A Cidade e as Serras - 14

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arremessava aquelles nomes magnificos de principes e princezas,
misturados a cousas picarescas... Nenhum dos meus convidados
comprehendia o maquinismo do elevador, um prato encalhado n'um poço
negro... Perante o gancho da princeza as Albergarias baixaram os olhos.
E a minha deliciosa historia morreu n'uma reticencia, ainda mais
regelada pela exclamação innocente da tia Vicencia:
--Oh! filho, que cousas!
Mas, como Jacintho se enfronhára de repente n'uma larga conversa com a
Luizinha Rojão, que ria, toda luminosa e palradora,--todos, como
libertados do peso cerimonioso da sua presença augusta, se lançaram nas
conversinhas discretas, a que o champagne, agora, depois do assado, dava
mais viveza. Eram os soturnos murmurios, em torno da mesa, que
definitivamente se perpetuavam. Foi então que desisti de animar o
jantar. Mergulhei com a bella mulher do Doutor Alypio na grande questão
social d'esse tempo em Guiães, o casamento da D. Amelia Noronha com o
feitor! E eu defendia a D. Amelia, os direitos do amor, quando se
alargou um silencio,--e era Jacintho, que se debruçava, de copo na mão.
--Velho amigo Zé Fernandes, á tua! Muitos e bons, e sempre em companhia
de tua tia e minha senhora, a quem peço para saudar.
Todos os copos, onde a espuma morria sobre um fundo de champagne, se
ergueram n'um largo rumor de amisade, e boa visinhança. Eu acenei ao
Manoel, vivamente, para encher os copos; e logo, tambem de pé, atirando
para traz a sobrecasaca:
--Meus senhores, peço uma grande saude para o meu velho amigo Jacintho,
que pela primeira vez honra esta casa fraternal... Que digo eu? que pela
primeira vez honra com a sua presença a sua querida patria! E que por cá
fique, pelas serras, muitos annos, todos bons. Á tua, meu velho!
Outro rumor correu pela mesa, mas ceremonioso e sereno. A nossa
oratoria, positivamente, não incendiára as imaginações! A tia Vicencia
fez tilintar o seu copo, quasi vasio, com o de Jacintho, que tocou no
copo da sua visinha, a Luizinha Rojão, toda resplandecente, e mais
vermelha que uma peonia. Depois foi um encadeamento de saudes, com os
copos quasi vasios, entre todos os convidados, sem esquecer o tio
Adrião, e o Abbade, ambos ausentes, ambos com furunculos. E a tia
Vicencia espalhava aquelle olhar, que prepára o erguer, o arrastar de
cadeiras,--quando D. Theotonio, erguendo o seu copo de vinho do Porto,
com a outra mão apoiada á mesa, meio erguido, chamou Jacintho, e n'uma
voz respeitosa, quasi cava:
--Esta é toda particular, e entre nós... Brindo o ausente!
Esvasiou o copo, como em religião, pontificando. Jacintho bebeu
assombrado, sem comprehender. As cadeiras arrastavam,--eu dei o braço á
tia Albergaria.
E só comprehendi, na sala, quando o Dr. Alypio, com a sua chavena de
café e o charuto fumegante, me disse, n'um d'aquelles seus olhares
finos, que lhe valiam a alcunha de _Dr. Agudo_:--«Espero que ao menos,
cá por Guiães, não se erga de novo a forca!...» E o mesmo fino olhar me
indicava o D. Theotonio, que arrastára Jacintho para entre as cortinas
d'uma janella, e discorria, com um ar de fé e de mysterio. Era o
miguelismo, por Deus! O bom D. Theotonio considerava Jacintho como um
hereditario, ferrenho, miguelista,--e na sua inesperada vinda ao seu
solar de Tormes, entrevia uma missão politica, o começo d'uma propaganda
energica, e o primeiro passo para uma tentativa de Restauração. E na
reserva d'aquelles cavalheiros, ante o meu Principe, eu senti então a
suspeita liberal, o receio d'uma influencia rica, nova, nas Eleições
proximas, e a nascente irritação contra as velhas ideias, representadas
n'aquelle moço, tão rico, de civilisação tão superior. Quasi entornei o
café, na alegre surpreza d'aquella sandice. E retive o Mello Rebello,
que repunha a chavena vasia na bandeja, fitei, com um pouco de riso, o
_Dr. Agudo_.
--Então, francamente, os amigos imaginam que o Jacintho veio para Tormes
trabalhar no miguelismo?
Muito serio, Mello Rebello chegou o seu grosso bigode á minha orelha:
--Até corre, como certo, que o Principe D. Miguel está com elle em
Tormes!
E como eu os considerava esgazeado, o Dr. Alypio--tão agudo!--confirmou:
--É o que corre... Disfarçado em creado!
Em creado? Oh! santo Deus! Era o Baptista! Justamente, Ricardo Velloso
veio, puxando do seu cigarrinho, para o accender no meu charuto. E o bom
Rebello logo invocou o seu testemunho.--Pois não corria, que o filho de
D. Miguel estava em Tormes, escondido?...
--Disfarçado em lacaio, confirmou logo o digno Rebello.
Accendeu o cigarro, soprou o fumo, e erguendo muito as sobrancelhas
meditativas:
--Se assim é, lá me parece desplante... Que eu não desgostava de o vêr.
Dizem que é bonito moço, bem apessoado. Mas emfim, meu tio João Vaz
Rebello foi partido ás postas, a machado, nas prisões d'Almeida... E se
recomeçam essas questões, mau, mau! Ora o seu amigo...
Emmudeceu. Jacintho, que se libertára do velho D. Theotonio, e ainda
conservava um resto de riso, d'assombro divertido, vinha para mim,
desabafar:
--Extraordinario! Vejo que, aqui, na serra, ainda se conservam, sem uma
ruga, as velhas e boas ideias...
Immediatamente, sem se conter, Mello Rebello acudiu:
--É conforme o que V. Ex.^a chama _boas ideas_.
E eu agora, furioso com aquella disparatada invenção, que cercava
d'hostilidade o meu pobre Jacintho, estragava aquella amavel noite
d'annos, intervim, vivamente:
--Tu jogas o voltarete, Jacintho? Não jogas... Então vamos arranjar duas
mesas... O D. Theotonio ha de querer cartas.
E arrastei Jacintho para as senhoras, que de novo se aninhavam á sombra
da tia Vicencia, estabelecida no seu canto do sofá. Todas se callavam,
parecia encolherem-se ante a apparição do meu Principe, como pombas
avistando o abutre. E deixei o temido homem affirmando á mulher do Dr.
Alypio (um pouco desgarrada do bando das aves timidas) que lhe dera
grande prazer aquella occasião de conhecer as suas visinhas de Tormes...
Ella abrira nervosamente o leque, sorria, e nunca de certo Jacintho
admirára na Cidade uma bocca mais vermelha, dentinhos mais rutilantes.
Mas depois d'organisar a mesa do voltarete, tive de abancar, eu, para
substituir o Manoel Albergaria, que era dispeptico, se declarára
«affrontado», e desejava respirar um momento na varanda. Todos aquelles
cavalheiros, de resto, se queixavam de calor. Mandei abrir as janellas
que davam sobre as mimosas do pateo. O Velloso, ao baralhar, parava,
bufando, como opprimido:
--Está abafado... Ainda temos trovoada!
E o Dr. Alypio, inquieto, por que tinha uma hora d'estrada até casa, e
uma das egoas da caleche era escabriada, correu á janella, espreitar o
ceu, que ennegrecera, morno e pesado.
--Com effeito, vae cahir agoa.
As hastes das mimosas ramalhavam, arripiadas: e o ar que agitava as
cortinas era intermittente, estonteado. De certo na sala, entre as
senhoras, surgira a mesma inquietação, porque a tia Albergaria
appareceu, avisando o mano Jorge.
Era prudente pensar em partir, a noite ameaçava... E o Dr. Alypio,
puxando o relogio, propoz que, levantada aquella remissa, se preparasse
a marcha. Justamente o Albergaria recolhia da varanda desaffrontado,
alliviado com um calice de genebra: e rotomou as suas cartas,
annunciando tambem que vinha ahi uma trovoada valente.
Voltando á sala, encontrei Jacintho muito alegre entre as senhoras, que
se familiarisaram, escutando cheias de riso e gosto, a historia da sua
chegada a Tormes, sem malas, sem creados, tão desprovido que dormira com
a camisa da caseira! Mas a minha pobre noite d'annos findava,
desorganisada. A tia Albergaria rondava de janella em janella, assustada
com a volta á Roqueirinha, espreitando a treva abafada. Calçando
lentamente as luvas, a bella mulher do Dr. Alypio perguntava se ainda
havia a remissa. E a tia Vicencia apressára o chá, que o Manoel seguido
pela Gertrudes, com a bandeja de bolos, já começava a servir ás
senhoras. Jacintho, de pé, offerecendo chavenas, gracejava:
--Então tanta pressa, tanto medo, por causa d'uma trovoadinha?
Ellas replicavam, familiarizadas, n'uma crescente sympathia pelo meu
Principe:
--Ora o senhor falla bem, porque fica debaixo de telhas...
--Sempre o queriamos vêr... se fosse agora para Tormes, com esta noite
cerrada!
O voltarete findára nas duas mesas: e aquelles cavalheiros, das
janellas, gritavam ordens para o pateo negro, onde as carroagens
esperavam atreladas:
--Desce a cabeça da victoria, ó Diogo!
--Accende o lampeão, Pedro! Sempre ajuda a luz das lanternas.
A creada Quiteria chegava á porta com os braços carregados de chales, de
mantilhas de renda. Como uma das Albergarias ia no assento de deante na
victoria, eu corri a buscar o meu casaco de borracha, para ella se
abrigar se a chuva viesse. E só o D. Theotonio, que tinha até casa
apenas meia legoa de estrada boa, se não apressava, filado outra vez no
meu Principe, que levava para os cantos mais solitarios, em conversas
profundas, que o seu dedo solemne, espetado, sublinhava gravemente. Mas
a tia Albergaria gritou que já chovia;--e então foi uma pressa das
senhoras, que beijocavam vivamente a tia Vicencia, em quanto os homens,
na ante-camara, enfiavam açodadamente os paletós.
Jacintho e eu descemos ao pateo para acompanhar aquella debandada,--e
uma a uma, a traquitana do Dr. Alypio, a victoria das Albergarias, a
velha e immensa caleche dos Vellosos, rolaram sob a noite, entre os
nossos desejos de boa jornada. Por fim D. Theotonio calçou as luvas
pretas e entrou para a sua caleche, dizendo a Jacintho:
--Pois, primo e amigo, Deus permitta que, do nosso encontro, e do mais
que se passar, algum bem resulte a esta terra!
Subindo a escada, o meu Principe desabafou:
--Este Theotonio é extraordinario! Sabes o que descobri por fim?... Que
me toma por um miguelista, e imagina que eu vim para Tormes preparar a
restauração de D. Miguel?!
--E tu?
--Eu fiquei tão espantado, que nem o desilludi!
--Pois sabe mais, meu pobre amigo. Todos pensam o mesmo, estão
desconfiados, e receiam vêr de novo erguidas as fôrcas em Guiães! E
corre que tu tens o Principe D. Miguel escondido em Tormes, disfarçado
em creado. E sabes quem elle é? o Baptista!
--Isso é sublime! murmurou Jacintho, com uns grandes olhos abertos.
Na sala, a tia Vicencia nos esperava desconsolada, entre todas as luzes,
que ardiam ainda no silencio e paz do serão debandado:
--Ora uma cousa assim! Nem quererem ficar para tomar um copinho de
gelea, um calice de vinho do Porto!
--Esteve tudo muito desanimado, tia Vicencia! exclamei desafogando o meu
tedio. Todo esse mulherio emmudeceu; os amigos com um ar desconfiado...
Jacintho protestou, muito divertido, muito sincero:
Não! pelo contrario. Gostei immenso. Excellente gente! E tão simples...
Todas estas raparigas me pareceram optimas. E tão frescas, tão alegres!
Vou ter aqui bons amigos, quando verificarem que não sou miguelista.
Então contamos á tia Vicencia a prodigiosa historia de D. Miguel
escondido em Tormes... Ella ria! Que cousa! E mau seria...
--Mas o Snr. Jacintho, não é?
--Eu, minha senhora, sou socialista...
Acudi, explicando á tia Vicencia, que socialista era ser pelos pobres. A
doce senhora considerava esse partido o melhor, o verdadeiro:
--O meu Affonso, que Deus haja, era liberal... Meu pae, tambem e até
amigo do Duque da Terceira...
Mas um rude trovão rolou, atroou a noite negra:--e uma batega d'agoa
cantou nos vidros, e nas pedras da varanda.
--Santa Barbara! gritou a tia Vicencia! Ai aquella pobre gente!... Até
estou com cuidado... As Rojões, que vão na victoria!
E correu para o quarto, na sua pressa de accender as duas velas
costumadas no oratorio, ainda antes de ir guardar as pratas, e resar o
terço, com a Gertrudes.


XIV

Ao outro dia, depois d'almoço, eu e Jacintho montamos a cavallo para um
grande passeio até á Flôr da Malva, a saber de meu tio Adrião, e do seu
furunculo. E sentia uma curiosidade interessada, e até inquieta, de
testemunhar a impressão que daria ao meu Principe aquella nossa prima
Joanninha, que era o orgulho da nossa casa. Já n'essa manhã, andando
todos no jardim a escolher uma bella rosa chá para a botoeira do meu
Principe, a tia Vicencia celebrára com tanto fervor a belleza, a graça,
a caridade, e a doçura da sua sobrinha toda-amada, que eu protestei:
--Oh! tia Vicencia, olhe que esses elogios todos competem apenas á
Virgem Maria! A tia Vicencia está a cahir em peccado de idolatria! O
Jacintho depois vae encontrar uma creatura apenas humana, e tem um
desapontamento tremendo!
E agora, trotando pela facil estrada de Sandofim, lembrava-me aquella
manhã, no 202, em que Jacintho encontrára o retrato d'ella no meu
quarto, e lhe chamára uma _lavradeirôna_. Com effeito, era grande e
forte a Joanninha. Mas a photographia datava do seu tempo de viço
rustico, quando ella era apenas uma bella forte e sã planta da serra.
Agora entrava nos vinte e cinco, e já pensava, e sentia,--e a alma que
n'ella se formára, afinára, amaciára, e espiritualisava o seu esplendor
rubicundo.
A manhã, com o ceu todo purificado pela trovoada da vespera, e as terras
reverdecidas e lavadas pelos chuviscos ligeiros, offerecia uma doçura
luminosa, fina, fresca, que tornava doce, como diz o velho Euripedes ou
o velho Sophocles, mover o corpo, e deixar a alma preguiçar, sem pressa
nem cuidados. A estrada não tinha sombra, mas o sol batia muito de leve,
e roçava-nos com uma caricia quasi alada. O valle parecia a Jacintho,
que nunca ali passára, uma pintura da Escola Franceza do seculo XVIII,
tão graciosamente n'elle ondulavam as terras verdes, e com tanta paz e
frescura corria o risonho Serpão, e tão affaveis e promettedores de
fartura e contentamento alvejavam os casaes nas verduras tenras! Os
nossos cavallos caminhavam n'um passo pensativo, gosando tambem a paz da
manhã adoravel. E não sei, nunca soube, que plantasinhas silvestres e
escondidas espalhavam um delicado aroma, que eu tantas vezes sentira,
n'aquelle caminho, ao começar o outomno.
--Que delicioso dia! murmurou Jacintho. Este caminho para a Flôr da
Malva é o caminho do ceu... Oh Zé Fernandes, de que é este cheirinho tão
doce, tão bom?
Eu sorri, com certo pensamento:
--Não sei... É talvez já o cheiro do ceu!
Depois, parando o cavallo, apontei com o chicote para o valle:
--Olha, acolá, onde está aquella fila d'olmos, e ha o riacho, já são
terras do tio Adrião. Tem alli um pomar, que dá os pêcegos mais
deliciosos de Portugal... Hei de pedir á prima Joanninha que te mande um
cesto d'elles. E o dôce que ella faz com esses pêcegos, menino, é alguma
cousa de celeste. Tambem lhe hei de pedir que te mande o dôce.
Elle ria:
--Será explorar de mais a prima Joanninha. E eu (por que?) recordei e
atirei ao meu Principe estes dous versos d'uma ballada cavalheiresca,
composta em Coimbra pelo meu pobre amigo Procopio:
--Manda-lhe um servo querido,
Bem hajas dona formosa!
E que lhe entregue um annel
E com um annel uma rosa.
Jacintho rio alegremente:
--Zé Fernandes, seria excessivo, só por causa de meia duzia de pêcegos,
e d'um boião de dôce.
Assim riamos, quando appareceu, á volta da estrada, o longo muro da
quinta dos Vellosos, e depois a capellinha de S. José de Sandofim. E
immediatamente piquei para o largo, para a taverna do Tôrto, por causa
d'aquelle vinhinho branco, que sempre, quando por ali a levo, a minha
alma me pede. O meu Principe reprovou, indignado:
--Oh! Zé Fernandes, pois tu, a esta hora, depois d'almoço, vaes beber
vinho branco?
--É um costumesinho antigo... Aqui á taverninha do Tôrto... um
decilitrosinho... A almasinha assim m'o pede.
E paramos; eu gritei pelo Manoel, que appareceu, rebolando a sua grossa
pansa, sobre as pernas tortas, com a infusa verde, e um copo.
--Dous copos, Tôrto amigo. Que aqui este cavalheiro tambem aprecia.
Depois d'um pallido protesto, o meu Principe tambem quiz, mirou o
limpido e dourado vinho ao sol, provou, e esvasiou o copo, com delicia,
e um estalinho de alto apreço.
--Delicioso vinho!... Hei de querer d'este vinho em Tormes... É
perfeito.
--Hein? Fresquinho, leve, aromatico, alegrador, todo alma!... Encha lá
outra vez os copos, amigo Tôrto. Este cavalheiro aqui é o Snr. D.
Jacintho, o fidalgo de Tormes.
Então, de traz da umbreira da taverna, uma grande voz bradou, cavamente,
solemnemente:
--Bemdito seja o pae dos Pobres!
E um extranho velho, de longos cabellos brancos, barbas brancas, que lhe
comiam a face côr de tijolo, assomou no vão da porta, apoiado a um
bordão, com uma caixa de lata a tiracolo, e cravou em Jacintho dous
olhinhos d'um brilho negro, que faiscavam. Era o tio João Torrado, o
propheta da Serra... Logo lhe estendi a mão, que elle apertou, sem
despegar de Jacintho os olhos, que se dilatavam mais negros. Mandei vir
outro copo, apresentei Jacintho, que córára, embaraçado.
--Pois aqui o tem, o senhor de Tormes, que fez por ahi todo esse bem á
pobreza.
O velho atirou para elle bruscamente o braço, que sahia cabelludo e
quasi negro, d'uma manga muito curta.
--A mão!
E quando Jacintho lh'a deu, depois de arrancar vivamente a luva, João
Torrado longamente lh'a reteve com um sacudir lento e pensativo,
murmurando:
--Mão real, mão de dar, mão que vem de cima, mão já rara!
Depois tomou o copo, que lhe offerecia o Tôrto, bebeu com immensa
lentidão, limpou as barbas, deu um geito á correia que lhe prendia a
caixa de lata, e batendo com a ponta do cajado no chão:
--Pois louvado seja nosso Senhor Jesus Christo, que por aqui me trouxe,
que não o meu dia, e vi um homem!
Eu então debrucei-me para elle, mais em confidencia:
--Mas, ó tio João, ouça cá! Sempre é certo você dizer por ahi, pelos
sitios, que El-Rei D. Sebastião voltára?
O pittoresco velho apoiou as duas mãos sobre o cajado, o queixo
d'espalhada barba sobre as mãos, e murmurava, sem nos olhar, como
seguindo a percussão dos seus pensamentos:
--Talvez voltasse, talvez não voltasse... Não se sabe quem vae, nem quem
vem. A gente vê os corpos, mas não vê as almas que estão dentro. Ha
corpos d'agora com almas d'outr'ora. Corpo é vestido, alma é pessoa...
Na feira da Roqueirinha quem sabe com quantos reis antigos se topa,
quando se anda aos encontrões entre os vaqueiros... Em ruim corpo se
esconde bom senhor!
E como elle findára n'um murmurio, eu, atirando um olhar a Jacintho, e
para gosarmos aquelles estranhos, pittorescos modos de vidente, insisti:
--Mas, ó tio João, você realmente, em sua consciencia, pensa que El-Rei
D. Sebastião não morreu na batalha?
O velho ergueu para mim a face, que se enrugára n'uma desconfiança:
--Essas cousas são muito antigas. E não calham bem aqui á porta do
Tôrto. O vinho era bom, e V. S.^a tem pressa, meu menino! A flôr da Flôr
da Malva lá tem o paesinho doente... Mas o mal já vae pela serra abaixo
com a inchação ás costas. Dá gosto vêr quem dá gosto aos tristes. Por
cima de Tormes ha uma estrella clara. E é trotar, trotar, que o dia está
lindo!
Com a magra mão lançou um gesto para que seguissemos. E já passavamos o
cruzeiro quando o seu brado ardente, de novo revoou, com solemnidade
cava:
--Bemdito seja o Pae dos Pobres.
Direito, no meio da estrada, erguia o cajado como dirigindo as
acclamações d'um povo. E Jacintho pasmava de que ainda houvesse no reino
um Sebastianista.
--Todos o somos ainda em Portugal, Jacintho! Na serra ou na cidade cada
um espera o seu D. Sebastião. Até a loteria da Misericordia é uma forma
do Sebastianismo. Eu todas as manhãs, mesmo sem ser de nevoeiro,
espreito, a vêr se chega o meu. Ou antes a minha, por que eu espero uma
D. Sebastiana... E tu, felizardo?
--Eu? Uma D. Sebastiana? Estou muito velho, Zé Fernandes... Sou o ultimo
Jacintho; Jacintho ponto final... Que casa é aquella com os dous
torreões?
--A Flôr da Malva.
Jacintho tirou o relogio:
--São tres horas. Gastamos hora e meia... Mas foi um bello passeio, e
instructivo. É lindo este sitio.
Sobre um outeirinho, afastada da estrada por arvoredo, que um muro
cerrava, e dominando, a Flôr da Malva voltava para Oriente e para o Sol
a sua longa fachada com os dous torreões quadrados, onde as janellas, de
varanda, eram emolduradas em azulejos. O grande portão de ferro, ladeado
por dous bancos de pedra, ficava ao fundo do terreirinho, onde um
immenso castanheiro derramava verdura e sombra. Sentado sobre as fortes
raizes descarnadas da grande arvore, um pequeno esperava segurando um
burro pela arreata.
--Está por ahi o Manoel da Porta?
--Ainda agora subio pela alameda.
--Bem: empurra lá o portão.
E subimos, por uma curta avenida de velhas arvores, até outro terreiro,
com um alpendre, uma casa de moços, toda coberta d'heras, e uma casota
de cão, d'onde saltou, com um rumor de corrente arrastada, um molosso, o
Tritão, que eu logo soceguei fazendo-lhe reconhecer o seu velho amigo Zé
Fernandes. E o Manoel da Porta correu da fonte, onde enchia um grande
balde, para nos segurar os cavallos.
--Como está o tio Adrião?
Surdo, o excellente Manoel sorrio, deleitado:
--E então vossa excellencia, bem? A Snr.^a D. Joanninha ainda agora
andava no laranjal com o pequeno da Josepha.
Seguimos por ruasinhas bem areadas, orladas d'alfazema e buxo alto, em
quanto eu contava ao meu Principe que aquelle pequenito da Josepha era
um afilhadinho da prima Joanna, e agora o seu encanto e o seu cuidado
todo.
--Esta minha santa prima, apesar de solteira, tem ahi pela freguezia uma
verdadeira filharada. E não é só dar-lhes roupas e presentes, e ajudar
as mães. Mas até os lava, e os penteia, e lhes trata as tosses. Nunca a
encontro sem alguma creancita ao collo... Agora anda na paixão d'este
Josésinho.
Mas quando chegamos ao laranjal, á beira da larga rua da quinta que
levava ao tanque, debalde procurei, e me embrenhei, e até gritei:--Eh,
prima Joanninha!...
--Talvez esteja lá para baixo, para o tanque...
Descemos a rua, entre arvores, que a cobriam com as densas ramas
encruzadas. Uma fresca, limpida agoa de rega corria e luzia n'um caneiro
de pedra. Entre os troncos, as roseiras bravas ainda tinham uma frescura
de verão. E o pequeno campo, que se avistava para além, rebrilhava com
doçura, todo amarello e branco, dos malmequeres e botões d'ouro.
O tanque, redondo, fôra esvasiado para se lavar, e agora de novo o
repuxo o ia enchendo d'uma agoa muito clara, ainda baixa, onde os peixes
vermelhos se agitavam na alegria de recuperarem o seu pequeno oceano.
Sobre um dos bancos de pedra que circumdavam o tanque pousava um cesto
cheio de dhalias cortadas. E um moço, que sobre uma escada podava as
camelias, vira a Snr.^a D. Joanna seguir para o lado da parreira.
Marchamos para a parreira, ainda toda carregada de uva preta. Duas
mulheres, longe, ensaboavam n'um lavadoiro, na sombra de grandes
nogueiras. Gritei:--Eh lá? Vocês viram por ahi a Snr.^a D. Joanna? Uma
das moças esganiçou a voz, que se perdeu no vasto ar luminoso e doce.
--Bem: vamos a casa! Não podemos farejar assim, toda a tarde.
--É uma bella quinta, murmurava o meu Principe encantado.
--Magnifica! E bem tratada... O tio Adrião tem um feitor excellente...
Não é o teu Melchior. Observa, aprende, lavrador! Olha aquelle
cebolinho!
Passamos pela horta, uma horta ajardinada, como a sonhára o meu
Principe, com os seus talhões debruados d'alfazema, e madresilva
enroscada nos pilares de pedra, que faziam ruasinhas frescas toldadas de
parra densa. E démos volta á capella, onde crescia aos dous lados da
porta uma roseira chá, com uma rosa unica, muito aberta, e uma moita de
baunilha, onde Jacintho apanhou um raminho para cheirar. Depois entramos
no terraço em frente da casa, com a sua balaustrada de pedra, toda
enrodilhada de jasmineiros amarellos. A porta envidraçada estava aberta:
e subimos pela escadaria de pedra, no immenso silencio em que toda a
Flôr da Malva repousava, até á ante-camara, d'altos tectos apainelados,
com longos bancos de pau, onde desmaiavam na sua velha pintura as
complicadas armas dos Cerqueiras. Empurrei a porta d'uma outra sala, que
tinha as janellas da varanda abertas, cada uma com a gaiola d'um
canario.
--É curioso!--exclamou Jacintho. Parece o meu Presepio... E as minhas
cadeiras.
E com effeito. Sobre uma commoda antiga, com bronzes antigos, pousava um
presepio semelhante ao da livraria de Jacintho. E as cadeiras de couro
lavrado tinham, como as que elle descobrira no sotão, umas armas sob um
chapéo de Cardeal.
--Oh senhores! exclamei. Não haverá um creado?
Bati as mãos, fortemente. E o mesmo doce silencio permaneceu, muito
largo, todo luminoso e arejado pelo macio ar da quinta, apenas cortado
pelo saltitar dos canarios nos poleiros das gaiolas.
--É o Palacio da Bella adormecida no bosque! murmurou Jacintho, quasi
indignado. Dá um berro!
--Não, caramba! Vou lá dentro!
Mas, á porta, que de repente se abrio, appareceu minha prima Joanninha,
córada do passeio e do vivo ar, com um vestido claro um pouco aberto no
pescoço, que fundia mais docemente, n'uma larga claridade, o explendor
branco da sua pelle, e o louro ondeado dos seus bellos
cabellos,--lindamente risonha, na surpreza que alargava os seus largos,
luminosos olhos negros, e trazendo ao collo uma creancinha, gorda e côr
de rosa, apenas coberta com uma camisinha, de grandes laços azues.
E foi assim que Jacintho, n'essa tarde de Septembro, na Flôr da Malva,
vio aquella com quem casou em Maio, na capellinha d'azulejos, quando o
grande pé de roseira se cobrira todo de rosas.


XV

E agora, entre roseiras que rebentam, e vinhas que se vindimam, já cinco
annos passaram sobre Tormes e a Serra. O meu Principe já não é o ultimo
Jacintho, Jacintho ponto final--por que n'aquelle solar que decahira,
correm agora, com soberba vida, uma gorda e vermelha Theresinha, minha
afilhada, e um Jacinthinho, senhor muito da minha amisade. E, pae de
familia, principiára a fazer-se monotono, pela perfeição da belleza
moral, aquelle homem tão pittoresco pela inquietação philosophica, e
pelos variados tormentos da phantasia insaciada. Quando elle agora, bom
sabedor das cousas da lavoura, percorria comigo a quinta, em solidas
palestras agricolas, prudentes e sem chimeras--eu quasi lamentava esse
outro Jacintho que colhia uma theoria em cada ramo d'arvore, e riscando
o ar com a bengala, planeava queijeiras de cristal e porcellana, para
fabricar queijinhos que custariam duzentos mil réis cada um!
Tambem a paternidade lhe despertára a responsabilidade. Jacintho possuia
agora um caderno de contas, ainda pequeno, rabiscado a lapis, com
falhas, e papeluchos soltos entremeados, mas onde as suas despezas, as
suas rendas se alinhavam, como duas hostes disciplinadas. Visitára já as
suas propriedades de Montemór, da Beira; e concertava, mobilava as
velhas casas d'essas propriedades para que os seus filhos, mais tarde,
crescidos, encontrassem «ninhos feitos». Mas onde eu reconheci que
definitivamente um perfeito e ditoso equilibrio se estabelecera na alma
do meu Principe, foi quando elle, já sabido d'aquelle primeiro e ardente
fanatismo da Simplicidade--entreabrio a porta de Tormes á Civilisação.
Dous mezes antes de nascer a Theresinha, uma tarde, entrou pela avenida
de platanos uma chiante e longa fila de carros, requisitados por toda a
freguesia, e acuculados de caixotes. Eram os famosos caixotes, por tanto
tempo encalhados em Alba de Tormes, e que chegavam, para despejar a
Cidade sobre a Serra. Eu pensei:--Mau! o meu pobre Jacintho teve uma
recahida! Mas os confortos mais complicados, que continha aquella
caixotaria temerosa, foram, com surpreza minha, desviados para os sotãos
immensos, para o pó da inutilidade: e o velho solar apenas se regalou
com alguns tapetes sobre os seus soalhos, cortinas pelas janellas
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