A Cidade e as Serras - 02
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as duas magras Deusas de pedra, do tempo de D. Galião, sustentavam as
antigas lampadas de globos foscos, onde já silvava o gaz.
Mas dentro, no peristillo, logo me surprehendeu um elevador installado
por Jacintho--apesar do 202 ter sómente dois andares, e ligados por uma
escadaria tão doce que nunca offendêra a asthma da snr.^a D. Angelina!
Espaçoso, tapetado, elle offerecia, para aquella jornada de sete
segundos, confortos numerosos, um divan, uma pelle d'urso, um roteiro
das ruas de Paris, prateleiras gradeadas com charutos e livros. Na
antecamara, onde desembarcamos, encontrei a temperatura macia e tepida
d'uma tarde de Maio, em Guiães. Um creado, mais attento ao thermometro
que um piloto á agulha, regulava destramente a bocca dourada do
calorifero. E perfumadores entre palmeiras, como n'um terrasso santo de
Benares, esparziam um vapor, aromatisando e salutarmente humedecendo
aquelle ar delicado e superfino.
Eu murmurei, nas profundidades do meu assombrado sêr:
--Eis a civilisação!
Jacintho empurrou uma porta, penetramos n'uma nave cheia de magestade e
sombra, onde reconheci a Bibliotheca por tropeçar n'uma pilha monstruosa
de livros novos. O meu amigo roçou de leve o dedo na parede: e uma corôa
de lumes electricos, refulgindo entre os lavores do tecto, alumiou as
estantes monumentaes, todas d'ebano. N'ellas repousavam mais de trinta
mil volumes, encadernados em branco, em escarlate, em negro, com
retoques d'ouro, hirtos na sua pompa e na sua auctoridade como doutores
n'um concilio.
Não contive a minha admiração:
--Oh Jacintho! Que deposito!
Elle murmurou, n'um sorriso descorado:
--Ha que lêr, ha que lêr...
Reparei então que o meu amigo emmagrecera: e que o nariz se lhe afilára
mais entre duas rugas muito fundas, como as d'um comediante cançado. Os
anneis do seu cabello lanigero rareavam sobre a testa, que perdera a
antiga serenidade de marmore bem polido. Não frisava agora o bigode
murcho, cahido em fios pensativos. Tambem notei que corcovava.
Elle erguêra uma tapeçaria--entramos no seu gabinete de trabalho, que me
inquietou. Sobre a espessura dos tapetes sombrios os nossos passos
perderam logo o som, e como a realidade. O damasco das paredes, os
divans, as madeiras, eram verdes, d'um verde profundo de folha de louro.
Sêdas verdes envolviam as luzes electricas, dispersas em lampadas tão
baixas que lembravam estrellas cahidas por cima das mesas, acabando de
arrefecer e morrer: só uma rebrilhava, núa e clara, no alto d'uma
estante quadrada, esguia, solitaria como uma torre n'uma planicie, e de
que o lume parecia ser o pharol melancolico. Um biombo de laca verde,
fresco verde de relva, resguardava a chaminé de marmore verde, verde de
mar sombrio, onde esmoreciam as brazas d'uma lenha aromatica. E entre
aquelles verdes reluzia, por sobre peanhas e pedestaes, toda uma
Mechanica sumptuosa, apparelhos, laminas, rodas, tubos, engrenagens,
hastes, friezas, rigidezas de metaes...
Mas Jacintho batia nas almofadas do divan, onde se enterrára com um modo
cançado que eu não lhe conhecia:
--Para aqui, Zé Fernandes, para aqui! É necessario reatarmos estas
nossas vidas, tão apartadas ha sete annos!... Em Guiães, sete annos! Que
fizeste tu?
--E tu, que tens feito, Jacintho?
O meu amigo encolheu mollemente os hombros. Vivêra--cumprira com
serenidade todas as funcções, as que pertencem á materia e as que
pertencem ao espirito...
--E accumulaste civilisação, Jacintho! Santo Deus... Está tremendo, o
202!
Elle espalhou em torno um olhar onde já não faiscava a antiga
vivacidade:
--Sim, ha confortos... Mas falta muito! A humanidade ainda está mal
apetrechada, Zé Fernandes... E a vida conserva resistencias.
Subitamente, a um canto, repicou a campainha do telephone. E emquanto o
meu amigo, curvado sobre a placa, murmurava impaciente «_Está lá?--Está
lá?_», examinei curiosamente, sobre a sua immensa mesa de trabalho, uma
estranha e miuda legião de instrumentosinhos de nickel, d'aço, de cobre,
de ferro, com gumes, com argolas, com tenazes, com ganchos, com dentes,
expressivos todos, de utilidades misteriosas. Tomei um que tentei
manejar--e logo uma ponta malevola me picou um dedo. N'esse instante
rompeu d'outro canto um «tic-tic-tic» açodado, quasi ancioso. Jacintho
acudiu, com a face no telephone:
--Vê ahi o telegrapho!... Ao pé do divan. Uma tira de papel que deve
estar a correr.
E, com effeito, d'uma redôma de vidro posta n'uma columna, e contendo um
apparelho esperto e diligente, escorria para o tapete, como uma tenia, a
longa tira de papel com caracteres impressos, que eu, homem das serras,
apanhei, maravilhado. A linha, traçada em azul, annunciava ao meu amigo
Jacintho que a fragata russa _Azoff_ entrára em Marselha com avaria!
Já elle abandonára o telephone. Desejei saber, inquieto, se o
prejudicava directamente aquella avaria da _Azoff_.
--Da _Azoff_?... A avaria? A mim?... Não! É uma noticia.
Depois, consultando um relogio monumental que, ao fundo da Bibliotheca,
marcava a hora de todas as Capitaes e o curso de todos os Planetas:
--Eu preciso escrever uma carta, seis linhas... Tu esperas, não, Zé
Fernandes? Tens ahi os jornaes de Paris, da noite; e os de Londres,
d'esta manhã. As Illustrações além, n'aquella pasta de couro com
ferragens.
Mas eu preferi inventariar o gabinete, que dava á minha profanidade
serrana todos os gostos d'uma iniciação. Aos lados da cadeira de
Jacintho pendiam gordos tubos acusticos, por onde elle decerto soprava
as suas ordens através do 202. Dos pés da mesa cordões tumidos e molles,
colleando sobre o tapete, corriam para os recantos de sombra á maneira
de cobras assustadas. Sobre uma banquinha, e reflectida no seu verniz
como na agua d'um poço, pousava uma Machina-de-escrever: e adiante era
uma immensa Machina-de-calcular, com fileiras de buracos d'onde
espreitavam, esperando, numeros rigidos e de ferro. Depois parei em
frente da estante que me preoccupava, assim solitaria, á maneira d'uma
torre n'uma planicie, com o seu alto pharol. Toda uma das suas faces
estava repleta de Diccionarios; a outra de Manuaes; a outra de Atlas; a
ultima de Guias, e entre elles, abrindo um folio, encontrei o Guia das
ruas de Samarkande. Que macissa torre de informação! Sobre prateleiras
admirei apparelhos que não comprehendia:--um composto de laminas de
gelatina, onde desmaiavam, meio-chupadas, as linhas d'uma carta, talvez
amorosa; outro, que erguia sobre um pobre livro brochado, como para o
decepar, um cutello funesto; outro avançando a bocca d'uma tuba, toda
aberta para as vozes do invisivel. Cingidos aos umbraes, liados ás
cimalhas, luziam arames, que fugiam através do tecto, para o espaço.
Todos mergulhavam em forças universaes, todos transmittiam forças
universaes. A Natureza convergia disciplinada ao serviço do meu amigo e
entrára na sua domesticidade!...
Jacintho atirou uma exclamação impaciente:
--Oh, estas pennas electricas!... Que secca!
Amarrotára com colera a carta começada--eu escapei, respirando, para a
Bibliotheca. Que magestoso armazem dos productos do Raciocinio e da
Imaginação! Alli jaziam mais de trinta mil volumes, e todos decerto
essenciaes a uma cultura humana. Logo á entrada notei, em ouro n'uma
lombada verde, o nome de Adam Smith. Era pois a região dos Economistas.
Avancei--e percorri, espantado, oito metros de Economia Politica. Depois
avistei os Philosophos e os seus commentadores, que revestiam toda uma
parede, desde as escólas Pre-socraticas até ás escólas Neo-pessimistas.
N'aquellas pranchas se acastellavam mais de dois mil systemas--e que
todos se contradiziam. Pelas encadernações logo se deduziam as
doutrinas: Hobbes, em baixo, era pesado, de couro negro; Platão, em
cima, resplandecia, n'uma pellica pura e alva. Para diante começavam as
Historias Universaes. Mas ahi uma immensa pilha de livros brochados,
cheirando a tinta nova e a documentos novos, subia contra a estante,
como fresca terra d'alluvião tapando uma riba secular. Contornei essa
collina, mergulhei na secção das Sciencias Naturaes, peregrinando, n'um
assombro crescente, da Orographia para a Paleontologia, e da Morphologia
para a Crystallographia. Essa estante rematava junto d'uma janella
rasgada sobre os Campos Elyseos. Apartei as cortinas de velludo--e por
traz descobri outra portentosa rima de volumes, todos de Historia
Religiosa, de Exegese Religiosa, que trepavam montanhosamente até aos
ultimos vidros, vedando, nas manhãs mais candidas, o ar e a luz do
Senhor.
Mas depois rebrilhava, em marroquins claros, a estante amavel dos
Poetas. Como um repouso para o espirito esfalfado de todo aquelle saber
positivo, Jacintho aconchegára ahi um recanto, com um divan e uma mesa
de limoeiro, mais lustrosa que um fino esmalte, coberta de charutos, de
cigarros d'Oriente, de tabaqueiras do seculo XVIII. Sobre um cofre de
madeira lisa pousava ainda, esquecido, um prato de damascos seccos do
Japão. Cedi á seducção das almofadas; trinquei um damasco, abri um
volume; e senti estranhamente, ao lado, um zumbido, como de um insecto
de azas harmoniosas. Sorri á idéa que fossem abelhas, compondo o seu mel
n'aquelle massiço de versos em flôr. Depois percebi que o susurro remoto
e dormente vinha do cofre de mogne, de parecer tão discreto. Arredei uma
_Gazeta de França_; e descornitei um cordão que emergia de um orificio,
escavado no cofre, e rematava n'um funil de marfim. Com curiosidade,
encostei o funil a esta minha confiada orelha, afeita á singeleza dos
rumores da serra. E logo uma Voz, muito mansa, mas muito dicidida,
aproveitando a minha curiosidade para me invadir e se apoderar do meu
entendimento, susurrou capciosamente:
--...«E assim, pela disposição dos cubos diabolicos, eu chego a
verificar os espaços hypermagicos!...»
Pulei, com um berro.
--Oh Jacintho, aqui ha um homem! Está aqui um homem a fallar dentro
d'uma caixa!
O meu camarada, habituado aos prodigios, não se alvoroçou:
--É o Conferençophone... Exactamente como o Theatrophone; sómente
applicado ás escólas e ás conferencias. Muito commodo!... Que diz o
homem, Zé Fernandes?
Eu considerava o cofre, ainda esgazeado:
--Eu sei! Cubos diabolicos, espaços magicos, toda a sorte de horrores...
Senti dentro o sorriso superior de Jacintho:
--Ah, é o coronel Dorchas... Lições de Metaphysica Positiva sobre a
Quarta Dimensão... Conjecturas, uma massada! Ouve lá, tu hoje jantas
commigo e com uns amigos, Zé Fernandes?
--Não, Jacintho... Estou ainda enfardelado pelo alfaiate da serra!
E voltei ao gabinete mostrar ao meu camarada o jaquetão de flanella
grossa, a gravata de pintinhas escarlates, com que ao domingo, em
Guiães, visitava o Senhor. Mas Jacintho affirmou que esta simplicidade
montesina interessaria os seus convidados, que eram dois artistas...
Quem? O auctor do _Coração Triplo_, um Psychologo Feminista, d'agudeza
transcendente, Mestre muito experimentado e muito consultado em
Sciencias Sentimentaes; e Vorcan, um pintor mythico, que interpretára
ethereamente, havia um anno, a symbolia rapsodica do cerco de Troia,
n'uma vasta composição, _Helena Devastadora_...
Eu coçava a barba:
--Não, Jacintho, não... Eu venho de Guiães, das serras; preciso entrar
em toda esta civilisacão, lentamente, com cautella, senão rebento. Logo
na mesma tarde a electricidade, e o conferençophone, e os espaços
hypermagicos e o feminista, e o ethereo, e a symbolia devastadora, é
excessivo! Volto ámanhã.
Jacintho dobrava vagarosamente a sua carta, onde mettera sem rebuço
(como convinha á nossa fraternidade) duas violetas brancas tiradas do
ramo que lhe floria o peito.
--Ámanhã, Zé Fernandes, tu vens antes d'almoço, com as tuas malas dentro
d'um fiacre, para te installares no 202, no teu quarto. No Hotel são
embaraços, privações. Aqui tens o telephone, o teatrophone, livros...
Acceitei logo, com simplicidade. E Jacintho, embocando um tubo acustico,
murmurou:
--Grillo!
Da parede, recoberta de damasco, que subitamente e sem rumor se fendeu,
surdio o seu velho escudeiro (aquelle moleque que viera com _D.
Gallião_), que eu me alegrei de encontrar tão rijo, mais negro,
reluzente e veneravel na sua tesa gravata, no seu collete branco de
botões de ouro. Elle tambem estimou vêr de novo «o siô Fernandes». E,
quando soube que eu occuparia o quarto do avô Jacintho, teve um claro
sorriso de preto, em que envolveu o seu senhor, no contentamento de o
sentir emfim reprovido d'uma familia.
--Grillo, dizia Jacintho, esta carta a Madame de Oriol... Escuta!
Telephona para casa dos Trèves que os espiritistas só estão livres no
domingo... Escuta! Eu tomo uma douche antes de jantar, tepida, a 17.
Fricção com malva-rosa.
E cahindo pesadamente para cima do divan, com um bocejo arrastado e
vago:
--Pois é verdade, meu Zé Fernandes, aqui estamos, como ha sete annos,
n'este velho Paris...
Mas eu não me arredava da mesa, no desejo de completar a minha
iniciação:
--Oh Jacintho, para que servem todos estes instrumentosinhos? Houve já
ahi um desavergonhado que me picou. Parecem perversos... São uteis?
Jacintho esboçou, com languidez, um gesto que os
sublimava.--Providenciaes, meu filho, absolutamente providenciaes, pela
simplificação que dão ao trabalho! Assim... E apontou. Este arrancava as
pennas velhas; o outro numerava rapidamente as paginas d'um manuscripto;
aquell'outro, além, raspava emendas... E ainda os havia para collar
estampilhas, imprimir datas, derreter lacres, cintar documentos...
--Mas com effeito, accrescentou, é uma sécca. Com as molas, com os
bicos, ás vezes magoam, ferem... Já me succedeu inutilisar cartas por as
ter sujado com dedadas de sangue. É uma massada!
Então, como o meu amigo espreitára novamente o relogio monumental, não
lhe quiz retardar a consolação da douche e da malva-rosa.
--Bem, Jacintho, já te revi, já me contentei... Agora até ámanhã, com as
malas.
--Que diabo, Zé Fernandes, espera um momento... Vamos pela sala de
jantar. Talvez te tentes!
E, através da Bibliotheca, penetramos na sala de jantar,--que me
encantou pelo seu luxo sereno e fresco. Uma madeira branca, laccada,
mais lustrosa e macia que setim, revestia as paredes, encaixilhando
medalhões de damasco côr de morango, de morango muito maduro e esmagado:
os aparadores, discretamente lavrados em florões e rocalhas,
resplandeciam com a mesma lacca nevada: e damascos amorangados estofavam
tambem as cadeiras, brancas, muito amplas, feitas para a lentidão de
gulas delicadas, de gulas intellectuaes.
--Viva o meu Principe! Sim senhor... Eis aqui um comedoiro muito
comprehensivel e muito repousante, Jacintho!
--Então janta, homem!
Mas já eu me começava a inquietar, reparando que a cada talher
correspondiam seis garfos, e todos de feitios astuciosos. E mais me
impressionei quando Jacintho me desvendou que um era para as ostras,
outro para o peixe, outro para as carnes, outro para os legumes, outro
para as fructas, outro para o queijo! Simultaneamente, com uma
sobriedade que louvaria Salomão, só dois copos, para dois vinhos:--um
Bordeus rosado em infusas de crystal, e Champagne gelando dentro de
baldes de prata. Todo um aparador porém vergava, sob o luxo redundante,
quasi assustador d'aguas--aguas oxigenadas, aguas carbonatadas, aguas
phosphatadas, aguas esterilisadas, aguas de saes, outras ainda, em
garrafas bojudas, com tratados therapeuticos impressos em rotulos.
--Santissimo nome de Deus, Jacintho! Então és ainda o mesmo tremendo
bebedor d'agua, hein?... _Un aquatico_! como dizia o nosso poeta
chileno, que andava a traduzir Klopstock.
Elle derramou, por sobre toda aquella garrafaria encarapuçada em metal,
um olhar desconsolado:
--Não... É por causa das aguas da Cidade, contaminadas, atulhadas de
microbios... Mas ainda não encontrei uma bôa agua que me convenha, que
me satisfaça... Até soffro sêde.
Desejei então conhecer o jantar do Psychologo e do Symbolista--traçado,
ao lado dos talheres, em tinta vermelha, sobre laminas de marfim.
Começava honradamente por ostras classicas, de Marennes. Depois
apparecia uma sopa d'alcachofras e ovas de carpa...
--É bom?
Jacintho encolheu desinteressadamente os hombros:
--Sim... Eu não tenho nunca appetite, já ha tempos... Já ha annos.
Do outro prato só comprehendi que continha frangos e tubaras. Depois
saboreariam aquelles senhores um filete de veado, macerado em Xerez, com
gelêa de noz. E por sobremeza simplesmente laranjas geladas em ether.
--Em ether, Jacintho?
O meu amigo hesitou, esboçou com os dedos a ondulação d'um aroma que
s'evola.
--É novo... Parece que o ether desenvolve, faz afflorar a alma das
fructas...
Curvei a cabeça ignara, murmurei nas minhas profundidades:
--Eis a Civilisação!
E, descendo os Campos Elyseos, encolhido no paletot, a cogitar n'este
prato symbolico, considerava a rudeza e atolado atrazo da minha Guiães,
onde desde seculos a alma das laranjas permanece ignorada e
desaproveitada dentro dos gomos sumarentos, por todos aquelles pomares
que ensombram e perfumam o valle, da Roqueirinha a Sandofim! Agora
porém, bemdito Deus, na convivencia de um tão grande iniciado como
Jacintho, eu comprehenderia todas as finuras e todos os poderes da
Civilisação.
E, (melhor ainda para a minha ternura!) contemplaria a raridade d'um
homem que, concebendo uma idéa da Vida, a realisa--e através d'ella e
por ella recolhe a felicidade perfeita.
Bem se affirmára este Jacintho, na verdade, como Principe da
Gran-Ventura!
III
No 202, todas as manhãs, ás nove horas, depois do meu chocolate e ainda
em chinelas, penetrava no quarto de Jacintho. Encontrava o meu amigo
banhado, barbeado, friccionado, envolto n'um roupão branco de pello de
cabra do Thibet, diante da sua mesa de toilette, toda de crystal, (por
causa dos microbios) e atulhada com esses utensilios de tartaruga,
marfim, prata, aço e madreperola que o homem do seculo XIX necessita
para não desfeiar o conjuncto sumptuario da Civilisação e manter n'ella
o seu Typo. As escovas sobretudo renovavam, cada dia, o meu regalo e o
meu espanto--porque as havia largas como a roda massiça d'um carro
sabino; estreitas e mais recurvas que o alfange d'um mouro; concavas, em
fórma de telha aldeã; ponteagudas em feitio de folha de hera; rijas que
nem cerdas de javali; macias que nem pennugem de rôla! De todas,
fielmente, como amo que não desdenha nenhum servo, se utilisava o meu
Jacintho. E assim, em face ao espelho emmoldurado de folhedos de prata,
permanecia este Principe passando pellos sobre o seu pello durante
quatorze minutos.
No emtanto o Grillo e outro escudeiro, por traz dos biombos de Kioto, de
sedas lavradas, manobravam, com pericia e vigor, os apparelhos do
lavatorio--que era apenas um resumo das machinas monumentaes da Sala de
Banho, a mais estremada maravilha do 202. N'estes marmores simplificados
existiam unicamente dois jactos graduados desde _zero_ até _cem_; as
duas duchas, fina e grossa, para a cabeça; a fonte esterilisada para os
dentes; o repuxo borbulhante para a barba; e ainda botões discretos,
que, roçados, desencadeavam esguichos, cascatas cantantes, ou um leve
orvalho estival. D'esse recanto temeroso, onde delgados tubos mantinham
em disciplina e servidão tantas aguas ferventes, tantas aguas violentas,
sahia emfim o meu Jacintho enxugando as mãos a uma toalha de felpo, a
uma toalha de linho, a outra de corda entrançada para restabelecer a
circulação, a outra de sêda frouxa para repolir a pelle. Depois d'este
rito derradeiro que lhe arrancava ora um suspiro, ora um bocejo,
Jacintho, estendido n'um divan, folheava uma Agenda, onde se arrolavam,
inscriptas pelo Grillo ou por elle, as occupações do seu dia, tão
numerosas por vezes que cobriam duas laudas.
Todas ellas se prendiam á sua sociabilidade, á sua civilisação muito
complexa, ou a interesses que o meu Principe, n'esses sete annos, creára
para viver em mais consciente communhão com todas as funcções da Cidade.
(Jacintho com effeito era presidente do Club da _Espada e Alvo_;
commanditario do Jornal o _Boulevard_; director da _Companhia dos
Telephones de Constantinopla_; socio dos _Bazares unidos da Arte
Espiritualista_; membro do _Comité de Iniciação das Religiões
Esotericas_, etc.) Nenhuma d'estas occupações parecia porém aprazivel ao
meu amigo--porque, apesar da mansidão e harmonia dos seus modos,
frequentemente arremessava para o tapete, n'uma rebellião de homem
livre, aquella Agenda que o escravisava. E n'uma d'essas manhãs (de
vento e neve), apanhando eu o livro oppressivo, encadernado em pellica,
de um carinhoso tom de rosa murcha--descobri que o meu Jacintho devia
depois do almoço fazer uma visita na rua da Universidade, outra no
Parque Monceau, outra entre os arvoredos remotos da Muette; assistir por
fidelidade a uma votação no Club; acompanhar Madame d'Oriol a uma
exposição de leques; escolher um presente de noivado para a sobrinha dos
Trèves; comparecer no funeral do velho conde de Malville; presidir um
tribunal de honra n'uma questão de roubalheira, entre cavalheiros, ao
ecarté... E ainda se acavallavam outras indicações, escrivinhadas por
Jacintho a lapis:--«Carroceiro--Five-oclock dos Ephrains--A pequena das
_Variedades_--Levar a nota ao jornal...» Considerei o meu Principe.
Estirado no divan, d'olhos miserrimamente cerrados, bocejava, n'um
bocejo immenso e mudo.
Mas os affazeres de Jacintho começavam logo no 202, cedo, depois do
banho. Desde as oito horas a campainha do telephone repicava por elle,
com impaciencia, quasi com colera, como por um escravo tardio. E mal
enxugado, dentro do seu roupão de pello de cabra do Thibet ou de grossas
pyjamas de pelucia côr d'ouro-velho, constantemente sahia ao corredor a
cochichar com sujeitos tão apressados, que conservavam na mão o
guarda-chuva pingando sobre o tapete. Um d'esses, sempre presente (e que
pertencia decerto aos _Telephones de Constantinopla_), era
temeroso--todo elle chupado, tisnado, com maus dentes, sobraçando uma
enorme pasta sebenta, e dardejando, d'entre a alta gola d'uma pelissa
poida, como da abertura d'um covil, dous olhinhos tôrvos e de rapina.
Sem cessar, inexoravelmente, um escudeiro apparecia, com bilhetes n'uma
salva... Depois eram fornecedores d'Industria e d'Arte; negociantes de
cavallos, rubicundos e de paletot branco; inventores com grossos rolos
de papel; alfarrabistas trazendo na algibeira uma edição «unica», quasi
inverosimil, de Ulrich Zell ou do _Lapidanus_. Jacintho circulava
estonteado pelo 202, rabiscando a carteira, repicando o telephone,
desatando nervosamente pacotes, sacudindo ao passar algum embuscado que
surdia das sombras da antecamara, estendia como um trabuco o seu
memorial ou o seu catalogo!
Ao meio dia, um tam-tam argentino e melancholico ressoava, chamando ao
almoço. Com o _Figaro_ ou as _Novidades_ abertas sobre o prato, eu
esperava sempre meia hora pelo meu Principe, que entrava n'uma rajada,
consultando o relogio, exhalando com a face moída o seu queixume eterno:
--Que massada! E depois uma noite abominavel, enrodilhada em sonhos...
Tomei sulforal, chamei o Grillo para me esfregar com therebentina... Uma
sécca!
Espalhava pela mesa um olhar já farto. Nenhum prato, por mais engenhoso,
o seduzia;--e, como através do seu tumulto matinal fumava incontaveis
cigarretes que o resequiam, começava por se encharcar com um immenso
copo d'agua oxygenada, ou carbonatada, ou gazoza, misturada d'um cognac
raro, muito caro, horrendamente adocicado, de moscatel de Syracusa.
Depois, á pressa, sem gosto, com a ponta incerta do garfo, picava aqui e
além uma lasca de fiambre, uma febra de lagosta;--e reclamava
impacientemente o café, um café de Moka, mandado cada mez por um feitor
do Dedjah, fervido á turca, muito espesso, que elle remexia com um pau
de canella!
--E tu, Zé Fernandes, que vaes tu fazer?
--Eu?
Recostado na cadeira, com delicias, os dedos mettidos nas cavas do
collete:
--Vou vadiar, regaladamente, como um cão natural!
O meu sollicito amigo, remexendo o café com o pau de canella, rebuscava
através da numerosa Civilisação da Cidade uma occupação que me
encantasse. Mas apenas suggeria uma Exposição, ou uma Conferencia, ou
monumentos, ou passeios, logo encolhia os hombros desconsolados:
--Por fim nem vale a pena, é uma sécca!
Accendia outra das cigarretes russas, onde rebrilhava o seu nome,
impresso a ouro na mortalha. Torcendo, n'uma pressa nervosa, os fios do
bigode, ainda escutava, á porta da Bibliotheca, o seu procurador, o
nedio e magestoso Laporte. E emfim, seguido d'um criado, que sobraçava
um maço tremendo de jornaes para lhe abastecer o coupé, o Principe da
Gran-Ventura mergulhava na Cidade.
* * * * *
Quando o dia social de Jacintho se apresentava mais desafogado, e o céo
de Março nos concedia caridosamente um pouco de azul agoado, sahiamos
depois d'almoço, a pé, através de Paris. Estes lentos e errantes
passeios eram outr'ora, na nossa edade de Estudantes, um gozo muito
querido de Jacintho--porque n'elles mais intensamente e mais
minuciosamente saboreava a Cidade. Agora porém, apesar da minha
companhia, só lhe davam uma impaciencia e uma fadiga que desoladoramente
destoava do antigo, illuminado extasi. Com espanto (mesmo com dôr,
porque sou bom, e sempre me entristece o desmoronar d'uma crença)
descobri eu, na primeira tarde em que descemos aos Boulevards, que o
denso formigueiro humano sobre o asphalto, e a torrente sombria dos
trens sobre o macadam, affligiam o meu amigo pela brutalidade da sua
pressa, do seu egoismo, e do seu estridor. Encostado e como refugiado no
meu braço, este Jacintho novo começou a lamentar que as ruas, na nossa
Civilisação, não fossem calçadas de gutta-percha! E a gutta-percha
claramente representava, para o meu amigo, a substancia discreta que
amortece o choque e a rudeza das cousas. Oh maravilha! Jacintho querendo
borracha, a borracha isoladora, entre a sua sensibilidade e as funcções
da Cidade! Depois, nem me permittiu pasmar diante d'aquellas dourejadas
e espelhadas lojas que elle outr'ora considerava como os «preciosos
museus do seculo XIX»...
--Não vale a pena, Zé Fernandes. Ha uma immensa pobreza e seccura
d'invenção! Sempre os mesmos florões Luiz XV, sempre as mesmas
pelucias... Não vale a pena!
Eu arregalava os olhos para este transformado Jacintho. E sobretudo me
impressionava o seu horror pela Multidão--por certos effeitos da
Multidão, só para elle sensiveis, e a que chamava os «sulcos».
--Tu não os sentes, Zé Fernandes. Vens das serras... Pois constituem o
rijo inconveniente das Cidades, estes sulcos! É um perfume muito agudo e
petulante que uma mulher larga ao passar, e se installa no olfacto, e
estraga para todo o dia o ar respiravel. É um dito que se surprehende
n'um grupo, que revela um mundo de velhacaria, ou de pedantismo, ou de
estupidez, e que nos fica collado á alma, como um salpico, lembrando a
immensidade da lama a atravessar. Ou então, meu filho, é uma figura
intoleravel pela pretenção, ou pelo mau-gosto, ou pela impertinencia, ou
pela rellice, ou pela dureza, e de que se não póde sacudir mais a visão
repulsiva... Um pavor, estes sulcos, Zé Fernandes! De resto, que diabo,
são as pequeninas miserias d'uma Civilisação deliciosa!
Tudo isto era especioso, talvez pueril--mas para mim revelava, n'aquelle
chamejante devoto da Cidade, o arrefecimento da devoção. N'essa mesma
tarde, se bem recordo, sob uma luz macia e fina, penetramos nos centros
de Paris, nas ruas longas, nas milhas de casario, todo de caliça parda,
erriçado de chaminés de lata negra, com as janellas sempre fechadas, as
cortininhas sempre corridas, abafando, escondendo a vida. Só tijolo, só
ferro, só argamassa, só estuque: linhas hirtas, angulos asperos: tudo
secco, tudo rigido. E dos chãos aos telhados, por toda a fachada,
tapando as varandas, comendo os muros, Taboletas, Taboletas...
--Oh, este Paris, Jacintho, este teu Paris! Que enorme, que grosseiro
bazar!
antigas lampadas de globos foscos, onde já silvava o gaz.
Mas dentro, no peristillo, logo me surprehendeu um elevador installado
por Jacintho--apesar do 202 ter sómente dois andares, e ligados por uma
escadaria tão doce que nunca offendêra a asthma da snr.^a D. Angelina!
Espaçoso, tapetado, elle offerecia, para aquella jornada de sete
segundos, confortos numerosos, um divan, uma pelle d'urso, um roteiro
das ruas de Paris, prateleiras gradeadas com charutos e livros. Na
antecamara, onde desembarcamos, encontrei a temperatura macia e tepida
d'uma tarde de Maio, em Guiães. Um creado, mais attento ao thermometro
que um piloto á agulha, regulava destramente a bocca dourada do
calorifero. E perfumadores entre palmeiras, como n'um terrasso santo de
Benares, esparziam um vapor, aromatisando e salutarmente humedecendo
aquelle ar delicado e superfino.
Eu murmurei, nas profundidades do meu assombrado sêr:
--Eis a civilisação!
Jacintho empurrou uma porta, penetramos n'uma nave cheia de magestade e
sombra, onde reconheci a Bibliotheca por tropeçar n'uma pilha monstruosa
de livros novos. O meu amigo roçou de leve o dedo na parede: e uma corôa
de lumes electricos, refulgindo entre os lavores do tecto, alumiou as
estantes monumentaes, todas d'ebano. N'ellas repousavam mais de trinta
mil volumes, encadernados em branco, em escarlate, em negro, com
retoques d'ouro, hirtos na sua pompa e na sua auctoridade como doutores
n'um concilio.
Não contive a minha admiração:
--Oh Jacintho! Que deposito!
Elle murmurou, n'um sorriso descorado:
--Ha que lêr, ha que lêr...
Reparei então que o meu amigo emmagrecera: e que o nariz se lhe afilára
mais entre duas rugas muito fundas, como as d'um comediante cançado. Os
anneis do seu cabello lanigero rareavam sobre a testa, que perdera a
antiga serenidade de marmore bem polido. Não frisava agora o bigode
murcho, cahido em fios pensativos. Tambem notei que corcovava.
Elle erguêra uma tapeçaria--entramos no seu gabinete de trabalho, que me
inquietou. Sobre a espessura dos tapetes sombrios os nossos passos
perderam logo o som, e como a realidade. O damasco das paredes, os
divans, as madeiras, eram verdes, d'um verde profundo de folha de louro.
Sêdas verdes envolviam as luzes electricas, dispersas em lampadas tão
baixas que lembravam estrellas cahidas por cima das mesas, acabando de
arrefecer e morrer: só uma rebrilhava, núa e clara, no alto d'uma
estante quadrada, esguia, solitaria como uma torre n'uma planicie, e de
que o lume parecia ser o pharol melancolico. Um biombo de laca verde,
fresco verde de relva, resguardava a chaminé de marmore verde, verde de
mar sombrio, onde esmoreciam as brazas d'uma lenha aromatica. E entre
aquelles verdes reluzia, por sobre peanhas e pedestaes, toda uma
Mechanica sumptuosa, apparelhos, laminas, rodas, tubos, engrenagens,
hastes, friezas, rigidezas de metaes...
Mas Jacintho batia nas almofadas do divan, onde se enterrára com um modo
cançado que eu não lhe conhecia:
--Para aqui, Zé Fernandes, para aqui! É necessario reatarmos estas
nossas vidas, tão apartadas ha sete annos!... Em Guiães, sete annos! Que
fizeste tu?
--E tu, que tens feito, Jacintho?
O meu amigo encolheu mollemente os hombros. Vivêra--cumprira com
serenidade todas as funcções, as que pertencem á materia e as que
pertencem ao espirito...
--E accumulaste civilisação, Jacintho! Santo Deus... Está tremendo, o
202!
Elle espalhou em torno um olhar onde já não faiscava a antiga
vivacidade:
--Sim, ha confortos... Mas falta muito! A humanidade ainda está mal
apetrechada, Zé Fernandes... E a vida conserva resistencias.
Subitamente, a um canto, repicou a campainha do telephone. E emquanto o
meu amigo, curvado sobre a placa, murmurava impaciente «_Está lá?--Está
lá?_», examinei curiosamente, sobre a sua immensa mesa de trabalho, uma
estranha e miuda legião de instrumentosinhos de nickel, d'aço, de cobre,
de ferro, com gumes, com argolas, com tenazes, com ganchos, com dentes,
expressivos todos, de utilidades misteriosas. Tomei um que tentei
manejar--e logo uma ponta malevola me picou um dedo. N'esse instante
rompeu d'outro canto um «tic-tic-tic» açodado, quasi ancioso. Jacintho
acudiu, com a face no telephone:
--Vê ahi o telegrapho!... Ao pé do divan. Uma tira de papel que deve
estar a correr.
E, com effeito, d'uma redôma de vidro posta n'uma columna, e contendo um
apparelho esperto e diligente, escorria para o tapete, como uma tenia, a
longa tira de papel com caracteres impressos, que eu, homem das serras,
apanhei, maravilhado. A linha, traçada em azul, annunciava ao meu amigo
Jacintho que a fragata russa _Azoff_ entrára em Marselha com avaria!
Já elle abandonára o telephone. Desejei saber, inquieto, se o
prejudicava directamente aquella avaria da _Azoff_.
--Da _Azoff_?... A avaria? A mim?... Não! É uma noticia.
Depois, consultando um relogio monumental que, ao fundo da Bibliotheca,
marcava a hora de todas as Capitaes e o curso de todos os Planetas:
--Eu preciso escrever uma carta, seis linhas... Tu esperas, não, Zé
Fernandes? Tens ahi os jornaes de Paris, da noite; e os de Londres,
d'esta manhã. As Illustrações além, n'aquella pasta de couro com
ferragens.
Mas eu preferi inventariar o gabinete, que dava á minha profanidade
serrana todos os gostos d'uma iniciação. Aos lados da cadeira de
Jacintho pendiam gordos tubos acusticos, por onde elle decerto soprava
as suas ordens através do 202. Dos pés da mesa cordões tumidos e molles,
colleando sobre o tapete, corriam para os recantos de sombra á maneira
de cobras assustadas. Sobre uma banquinha, e reflectida no seu verniz
como na agua d'um poço, pousava uma Machina-de-escrever: e adiante era
uma immensa Machina-de-calcular, com fileiras de buracos d'onde
espreitavam, esperando, numeros rigidos e de ferro. Depois parei em
frente da estante que me preoccupava, assim solitaria, á maneira d'uma
torre n'uma planicie, com o seu alto pharol. Toda uma das suas faces
estava repleta de Diccionarios; a outra de Manuaes; a outra de Atlas; a
ultima de Guias, e entre elles, abrindo um folio, encontrei o Guia das
ruas de Samarkande. Que macissa torre de informação! Sobre prateleiras
admirei apparelhos que não comprehendia:--um composto de laminas de
gelatina, onde desmaiavam, meio-chupadas, as linhas d'uma carta, talvez
amorosa; outro, que erguia sobre um pobre livro brochado, como para o
decepar, um cutello funesto; outro avançando a bocca d'uma tuba, toda
aberta para as vozes do invisivel. Cingidos aos umbraes, liados ás
cimalhas, luziam arames, que fugiam através do tecto, para o espaço.
Todos mergulhavam em forças universaes, todos transmittiam forças
universaes. A Natureza convergia disciplinada ao serviço do meu amigo e
entrára na sua domesticidade!...
Jacintho atirou uma exclamação impaciente:
--Oh, estas pennas electricas!... Que secca!
Amarrotára com colera a carta começada--eu escapei, respirando, para a
Bibliotheca. Que magestoso armazem dos productos do Raciocinio e da
Imaginação! Alli jaziam mais de trinta mil volumes, e todos decerto
essenciaes a uma cultura humana. Logo á entrada notei, em ouro n'uma
lombada verde, o nome de Adam Smith. Era pois a região dos Economistas.
Avancei--e percorri, espantado, oito metros de Economia Politica. Depois
avistei os Philosophos e os seus commentadores, que revestiam toda uma
parede, desde as escólas Pre-socraticas até ás escólas Neo-pessimistas.
N'aquellas pranchas se acastellavam mais de dois mil systemas--e que
todos se contradiziam. Pelas encadernações logo se deduziam as
doutrinas: Hobbes, em baixo, era pesado, de couro negro; Platão, em
cima, resplandecia, n'uma pellica pura e alva. Para diante começavam as
Historias Universaes. Mas ahi uma immensa pilha de livros brochados,
cheirando a tinta nova e a documentos novos, subia contra a estante,
como fresca terra d'alluvião tapando uma riba secular. Contornei essa
collina, mergulhei na secção das Sciencias Naturaes, peregrinando, n'um
assombro crescente, da Orographia para a Paleontologia, e da Morphologia
para a Crystallographia. Essa estante rematava junto d'uma janella
rasgada sobre os Campos Elyseos. Apartei as cortinas de velludo--e por
traz descobri outra portentosa rima de volumes, todos de Historia
Religiosa, de Exegese Religiosa, que trepavam montanhosamente até aos
ultimos vidros, vedando, nas manhãs mais candidas, o ar e a luz do
Senhor.
Mas depois rebrilhava, em marroquins claros, a estante amavel dos
Poetas. Como um repouso para o espirito esfalfado de todo aquelle saber
positivo, Jacintho aconchegára ahi um recanto, com um divan e uma mesa
de limoeiro, mais lustrosa que um fino esmalte, coberta de charutos, de
cigarros d'Oriente, de tabaqueiras do seculo XVIII. Sobre um cofre de
madeira lisa pousava ainda, esquecido, um prato de damascos seccos do
Japão. Cedi á seducção das almofadas; trinquei um damasco, abri um
volume; e senti estranhamente, ao lado, um zumbido, como de um insecto
de azas harmoniosas. Sorri á idéa que fossem abelhas, compondo o seu mel
n'aquelle massiço de versos em flôr. Depois percebi que o susurro remoto
e dormente vinha do cofre de mogne, de parecer tão discreto. Arredei uma
_Gazeta de França_; e descornitei um cordão que emergia de um orificio,
escavado no cofre, e rematava n'um funil de marfim. Com curiosidade,
encostei o funil a esta minha confiada orelha, afeita á singeleza dos
rumores da serra. E logo uma Voz, muito mansa, mas muito dicidida,
aproveitando a minha curiosidade para me invadir e se apoderar do meu
entendimento, susurrou capciosamente:
--...«E assim, pela disposição dos cubos diabolicos, eu chego a
verificar os espaços hypermagicos!...»
Pulei, com um berro.
--Oh Jacintho, aqui ha um homem! Está aqui um homem a fallar dentro
d'uma caixa!
O meu camarada, habituado aos prodigios, não se alvoroçou:
--É o Conferençophone... Exactamente como o Theatrophone; sómente
applicado ás escólas e ás conferencias. Muito commodo!... Que diz o
homem, Zé Fernandes?
Eu considerava o cofre, ainda esgazeado:
--Eu sei! Cubos diabolicos, espaços magicos, toda a sorte de horrores...
Senti dentro o sorriso superior de Jacintho:
--Ah, é o coronel Dorchas... Lições de Metaphysica Positiva sobre a
Quarta Dimensão... Conjecturas, uma massada! Ouve lá, tu hoje jantas
commigo e com uns amigos, Zé Fernandes?
--Não, Jacintho... Estou ainda enfardelado pelo alfaiate da serra!
E voltei ao gabinete mostrar ao meu camarada o jaquetão de flanella
grossa, a gravata de pintinhas escarlates, com que ao domingo, em
Guiães, visitava o Senhor. Mas Jacintho affirmou que esta simplicidade
montesina interessaria os seus convidados, que eram dois artistas...
Quem? O auctor do _Coração Triplo_, um Psychologo Feminista, d'agudeza
transcendente, Mestre muito experimentado e muito consultado em
Sciencias Sentimentaes; e Vorcan, um pintor mythico, que interpretára
ethereamente, havia um anno, a symbolia rapsodica do cerco de Troia,
n'uma vasta composição, _Helena Devastadora_...
Eu coçava a barba:
--Não, Jacintho, não... Eu venho de Guiães, das serras; preciso entrar
em toda esta civilisacão, lentamente, com cautella, senão rebento. Logo
na mesma tarde a electricidade, e o conferençophone, e os espaços
hypermagicos e o feminista, e o ethereo, e a symbolia devastadora, é
excessivo! Volto ámanhã.
Jacintho dobrava vagarosamente a sua carta, onde mettera sem rebuço
(como convinha á nossa fraternidade) duas violetas brancas tiradas do
ramo que lhe floria o peito.
--Ámanhã, Zé Fernandes, tu vens antes d'almoço, com as tuas malas dentro
d'um fiacre, para te installares no 202, no teu quarto. No Hotel são
embaraços, privações. Aqui tens o telephone, o teatrophone, livros...
Acceitei logo, com simplicidade. E Jacintho, embocando um tubo acustico,
murmurou:
--Grillo!
Da parede, recoberta de damasco, que subitamente e sem rumor se fendeu,
surdio o seu velho escudeiro (aquelle moleque que viera com _D.
Gallião_), que eu me alegrei de encontrar tão rijo, mais negro,
reluzente e veneravel na sua tesa gravata, no seu collete branco de
botões de ouro. Elle tambem estimou vêr de novo «o siô Fernandes». E,
quando soube que eu occuparia o quarto do avô Jacintho, teve um claro
sorriso de preto, em que envolveu o seu senhor, no contentamento de o
sentir emfim reprovido d'uma familia.
--Grillo, dizia Jacintho, esta carta a Madame de Oriol... Escuta!
Telephona para casa dos Trèves que os espiritistas só estão livres no
domingo... Escuta! Eu tomo uma douche antes de jantar, tepida, a 17.
Fricção com malva-rosa.
E cahindo pesadamente para cima do divan, com um bocejo arrastado e
vago:
--Pois é verdade, meu Zé Fernandes, aqui estamos, como ha sete annos,
n'este velho Paris...
Mas eu não me arredava da mesa, no desejo de completar a minha
iniciação:
--Oh Jacintho, para que servem todos estes instrumentosinhos? Houve já
ahi um desavergonhado que me picou. Parecem perversos... São uteis?
Jacintho esboçou, com languidez, um gesto que os
sublimava.--Providenciaes, meu filho, absolutamente providenciaes, pela
simplificação que dão ao trabalho! Assim... E apontou. Este arrancava as
pennas velhas; o outro numerava rapidamente as paginas d'um manuscripto;
aquell'outro, além, raspava emendas... E ainda os havia para collar
estampilhas, imprimir datas, derreter lacres, cintar documentos...
--Mas com effeito, accrescentou, é uma sécca. Com as molas, com os
bicos, ás vezes magoam, ferem... Já me succedeu inutilisar cartas por as
ter sujado com dedadas de sangue. É uma massada!
Então, como o meu amigo espreitára novamente o relogio monumental, não
lhe quiz retardar a consolação da douche e da malva-rosa.
--Bem, Jacintho, já te revi, já me contentei... Agora até ámanhã, com as
malas.
--Que diabo, Zé Fernandes, espera um momento... Vamos pela sala de
jantar. Talvez te tentes!
E, através da Bibliotheca, penetramos na sala de jantar,--que me
encantou pelo seu luxo sereno e fresco. Uma madeira branca, laccada,
mais lustrosa e macia que setim, revestia as paredes, encaixilhando
medalhões de damasco côr de morango, de morango muito maduro e esmagado:
os aparadores, discretamente lavrados em florões e rocalhas,
resplandeciam com a mesma lacca nevada: e damascos amorangados estofavam
tambem as cadeiras, brancas, muito amplas, feitas para a lentidão de
gulas delicadas, de gulas intellectuaes.
--Viva o meu Principe! Sim senhor... Eis aqui um comedoiro muito
comprehensivel e muito repousante, Jacintho!
--Então janta, homem!
Mas já eu me começava a inquietar, reparando que a cada talher
correspondiam seis garfos, e todos de feitios astuciosos. E mais me
impressionei quando Jacintho me desvendou que um era para as ostras,
outro para o peixe, outro para as carnes, outro para os legumes, outro
para as fructas, outro para o queijo! Simultaneamente, com uma
sobriedade que louvaria Salomão, só dois copos, para dois vinhos:--um
Bordeus rosado em infusas de crystal, e Champagne gelando dentro de
baldes de prata. Todo um aparador porém vergava, sob o luxo redundante,
quasi assustador d'aguas--aguas oxigenadas, aguas carbonatadas, aguas
phosphatadas, aguas esterilisadas, aguas de saes, outras ainda, em
garrafas bojudas, com tratados therapeuticos impressos em rotulos.
--Santissimo nome de Deus, Jacintho! Então és ainda o mesmo tremendo
bebedor d'agua, hein?... _Un aquatico_! como dizia o nosso poeta
chileno, que andava a traduzir Klopstock.
Elle derramou, por sobre toda aquella garrafaria encarapuçada em metal,
um olhar desconsolado:
--Não... É por causa das aguas da Cidade, contaminadas, atulhadas de
microbios... Mas ainda não encontrei uma bôa agua que me convenha, que
me satisfaça... Até soffro sêde.
Desejei então conhecer o jantar do Psychologo e do Symbolista--traçado,
ao lado dos talheres, em tinta vermelha, sobre laminas de marfim.
Começava honradamente por ostras classicas, de Marennes. Depois
apparecia uma sopa d'alcachofras e ovas de carpa...
--É bom?
Jacintho encolheu desinteressadamente os hombros:
--Sim... Eu não tenho nunca appetite, já ha tempos... Já ha annos.
Do outro prato só comprehendi que continha frangos e tubaras. Depois
saboreariam aquelles senhores um filete de veado, macerado em Xerez, com
gelêa de noz. E por sobremeza simplesmente laranjas geladas em ether.
--Em ether, Jacintho?
O meu amigo hesitou, esboçou com os dedos a ondulação d'um aroma que
s'evola.
--É novo... Parece que o ether desenvolve, faz afflorar a alma das
fructas...
Curvei a cabeça ignara, murmurei nas minhas profundidades:
--Eis a Civilisação!
E, descendo os Campos Elyseos, encolhido no paletot, a cogitar n'este
prato symbolico, considerava a rudeza e atolado atrazo da minha Guiães,
onde desde seculos a alma das laranjas permanece ignorada e
desaproveitada dentro dos gomos sumarentos, por todos aquelles pomares
que ensombram e perfumam o valle, da Roqueirinha a Sandofim! Agora
porém, bemdito Deus, na convivencia de um tão grande iniciado como
Jacintho, eu comprehenderia todas as finuras e todos os poderes da
Civilisação.
E, (melhor ainda para a minha ternura!) contemplaria a raridade d'um
homem que, concebendo uma idéa da Vida, a realisa--e através d'ella e
por ella recolhe a felicidade perfeita.
Bem se affirmára este Jacintho, na verdade, como Principe da
Gran-Ventura!
III
No 202, todas as manhãs, ás nove horas, depois do meu chocolate e ainda
em chinelas, penetrava no quarto de Jacintho. Encontrava o meu amigo
banhado, barbeado, friccionado, envolto n'um roupão branco de pello de
cabra do Thibet, diante da sua mesa de toilette, toda de crystal, (por
causa dos microbios) e atulhada com esses utensilios de tartaruga,
marfim, prata, aço e madreperola que o homem do seculo XIX necessita
para não desfeiar o conjuncto sumptuario da Civilisação e manter n'ella
o seu Typo. As escovas sobretudo renovavam, cada dia, o meu regalo e o
meu espanto--porque as havia largas como a roda massiça d'um carro
sabino; estreitas e mais recurvas que o alfange d'um mouro; concavas, em
fórma de telha aldeã; ponteagudas em feitio de folha de hera; rijas que
nem cerdas de javali; macias que nem pennugem de rôla! De todas,
fielmente, como amo que não desdenha nenhum servo, se utilisava o meu
Jacintho. E assim, em face ao espelho emmoldurado de folhedos de prata,
permanecia este Principe passando pellos sobre o seu pello durante
quatorze minutos.
No emtanto o Grillo e outro escudeiro, por traz dos biombos de Kioto, de
sedas lavradas, manobravam, com pericia e vigor, os apparelhos do
lavatorio--que era apenas um resumo das machinas monumentaes da Sala de
Banho, a mais estremada maravilha do 202. N'estes marmores simplificados
existiam unicamente dois jactos graduados desde _zero_ até _cem_; as
duas duchas, fina e grossa, para a cabeça; a fonte esterilisada para os
dentes; o repuxo borbulhante para a barba; e ainda botões discretos,
que, roçados, desencadeavam esguichos, cascatas cantantes, ou um leve
orvalho estival. D'esse recanto temeroso, onde delgados tubos mantinham
em disciplina e servidão tantas aguas ferventes, tantas aguas violentas,
sahia emfim o meu Jacintho enxugando as mãos a uma toalha de felpo, a
uma toalha de linho, a outra de corda entrançada para restabelecer a
circulação, a outra de sêda frouxa para repolir a pelle. Depois d'este
rito derradeiro que lhe arrancava ora um suspiro, ora um bocejo,
Jacintho, estendido n'um divan, folheava uma Agenda, onde se arrolavam,
inscriptas pelo Grillo ou por elle, as occupações do seu dia, tão
numerosas por vezes que cobriam duas laudas.
Todas ellas se prendiam á sua sociabilidade, á sua civilisação muito
complexa, ou a interesses que o meu Principe, n'esses sete annos, creára
para viver em mais consciente communhão com todas as funcções da Cidade.
(Jacintho com effeito era presidente do Club da _Espada e Alvo_;
commanditario do Jornal o _Boulevard_; director da _Companhia dos
Telephones de Constantinopla_; socio dos _Bazares unidos da Arte
Espiritualista_; membro do _Comité de Iniciação das Religiões
Esotericas_, etc.) Nenhuma d'estas occupações parecia porém aprazivel ao
meu amigo--porque, apesar da mansidão e harmonia dos seus modos,
frequentemente arremessava para o tapete, n'uma rebellião de homem
livre, aquella Agenda que o escravisava. E n'uma d'essas manhãs (de
vento e neve), apanhando eu o livro oppressivo, encadernado em pellica,
de um carinhoso tom de rosa murcha--descobri que o meu Jacintho devia
depois do almoço fazer uma visita na rua da Universidade, outra no
Parque Monceau, outra entre os arvoredos remotos da Muette; assistir por
fidelidade a uma votação no Club; acompanhar Madame d'Oriol a uma
exposição de leques; escolher um presente de noivado para a sobrinha dos
Trèves; comparecer no funeral do velho conde de Malville; presidir um
tribunal de honra n'uma questão de roubalheira, entre cavalheiros, ao
ecarté... E ainda se acavallavam outras indicações, escrivinhadas por
Jacintho a lapis:--«Carroceiro--Five-oclock dos Ephrains--A pequena das
_Variedades_--Levar a nota ao jornal...» Considerei o meu Principe.
Estirado no divan, d'olhos miserrimamente cerrados, bocejava, n'um
bocejo immenso e mudo.
Mas os affazeres de Jacintho começavam logo no 202, cedo, depois do
banho. Desde as oito horas a campainha do telephone repicava por elle,
com impaciencia, quasi com colera, como por um escravo tardio. E mal
enxugado, dentro do seu roupão de pello de cabra do Thibet ou de grossas
pyjamas de pelucia côr d'ouro-velho, constantemente sahia ao corredor a
cochichar com sujeitos tão apressados, que conservavam na mão o
guarda-chuva pingando sobre o tapete. Um d'esses, sempre presente (e que
pertencia decerto aos _Telephones de Constantinopla_), era
temeroso--todo elle chupado, tisnado, com maus dentes, sobraçando uma
enorme pasta sebenta, e dardejando, d'entre a alta gola d'uma pelissa
poida, como da abertura d'um covil, dous olhinhos tôrvos e de rapina.
Sem cessar, inexoravelmente, um escudeiro apparecia, com bilhetes n'uma
salva... Depois eram fornecedores d'Industria e d'Arte; negociantes de
cavallos, rubicundos e de paletot branco; inventores com grossos rolos
de papel; alfarrabistas trazendo na algibeira uma edição «unica», quasi
inverosimil, de Ulrich Zell ou do _Lapidanus_. Jacintho circulava
estonteado pelo 202, rabiscando a carteira, repicando o telephone,
desatando nervosamente pacotes, sacudindo ao passar algum embuscado que
surdia das sombras da antecamara, estendia como um trabuco o seu
memorial ou o seu catalogo!
Ao meio dia, um tam-tam argentino e melancholico ressoava, chamando ao
almoço. Com o _Figaro_ ou as _Novidades_ abertas sobre o prato, eu
esperava sempre meia hora pelo meu Principe, que entrava n'uma rajada,
consultando o relogio, exhalando com a face moída o seu queixume eterno:
--Que massada! E depois uma noite abominavel, enrodilhada em sonhos...
Tomei sulforal, chamei o Grillo para me esfregar com therebentina... Uma
sécca!
Espalhava pela mesa um olhar já farto. Nenhum prato, por mais engenhoso,
o seduzia;--e, como através do seu tumulto matinal fumava incontaveis
cigarretes que o resequiam, começava por se encharcar com um immenso
copo d'agua oxygenada, ou carbonatada, ou gazoza, misturada d'um cognac
raro, muito caro, horrendamente adocicado, de moscatel de Syracusa.
Depois, á pressa, sem gosto, com a ponta incerta do garfo, picava aqui e
além uma lasca de fiambre, uma febra de lagosta;--e reclamava
impacientemente o café, um café de Moka, mandado cada mez por um feitor
do Dedjah, fervido á turca, muito espesso, que elle remexia com um pau
de canella!
--E tu, Zé Fernandes, que vaes tu fazer?
--Eu?
Recostado na cadeira, com delicias, os dedos mettidos nas cavas do
collete:
--Vou vadiar, regaladamente, como um cão natural!
O meu sollicito amigo, remexendo o café com o pau de canella, rebuscava
através da numerosa Civilisação da Cidade uma occupação que me
encantasse. Mas apenas suggeria uma Exposição, ou uma Conferencia, ou
monumentos, ou passeios, logo encolhia os hombros desconsolados:
--Por fim nem vale a pena, é uma sécca!
Accendia outra das cigarretes russas, onde rebrilhava o seu nome,
impresso a ouro na mortalha. Torcendo, n'uma pressa nervosa, os fios do
bigode, ainda escutava, á porta da Bibliotheca, o seu procurador, o
nedio e magestoso Laporte. E emfim, seguido d'um criado, que sobraçava
um maço tremendo de jornaes para lhe abastecer o coupé, o Principe da
Gran-Ventura mergulhava na Cidade.
* * * * *
Quando o dia social de Jacintho se apresentava mais desafogado, e o céo
de Março nos concedia caridosamente um pouco de azul agoado, sahiamos
depois d'almoço, a pé, através de Paris. Estes lentos e errantes
passeios eram outr'ora, na nossa edade de Estudantes, um gozo muito
querido de Jacintho--porque n'elles mais intensamente e mais
minuciosamente saboreava a Cidade. Agora porém, apesar da minha
companhia, só lhe davam uma impaciencia e uma fadiga que desoladoramente
destoava do antigo, illuminado extasi. Com espanto (mesmo com dôr,
porque sou bom, e sempre me entristece o desmoronar d'uma crença)
descobri eu, na primeira tarde em que descemos aos Boulevards, que o
denso formigueiro humano sobre o asphalto, e a torrente sombria dos
trens sobre o macadam, affligiam o meu amigo pela brutalidade da sua
pressa, do seu egoismo, e do seu estridor. Encostado e como refugiado no
meu braço, este Jacintho novo começou a lamentar que as ruas, na nossa
Civilisação, não fossem calçadas de gutta-percha! E a gutta-percha
claramente representava, para o meu amigo, a substancia discreta que
amortece o choque e a rudeza das cousas. Oh maravilha! Jacintho querendo
borracha, a borracha isoladora, entre a sua sensibilidade e as funcções
da Cidade! Depois, nem me permittiu pasmar diante d'aquellas dourejadas
e espelhadas lojas que elle outr'ora considerava como os «preciosos
museus do seculo XIX»...
--Não vale a pena, Zé Fernandes. Ha uma immensa pobreza e seccura
d'invenção! Sempre os mesmos florões Luiz XV, sempre as mesmas
pelucias... Não vale a pena!
Eu arregalava os olhos para este transformado Jacintho. E sobretudo me
impressionava o seu horror pela Multidão--por certos effeitos da
Multidão, só para elle sensiveis, e a que chamava os «sulcos».
--Tu não os sentes, Zé Fernandes. Vens das serras... Pois constituem o
rijo inconveniente das Cidades, estes sulcos! É um perfume muito agudo e
petulante que uma mulher larga ao passar, e se installa no olfacto, e
estraga para todo o dia o ar respiravel. É um dito que se surprehende
n'um grupo, que revela um mundo de velhacaria, ou de pedantismo, ou de
estupidez, e que nos fica collado á alma, como um salpico, lembrando a
immensidade da lama a atravessar. Ou então, meu filho, é uma figura
intoleravel pela pretenção, ou pelo mau-gosto, ou pela impertinencia, ou
pela rellice, ou pela dureza, e de que se não póde sacudir mais a visão
repulsiva... Um pavor, estes sulcos, Zé Fernandes! De resto, que diabo,
são as pequeninas miserias d'uma Civilisação deliciosa!
Tudo isto era especioso, talvez pueril--mas para mim revelava, n'aquelle
chamejante devoto da Cidade, o arrefecimento da devoção. N'essa mesma
tarde, se bem recordo, sob uma luz macia e fina, penetramos nos centros
de Paris, nas ruas longas, nas milhas de casario, todo de caliça parda,
erriçado de chaminés de lata negra, com as janellas sempre fechadas, as
cortininhas sempre corridas, abafando, escondendo a vida. Só tijolo, só
ferro, só argamassa, só estuque: linhas hirtas, angulos asperos: tudo
secco, tudo rigido. E dos chãos aos telhados, por toda a fachada,
tapando as varandas, comendo os muros, Taboletas, Taboletas...
--Oh, este Paris, Jacintho, este teu Paris! Que enorme, que grosseiro
bazar!
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