A Cidade e as Serras - 03

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E, mais para sondar o meu Principe do que por persuasão, insisti na
fealdade e tristeza d'estes predios, duros armazens, cujos andares são
prateleiras onde se apilha humanidade! E uma humanidade impiedosamente
catalogada e arrumada! A mais vistosa e de luxo nas prateleiras baixas,
bem envernisadas. A relles e de trabalho nos altos, nos desvãos, sobre
pranchas de pinho nú, entre o pó e a traça...
Jacintho murmurou, com a face arripiada:
--É feio, é muito feio!
E accudiu logo, sacudindo no ar a luva de anta:
--Mas que maravilhoso organismo, Zé Fernandes! Que solidez! Que
producção!
Onde Jacintho me parecia mais renegado era na sua antiga e quasi
religiosa affeição pelo Bosque de Bolonha. Quando moço, elle construira
sobre o Bosque theorias complicadas e consideraveis. E sustentava, com
olhos rutilantes de fanatico, que no Bosque a Cidade cada tarde ia
retemperar salutarmente a sua força, recebendo, pela presença das suas
Duquezas, das suas Cortezãs, dos seus Politicos, dos seus Financeiros,
dos seus Generaes, dos seus Academicos, dos seus Artistas, dos seus
Clubistas, dos seus Judeus, a certeza consoladora de que todo o seu
pessoal se mantinha em numero, em vitalidade, em funcção, e que nenhum
elemento da sua grandeza desapparecera ou deperecera! «Ir ao Bois»
constituia então para o meu Principe um acto de consciencia. E voltava
sempre confirmando com orgulho que a Cidade possuia todos os seus
astros, garantindo a eternidade da sua luz!
Agora, porém, era sem fervor, arrastadamente, que elle me levava ao
Bosque, onde eu, aproveitando a clemencia d'Abril, tentava enganar a
minha saudade d'arvoredos. Emquanto subiamos, ao trote nobre das suas
egoas lustrosas, a Avenida dos Campos-Elyseos e a do Bosque,
rejuvenescidas pelas relvas tenras e fresco verdejar dos rebentos,
Jacintho, soprando o fumo da cigarrete pelas vidraças abertas do coupé,
permanecia o bom camarada, de veia amavel, com quem era doce philosophar
através de Paris. Mas logo que passavamos as grades douradas do Bosque,
e penetravamos na Avenida das Acacias, e enfiavamos na lenta fila dos
trens de luxo e de praça, sob o silencio decoroso, apenas cortado pelo
tilintar dos freios e pelas rodas vagarosas esmagando a areia,--o meu
Principe emmudecia, mollemente engilhado no fundo das almofadas, d'onde
só despegava a face para escancarar bocejos de fartura. Pelo antigo
habito de verificar a presença confortadora do «pessoal, dos astros»,
ainda, por vezes, apontava para algum coupé ou vittoria rodando com
rodar rangente n'outra arrastada fila--e murmurava um nome. E assim fui
conhecendo a encaracolada barba hebraica do banqueiro Ephraim; e o longo
nariz patricio de Madame de Trèves abrigando um sorriso perenne; e as
bochechas flacidas do poeta neo-platonico Dornan, sempre espapado no
fundo de fiacres; e os longos bandòs pre-raphaelitas e negros de Madame
Verghane; e o monoculo defumado do director do _Boulevard_; e o
bigodinho vencedor do Duque de Marizac, reinando de cima do seu phaeton
de guerra; e ainda outros sorrisos immoveis, e barbichas á Renascença, e
palpebras amortecidas, e olhos farejantes, e pelles empoadas d'arroz,
que eram todas illustres e da intimidade do meu Principe. Mas, do topo
da Avenida das Acacias, recomeçavamos a descer, em passo sopeado,
esmagando lentamente a areia; na fila vagarosa que subia, calhambeque
atraz de landau, vittoria atraz de fiacre, fatalmente reviamos o
binoculo sombrio do homem do _Boulevard_, e os bandòs furiosamente
negros de Madame Verghane, e o ventre espapado do neo-platonico, e a
barba talmudica, e todas aquellas figuras, d'uma immobilidade de cera,
super-conhecidas do meu camarada, recruzadas cada tarde através de
revividos annos, sempre com os mesmos sorrisos, sob o mesmo pó d'arroz,
na mesma immobilidade de cera; então Jacintho não se continha, gritava
ao cocheiro:
--Para casa, depressa!
E era pela Avenida do Bosque, pelos Campos-Elyseos, uma fuga ardente das
egoas a quem a lentidão sopeada, n'um roer de freios, entre outras egoas
tambem d'ellas super-conhecidas, lançavam n'uma exasperação comparavel á
de Jacintho.
Para o sondar eu denegria o Bosque:
--Já não é tão divertido, perdeu o brilho!...
Elle acudia, timidamente:
--Não, é agradavel, não ha nada mais agradavel; mas...
E accusava a friagem das tardes ou o despotismo dos seus affazeres.
Recolhiamos então ao 202, onde, com effeito, em breve embrulhado no seu
roupão branco, diante da mesa de crystal, entre a legião das escovas,
com toda a electricidade refulgindo, o meu Principe se começava a
adornar para o serviço social da noite.
E foi justamente numa d'essas noites (um sabado) que nós passamos,
n'aquelle quarto tão civilisado e protegido, por um d'esses brutos e
revoltos terrores como só os produz a ferocidade dos Elementos. Já
tarde, á pressa (jantavamos com Marizac no Club para o acompanhar depois
ao _Lohengrin_ na Opera) Jacintho arrocheava o nó da gravata
branca--quando no lavatorio, ou porque se rompesse o tubo, ou se
dessoldasse a torneira, o jacto d'agua a ferver rebentou furiosamente,
fumegando e silvando. Uma nevoa densa de vapor quente abafou as
luzes--e, perdidos n'ella, sentiamos, por entre os gritos do escudeiro e
do Grillo, o jorro devastador batendo os muros, esparrinhando uma chuva
que escaldava. Sob os pés o tapete ensopado era uma lama ardente. E como
se todas as forças da natureza, submettidas ao serviço de Jacintho, se
agitassem, animadas por aquella rebellião da agua--ouvimos roncos surdos
no interior das paredes, e pelos fios dos lumes electricos sulcaram
faiscas ameaçadoras! Eu fugira para o corredor, onde se alargava a nevoa
grossa. Por todo o 202 ia um tumulto de desastre. Diante do portão,
attrahidas pela fumarada que se escapava das janellas, estacionava
policia, uma multidão. E na escada esbarrei com um reporter, de chapéo
para a nuca, a carteira aberta, gritando sofregamente «se havia mortos?»
Domada a agua, clareada a bruma, vim encontrar Jacintho no meio do
quarto, em ceroulas, livido:
--Oh Zé Fernandes, esta nossa industria!... Que impotencia, que
impotencia! Pela segunda vez, este desastre! E agora, apparelhos
perfeitos, um processo novo...
--E eu encharcado por esse processo novo! E sem outra casaca!
Em redor, as nobres sêdas bordadas, os brocateis Luiz XIII, cobertos de
manchas negras, fumegavam. O meu Principe, enfiado, enchugava uma
photographia de Madame d'Oriol, d'hombros decotados, que o jorro bruto
maculára d'empolas. E eu, com rancor, pensava que na minha Guiães a agua
aquecia em seguras panellas--e subia ao meu lavatorio, pela mão forte da
Catharina, em seguras infusas! Não jantamos com o duque de Marizac, no
Club. E, na Opera, nem saboreei Lohengrin e a sua branca alma e o seu
branco cysne e as suas brancas armas--entallado, aperreado, cortado nos
sovacos pela casaca que Jacintho me emprestára e que rescendia
estonteadoramente a flores de Nessari.
* * * * *
No domingo, muito cedo, o Grillo, que na véspera escaldára as mãos e as
trazia embrulhadas em sêda, penetrou no meu quarto, descerrou as
cortinas, e á beira do leito, com o seu radiante sorriso de preto:
--Vem no _Figaro_!
Desdobrou triumphalmente o jornal. Eram, nos _Echos_, doze linhas, onde
as nossas aguas rugiam e espadavam, com tanta magnificencia e tanta
publicidade, que tambem sorrí, deleitado.
--E toda a manhã, o telephone, siô Fernandes! exclamava o Grillo,
rebrilhando em ebano. A quererem saber, a quererem saber... «Está lá?
Está escaldado?» Paris afflicto, siô Fernandes!
O telephone, com effeito, repicava, insaciavel. E quando desci para o
almoço, a toalha desapparecia sob uma camada de telegrammas, que o meu
Principe fendia com a faca, enrugado, rosnando contra a «massada». Só
desannuviou, ao ler um d'esses papeis azues, que atirou para cima do meu
prato, com o mesmo sorriso agradado com que de manhã sorriramos, o
Grillo e eu:
--É do Gran-Duque Casimiro... Ratão amavel! Coitado!
Saboreei, através dos ovos, o telegramma de S. Alteza. «O que! o meu
Jacintho inundado! Muito chic, nos Campos-Elyseos! Não volto ao 202 sem
boia de salvação! Compassivo abraço! Casimiro...» Murmurei tambem com
deferencia:--«Amavel! Coitado!» Depois, revolvendo lentamente o montão
de telegrammas que se alastrava até ao meu copo:
--Oh Jacintho! Quem é esta Diana que incessantemente te escreve, te
telephona, te telegrapha, te...?
--Diana?... Diana de Lorge. É uma cocotte. É uma grande cocotte!
--Tua?
--Minha, minha... Não! tenho um bocado.
E como eu lamentava que o meu Principe, senhor tão rico e de tão fino
orgulho, por economia d'uma gamella propria chafurdasse com outros n'uma
gamella publica--Jacintho levantou os hombros, com um camarão espetado
no garfo:
--Tu vens das serras... Uma cidade como Paris, Zé Fernandes, precisa ter
cortezãs de grande pompa e grande fausto. Ora para montar em Paris,
n'esta tremenda carestia de Paris, uma cocotte com os seus vestidos, os
seus diamantes, os seus cavallos, os seus lacaios, os seus camarotes, as
suas festas, o seu palacete, a sua publicidade, a sua insolencia, é
necessario que se aggremiem umas poucas de fortunas, se forme um
syndicato! Somos uns sete, no Club. Eu pago um bocado... Mas meramente
por Civismo, para dotar a cidade com uma cocotte monumental. De resto
não chafurdo. Pobre Diana!... Dos hombros para baixo nem sei se tem a
pelle côr de neve ou côr de limão.
Arregalei um olho divertido:
--Dos hombros para baixo?... E para cima?
--Oh para cima tem pó d'arroz!... Mas é uma sécca! Sempre bilhetes,
sempre telephones, sempre telegrammas. E tres mil francos por mez, além
das flores... Uma massada!
E as duas rugas do meu Principe, aos lados do seu afilado nariz, curvado
sobre a salada, eram como dous valles muito tristes, ao entardecer.
Acabavamos o almoço, quando um escudeiro, muito discretamente, n'um
murmurio, annunciou Madame d'Oriol. Jacintho pousou com tranquillidade o
charuto; eu quasi me engasguei, n'um sorvo alvoroçado de café. Entre os
reposteiros de damasco côr de morango ella appareceu, toda de negro,
d'um negro liso e austero de Semana Santa, lançando com o regalo um
lindo gesto para nos socegar. E immediatamente, n'uma volubilidade
docemente chalrada:
--É um momento, nem se levantem! Passei, ia para a Magdalena, não me
contive, quiz vêr os estragos... Uma inundação em Paris, nos
Campos-Elyseos! Não ha senão este Jacintho. E vem no _Figaro!_ O que eu
estava assustada, quando telephonei! Imaginem! Agua a ferver, como no
Vesuvio... Mas é d'uma novidade! E os estofos perdidos, naturalmente, os
tapetes... Estou morrendo por admirar as ruinas!
Jacintho, que não me pareceu commovido, nem agradecido com aquelle
interesse, retomára risonhamente o charuto:
--Está tudo secco, minha querida senhora, tudo secco! A belleza foi
hontem, quando a agua fumegava e rugia! Ora que pena não ter ao menos
cahido uma parede!
Mas ella insistia. Nem todos os dias se gozavam em Paris os destroços
d'uma inundação. O _Figaro_ contára... E era uma aventura deliciosa, uma
casa escaldada nos Campos-Elyseos!
Toda a sua pessoa, desde as plumasinhas que frisavam no chapéo até á
ponta reluzente das botinas de verniz, se agitava, vibrava, como um ramo
tenro sob o boliço do passaro a chalrar. Só o sorriso, por traz do véo
espesso, conservava um brilho immovel. E já no ar se espalhára um aroma,
uma doçura, emanadas de toda a sua mobilidade e de toda a sua graça.
Jacintho no emtanto cedera, alegremente: e pelo corredor Madame d'Oriol
ainda louvava o _Figaro_ amavel, e confessava quanto tremera... Eu
voltei ao meu café, felicitando mentalmente o Principe da Gran-Ventura
por aquella perfeita flôr de Civilisação que lhe perfumava a vida.
Pensei então na apurada harmonia em que se movia essa flôr. E corri
vivamente á ante-camara, verificar diante do espelho o meu penteado e o
nó da minha gravata. Depois recolhi á sala de jantar, e junto da
janella, folheando languidamente a _Revista do Seculo XIX_, tomei uma
attitude de elegancia e d'alta cultura. Quasi immediatamente elles
reappareceram: e Madame d'Oriol, que, sempre sorrindo, se proclamava
espoliada, nada encontrára que recordasse as agoas furiosas, roçou pela
mesa, onde Jacintho procurava, para lhe offerecer, tangerinas de Malta,
ou castanhas geladas, ou um biscouto molhado em vinho de Tokai.
Ella recusava com as mãos guardadas no regalo. Não era alta, nem
forte--mas cada prega do vestido, ou curva da capa, cahia e ondulava
harmoniosamente, como perfeições recobrindo perfeições. Sob o véo
cerrado, apenas percebi a brancura da face empoada, e a escuridão dos
olhos largos. E com aquellas sêdas e velludos negros, e um pouco do
cabello louro, d'um louro quente, torcido fortemente sobre as pelles
negras que lhe orlavam o pescoço, toda ella derramava uma sensação de
macio e de fino. Eu teimosamente a considerava como uma flôr de
Civilisação:--e pensava no secular trabalho e na cultura superior que
necessitára o terreno onde ella tão delicadamente brotára, já
desabrochada, em pleno perfume, mais graciosa por ser flôr d'esforço e
d'estufa, e trazendo nas suas pétalas um não sei quê de desbotado e de
ante-murcho.
No emtanto, com a sua volubilidade de passaro, chalrando para mim,
chalrando para Jacintho, ella mostrava o seu lindo espanto por aquelle
montão de telegrammas sobre a toalha.
--Tudo esta manhã, por causa da inundação?... Ah, Jacintho é hoje o
homem, o unico homem de Paris! Muitas mulheres n'esses telegrammas?
Languidamente, com o charuto a fumegar, o meu Principe empurrou para a
sua amiga o telegramma do Gran-duque. Então Madame d'Oriol teve um _ah!_
muito grave e muito sentido. Releu profundamente o papel de S. A. que os
seus dedos acariciavam com uma reverencia gulosa. E sempre grave, sempre
séria:
--É brilhante!
Oh, certamente! n'aquelle desastre tudo se passára com muito brilho,
n'um tom muito Parisiense. E a deliciosa creatura não se podia demorar,
porque fizera marcar um logar na egreja da Magdalena para o sermão!
Jacintho exclamou com innocencia:
--Sermão?... É já a estação dos sermões?
Madame d'Oriol teve um movimento de carinhoso escandalo e dôr. O quê!
pois nem na austera casa dos Trèves dera pela entrada da quaresma? De
resto não se admirava--Jacintho era um turco! E, immediatamente celebrou
o prégador, um frade dominicano, o Père Granon! Oh d'uma eloquencia!
d'uma violencia! No derradeiro sermão prégara sobre o amor, a
fragilidade dos amores mundanos! E tivera coisas d'uma inspiração, d'uma
brutalidade! Depois que gesto, um gesto terrivel que esmagava, em que se
lhe arregaçava toda a manga, mostrando o braço nú, um braço soberbo,
muito branco, muito forte!
O seu sorriso permanecia claro sob o olhar que negrejára dentro do véo
negro. E Jacintho, rindo:
--Um bom braço de director espiritual, hein? Para vergar, espancar
almas...
Ella acudiu:
--Não! infelizmente o Père Granon não confessa!
E de repente reconsiderou--aceitava um biscouto, um cálice de Tokai. Era
necessario um cordial para affrontar as emoções do Père Granon! Ambos
nos precipitáramos, um arrebatando a garrafa, outro offerecendo o prato
de bonbons. Franzio o véo para os olhos, chupou á pressa um bolo que
ensopára no Tokai. E como Jacintho, reparando casualmente no chapéo que
ella trazia, se curvára com curiosidade, impressionado, Madame d'Oriol
apagou o sorriso, toda seria, ante uma cousa seria:
--Elegante, não é verdade?... É uma creação inteiramente nova de Madame
Vial. Muito respeitoso, e muito suggestivo, agora na Quaresma.
O seu olhar, que me envolvera, tambem me convidava a admirar. Approximei
o meu focinho de homem das serras para contemplar essa creação suprema
do luxo de Quaresma. E era maravilhoso! Sobre o velludo, na sombra das
plumas frizadas, aninhada entre rendas, fixada por um prégo, pousava
delicadamente, feita de azeviche, uma Corôa de Espinhos!
Ambos nos extasiamos. E Madame d'Oriol, n'um movimento e n'um sorriso
que derramou mais aroma e mais claridade, abalou para a Magdalena.
O meu Principe arrastou pelo tapete alguns passos pensativos e molles. E
bruscamente, levantando os hombros com uma determinação immensa, como se
deslocasse um mundo:
--Oh Zé Fernandes, vamos passar este Domingo n'alguma cousa simples e
natural...
--Em quê?
Jacintho circumgirou os olhares muito abertos, como se, atravez da Vida
Universal, procurasse anciosamente uma cousa natural e simples. Depois,
descançando sobre mim os mesmos largos olhos que voltavam de muito
longe, cançados e com pouca esperança:
--Vamos ao Jardim das Plantas, vêr a girafa!


IV

N'essa fecunda semana, uma noite, recolhiamos ambos da Opera, quando
Jacintho, bocejando, me annunciou uma festa no 202.
--Uma festa?...
--Por causa do Gran-Duque, coitado, que me vai mandar um peixe delicioso
e muito raro que se pesca na Dalmacia. Eu queria um almoço curto. O
Gran-Duque reclamou uma ceia. É um barbaro, besuntado com litteratura do
seculo XVIII, que ainda acredita em ceias, em Paris! Reuno no domingo
tres ou quatro mulheres, e uns dez homens bem typicos, para o divertir.
Tambem aproveitas. Folheias Paris n'um resumo... Mas é uma massada
amarga!
Sem interesse pela sua festa, Jacintho não se affadigou em a compôr com
relevo ou brilho. Encommendou apenas uma orchestra de Tziganes (os
Tziganes, as suas jalecas escarlates, a melancolia aspera das Czardas
ainda n'esses tempos remotos emocionavam Paris): e mandou, na
Bibliotheca, ligar o Theatrophone com a Opera, com a Comedia-Franceza,
com o Alcazar e com os Buffos, prevendo todos os gostos desde o tragico
até ao picaro. Depois no domingo, ao entardecer, ambos visitamos a mesa
da ceia, que resplandecia com as velhas baixellas de D. Galião. E a
faustosa profusão de orchideas, em longas sylvas por sobre a toalha
bordada a sêda, enroladas aos fructeiros de Saxe, trasbordando de
crystaes lavrados e filagranados d'ouro, espalhava uma tão fina sensação
de luxo e gosto, que eu murmurei:--«Caramba, bemdito, seja o dinheiro!»
Pela primeira vez, tambem, admirei a copa e a sua installação abundante
e minuciosa--sobretudo os dois ascensores que rolavam das profundidades
da cozinha, um para os peixes e carnes aquecido por tubos d'agua
fervente, o outro para as saladas e gelados revestido de placas
frigorificas. Oh, este 202!
Ás nove horas, porém, descendo eu ao gabinete de Jacintho para escrever
a minha boa tia Vicencia, em quanto elle ficára no toucador com o
manícuro que lhe polia as unhas, passamos n'esse delicioso palacio,
florido e em gala, por bem corriqueiro susto! Todos os lumes electricos,
subitamente, em todo o 202, se apagaram! Na minha immensa desconfiança
d'aquellas forças universaes, pulei logo para a porta, tropeçando nas
trevas, ganindo um _Aqui d'Elrei_! que tresandava a Guiães. Jacintho em
cima berrava, com o manícuro agarrado ás pyjamas. E de novo, como serva
ralassa que recolhe arrastando as chinellas, a luz resurgiu com
lentidão. Mas o meu Principe, que descera, enfiado, mandou buscar um
engenheiro á Companhia Central da Electricidade Domestica. Por precaução
outro creado correu á mercearia comprar pacotes de velas. E o Grillo
desenterrava já dos armarios os candelabros abandonados, os pesados
castiçaes archaicos dos tempos inscientificos de D. Galião: era uma
reserva de veteranos fortes, para o caso pavoroso em que mais tarde, á
ceia, falhassem perfidamente as forças bisonhas da Civilisação. O
Electricista, que acudira esbaforido, afiançou porém que a Electricidade
se conservaria fiel, sem outro amuo. Eu, cautelosamente, soneguei na
algibeira dous côtos de estearina.
A Electricidade permaneceu fiel, sem amuos. E quando desci do meu
quarto, tarde (porque perdera o collete de baile e só depois d'uma busca
furiosa e praguejada o encontrei cahido por traz da cama!), todo o 202
refulgia, e os Tziganes, na antecamara, sacudindo as guedelhas, atiravam
as arcadas d'uma valsa tão arrastadora que, pelas paredes, os immensos
Personagens das tapeçarias, Priamo, Nestor, o engenhoso Ulysses,
arfavam, boliam com os pés venerandos!
Timidamente, sem rumor, puxando os punhos, penetrei no gabinete de
Jacintho. E fui logo acolhido pelo sorriso da condessa de Treves, que,
acompanhada pelo illustre historiador Danjon (da Academia Franceza),
percorria maravilhada os Apparelhos, os Instrumentos, toda a sumptuosa
Mechanica do meu super-civilisado Principe. Nunca ella me parecera mais
magestosa do que n'aquellas sêdas côr de açafrão, com rendas cruzadas no
peito á Maria-Antonietta, o cabello crespo e ruivo levantado em rolo
sobre a testa dominadora, e o curvo nariz patricio, abrigando o sorriso
sempre luzidio, sempre corrente, como um arco abriga o correr e o luzir
d'um regato. Direita como n'um solio, a longa luneta de tartaruga
acercada dos olhos miudos e turvamente azulados, ella escutava deante do
Graphophono, depois deante do Microphono, como melodias superiores, os
commentarios que o meu Jacintho ia atabalhoando com uma amabilidade
penosa. E ante cada roda, cada mola, eram pasmos, louvores finamente
torneados, em que attribuia a Jacintho, com astuta candura, todas
aquellas invenções do Saber! Os utensilios misteriosos que atulhavam a
mesa d'ebano foram para ella uma iniciação que a enlevou. Oh, o
«numerador de paginas»! oh, o «collador d'estampilhas»! A caricia
demorada dos seus dedos seccos aquecia os metaes. E supplicava os
endereços dos fabricantes para se prover de todas aquellas utilidades
adoraveis! Como a vida, assim apetrechada, se tornava escorregadia e
facil! Mas era necessario o talento, o gosto de Jacintho, para escolher,
para «crear!» E não só ao meu amigo (que o recebia com resignação) ella
offertava o fino mel. Affagando com o cabo da luneta o Telegrapho, achou
a possibilidade de recordar a eloquencia do Historiador. Mesmo para mim
(de quem ignorava o nome) arranjou junto do Phonographo, e ácerca de
«vozes d'amigos que é doce colleccionar», uma lisonjasinha redondinha e
lustrosa, que eu chupei como um rebuçado celeste. Boa casaleira que vae
atirando o grão aos frangos famintos, a cada passo, maternalmente, ella
nutria uma vaidade. Sofrego d'outro rebuçado, acompanhei a sua cauda
sussurrante e côr d'açafrão. Ella parára deante da Machina-de-contar, de
que Jacintho já lhe fornecera pacientemente uma explicação sapiente. E
de novo roçou os buracos d'onde espreitam os numeros negros, e com o seu
enlevado sorriso murmurou:--«Prodigiosa, esta prensa electrica!...»
Jacintho accudiu:
--Não! Não! Esta é...
Mas ella sorria, seguia... Madame de Treves não comprehendera nenhum
apparelho do meu Principe! Madame de Treves não attendera a nenhuma
dissertação do meu Principe! N'aquelle gabinete de sumptuosa Mechanica
ella sómente se occupára em exercer, com proveito e com perfeição, a
Arte de Agradar. Toda ella era uma sublime falsidade. Não escondi a
Danjon a admiração que me penetrava.
O facundo Academico revirou os olhos bogalhudos:
--Oh! e um gôsto, uma intelligencia, uma seducção!... E depois como se
janta bem em casa d'ella! Que café!... Mulher superior, meu caro senhor,
verdadeiramente superior!
Deslisei para a bibliotheca. Logo á entrada da erudita nave, junto da
estante dos Padres da Egreja onde alguns cavalheiros conversavam, parei
a saudar o director do _Boulevard_ e o Psychologo-feminista, o auctor do
_Coração Triple_, com quem na véspera me familiarisára ao almoço, no
202. O seu acolhimento foi paternal: e, como se necessitasse a minha
presença, reteve na sua mão illustre, rutilante de anneis, com força e
com gula, a minha grossa palma serrana. Todos aquelles senhores, com
effeito, celebravam o seu Romance, a _Couraça_, lançado n'essa semana
entre gritinhos de gôzo e um quente rumor de saias alvoroçadas. Um
sobretudo, com uma vasta cabeça arranjada á Van Dick e que parecia
postiça, proclamava, alçado na ponta das botas, que nunca penetrára tão
fundamente, na velha alma humana, a ponta da Psychologia Experimental!
Todos concordavam, se apertavam contra o Psychologo, o tratavam por
«mestre». Eu mesmo, que nem sequer entrevira a capa amarella da
_Couraça_, mas para quem elle voltava os olhos pedinchões e famintos de
mais mel, murmurei com um leve assobio:--«uma delicia!»
E o Psychologo, reluzindo, com o labio humido, entalado n'um alto
collarinho onde se enroscava uma gravata á 1830, confessava modestamente
que dissecára todas aquellas almas da _Couraça_ com «algum cuidado»,
sobre documentos, sobre pedaços de vida ainda quentes, ainda a
sangrar... E foi então que Marizac, o duque de Marizac, notou, com um
sorriso mais afiado que um lampejo de navalha, e sem tirar as mãos dos
bolsos:
--No emtanto, meu caro, n'esse livro tão profundamente estudado ha um
erro bem estranho, bem curioso!...
O Psychologo, vivamente, atirára a cabeça para traz:
--Um erro?
Oh, sim, um erro! E bem inesperado n'um mestre tão experiente!... Era
attribuir á esplendida amorosa da _Couraça_, uma duqueza, e do gosto
mais puro,--_um collete de setim preto_! Esse collete, assim preto, de
setim, apparecia na bella pagina de analyse e paixão em que ella se
despia no quarto de Ruy d'Alize. E Marizac, sempre com as mãos nos
bolsos, mais grave, appellava para aquelles senhores. Pois era
verosimil, n'uma mulher como a duqueza, esthetica, pre-raphaelitica, que
se vestia no Doucet, no Paquin, nos costureiros intellectuaes, um
collete de setim preto?
O Psychologo emmudecera, colhido, trespassado! Marizac era uma tão
suprema auctoridade sobre a roupa intima das duquezas, que á tarde, em
quartos de rapazes, por impulsos idealistas e anceios d'alma
dolorida--se põem em collete e saia branca!... De resto o director do
_Boulevard_ condemnára logo sem piedade, com uma experiencia firme,
aquelle collete, só possivel n'alguma mercieira atrazada que ainda
procurasse effeitos de carne nedia sobre setim negro. E eu, para que me
não julgassem alheio ás coisas dos adulterios ducaes e do luxo, acudi,
mettendo os dedos pelo cabello:
--Realmente, preto, só se estivesse de lucto pesado, pelo pae!
O pobre mestre da _Couraça_ succumbira. Era a sua gloria de Doutor em
Elegancias-Femininas desmantelada--e Paris suppondo que elle nunca vira
uma duqueza desatacar o collete na sua alcova de Psychologo! Então,
passando o lenço sobre os labios que a angustia ressequira, confessou o
erro, e contrictamente o attribuiu a uma improvisação tumultuosa:
--Foi um tom falso, um tom perfeitamente falso que me escapou!... Com
effeito! é absurdo, um collete preto!... Mesmo por harmonia com o estado
da alma da duqueza devia ser lilaz, talvez côr de reseda muito
desmaiada, com um frouxo de rendas antigas de Malines... É prodigioso
como me escapou! Pois tenho o meu caderno de entrevistas bem annotadas,
bem documentadas!...
Na sua amargura, terminou por supplicar a Marizac que espalhasse por
toda a parte, no Club, nas salas, a sua confissão. Fôra um engano de
artista, que trabalha na febre, vasculhando as almas, perdido nas
profundidades negras das almas! Não reparára no collete, confundira os
tons... E gritou, com os braços estendidos para o director do
_Boulevard_:
--Estou prompto a fazer uma rectificação, n'uma _interview_, meu caro
mestre! Mande um dos seus redactores... Ámanhã, ás dez horas! Fazemos
uma _interview_, fixamos a côr. Evidentemente é lilaz... Mande um dos
seus homens, meu caro mestre! É tambem uma occasião para eu confessar,
bem alto, os serviços que o _Boulevard_ tem feito ás sciencias
psychologicas e feministas!
Assim elle supplicava, encostado á estante, ás lombadas dos Santos
Padres. E eu abalei, vendo ao fundo da Bibliotheca Jacintho que se
debatia e se recusava entre dous homens.
Eram os dois homens de Madame de Treves--o marido, conde de Treves,
descendente dos reis de Candia, e o amante, o terrivel banqueiro judeu,
David Ephraim. E tão enfronhadamente assaltavam o meu Principe que nem
me reconheceram, ambos n'um aperto de mão molle e vago me trataram por
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