainda, através d'elle, com a Cidade, com o 202!... Mas o comboio
mergulhára na chuva e nevoa.
Sobre a ponte do Bidassoa, antevendo o termo da vida facil, os abrolhos
da Incivilisação, Jacintho suspirou com desalento:
--Agora adeus, começa a Hespanha!...
Indignado, eu, que já saboreava o generoso ar da terra bemdita, saltei
para diante do meu Principe, e n'um saracoteio de tremendo salero,
castanholando os dedos, entoei uma «petenera» condigna:
A la puerta de mi casa
Ay Soledad, Soleda... á... á... á.
Elle estendeu os braços, supplicante:
--Zé Fernandes, tem piedade do enfermo e do triste!
--_Irun_! _Irun_!...
N'essa Irun almoçamos com succulencia--por que sobre nós velava, como
Deusa omnipresente, a Companhia do Norte. Depois «el jefe d'Aduana, el
jefe d'Estacion», preciosamente nos installaram n'outro salão, novo, com
setins côr d'azeitona, mas tão pequeno que uma rica porção dos nossos
confortos em mantas, livros, saccos e impermeaveis, passou para o
compartimento do _Sleeping_ onde se repoltreavam o Grillo e o Anatole,
ambos de bonets escocezes, e fumando gordos charutos.--_Buen viaje_!
_Gracias_! _Servidores_!--E entramos silvando nos Pyreneos.
Sob a influencia da chuva embaciadora, d'aquellas serras sempre eguaes,
que se desenrolavam, arripiadas, diluidas na nevoa, resvalei a uma
somnolencia dôce;--e, quando descerrava as palpebras, encontrava
Jacintho a um canto, esquecido do livro fechado nos joelhos, sobre que
cruzára os magros dedos, considerando valles e montes com a melancolia
de quem penetra nas terras do seu desterro! Um momento veio em que,
arremessando o livro, enterrando mais o chapéo molle, se ergueu com
tanta decisão, que receei detivesse o comboio para saltar á estrada,
correr atravez das Vascongadas e da Navarra, para traz, para o 202!
Sacudi o meu torpôr, exclamei:--«oh menino!...» Não! O pobre amigo ia
apenas continuar o seu tedio para outro canto, enterrado n'outra
almofada, com outro livro fechado. E á maneira que a escuridão da tarde
crescia, e com ella a borrasca de vento e agoa, uma inquietação mais
aterrada se apoderava do meu Principe, assim desgarrado da Civilisação,
arrastado para a Natureza que já o cercava de brutalidade agreste. Não
cessou então de me interrogar sobre Tormes:
--As noites são horriveis, hein, Zé Fernandes? Tudo negro, enorme
solidão... E medico?... Ha medico?
Subitamente o comboio estacou. Mais grossa e ruidosa a chuva fustigou as
vidraças. Era um descampado, todo em treva, onde rolava e lufava um
grande vento solto. A machina apitava, com angustia. Uma lanterna
lampejou, correndo. Jacintho batia o pé:--«É medonho! é medonho!»...
Entreabri a portinhola. Da claridade incerta das vidraças surdiam
cabeças esticadas, assustadas.--«_Que hay_? _Que hay_?»--A uma rajada,
que me alagou, recuei:--e esperamos durante lentos, calados minutos,
esfregando desesperadamente os vidros embaciados para sondar a
escuridão. De repente o comboio recomeçou a rolar, muito sereno.
Em breve appareceram as luzinhas mortas d'uma estação abarracada. Um
conductor, com o casacão de oleado todo a escorrer, trepou ao salão:--e
por elle soubemos, emquanto carimbava apressadamente os bilhetes, que o
trem, muito atrazado, talvez não alcançasse em Medina o comboio de
Salamanca!
--Mas então?...
O casaco de oleado escorregára pela portinhola, fundido na noite,
deixando um cheiro de humidade e azeite. E nós encetamos um novo
tormento... Se o trem de Salamanca tivesse abalado? O salão, tomado até
Medina, desengatava em Medina:--e eis os nossos preciosos corpos, com as
nossas preciosas almas, despejados em Medina, para cima da lama, entre
vinte e trez malas, n'uma rude confusão hespanhola, sob a tormenta de
ventania e d'agua!
--Oh, Zé Fernandes, uma noite em Medina!
Ao meu Principe apparecia como desventura suprema essa noite em Medina,
n'uma _fonda_ sordida, fedendo a alho, com gordas filas de percevejos
atravez dos lençoes d'estopa encardida!... Não cessei então de fitar,
n'um desassocego, os ponteiros do relogio:--emquanto Jacintho, pela
vidraça escancarada, todo fustigado da chuva clamorosa, furava a
negrura, na esperança de avistar as luzes de Medina e um comboio
paciente fumegando... Depois recahia no divan, limpava os bigodes e os
olhos, maldizia a Hespanha. O trem arquejava, rompendo o vasto vento da
planura desolada. E a cada apito era um alvoroço. Medina?... Não! Algum
sumido apeadeiro, onde o trem se atardava, esfalfado, resfolgando,
emquanto dormentes figuras encarapuçadas, embrulhadas em mantas,
rondavam sob o telheiro do barracão, que as lanternas baças tornavam
mais soturno. Jacintho esmurrava o joelho:--«Mas por que pára este
infame comboio? Não ha trafico, não ha gente! Oh esta Hespanha!...» A
sineta badalava, moribunda. De novo fendiamos a noite e a borrasca.
Resignadamente comecei a percorrer um _Jornal do Commercio_, antigo,
trazido de Paris. Jacintho esmagava o espesso tapete do salão com
passadas rancorosas, rosnando como uma fera. E ainda assim se escoou, ás
gottas, uma hora cheia de eternidade.--Um silvo, outro silvo!... Luzes
mais fortes, longe, palpitaram na neblina. As rodas trilharam, com rijos
solavancos, os encontros de carris. Emfim, Medina!... Um muro sujo de
barracão alvejou--e bruscamente, á portinhola aberta com violencia,
apparece um cavalheiro barbudo, de capa á hespanhola, gritando pelo snr.
D. Jacintho!... Depressa! depressa! que parte o comboio de Salamanca!
--«Que no hay un momento, caballeros! Que no hay un momento!»
Agarro estonteadamente o meu paletot, o _Jornal do Commercio_. Saltamos
com ancia:--e, pela plataforma, por sobre os trilhos, através de
charcos, tropeçando em fardos, empurrados pelo vento, pelo homem da capa
á hespanhola, enfiamos outra portinhola, que se fechou com um estalo
tremendo... Ambos arquejavamos. Era um salão forrado de um panno verde
que comia a luz escassa. E eu estendia o braço, para receber dos
carregadores açodados as nossas malas, os nossos livros, as nossas
mantas--quando, em silencio, sem um apito, o trem despegou e rolou.
Ambos nos atiramos ás vidraças, em brados furiosos:
--Pare! As nossas malas, as nossas mantas!... P'ra aqui!... Oh Grillo!
Oh Grillo!
Uma immensa rajada levou os nossos brados. Era de novo o descampado
tenebroso, sob a chuva despenhada. Jacintho ergueu os punhos, n'um furor
que o engasgava:
--Oh! Que serviço! Oh que canalhas!... Só em Hespanha!... E agora? As
malas perdidas!... Nem uma camisa, nem uma escova!
Calmei o meu desgraçado amigo:
--Escuta! eu entrevi dous carregadores arrebanhando as nossas cousas...
Decerto o Grillo fiscalisou. Mas na pressa, naturalmente, atirou com
tudo para o seu compartimento... Foi um erro não trazer o Grillo
comnosco, no salão... Até podiamos jogar a manilha!
De resto a sollicitude da Companhia, Deusa omnipresente, velava sobre o
nosso conforto--pois que á porta do lavatorio branquejava o cesto da
nossa ceia, mostrando na tampa um bilhete de D. Esteban com estas doces
palavras a lapis--_á D. Jacintho y su egregio amigo, que les dè gusto_!
Farejei um aroma de perdiz. E alguma tranquillidade nos penetrou no
coração sentindo tambem as nossas malas sob a tutella da Deusa
omnipresente.
--Tens fome Jacintho?
--Não. Tenho horror, furor, rancor!... E tenho somno.
Com effeito! depois de tão desencontradas emoções só appeteciamos as
camas que esperavam, macias e abertas. Quando cahi sobre a travesseira,
sem gravata, em ceroulas, já o meu Principe, que não se despira, apenas
embrulhára os pés no _meu_ paletot, nosso unico agasalho, resonava com
magestade.
Depois, muito tarde e muito longe, percebi junto do meu catre, na
claridadezinha da manhã, coada pelas cortinas verdes, uma fardeta, um
bonet, que murmuravam baixinho com immensa doçura:
--V. exc.^as não têem nada a declarar?... Não ha malinhas de mão?...
Era a minha terra! Murmurei baixinho com immensa ternura:
--Não temos aqui nada... Pergunte v. exc.^a pelo Grillo... Ahi atraz,
n'um compartimento... Elle tem as chaves, tem tudo... É o Grillo.
A fardeta desappareceu, sem rumor, como sombra benefica. E eu readormeci
com o pensamento em Guiães, onde a tia Vicencia, atarefada, de lenço
branco cruzado no peito, de certo já preparava o leitão.
Acordei envolto n'um largo e doce silencio. Era uma Estação muito
socegada, muito varrida, com rosinhas brancas trepando pelas paredes--e
outras rosas em moitas, n'um jardim, onde um tanquesinho abafado de
limos dormia sob duas mimosas em flôr que rescendiam. Um moço pallido,
de paletot côr de mel, vergando a bengalinha contra o chão, contemplava
pensativamente o comboio. Agachada rente á grade da horta, uma velha,
diante da sua cesta de ovos, contava moedas de cobre no regaço. Sobre o
telhado seccavam aboboras. Por cima rebrilhava o profundo, rico e macio
azul de que meus olhos andavam agoados.
Sacudi violentamente Jacintho:
--Acorda, homem, que estás na tua terra!
Elle desembrulhou os pés do meu paletot, cofiou o bigode, e veio sem
pressa, á vidraça que eu abrira, conhecer a sua terra.
--Então é Portugal, hein?... Cheira bem.
--Está claro que cheira bem, animal!
A sineta tilintou languidamente. E o comboio deslisou, com descanço,
como se passeasse para seu regalo sobre as duas fitas d'aço, assobiando
e gozando a belleza da terra e do ceu.
O meu Principe alargava os braços, desolado:
--E nem uma camisa, nem uma escova, nem uma gotta d'agoa de Colonia!...
Entro em Portugal, immundo!
--Na Regoa ha uma demora, temos tempo de chamar o Grillo, rehaver os
nossos confortos... Olha para o rio!
Rolavamos na vertente d'uma serra, sobre penhascos que desabavam até
largos socalcos cultivados de vinhedo. Em baixo, n'uma esplanada,
branquejava uma casa nobre, de opulento repouso, com a capellinha muito
caiada entre um laranjal maduro. Pelo rio, onde a agoa turva e tarda nem
se quebrava contra as rochas, descia, com a vela cheia, um barco lento
carregado de pipas. Para além, outros socalcos, d'um verde pallido de
rezeda, com oliveiras apoucadas pela amplidão dos montes, subiam até
outras penedias que se embebiam, todas brancas e assoalhadas, na fina
abundancia do azul. Jacintho acariciava os pellos corredios do bigode:
--O Douro, hein?... É interessante, tem grandeza. Mas agora é que eu
estou com uma fome, Zé Fernandes!
Tambem eu! Destapamos o cesto de D. Esteban d'onde surdiu um bodo
grandioso, de presunto, anho, perdizes, outras viandas frias que o ouro
de duas nobres garrafas d'Amontillado, além de duas garrafas de Rioja,
aqueciam com um calor de sol Andaluz. Durante o presunto, Jacintho
lamentou contrictamente o seu erro. Ter deixado Tormes, um solar
historico, assim abandonado e vasio! Que delicia, por aquella manhã tão
lustrosa e tepida, subir á serra, encontrar a sua casa bem apetrechada,
bem civilisada... Para o animar, lembrei que com as obras do Silverio,
tantos caixotes de Civilisação remettidos de Paris, Tormes estaria
confortavel mesmo para Epicuro. Oh! mas Jacintho entendia um palacio
perfeito, um 202 no deserto!... E, assim discorrendo, atacamos as
perdizes. Eu desarrolhava uma garrafa de Amontillado--quando o comboio,
muito sorrateiramente, penetrou n'uma Estação. Era a Regoa. E o meu
Principe pousou logo a faca para chamar o Grillo, reclamar as malas que
traziam o aceio dos nossos corpos.
--Espera, Jacintho! Temos muito tempo, O comboio pára aqui uma hora...
Come com tranquillidade. Não escangalhemos este almocinho com arrumações
de maletas... O Grillo não tarda a apparecer.
E corri mesmo a cortina, porque de fóra um padre muito alto, com uma
ponta de cigarro collada ao beiço, parára a espreitar indiscretamente o
nosso festim. Mas quando acabamos as perdizes, e Jacintho confiadamente
desembrulhava um queijo manchego, sem que Grillo ou Anatole
comparecessem, eu, inquieto, corri á portinhola para apressar esses
servos tardios... E n'esse instante o comboio, largando, deslisou com o
mesmo silencio sorrateiro. Para o meu Principe foi um desgosto:
--Ahi ficamos outra vez sem um pente, sem uma escova... E eu que queria
mudar de camisa! Por culpa tua, Zé-Fernandes!
--É espantoso!... Demora sempre uma eternidade. Hoje chega e abala!
Paciencia, Jacintho. Em duas horas estamos na Estação de Tormes...
Tambem não valia a pena mudar de camisa para subir á serra! Em casa
tomamos um banho, antes de jantar... Já deve estar installada a
banheira.
Ambos nos consolamos com copinhos d'uma divina aguardente Chinchon.
Depois, estendidos nos sophás, saboreando os dois charutos que nos
restavam, com as vidraças abertas ao ar adoravel, conversamos de Tormes.
Na estação certamente estaria o Silverio, com os cavallos...
--Que tempo leva a subir?
Uma hora. Depois de lavados sobrava tempo para um demorado passeio pelas
terras com o caseiro, o excellente Melchior, para que o Senhor de
Tormes, solemnemente, tomasse posse do seu Senhorio. E á noite o
primeiro brodio da serra, com os piteus vernaculos do velho Portugal!
Jacintho sorria, seduzido:
--Vamos a ver que cozinheiro me arranjou esse Silverio. Eu recommendei
que fosse um soberbo cozinheiro portuguez, classico. Mas que soubesse
trufar um perú, afogar um bife em molho de moella, estas cousas simples
da cozinha de França!... O peor é não te demorares, seguires logo para
Guiães...
--Ah, menino, annos da tia Vicencia no sabbado... Dia sagrado! Mas
volto. Em duas semanas estou em Tormes, para fazermos uma larga
Bucolica. E, está claro, para assistir á trasladação.
Jacintho estendera o braço:
--Que casarão é aquelle, além no outeiro, com a torre?
Eu não sabia. Algum solar de fidalgote do Douro... Tormes era n'esse
feitio atarracado e massiço. Casa de seculos e para seculos--mas sem
torre.
--E logo se vê, da estação, Tormes?...
--Não! Muito no alto, n'uma prega da serra, entre arvoredo.
No meu Principe já evidentemente nascèra uma curiosidade pela sua rude
casa ancestral. Mirava o relogio, impaciente. Ainda trinta minutos!
Depois, sorvendo o ar e a luz, murmurava, no primeiro encanto de
iniciado:
--Que doçura, que paz...
--Trez horas e meia, estamos a chegar, Jacintho!
Guardei o meu velho _Jornal do Commercio_ dentro do bolso do paletot,
que deitei sobre o braço;--e ambos em pé, ás janellas, esperamos com
alvoroço a pequenina Estação de Tormes, termo ditoso das nossas
provações. Ella appareceu emfim, clara e simples, á beira do rio, entre
rochas, com os seus vistosos girasoes enchendo um jardimsinho breve, as
duas altas figueiras assombreando o pateo, e por traz a serra coberta de
velho e denso arvoredo... Logo na plataforma avistei com gosto a immensa
barriga, as bochechas menineiras do chefe da Estação, o louro Pimenta,
meu condiscipulo em Rhetorica, no Lyceu de Braga. Os cavallos decerto
esperavam, á sombra, sob as figueiras.
Mal o trem parou ambos saltamos alegremente. A bojuda massa do Pimenta
rebolou para mim com amizade:
--Viva o amigo Zé Fernandes!
--Oh bello Pimentão!...
Apresentei o senhor de Tormes. E immediatamente:
--Ouve lá, Pimentinha... Não está ahi o Silverio?
--Não... O Silverio ha quasi dois mezes que partiu para Castello de
Vide, vêr a mãe que apanhou uma cornada d'um boi!
Atirei a Jacintho um olhar inquieto:
--Ora essa! E o Melchior, o caseiro?... Pois não estão ahi os cavallos
para subirmos á quinta?
O digno chefe ergueu com surpreza as sobrancelhas côr de milho:
--Não!... Nem Melchior, nem cavallos... O Melchior... Ha que tempos eu
não vejo o Melchior!
O carregador badalou lentamente a sineta para o comboio rolar. Então,
não avistando em torno, na lisa e despovoada Estação, nem creados nem
malas, o meu Principe e eu lançamos o mesmo grito de angustia:
--E o Grillo? as bagagens?...
Corremos pela beira do comboio, berrando com desespero:
--Grillo!... Oh Grillo!... Anatole!... Oh Grillo!
Na esperança que elle e o Anatole viessem mortalmente adormecidos,
trepavamos aos estribos, atirando a cabeça para dentro dos
compartimentos, espavorindo a gente quieta com o mesmo berro que
retumbava:--«Grillo, estás ahi, Grillo?»--Já d'uma terceira-classe, onde
uma viola repenicava, um jocoso gania, troçando:--«Não ha por ahi um
grillo? Andam por ahi uns senhores a pedir um grillo!»--E nem Anatole,
nem Grillo!
A sineta tilintou.
--Oh Pimentinha, espera, homem, não deixes largar o comboio!... As
nossas bagagens, homem!
E, afflicto, empurrei o enorme chefe para o forgão de carga, a
You have read 1 text from Portuguese literature.
Next - A Cidade e as Serras - 09
  • Parts
  • A Cidade e as Serras - 01
    Total number of words is 4534
    Total number of unique words is 1943
    28.6 of words are in the 2000 most common words
    44.0 of words are in the 5000 most common words
    51.4 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • A Cidade e as Serras - 02
    Total number of words is 4323
    Total number of unique words is 1899
    26.4 of words are in the 2000 most common words
    38.8 of words are in the 5000 most common words
    46.4 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • A Cidade e as Serras - 03
    Total number of words is 4412
    Total number of unique words is 1816
    28.6 of words are in the 2000 most common words
    41.8 of words are in the 5000 most common words
    49.5 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • A Cidade e as Serras - 04
    Total number of words is 4464
    Total number of unique words is 1821
    28.7 of words are in the 2000 most common words
    42.5 of words are in the 5000 most common words
    49.6 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • A Cidade e as Serras - 05
    Total number of words is 4606
    Total number of unique words is 1901
    25.9 of words are in the 2000 most common words
    39.3 of words are in the 5000 most common words
    48.0 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • A Cidade e as Serras - 06
    Total number of words is 4520
    Total number of unique words is 1951
    29.5 of words are in the 2000 most common words
    43.5 of words are in the 5000 most common words
    50.2 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • A Cidade e as Serras - 07
    Total number of words is 4487
    Total number of unique words is 1905
    28.2 of words are in the 2000 most common words
    40.6 of words are in the 5000 most common words
    49.0 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • A Cidade e as Serras - 08
    Total number of words is 4396
    Total number of unique words is 1839
    27.2 of words are in the 2000 most common words
    40.7 of words are in the 5000 most common words
    48.9 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • A Cidade e as Serras - 09
    Total number of words is 4500
    Total number of unique words is 1923
    27.1 of words are in the 2000 most common words
    40.9 of words are in the 5000 most common words
    48.6 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • A Cidade e as Serras - 10
    Total number of words is 4555
    Total number of unique words is 1852
    30.9 of words are in the 2000 most common words
    45.1 of words are in the 5000 most common words
    52.3 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • A Cidade e as Serras - 11
    Total number of words is 4575
    Total number of unique words is 1782
    32.4 of words are in the 2000 most common words
    46.5 of words are in the 5000 most common words
    53.6 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • A Cidade e as Serras - 12
    Total number of words is 4602
    Total number of unique words is 1747
    31.1 of words are in the 2000 most common words
    44.9 of words are in the 5000 most common words
    53.7 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • A Cidade e as Serras - 13
    Total number of words is 4626
    Total number of unique words is 1742
    32.8 of words are in the 2000 most common words
    48.8 of words are in the 5000 most common words
    56.2 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • A Cidade e as Serras - 14
    Total number of words is 4589
    Total number of unique words is 1722
    34.6 of words are in the 2000 most common words
    49.3 of words are in the 5000 most common words
    56.1 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • A Cidade e as Serras - 15
    Total number of words is 4462
    Total number of unique words is 1927
    28.4 of words are in the 2000 most common words
    42.4 of words are in the 5000 most common words
    50.8 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • A Cidade e as Serras - 16
    Total number of words is 555
    Total number of unique words is 333
    48.9 of words are in the 2000 most common words
    58.8 of words are in the 5000 most common words
    66.6 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.