A Cidade e as Serras - 11

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apenas penetra na celebridade, e os seus miseraveis nervos se acalmam, e
o cerca uma paz amavel, não ha então, em todo Francfort, burguez mais
optimista, de face mais jocunda, e gozando mais regradamente os bens da
intelligencia e da Vida!... E o outro, o Israelita, o muito pedantesco
rei de Jerusalem! quando descobre esse sublime Rhetorico que o mundo é
Illusão e Vaidade? Aos setenta e cinco annos, quando o Poder lhe escapa
das mãos tremulas, e o seu serralho de trezentas concubinas se lhe torna
ridiculamente superfluo. Então rompem os pomposos queixumes! Tudo é
vaidade e afflicção de espirito! nada existe estavel sob o sol! Com
effeito, meu bom Salomão, tudo passa--principalmente o poder de usar
trezentas concubinas! Mas que se restitua a esse velho sultão asiatico,
besuntado de Litteratura, a sua virilidade,--e onde se sumirá o lamento
do Ecclesiastes? Então voltará, em segunda e triumphal edição, o extase
do _Livro dos Cantares_!...
Assim discursava o meu amigo no nocturno silencio de Tormes. Creio que
ainda estabeleceu sobre o Pessimismo outras coisas joviaes, profundas ou
elegantes;--mas eu adormecera, beatificamente envolto em Optimismo e
doçura.
Em breve porém, me fez pular, escancarar as palpebras molles, uma rija,
larga, sadia e genuina risada. Era Jacintho, estirado n'uma cadeira, que
lia o D. Quixote... Oh bem aventurado Principe! Conservára elle o agudo
poder de arrancar theorias a uma espiga de milho ainda verde, e por uma
clemencia de Deus, que fizera reflorir o tronco secco, recuperára o dom
divino de rir, com as facecias de Sancho!
Aproveitando a minha companhia, as duas semanas de bucolica occiosidade
que eu lhe concedera, o meu Jacintho preparou então a ceremonia tão
falada, tão meditada, a trasladação dos ossos dos velhos Jacinthos--dos
«respeitaveis ossos» como murmurava, cumprimentando, o bom Silverio, o
procurador, n'essa manhã de sexta feira, em que almoçava comnosco,
mettido n'um espantoso jaquetão de velludilho amarello debruado de seda
azul! A ceremonia, de resto, reclamava muita singeleza por serem tão
incertos, quasi impessoaes, aquelles restos, que nós estabeleceriamos na
Capellinha do valle da Carriça, na Capellinha toda nova, toda nua e toda
fria, ainda sem alma e sem calor de Deus.
--Por que emfim v. ex.^a comprehende,--explicava o Silverio passando o
guardanapo por sobre a larga face suada e por sobre as immensas barbas
negras, como as d'um turco--, n'aquella mixordia... Oh! peço desculpa a
v. ex.^a! N'aquella confusão, quando tudo desabou, não pudémos mais
conhecer a quem pertenciam os ossos. Nem sequer, fallando verdade, nós
sabiamos bem que dignos avós de v. ex.^a jaziam na capella velha, assim
tão antigos, com os letreiros apagados, senhores de todo o nosso
respeito, certamente, mas, se v. ex.^a me permitte, senhores já muito
desfeitos... Depois veio o desastre, a mixordia. E aqui está o que
decidi, depois de pensar. Mandei arranjar tantos caixões de chumbo,
quantas as caveiras que se apanharam lá em baixo na Carriça, entre o
lixo e o pedregulho. Havia sete caveiras e meia. Quero dizer, sete
caveiras e uma caveirinha pequenina. Mettemos cada caveira em seu
caixão. Depois... Que quer v. ex.^a? Não havia outro meio! E aqui o Snr.
Fernandes dirá se não acha que procedemos com habilidade. A cada caveira
juntamos uma certa porção d'ossos, uma porção rasoavel... Não havia
outro meio... Nem todos os ossos se acharam. Canellas, por exemplo,
faltavam! E é bem possivel que as costellas d'um d'aquelles senhores
ficasse com a cabeça d'outro... Mas quem podia saber? Só Deus. Emfim
fizemos o que a prudência mandava... Depois, no dia de Juizo, cada um
d'estes fidalgos apresentará os ossos que lhe pertencerem.
Lançava estas cousas macabras e tremendas, penetrado de respeito, quasi
com magestade, espetando, ora em mim, ora no meu Principe, os olhinhos
agudos e relusentes como vidrilhos.
Eu approvei o pittoresco homem:
--Perfeitamente! Andou perfeitamente, amigo Silverio. São tão vagos, tão
anonymos, todos esses avós! Só faz pena, grande pena, que se
tresmalhassem os restos do avô Galião.
--Não estava cá! accudiu Jacintho. Vim a Tormes expressamente por causa
do avô Galião, e por fim o seu jazigo nunca foi aqui, na Capellinha da
Carriça... Felizmente!
O Silverio saccudia gravemente a calva trigueira:
--Nunca tivemos o ex.^{mo} sr. Galião. Ha cem annos, Snr. Fernandes, ha
cem annos que se não depositava na capella velha corpo de cavalheiro cá
da casa.
--Onde estará então?...
O meu Principe encolheu os hombros. Por esse Reino... Na egrejinha, no
cemiterio d'alguma das freguezias numerosas, onde elle possuia terras.
Casa tão espalhada!
--Bem! conclui. Então, como se trata d'ossadas vagas, sem nome, sem
data, convem uma ceremoniasinha muito simples, muito sobria.
--Quietinha, quietinha! murmurou o Silverio, dando um forte sorvo
assobiado ao café.
E foi quietinha, d'uma rustica e doce singeleza, a ceremonia d'aquelles
altos senhores. Cedo, por uma manhã, levemente enevoada, os oito caixões
pequeninos, cobertos d'um velludo vermelho mais de festa que de funeral,
com molhos de rosas espalhados, contendo cada um o seu montesinho
d'ossos incertos, sahiram aos hombros dos coveiros de Tormes e dos moços
da quinta, da Egreja de S. José, cujo sino leve tangia, na enevoada
doçura da manhã,--quanto fina e levemente!--como pia um passarinho
triste. Adiante, um airoso moço de sobrepelis, erguia com zelo a velha
cruz prateada; abrigando o pescoço sob um immenso lenço de rapé, de
quadrados azues, o velho e corcovado sacristão segurava pensativamente a
caldeirinha d'agoa benta; e o bom abbade de S. José, com os dedos entre
o breviario fechado, movia os labios, n'uma lenta, murmurosa resa, que
ia, pelo doce ar, espalhando mais doçura. Logo atraz do ultimo cofre, o
mais pequenino, o da caveirinha pequena, Jacintho caminhava; e eu, a
estalar dentro d'um fato preto de Jacintho, tirado á pressa d'uma das
malas de Paris quando, de manhã, já tarde para mandar a Guiães, me
lembrei que toda a minha roupa era de cores festivaes e pastoris.
Depois marchava o Silverio, solemnissimo, com um immenso peitilho, onde
as barbas immensas se alastravam, negrissimas. De casaca, com o grosso
beiço descahido, descahido todo elle por aquella melancolia de enterro
que se juntava á melancolia da serra, o Grillo enfiava no braço a sua
coroa, enorme, de rosas e d'heras. Por fim seguia o Melchior, entre um
rancho de mulheres, que, sumidas na sombra dos lenços pretos, desfiando
longos rosarios, rosnavam surdas avè-marias, atravez d'espaçados
suspiros, tão doridos como se inconsoladamente lhes doesse a perda
d'aquelles Jacinthos. Assim, pelas varzeas entrecorridas de regueiros,
lenta nos recostos dos mattos, escorregando mais rapida, pelos corregos
pedregosos, seguia a procissão, sempre com a cruz adiante, alta e
prateada, rebrilhando por vezes n'um breve raiosinho de sol que,
vagarosamente, surdia da nevoa desfeita. Ramos baixos de lodão ou de
salgueiro passavam uma derradeira caricia sobre o velludo dos caixões.
Um regato por vezes nos acompanhava, com discreto fulgir entre as
relvas, sussurrando e como resando tambem, alegremente: e nos
quintalinhos umbrosos, á nossa passagem, os gallos, de cima das pilhas
de matto, faziam soar o seu clarim festivo. Depois, adiante da fonte da
Lira, como o caminho se alongava, e desejassemos poupar o nosso velho
abbade, cortamos atravez d'uma seara, já alta, quasi madura, toda
entremeada de papoulas, O sol radiou: sob a brisa larga, que levára a
nevoa, toda a messe ondulou n'uma lenta vaga dourada, em que se
balouçavam os esquifes; e, como enorme papoula, a mais vermelha,
rutilava o guarda sol de panninho logo aberto pelo sacristão para
abrigar o abbade.
Jacintho tocou no meu cotovello:
--Que lindos vamos! Ora vê tu a Natureza... N'um simples enterrar
d'ossos, quanta graça e quanta belleza!
Na Capellinha, nova, dominando o valle da Carriça, solitaria e muito
nua, no meio d'um adro, ainda mal alisado, sem uma verdura de relva, uma
frescura d'arbusto, dous moços seguravam á porta molhos de tochas, que o
Silverio distribuiu, a passos graves, com cortezias, solemnissimo.
Dentro as curtas chammas, mal luziam, mal derramavam a sua amarellidão
triste, esbatidas na relusente brancura dos muros estucados, na jovial
claridade que cahia das altas vidraças bem polidas. Em torno dos
esquifes, pousados sobre bancos, que pesados velludilhos recobriam, o
abbade murmurava um suave latim, emquanto ao fundo as mulheres, sumidas
na sombra dos seus negros lenços, gemiam _amens_ agudos, abafavam um
respeitoso soluço. Depois, tomando levemente o hyssope, ainda o bom
abbade aspergiu, para uma derradeira purificação, os incertos ossos dos
incertos Jacinthos. E todos desfilamos por diante do meu Principe,
timidamente encostado á umbreira, com o Silverio ao lado esmagando
contra o peitilho as barbas immensas, a face descahida, cerradas as
palpebras como contendo lagrimas.
No adro, o meu Principe accendeu regaladamente um cigarro pedido ao
Melchior:
--E então, Zé Fernandes, que te pareceu a ceremoniasinha?
--Muito campestre, muito suave, muito risonha... Uma delicia.
Mas o Abbade, que se desvestira na Sachristia, appareceu, já com o seu
grande casaco de lustrina, e seu velho chapeu desabado, trazidos pelo
moço da Residencia, n'um sacco de chita. Jacintho, immediatamente lhe
agradeceu tantos cuidados, a affavel hospitalidade que offerecera aos
ossos, durante a construcção da Capellinha nova. E o suave velho, todo
branquinho, de faces ainda menineiras e coradas, com um claro sorriso de
dentes sadios, louvava Jacintho, que assim viera de tão longe, em tão
longa jornada, para cumprir aquelle dever de bom neto.
--São avós muito remotos, e agora tão confusos! murmurava Jacintho
sorrindo.
--Pois mais merito ainda o de v. ex.^a. Respeitar um avô morto, bem é
corrente... Mas respeitar os ossos d'um quinto avô, d'um setimo avô!
--Sobretudo, Snr. Abbade, quando d'elles nada se sabe, e naturalmente
nada fizeram.
O velho sacudiu risonhamente o dedo gordo:
--Ora quem sabe, quem sabe! Talvez fossem excellentes! E por fim, quem
muito se demora no mundo, como eu, termina por se convencer que no mundo
não ha cousa ou ser inutil. Ainda hontem eu lia n'um jornal do Porto,
que por fim, segundo se descobriu, são as minhocas que estrumam e lavram
a terra, antes de chegar o lavrador e os bois com o arado. Até as
minhocas são uteis. Não ha nada inutil... Eu tinha lá na residencia uma
porção de cardos a um canto da horta, que me affligiam. Pois reflecti e
terminei por me regalar com elles em xarope. Os avós de v. ex.^a por cá
andaram, por cá trabalharam, por cá padeceram. Quer dizer: por cá
serviram. E, em todo o caso, que lhes rezemos um Padre-Nosso por alma
não lhes póde fazer senão bem, a elles e a nós.
E assim, docemente philosophando, paramos n'um souto de carvalheiras,
onde esperava a velhissima egoa do Abbade, por que o santo homem agora,
depois do rheumatismo do ultimo inverno, já não affrontava rijamente
como antes os trilhos duros da serra. Para elle montar, filialmente
Jacintho segurou o estribo. E emquanto a egoa se empurrava pelo corrego
acima, quasi tapada sob o immenso guarda sol vermelho em que se abrigava
o velho, nós recolhemos a casa mettendo pela serra da Lombinha, atravez
dos milhos, e depressa, porque eu estalava, aperreado, dentro da roupa
preta do meu Principe.
--Estão pois accommodados estes senhores, Zé Fernandes! Só resta rezar
por elles o Padre-Nosso, que recommenda o abbade... Sómente, eu não sei,
já não me lembro do Padre-Nosso.
--Não te afflijas, Jacintho: peço á tia Vicencia que reze por mim e por
ti. É sempre a tia Vicencia que reza os meus Padre-Nossos.
Durante essas semanas que preguicei em Tormes, eu assisti, com
internecido interesse, a uma consideravel evolução de Jacintho nas suas
relações com a Natureza. D'aquelle periodo sentimental de contemplação,
em que colhia theorias nos ramos de qualquer cerejeira, e edificava
Systemas sobre o espumar das levadas, o meu Principe lentamente passava
para o desejo da Acção... E d'uma acção directa e material, em que a sua
mão, emfim restituida a uma funcção superior, revolvesse o torrão.
Depois de tanto _commentar_, o meu Principe, evidentemente, aspirava a
_crear_.
Uma tardinha, ao anoitecer, sentados no pomar, no rebordo do tanque, em
quanto o Manoel hortelão apanhava laranjas no alto d'uma escada arrimada
a uma alta laranjeira, Jacintho observou, mais para si do que para mim:
--É curioso... Nunca plantei uma arvore!
--Pois é um dos tres grandes actos, sem os quaes segundo diz não sei que
Philosopho, nunca se foi um verdadeiro homem... Fazer um filho, plantar
uma arvore, escrever um livro. Tens de te apressar, para ser um homem. É
possivel que talvez nunca prestasses um serviço a uma arvore, como se
presta a um semelhante!
--Sim... Em Paris, quando era pequeno, regava os lilazes. E no verão é
um bello serviço! Mas nunca semeei.
E como o Manoel descia da escada, o meu Principe, que nunca acreditára
inteiramente--pobre homem!--no meu saber agricola, immediatamente
reclamou o parecer d'aquella auctoridade:
--Oh Manoel, ouça lá, o que é que se poderia agora semear?
Como cesto das laranjas enfiado no braço, o Manoel exclamou, atravez
d'um lento riso, entre respeitoso e divertido:
--Semear, patrão? Agora é antes colher... Olhe que já se anda a limpar a
eirasinha para a debulha, meu patrão.
--Pois sim... Mas sem ser milho nem cevada... Então alli no pomar, rente
do muro velho, não se podia plantar uma fila de pecegueiros?
O riso do Manoel crescia.
--Isso sim, meu senhor! Isso é lá para os Santos ou para o Natal. Agora
só a couvinha na horta, a beldroega, os espinafres, algum feijãosinho em
terra muito fresca...
O meu Principe sacudiu com brando gesto estes legumes rasteiros.
--Bem, boa noite, Manoel. Essas laranjas são da tal laranjeira que diz o
Melchior, muito doces, muito finas? Então leve para os seus pequenos.
Leve muitas para os pequenos.
Não! o empenho era crear a arvore. Pela arvore contemplada na serra em
sua verdadeira magestade, na beneficencia da sua sombra, na frescura
emballadora do seu rumorejar, na graça e santidade dos ninhos que a
povoam, começára talvez, lentamente, o seu amor novo da Terra. E agora
sonhava uma Tormes toda coberta d'arvores, cujos fructos e verduras, e
sombras, e rumorejos suaves, e abrigados ninhos, fossem a obra e o
cuidado das suas mãos paternaes.
No silencio grave do crepusculo, que descia, murmurou ainda:
--Oh Zé Fernandes; quaes são as arvores que crescem mais depressa?
--Eh, meu Jacintho... A arvore que cresce mais depressa é o eucalypto, o
feiissimo e ridiculo eucalypto. Em seis annos tens ahi Tormes coberta de
eucalyptos...
--Tudo tão lento, Zé Fernandes...
Porque o seu sonho, que eu comprehendia, seria plantar caroços que
subissem em fortes troncos, se alargassem em verdes ramarias, antes de
elle voltar ao 202, no começo do inverno...
--Um carvalho!... Trinta annos, antes que seja bello! Desanímo! É bom
para Deus, que pode esperar... _Patiens quia aeternus_. Trinta annos!
D'aqui a trinta annos, arvores só para me cobrirem a sepultura!
--Já é um ganho. E depois para teus filhos, Jacintho...
--Filhos! onde os tenho eu?
--É o mesmo processo dos castanheiros. Semeia. Não faltam por ahi terras
agradaveis... Em nove mezes tens uma planta feita. E quanto mais
tenrinhas, e mais pequeninas, mais essas plantas encantam.
Elle murmurou, crusando as mãos sobre o joelho:
--Tudo leva tanto tempo!...
E á borda do tanque nos quedamos, calados, na fresca doçura do
anoitecer, entre o cheiro avivado das madresilvas do muro, olhando o
crescente da lua, que surdia dos telhados de Tormes.
E decerto esta pressa de se tornar entre a Natureza não mais um
sonhador, mas um creador, arremessou vivamente o seu interesse para os
gados! Repetidamente, nos nossos passeios atravez da quinta, elle lhe
notava a solidão.
--Faltam aqui animaes, Zé Fernandes!
Imaginava eu, que elle appetecia em Tormes o ornato elegante de veados e
pavões. Mas um domingo, costeando o largo campo da Ribeirinha, sempre
escasso d'agoas, agora mais resequido por verão de tanta seccura, o meu
Principe parou a considerar os tres carneiros do caseiro, que retouçavam
com penuria uma relvagem pobre.
E, de repente, como magoado:
--Justamente! Aqui está o espaço para um bello prado, um immenso prado,
muito verde, muito farto, com rebanhos de carneiros brancos, gordissimos
como bolas de algodão pousadas na relva!... Era lindo, hein? É facil,
não é verdade, Zé Fernandes?
--Sim... Trazes a agoa para o prado. Agoas não faltam, na serra.
E o meu principe encadeando logo n'esta inspirada idea outra, mais rica
e vasta, lembrou quanta belleza daria a Tormes encher esses prados,
esses verdes ferregiaes, de manadas de vaccas, formosas vaccas inglezas,
bem nedias e bem luzidias. Hein? Uma belleza. Para abrigar esses gados
ricos, construiria curraes perfeitos, d'uma architectura leve e util,
toda em ferro e vidro, fundamente varridos pelo ar, largamente lavados
pela agoa... Hein? Que formosura! Depois, com todas essas vaccas, e o
leite jorrando, nada mais facil e mais divertido, e até mais moral, que
a installação d'uma queijeira, á fresca moda Hollandeza, toda branca e
reluzente, de azulejos e de marmore, para fabricar os Camemberts, os
Bries... os Coulommiers... Para a casa, que conforto! E para toda a
serra, que actividade!
--Pois não te parece, Zé Fernandes?
--Com certeza. Tu tens, em abundancia, os quatro Elementos: o ar, a
agoa, a terra, e o dinheiro. Com estes quatro elementos, facilmente se
faz uma grande lavoura. Quanto mais uma queijeira!
--Pois não é verdade? E até como negocio! Está claro, para mim o lucro é
o deleite moral do trabalho, o emprego fecundo do dia... Mas uma
queijaria, assim perfeita, rende. Rende prodigiosamente. E educa o
paladar, incita a installações eguaes, implanta talvez no paiz uma
industria nova e rica! Ora com essa installação, perfeita, quanto me
poderá custar cada queijo?
Fechei um olho, calculando:
--Eu te digo.... Cada queijo, um d'esses queijinhos redondos, como o
Camembert ou o Rabaçal, póde vir a custar-te, a ti Jacintho queijeiro,
entre duzentos e cincoenta e trezentos mil réis.
O meu Principe recuou, com dous olhos alegres espantados para mim.
--Como trezentos mil réis?
--Ponhamos duzentos... Tem a certeza! Com todos esses prados, e os
encanamentos d'agoa e a configuração da serra alterada, e as vaccas
inglezas, e os edificios de porcellana e vidro, e as maquinas, a
extravagancia, e a patuscada bucolica, cada queijo te custa, a ti
productor, duzentos mil réis. Mas com certeza o vendes no Porto por um
tostão. Põe cincoenta réis para a caixa, rotulos, transporte, commissão,
etc. Tens apenas, em cada queijo uma perda de cento e noventa e nove mil
oitocentos e cincoenta réis!
O meu Principe não desanimou.
--Perfeitamente! Faço um d'esses espantosos queijos por semana, ao
sabbado, para o comermos nós ambos ao domingo!
E tanta energia lhe communicava o seu novo Optimismo, tão anciosamente
aspirava a crear, que logo, arrastando o Silverio e o Melchior por
cabeços e barrancos, largou a percorrer a quinta toda, para determinar
onde cresceriam, ao seu mando inspirado, os verdes prados, e se
ergueriam, rebrilhantes no sol de Tormes, os curraes elegantes. Com a
esplendida segurança dos seus cento e nove contos de renda, não surgia
difficuldade, risonhamente murmurada pelo Melchior, ou exclamada, com
respeitoso pasmo, pelo Silverio, que elle não afastasse brandamente, com
geito leve, como um galho de roseira brava atravessado n'uma vereda.
Aquellas rochas, além, empecendo? Que se arrancassem! Um valle importuno
dividia dous campos? Que se atulhasse! O Silverio suspirava, enxugando
sobre a escura calva um suor quasi d'angustia. Pobre Silverio! Rijamente
sacudido na doce pachorra da sua administração, calculando despezas que
se affiguravam sobrehumanas á sua parcimonia serrana, forçado a
arquejar, sem descanço, sob soalheiras de Junho, o desgraçado retomára
na Serra o geito que Jacintho deixára em Paris,--e era elle que corria
pelas longas barbas tenebrosas os dedos desalentados... Emfim uma tarde
desabafou comigo, a um canto da varanda, em quanto Jacintho, na
livraria, escrevia a um seu amigo de Hollanda, o conde Rylant, Mordomo
Mór da Corte, pedindo desenhos, e planos, e orçamentos d'uma queijeira
perfeita.
--Pois, Snr. Fernandes, se toda esta grandeza vae por diante, sempre lhe
digo que o Snr. D. Jacintho enterra aqui na serra dezenas de contos...
Dezenas de contos!
E como eu alludia á fortuna do meu Principe, a quem todas essas obras
tão vastas, que alterariam o antiquissimo rosto da serra, não custavam
mais que a outros o concerto d'um socalco,--o bom Silverio atirou os
longos braços para as coxas gordas, ainda mais desolado:
--Pois por isso mesmo, Snr. Fernandes! Se o Snr. D. Jacintho não tivesse
a dinheirama, recuava. Assim, é zás zás, para deante; e eu não o censuro
pela ideia. Lograsse eu a renda de S. Ex.^a, que me atirava tambem a uma
lavoura de capricho. Mas não aqui, Snr. Fernandes, n'estas serranias,
entre alcantis. Pois um senhor que possue aquella linda propriedade de
Montemór, nos campos do Mondego, onde até podia plantar jardins de
desbancar os do Palacio de Crystal do Porto! E a Velleira? O Snr.
Fernandes não conhece a Velleira, lá para os lados de Penafiel? Isso é
um condado! E uma terra chã, boa terra, toda junta, alli em volta da
casa, com uma torre. Um regalo, Snr. Fernandes. Mas sobretudo Montemór!
Lá é que eram prados e manadas de vaccas inglezas, e queijeira e horta
rica, de fartar, e ahi trinta perús na capoeira...
--Então que quer, Silverio? O Jacintho gosta da serra. E depois este é o
solar da familia, e aqui começaram no seculo XIV os Jacinthos...
O pobre Silverio, no seu desespero, esquecia o respeito devido á secular
nobreza da casa.
--Ora! até ficam mal ao Snr. Fernandes essas ideias, n'este seculo da
liberdade... Pois estamos lá em tempos de se fallar em fidalguias, agora
que por toda a parte anda tudo em Republica? Leia o _Seculo_, Snr.
Fernandes! leia o _Seculo_, e verá! E depois eu sempre quero vêr o Snr.
D. Jacintho, aqui no inverno, com o nevoeiro a subir do rio logo pela
manhã, e a friagem a trespassar os ossos, e ventanias que atiram
carvalheiras de raizes ao ar, e chuvas e chuvas que se desfaz a
serra!... Olhe, até mesmo por amor da saude o Snr. D. Jacintho, que é
fraquinho e acostumado á cidade, necessita sahir da serra. Em Montemór,
em Montemór é que s. ex.^a estava bem. E o Snr. Fernandes, tão amigo
d'elle e assim com tanta influencia, devia teimar, e berrar, até que o
levasse para Montemór.
Mas, infelizmente para a quietação do Silverio, Jacintho lançára raizes,
e rijas, e amorosas raizes na sua rude serra. Era realmente como se o
tivessem plantado d'estaca n'aquelle antiquissimo chão, d'onde brotára a
sua raça, e o antiquissimo humus refluisse e o penetrasse todo, e o
andasse transformando n'um Jacintho rural, quasi vegetal, tão do chão, e
preso ao chão, como as arvores que elle tanto amava.
E depois o que o prendia á serra era o ter n'ella encontrado o que na
Cidade, apesar da sua sociabilidade, não encontrára nunca,--dias tão
cheios, tão deliciosamente occupados, d'um tão saboroso interesse, que
sempre penetrava n'elles, como n'uma festa ou n'uma gloria.
Logo de manhã, ás seis horas, eu, no meu quarto, mexendo ainda
regaladamente o meu corpo nos colchões de fresco folhelho, sentia os
seus rijos sapatões pelo corredor, e o seu cantarolar, desafinado, mas
ditoso como o d'um melro. Em poucos instantes escancarava com fragor a
minha porta, já de chapeu desabado, já de bengalão de cerejeira,
disposto com reservado fervor para os trilhos conhecidos da serra. E era
sempre a mesma nova, quasi orgulhosa:
--Dormi hoje deliciosamente, Zé Fernandes. Tão bem, com uma tal
serenidade, que começo a acreditar que sou um justo! Um dia lindo!
Quando abri a janella, ás cinco horas, quasi gritei de puro gosto!
Na sua pressa, nem me deixava demorar na frescura da banheira; e quando
eu repetia a risca mal começada do cabello, aquelle antigo homem das
trinta e nove escovas, protestava contra esse desbarato effeminado d'um
tempo devido aos fortes gozos da terra.
Mas quando, depois de acariciar os rafeiros no pateo, desembocavamos da
alameda de platanos, e deante de nós se dividiam matutinamente, mais
brancos entre o verde matutino, os caminhos colleantes da quinta, toda a
sua pressa findava, e penetrava na Natureza, com a reverente lentidão de
quem penetra n'um Templo. E repetidamente sustentava ser «contrario á
Esthetica, á Philosophia e á Religião, andar depressa através dos
campos.» De resto, com aquella subtil sensibilidade bucolica que n'elle
se desenvolvera, e incessantemente se afinava, qualquer breve belleza,
do ar ou da terra, lhe bastava para um longo encanto. Ditosamente
poderia elle entreter toda uma manhã, caminhar por entre um pinheiral,
de tronco a tronco, callado, embebido no silencio, na frescura, no
resinoso aroma, empurrando com o pé as agulhas e as pinhas seccas.
Qualquer agua corrente o retinha, enternecido n'aquella serviçal
actividade, que se apressa, cantando, para o torrão que tem sêde, e
n'elle se some, e se perde. E recordo ainda quando me reteve meio
domingo, depois da Missa, no cabeço, junto a um velho curral
desmantellado, sob uma grande arvore,--só por que em torno havia
quietação, doce aragem, um fino piar d'ave na ramaria, um murmurio de
regato entre canas verdes, e por sobre a sébe, ao lado, um perfume,
muito fino e muito fresco, de flores escondidas.
Depois, quando eu, velho familiar das serras, me não abandonava aos
mesmos extasis que a elle lhe enchiam a alma ainda noviça--o meu
Principe rugia, com a indignação d'um poeta que descobre um mercieiro
bocejando sobre Shakspeare ou Musset. Eu ria.
--Meu filho, olha que eu não passo d'um pequeno proprietario. Para mim
não se trata de saber se a terra é _linda_, mas se a terra é _boa_. Olha
o que diz a Biblia! «Trabalharás a quinta com o suor do teu rosto!» E
não diz «contemplarás a quinta com o enlevo da tua imaginação!»
--Podéra! exclamava o meu Principe. Um livro escripto por Judeos, por
asperos semitas, sempre com o turvo olho posto no lucro! Repára, homem,
para aquelle bocadinho de valle, e consegue não pensar, por um momento,
nos trinta mil reis que elle rende! Verás que pela sua belleza e graça
elle te dá mais contentamento á alma que os trinta mil reis ao corpo. E
na vida só a alma importa.
Recolhendo ao casarão, já o encontravamos com as janellas meio cerradas,
os soalhos borrifados para aquellas quentes restias de sol de junho, que
depois do almoço docemente nos retinham na livraria, preguiçando.
Mas realmente a alegre actividade do meu Principe não cessava, nem
amollecia, sob o peso da sésta. A essa hora, em quanto pelo arvoredo
mudo os mais agitados pardaes dormiam, e o sol mesmo parecia repousar,
immovel na rutilancia da sua luz, Jacintho com o espirito
acordado,--ávido de sempre gosar, agora que reconquistára essa
faculdade,--tomava com delicia o _seu livro_. Por que o dono de trinta
mil volumes era agora, na sua casa de Tormes, depois de resuscitado, o
homem que só tem um livro. Essa mesma Natureza, que o desligára das
ligaduras amortalhadoras do tedio, e lhe gritára o seu bello _Ambula_,
caminha!--tambem certamente lhe gritára _et lege_, e lê. E libertado
emfim do envolucro suffocante da sua Bibliotheca immensa, o meu ditoso
amigo comprehendia emfim a incomparavel delicia de _lêr um livro_.
Quando eu correra a Tormes, (depois das revelações do Severo na venda do
Torto,) elle findava o D. Quichote, e ainda eu lhe escutára as
derradeiras risadas com as cousas deliciosas, e de certo profundas, que
o gordo Sancho lhe murmurava, escarranchado no seu burro. Mas agora o
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