A Cidade e as Serras - 01

Total number of words is 4534
Total number of unique words is 1943
28.6 of words are in the 2000 most common words
44.0 of words are in the 5000 most common words
51.4 of words are in the 8000 most common words
Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.

EÇA DE QUEIROZ
A CIDADE E AS SERRAS

PORTO
LIVRARIA CHARDRON
De Lello & Irmão, editores
1901
Todos os direitos reservados


EÇA DE QUEIROZ
A CIDADE E AS SERRAS

PORTO
LIVRARIA CHARDRON
De Lello & Irmão, editores
1901
Todos os direitos reservados


Pertence no Brazil o direito de propriedade d'esta obra ao cidadão
Francisco Alves, livreiro editor no Rio de Janeiro, que, para a garantia
que lhe offerece a lei n.^o 496 de 1 d'Agosto de 1898, fez o competente
deposito na Bibliotheca nacional, segundo a determinação do art. 13.^o
da mesma Lei.

_Porto--Imprensa Moderna_


[Figura de Eça de Queirós]


A CIDADE E AS SERRAS


Obras do mesmo auctor:

*Revista de Portugal.* 4 grossos volumes 12$000
*As minas de Salomão.* 1 volume $600
*Os Maias.* 2 grossos volumes 2$000
*O crime do padre Amaro.* Terceira edição inteiramente refundida,
recomposta, e differente na fórma e na acção da edição primitiva. 1 grosso
volume 1$200
*O primo Bazilio.* Quarta edição. 1 grosso volume 1$000
*A Reliquia.* 1 grosso volume 1$000
*O Mandarim.* Quarta edição. 1 volume $500
*Correspondencia de Fradique Mendes.* 1 volume $600
*A illustre casa de Ramires.* 1 volume 1$000


A CIDADE E AS SERRAS


I

O meu amigo Jacintho nasceu n'um palacio, com cento e nove contos de
renda em terras de semeadura, de vinhedo, de cortiça e d'olival.
No Alemtejo, pela Extremadura, atravez das duas Beiras, densas sebes
ondulando por collina e valle, muros altos de boa pedra, ribeiras,
estradas, delimitavam os campos d'esta velha familia agricola que já
entulhava grão e plantava cepa em tempos d'el-rei D. Diniz. A sua quinta
e casa senhorial de Tormes, no Baixo Douro, cobriam uma serra. Entre o
Tua e o Tinhela, por cinco fartas legoas, todo o torrão lhe pagava fôro.
E cerrados pinheiraes seus negrejavam desde Arga até ao mar d'Ancora.
Mas o palacio onde Jacintho nascêra, e onde sempre habitára, era em
Paris, nos Campos Elyseos, n.^o 202.
Seu avô, aquelle gordissimo e riquissimo Jacintho a quem chamavam em
Lisboa o _D. Galião_, descendo uma tarde pela travessa da Trabuqueta,
rente d'um muro de quintal que uma parreira toldava, escorregou n'uma
casca de laranja e desabou no lagedo. Da portinha da horta sahia n'esse
momento um homem moreno, escanhoado, de grosso casaco de baetão verde e
botas altas de picador, que, galhofando e com uma força facil, levantou
o enorme Jacintho--até lhe apanhou a bengala de castão d'ouro que rolára
para o lixo. Depois, demorando n'elle os olhos pestanudos e pretos:
--Oh Jacintho Galião, que andas tu aqui, a estas horas, a rebolar pelas
pedras?
E Jacintho, aturdido e deslumbrado, reconheceu o snr. Infante D. Miguel!
Desde essa tarde amou aquelle bom Infante como nunca amára, apesar de
tão guloso, o seu ventre, e apesar de tão devoto o seu Deus! Na sala
nobre da sua casa (á Pampulha) pendurou sobre os damascos o retrato do
«seu Salvador», enfeitado de palmitos como um retabulo, e por baixo a
bengala que as magnanimas mãos reaes tinham erguido do lixo. Emquanto o
adoravel, desejado Infante penou no desterro de Vienna, o barrigudo
senhor corria, sacudido na sua sege amarella, do botequim do Zé-Maria em
Belem á botica do Placido nos Algibebes, a gemer as saudades do
_anginho_, a tramar o regresso do _anginho_. No dia, entre todos
bemdito, em que a _Perola_ appareceu á barra com o Messias, engrinaldou
a Pampulha, ergueu no Caneiro um monumento de papelão e lona onde D.
Miguel, tornado S. Miguel, branco, d'aureola e azas de Archanjo, furava
de cima do seu corcel d'Alter o Dragão do Liberalismo, que se estorcia
vomitando a Carta. Durante a guerra com o «outro, com o pedreiro livre»
mandava recoveiros a Santo Thyrso, a S. Gens, levar ao Rei fiambres,
caixas de dôce, garrafas do seu vinho de Tarrafal, e bolsas de retroz
atochadas de peças que elle ensaboava para lhes avivar o ouro. E quando
soube que o snr. D. Miguel, com dois velhos bahus amarrados sobre um
macho, tomára o caminho de Sines e do final desterro--Jacintho _Galião_
correu pela casa, fechou todas as janellas como n'um luto, berrando
furiosamente:
--Tambem cá não fico! tambem cá não fico!
Não, não queria ficar na terra perversa d'onde partia, esbulhado e
escorraçado, aquelle Rei de Portugal que levantava na rua os Jacinthos!
Embarcou para França com a mulher, a snr.^a D. Angelina Fafes (da tão
fallada casa dos Fafes da Avellan); com o filho, o 'Cinthinho, menino
amarellinho, mollesinho, coberto de caróços e leicenços; com a aia e com
o moleque. Nas costas da Cantabria o paquete encontrou tão rijos mares
que a snr.^a D. Angelina, esguedelhada, de joelhos na enxerga do
beliche, prometteu ao Senhor dos Passos d'Alcantara uma corôa
d'espinhos, de ouro, com as gottas de sangue em rubis do Pegu. Em
Bayonna, onde arribaram, 'Cinthinho teve ithericia. Na estrada
d'Orleans, n'uma noite agreste, o eixo da berlinda em que jornadeavam
partiu, e o nedio senhor, a delicada senhora da casa da Avellan, o
menino, marcharam tres horas na chuva e na lama do exilio até uma
aldeia, onde, depois de baterem como mendigos a portas mudas, dormiram
nos bancos d'uma taberna. No «Hotel dos Santos Padres», em Paris,
soffreram os terrores d'um fogo que rebentára na cavalhariça, sob o
quarto de _D. Galião_, e o digno fidalgo, rebolando pelas escadas em
camisa, até ao pateo, enterrou o pé nú numa lasca de vidro. Então ergueu
amargamente ao céo o punho cabelludo, e rugiu:
--Irra! É de mais!
Logo n'essa semana, sem escolher, Jacintho _Galião_ comprou a um
Principe polaco, que depois da tomada de Varsovia se mettera frade
cartuxo, aquelle palacete dos Campos Elyseos, n.^o 202. E sob o pesado
ouro dos seus estuques, entre as suas ramalhudas sedas se enconchou,
descançando de tantas agitações, n'uma vida de pachorra e de boa mesa,
com alguns companheiros d'emigração (o desembargador Nuno Velho, o conde
de Rabacena, outros menores), até que morreu de indigestão, d'uma
lampreia d'escabeche que lhe mandára o seu procurador em Monte-mór. Os
amigos pensavam que a snr.^a D. Angelina Fafes voltaria ao reino. Mas a
boa senhora temia a jornada, os mares, as caleças que racham. E não se
queria separar do seu Confessor, nem do seu Medico, que tão bem lhe
comprehendiam os escrupulos e a asthma.
--Eu, por mim, aqui fico no 202 (declarára ella), ainda que me faz falta
a boa agua d'Alcolena... O 'Cinthinho, esse, em crescendo, que decida.
O 'Cinthinho crescèra. Era um moço mais esguio e livido que um cirio, de
longos cabellos corredios, narigudo, silencioso, encafuado em roupas
pretas, muito largas e bambas; de noite, sem dormir, por causa da tosse
e de suffocações, errava em camisa com uma lamparina atravez do 202; e
os creados na copa sempre lhe chamavam a _Sombra_. N'essa sua mudez e
indecisão de sombra surdira, ao fim do luto do papá, o gosto muito vivo
de tornear madeiras ao torno: depois, mais tarde, com a melada flôr dos
seus vinte annos, brotou n'elle outro sentimento, de desejo e de pasmo,
pela filha do desembargador Velho, uma menina redondinha como uma rôla,
educada n'um convento de Paris, e tão habilidosa que esmaltava, dourava,
concertava relogios e fabricava chapéos de feltro. No outomno de 1851,
quando já se desfolhavam os castanheiros dos Campos Elyseos, o
'Cinthinho cuspilhou sangue. O medico, acarinhando o queixo e com uma
ruga seria na testa immensa, aconselhou que o menino abalasse para o
golfo Juan ou para as tepidas areias d'Arcachon.
'Cinthinho porém, no seu afèrro de sombra, não se quiz arredar da
Therezinha Velho, de quem se tornára, atravez de Paris, a muda, tardônha
sombra. Como uma sombra, casou; deu mais algumas voltas ao torno; cuspiu
um resto de sangue; e passou, como uma sombra.
Tres mezes e tres dias depois do seu enterro o meu Jacintho nasceu.
* * * * *
Desde o berço, onde a avó espalhava funcho e ambar para afugentar a
_Sorte-Ruim_, Jacintho medrou com a segurança, a rijeza, a seiva rica
d'um pinheiro das dunas.
Não teve sarampo e não teve lombrigas. As Letras, a Taboada, o Latim
entraram por elle tão facilmente como o sol por uma vidraça. Entre os
camaradas, nos pateos dos collegios, erguendo a sua espada de lata e
lançando um brado de commando, foi logo o vencedor, o Rei que se adula,
e a quem se cede a fructa das merendas. Na edade em que se lê Balzac e
Musset nunca atravessou os tormentos da sensibilidade;--nem crepusculos
quentes o retiveram na solidão d'uma janella, padecendo d'um desejo sem
fórma e sem nome. Todos os seus amigos (eramos tres, contando o seu
velho escudeiro preto, o Grillo) lhe conservaram sempre amizades puras e
certas--sem que jámais a participação do seu luxo as avivasse ou fossem
desanimadas pelas evidencias do seu egoismo. Sem coração bastante forte
para conceber um amor forte, e contente com esta incapacidade que o
libertava, do amor só experimentou o mel--esse mel que o amor reserva
aos que o recolhem, á maneira das abelhas, com ligeireza, mobilidade e
cantando. Rijo, rico, indifferente ao Estado e ao Governo dos Homens,
nunca lhe conhecemos outra ambição além de comprehender bem as Ideias
Geraes; e a sua intelligencia, nos annos alegres de escólas e
controversias, círculava dentro das Philosophias mais densas como enguia
lustrosa na agua limpa d'um tanque. O seu valor, genuino, de fino
quilate, nunca foi desconhecido, nem desapreciado; e toda a opinião, ou
mera facecia que lançasse, logo encontrava uma aragem de sympathia e
concordancia que a erguia, a mantinha emballada e rebrilhando nas
alturas. Era servido pelas cousas com docilidade e carinho;--e não
recordo que jamais lhe estalasse um botão da camisa, ou que um papel
maliciosamente se escondesse dos seus olhos, ou que ante a sua
vivacidade e pressa uma gaveta perfida emperrasse. Quando um dia, rindo
com descrido riso da Fortuna e da sua Roda, comprou a um sachristão
hespanhol um Decimo de Loteria, logo a Fortuna, ligeira e ridente sobre
a sua Roda, correu n'um fulgor, para lhe trazer quatro centas mil
pesetas. E no ceu as Nuvens, pejadas e lentas, se avistavam Jacintho sem
guarda chuva, retinham com reverencia as suas aguas até que elle
passasse... Ah! o ambar e o funcho da snr.^a D. Angelina tinham
escorraçado do seu destino, bem triumphalmente e para sempre, a
_Sorte-Ruim_! A amoravel avó (que eu conheci obesa, com barba) costumava
citar um soneto natalicio do desembargador Nunes Velho contendo um verso
de boa lição:
Sabei, senhora, que esta Vida é um rio...
Pois um rio de verão, manso, translucido, harmoniosamente estendido
sobre uma areia macia e alva, por entre arvoredos fragrantes e ditosas
aldeias, não offereceria áquelle que o descesse n'um barco de cedro, bem
toldado e bem almofadado, com fructas e Champagne a refrescar em gelo,
um Anjo governando ao leme, outros Anjos puxando á sirga, mais segurança
e doçura do que a Vida offerecia ao meu amigo Jacintho.
Por isso nós lhe chamavamos «o Principe da Gran-Ventura»!
* * * * *
Jacintho e eu, José Fernandes, ambos nos encontramos e acamaradamos em
Paris, nas Escólas do Bairro Latino--para onde me mandára meu bom tio
Affonso Fernandes Lorena de Noronha e Sande, quando aquelles malvados me
riscaram da Universidade por eu ter esborrachado, n'uma tarde de
procissão, na Sophia, a cara sordida do dr. Paes Pitta.
Ora n'esse tempo Jacintho concebêra uma Ideia... Este Principe concebêra
a Ideia de que «o homem só é superiormente feliz quando é superiormente
civilisado». E por homem civilisado o meu camarada entendia aquelle que,
robustecendo a sua força pensante com todas as noções adquiridas desde
Aristoteles, e multiplicando a potencia corporal dos seus orgãos com
todos os mechanismos inventados desde Theramenes, creador da roda, se
torna um magnifico Adão, quasí omnipotente, quasí omnisciente, e apto
portanto a recolher dentro d'uma sociedade e nos limites do Progresso
(tal como elle se comportava em 1875) todos os gozos e todos os
proveitos que resultam de Saber e de Poder... Pelo menos assim Jacintho
formulava copiosamente a sua Ideia, quando conversavamos de fins e
destinos humanos, sorvendo bocks poeirentos, sob o toldo das cervejarias
philosophicas, no Boulevard Saint-Michel.
Este conceito de Jacintho impressionára os nossos camaradas de cenaculo,
que tendo surgido para a vida intellectual, de 1866 a 1875, entre a
batalha de Sadowa e a batalha de Sedan, e ouvindo constantemente, desde
então, aos technicos e aos philosophos, que fôra a Espingarda-de-agulha
que vencêra em Sadowa e fôra o Mestre-de-escóla quem vencêra em Sedan,
estavam largamente preparados a acreditar que a felicidade dos
individuos, como a das nações, se realisa pelo illimitado
desenvolvimento da Mechanica e da Erudição. Um d'esses moços mesmo, o
nosso inventivo Jorge Carlande, reduzíra a theoria de Jacintho, para lhe
facilitar a circulação e lhe condensar o brilho, a uma fórma algebrica:
Summa sciencia}
X }= Summa felicidade
Summa potencia}
E durante dias, do Odeon á Sorbonna, foi louvada pela mocidade positiva
a _Equação Metaphysica de Jacintho_.
Para Jacintho, porém, o seu conceito não era meramente metaphysico e
lançado pelo gozo elegante de exercer a razão especulativa:--mas
constituia uma regra, toda de realidade e de utilidade, determinando a
conducta, modalisando a vida. E já a esse tempo, em concordancia com o
seu preceito--elle se surtira da _Pequena Encyclopedia dos Conhecimentos
Universaes_ em setenta e cinco volumes e installára, sobre os telhados
do 202, n'um mirante envidraçado, um telescopio. Justamente com esse
telescopio me tornou elle palpavel a sua ideia, n'uma noite de agosto,
de molle e dormente calor. Nos céos remotos lampejavam relampagos
languidos. Pela Avenida dos Campos Elyseos, os fiacres rolavam para as
frescuras do Bosque, lentos, abertos, cançados, transbordando de
vestidos claros.
--Aqui tens tu, Zé Fernandes, (começou Jacintho, encostado á janella do
mirante) a theoria que me governa, bem comprovada. Com estes olhos que
recebemos da Madre natureza, lestos e sãos, nós podemos apenas
distinguir além, atravez da Avenida, n'aquella loja, uma vidraça
alumiada. Mais nada! Se eu porém aos meus olhos juntar os dois vidros
simples d'um binoculo de corridas, percebo, por traz da vidraça,
presuntos, queijos, boiões de gelêa e caixas de ameixa sêcca. Concluo
portanto que é uma mercearia. Obtive uma noção; tenho sobre ti, que com
os olhos desarmados vês só o luzir da vidraça, uma vantagem positiva. Se
agora, em vez d'estes vidros simples, eu usasse os do meu telescopio, de
composição mais scientifica, poderia avistar além, no planeta Marte, os
mares, as neves, os canaes, o recorte dos golphos, toda a geographia
d'um astro que circula a milhares de leguas dos Campos Elyseos. É outra
noção, e tremenda! Tens aqui pois o olho primitivo, o da Natureza,
elevado pela Civilisação á sua maxima potencia de visão. E desde já,
pelo lado do olho portanto, eu, civilisado, sou mais feliz que o
incivilisado, porque descubro realidades do Universo que elle não
suspeita e de que está privado. Applica esta prova a todos os orgãos e
comprehendes o meu principio. Emquanto á intelligencia, e á felicidade
que d'ella se tira pela incançavel accumulação das noções, só te peco
que compares Renan e o Grillo... Claro é portanto que nos devemos cercar
de Civilisação nas maximas proporções para gosar nas maximas proporções
a vantagem de viver. Agora concordas, Zé Fernandes?
Não me parecia irrecusavelmente certo que Renan fosse mais feliz que o
Grillo; nem eu percebia que vantagem espiritual ou temporal se côlha em
distinguir atravez do espaço manchas n'um astro, ou atravez da Avenida
dos Campos Elyseos presuntos n'uma vidraça. Mas concordei, porque sou
bom, e nunca desalojarei um espirito do conceito onde elle encontra
segurança, disciplina e motivo de energia. Desabotoei o collete, e
lançando um gesto para o lado dos cafés e das luzes:
--Vamos então beber, nas maximas proporções, _brandy and soda_, com
gelo!
Por uma conclusão bem natural, a ideia de Civilisação, para Jacintho,
não se separava da imagem de Cidade, d'uma enorme Cidade, com todos os
seus vastos orgãos funccionando poderosamente. Nem este meu
super-civilisado amigo comprehendia que longe de Armazens servidos por
tres mil caixeiros; e de Mercados onde se despejam os vergeis e lezirias
de trinta provincias; e de Bancos em que retine o ouro universal; e de
Fabricas fumegando com ancia, inventando com ancia; e de Bibliothecas
abarrotadas, a estalar, com a papelada dos seculos; e de fundas milhas
de ruas, cortadas, por baixo e por cima, de fios de telegraphos, de fios
de telephones, de canos de gazes, de canos de fezes; e da fila atroante
dos omnibus, tramways, carroças, velocipedes, calhambeques, parelhas de
luxo; e de dois milhões d'uma vaga humanidade, fervilhando, a offegar,
atravez da Policia, na busca dura do pão ou sob a illusão do gozo--o
homem do seculo XIX podesse saborear, plenamente, a delicia de viver!
Quando Jacintho, no seu quarto do 202, com as varandas abertas sobre os
lilazes, me desenrolava estas imagens, todo elle crescia, illuminado.
Que creação augusta, a da Cidade! Só por ella, Zé-Fernandes, só por
ella, póde o homem soberbamente affirmar a sua alma!...
--Oh Jacintho, e a religião? Pois a religião não prova a alma?
Elle encolhia os hombros. A religião! A religião é o desenvolvimento
sumptuoso de um instincto rudimentar, commum a todos os brutos, o
terror. Um cão lambendo a mão do dono, de quem lhe vem o osso ou o
chicote, já constitue toscamente um devoto, o consciente devoto,
prostrado em rezas ante o Deus que distribue o céo ou o inferno!... Mas
o telephone! o phonographo!
--Ahi tens tu, o phonographo!... Só o phonographo, Zé Fernandes, me faz
verdadeiramente sentir a minha superioridade de sêr pensante e me separa
do bicho. Acredita, não ha senão a Cidade, Zé Fernandes, não ha senão a
Cidade!
E depois (accrescentava) só a Cidade lhe dava a sensação, tão necessaria
á vida como o calor, da solidariedade humana. E no 202, quando
considerava em redor, nas densas massas do casario de Paris, dois
milhões de sêres arquejando na obra da Civilisação (para manter na
natureza o dominio dos Jacinthos!) sentia um socego, um conchego, só
comparaveis ao do peregrino, que, ao atravessar o deserto, se ergue no
seu dromedario, e avista a longa fila da caravana marchando, cheia de
lumes e de armas...
Eu murmurava, impressionado:
--Caramba!
Ao contrario no campo, entre a inconsciencia e a impassibilidade da
Natureza, elle tremia com o terror da sua fragilidade e da sua solidão.
Estava ahi como perdido n'um mundo que lhe não fosse fraternal; nenhum
silvado encolheria os espinhos para que elle passasse; se gemesse com
fome nenhuma arvore, por mais carregada, lhe estenderia o seu fructo na
ponta compassiva d'um ramo. Depois, em meio da Natureza, elle assistia á
subita e humilhante inutilisação de todas as suas faculdades superiores.
De que servia, entre plantas e bichos--ser um Genio ou ser um Santo? As
searas não comprehendem as _Georgicas_; e fôra necessario o socorro
ancioso de Deus, e a inversão de todas as leis naturaes, e um violento
milagre para que o lobo de Agubio não devorasse S. Francisco d'Assis,
que lhe sorria e lhe estendia os braços e lhe chamava «meu irmão lobo»!
Toda a intellectualidade, nos campos, se esterilisa, e só resta a
bestialidade. N'esses reinos crassos do Vegetal e do Animal duas unicas
funcções se mantêm vivas, a nutritiva e a procreadora. Isolada, sem
occupação, entre focinhos e raizes que não cessam de sugar e de pastar,
suffocando no calido bafo da universal fecundação, a sua pobre alma toda
se engelhava, se reduzia a uma migalha d'alma, uma fagulhasinha
espiritual a tremeluzir, como morta, sobre um naco de materia; e n'essa
materia dois instinctos surdiam, imperiosos e pungentes, o de devorar e
o de gerar. Ao cabo de uma semana rural, de todo o seu sêr tão
nobremente composto só restava um estomago e por baixo um phallus! A
alma? Sumida sob a besta. E necessitava correr, reentrar na Cidade,
mergulhar nas ondas lustraes da Civilisação, para largar n'ellas a
crosta vegetativa, e resurgir re-humanisado, de novo espiritual e
Jacinthico!
E estas requintadas metaphoras do meu amigo exprimiam sentimentos
reaes--que eu testemunhei, que muito me divertiram, no unico passeio que
fizemos ao campo, á bem amavel e bem sociavel floresta de Montmorency.
Oh delicias d'entremez, Jacintho entre a Natureza! Logo que se afastava
dos pavimentos de madeira, do macadam, qualquer chão que os seus pés
calcassem o enchia de desconfiança e terror. Toda a relva, por mais
crestada, lhe parecia reçumar uma humidade mortal. De sob cada torrão,
da sombra de cada pedra, receava o assalto de lacraus, de viboras, de
fórmas rastejantes e viscosas. No silencio do bosque sentia um lugubre
despovoamento do Universo. Não tolerava a familiaridade dos galhos que
lhe roçassem a manga ou a face. Saltar uma sebe era para elle um acto
degradante que o retrogradava ao macaco inicial. Todas as flôres que não
tivesse já encontrado em jardins, domesticadas por longos seculos de
servidão ornamental, o inquietavam como venenosas. E considerava d'uma
melancolia funambulesca certos modos e fórmas do Sêr inanimado, a pressa
esperta e vã dos regatinhos, a careca dos rochedos, todas as contorsões
do arvoredo e o seu resmungar solemne e tonto.
Depois d'uma hora, n'aquelle honesto bosque de Montmorency, o meu pobre
amigo abafava, apavorado, experimentando já esse lento mingoar e sumir
d'alma que o tornava como um bicho entre bichos. Só desannuviou quando
penetramos no lagêdo e no gaz de Paris--e a nossa vittoria quasi se
despedaçou contra um omnibus retumbante, atulhado de cidadãos. Mandou
descer pelos Boulevards, para dissipar, na sua grossa sociabilidade,
aquella materialisação em que sentia a cabeça pesada e vaga como a d'um
boi. E reclamou que eu o acompanhasse ao theatro das Variedades para
sacudir, com os estribilhos da _Femme à Papa_, o rumor importuno que lhe
ficára dos melros cantando nos choupos altos.
Este delicioso Jacintho fizera então vinte e tres annos, e era um
soberbo moço em quem reapparecêra a força dos velhos Jacinthos ruraes.
Só pelo nariz, afilado, com narinas quasi transparentes, d'uma
mobilidade inquieta, como se andasse fariscando perfumes, pertencia ás
delicadezas do seculo XIX. O cabello ainda se conservava, ao modo das
éras rudes, crespo e quasi lanigero: e o bigode, como o d'um Celta,
cahia em fios sedosos, que elle necessitava aparar e frizar. Todo o seu
fato, as espessas gravatas de setim escuro que uma perola prendia, as
luvas de anta branca, o verniz das botas, vinham de Londres em caixotes
de cedro; e usava sempre ao peito uma flôr, não natural, mas composta
destramente pela sua ramalheteira com petalas de flôres dessemelhantes,
cravo, azalea, orchidea ou tulipa, fundidas na mesma haste entre uma
leve folhagem de funcho.
* * * * *
Em 1880, em Fevereiro, n'uma cinzenta e arripiada manhã de chuva, recebi
uma carta de meu bom tio Affonso Fernandes, em que, depois de
lamentações sobre os seus setenta annos, os seus males hemorroidaes, e a
pesada gerencia dos seus bens «que pedia homem mais novo, com pernas
mais rijas»--me ordenava que recolhesse á nossa casa de Guiães, no
Douro! Encostado ao marmore partido do fogão, onde na véspera a minha
Nini deixára um espartilho embrulhado no _Jornal dos Debates_, censurei
severamente meu tio que assim cortava em botão, antes de desabrochar, a
flôr do meu Saber Juridico. Depois n'um Post-Scriptum elle
accrescentava--«O tempo aqui está lindo, o que se póde chamar de rosas,
e tua santa tia muito se recommenda, que anda lá pela cozinha, porque
vai hoje em trinta e seis annos que casámos, temos cá o abbade e o
Quintaes a jantar, e ella quiz fazer uma sopa dourada».
Deitando uma acha ao lume, pensei como devia estar boa a sopa dourada da
tia Vicencia. Ha quantos annos não a provava, nem o leitão assado, nem o
arroz de fôrno da nossa casa! Com o tempo assim tão lindo, já as mimosas
do nosso pateo vergariam sob os seus grandes cachos amarellos. Um pedaço
de céo azul, do azul de Guiães, que outro não ha tão lustroso e macio,
entrou pelo quarto, alumiou, sobre a poida tristeza do tapete, relvas,
ribeirinhos, malmequeres e flôres de trevo de que meus olhos andavam
agoados. E, por entre as bambinellas de sarja, passou um ar fino e forte
e cheiroso de serra e de pinheiral.
Assobiando um _fado_ meigo tirei debaixo da cama a minha velha mala, e
metti solicitamente entre calças e piugas um Tratado de Direito Civil,
para aprender emfim, nos vagares da aldeia, estendido sob a faia, as
leis que regem os homens. Depois, n'essa tarde, annunciei a Jacintho que
partia para Guiães. O meu camarada recuou com um surdo gemido de espanto
e piedade:
--Para Guiães!... Oh Zé Fernandes, que horror!
E toda essa semana me lembrou solicitamente confortos de que eu me
deveria prover para que pudesse conservar, nos ermos silvestres, tão
longe da Cidade, uma pouca d'alma dentro d'um pouco de corpo. «Leva uma
poltrona! Leva a _Encyclopedia Geral_! Leva caixas de aspargos!...»
Mas para o meu Jacintho, desde que assim me arrancavam da Cidade, eu era
arbusto desarraigado que não reviverá. A magoa com que me acompanhou ao
comboio conviria excellentemente ao meu funeral. E quando fechou sobre
mim a portinhola, gravemente, supremamente, como se cerra uma grade de
sepultura, eu quasi solucei--com saudades minhas.
Cheguei a Guiães. Ainda restavam flôres nas mimosas do nosso pateo; comi
com delicias a sopa dourada da tia Vicencia; de tamancos nos pés assisti
á ceifa dos milhos. E assim de colheitas a lavras, crestando ao sol das
eiras, caçando a perdiz nos matos geados, rachando a melancia fresca na
poeira dos arraiaes, arranchando a magustos, serandando á candeia,
atiçando fogueiras de S. João, enfeitando presepios de Natal, por alli
me passaram docemente sete annos, tão atarefados que nunca logrei abrir
o Tratado de Direito Civil, e tão singelos que apenas me recordo quando,
em vésperas de S. Nicolau, o abbade cahiu da egua á porta do Braz das
Córtes. De Jacintho só recebia raramente algumas linhas, escrevinhadas á
pressa por entre o tumulto da Civilisação. Depois, n'um Setembro muito
quente, ao lidar da vindima, meu bom tio Affonso Fernandes morreu, tão
quietamente, Deus seja louvado por esta graça, como se cala um
passarinho ao fim do seu bem cantado e bem voado dia. Acabei pela aldeia
a roupa do luto. A minha afilhada Joanninha casou na matança do porco.
Andaram obras no nosso telhado. Voltei a Paris.


II

Era de novo Fevereiro, e um fim de tarde arripiado e cinzento, quando eu
desci os Campos Elyseos em demanda do 202. Adiante de mim caminhava,
levemente curvado, um homem que, desde as botas rebrilhantes até ás abas
recurvas do chapéo d'onde fugiam anneis d'um cabello crespo, reçumava
elegancia e a familiaridade das coisas finas. Nas mãos, cruzadas atraz
das costas, calçadas d'anta branca, sustentava uma bengala grossa com
castão de crystal. E só quando elle parou ao portão do 202 reconheci o
nariz afilado, os fios do bigode corredios e sedosos.
--Oh Jacintho!
--Oh Zé Fernandes!
O abraço que nos enlaçou foi tão alvoroçado que o meu chapéo rolou na
lama. E ambos murmuravamos, commovidos, entrando a grade:
--Ha sete annos!...
--Ha sete annos!...
E, todavia, nada mudára durante esses sete annos no jardim do 202! Ainda
entre as duas aleas bem areadas se arredondava uma relva, mais lisa e
varrida que a lã d'um tapete. No meio o vaso corinthico esperava Abril
para resplandecer com tulipas e depois Junho para transbordar de
margaridas. E ao lado das escadas limiares, que uma vidraçaria toldava,
You have read 1 text from Portuguese literature.
Next - A Cidade e as Serras - 02
  • Parts
  • A Cidade e as Serras - 01
    Total number of words is 4534
    Total number of unique words is 1943
    28.6 of words are in the 2000 most common words
    44.0 of words are in the 5000 most common words
    51.4 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • A Cidade e as Serras - 02
    Total number of words is 4323
    Total number of unique words is 1899
    26.4 of words are in the 2000 most common words
    38.8 of words are in the 5000 most common words
    46.4 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • A Cidade e as Serras - 03
    Total number of words is 4412
    Total number of unique words is 1816
    28.6 of words are in the 2000 most common words
    41.8 of words are in the 5000 most common words
    49.5 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • A Cidade e as Serras - 04
    Total number of words is 4464
    Total number of unique words is 1821
    28.7 of words are in the 2000 most common words
    42.5 of words are in the 5000 most common words
    49.6 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • A Cidade e as Serras - 05
    Total number of words is 4606
    Total number of unique words is 1901
    25.9 of words are in the 2000 most common words
    39.3 of words are in the 5000 most common words
    48.0 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • A Cidade e as Serras - 06
    Total number of words is 4520
    Total number of unique words is 1951
    29.5 of words are in the 2000 most common words
    43.5 of words are in the 5000 most common words
    50.2 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • A Cidade e as Serras - 07
    Total number of words is 4487
    Total number of unique words is 1905
    28.2 of words are in the 2000 most common words
    40.6 of words are in the 5000 most common words
    49.0 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • A Cidade e as Serras - 08
    Total number of words is 4396
    Total number of unique words is 1839
    27.2 of words are in the 2000 most common words
    40.7 of words are in the 5000 most common words
    48.9 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • A Cidade e as Serras - 09
    Total number of words is 4500
    Total number of unique words is 1923
    27.1 of words are in the 2000 most common words
    40.9 of words are in the 5000 most common words
    48.6 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • A Cidade e as Serras - 10
    Total number of words is 4555
    Total number of unique words is 1852
    30.9 of words are in the 2000 most common words
    45.1 of words are in the 5000 most common words
    52.3 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • A Cidade e as Serras - 11
    Total number of words is 4575
    Total number of unique words is 1782
    32.4 of words are in the 2000 most common words
    46.5 of words are in the 5000 most common words
    53.6 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • A Cidade e as Serras - 12
    Total number of words is 4602
    Total number of unique words is 1747
    31.1 of words are in the 2000 most common words
    44.9 of words are in the 5000 most common words
    53.7 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • A Cidade e as Serras - 13
    Total number of words is 4626
    Total number of unique words is 1742
    32.8 of words are in the 2000 most common words
    48.8 of words are in the 5000 most common words
    56.2 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • A Cidade e as Serras - 14
    Total number of words is 4589
    Total number of unique words is 1722
    34.6 of words are in the 2000 most common words
    49.3 of words are in the 5000 most common words
    56.1 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • A Cidade e as Serras - 15
    Total number of words is 4462
    Total number of unique words is 1927
    28.4 of words are in the 2000 most common words
    42.4 of words are in the 5000 most common words
    50.8 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • A Cidade e as Serras - 16
    Total number of words is 555
    Total number of unique words is 333
    48.9 of words are in the 2000 most common words
    58.8 of words are in the 5000 most common words
    66.6 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.