Viagens na Minha Terra - 15

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desvarios do coração. Errei com elle, perdeu-me elle... Oh! bem sei que
estou perdido.
Perdido para todos, e para ti tambem. Não me digas que não; tens
generosidade para o dizer, mas não o digas. Tens generosidade para o
pensar, mas não pódes evitar de o sentir.
Eu estou perdido.
E sem remedio, Joanna, porque a minha natureza é incorrigivel. Tenho
energia de mais, tenho podêres de mais no coração. Estes excessos d'elle
me mataram... e me matam!
Tu não comprehendes isto, Joanninha, não me intendes decerto; e é
difficil.
Es mulher, e as mulheres não intendem os homens. Sempre o entrevi, hoje
sei-o perfeitamente. A mulher não póde nem deve comprehender o homem.
Triste da que chega a sabê-lo!..
E d'ahi... quando se tem de morrer, antes saber a morte de que se morre,
do que expirar na ignorancia do mal que nos matou.
Tu es joven e inexperiente, a tua alma está cheia de illusões doces; vou
dissipar-t'as em quanto se não condensam, que te offusquem a razão e te
deixem para sempre escrava cega do maior inimigo que temos, o coração.
Quero contar-te a minha historia: verás n'ella o que vale um homem.
Sabe que os não ha melhores que eu; e tam bons, poucos. Olha o que será
o resto!
Tu não ignoras ja hoje o porque fugi da casa materna: sabía-a manchada
de um grande peccado, e imaginei-a polluida de um enorme crime.
Esse homem que é meu pae, não o podia ver; hoje que sei o que me elle
é... Deus me perdoe, que ainda o posso ver menos!
Minha avó, julguei-a cumplice no crime; ella so o era no peccado.
Perdoe-lhe Deus; e bem póde e bem deve, ja que a fez tam fraca. Minha
pobre mãe succumbiu por sua culpa, por sua irremissivel complacencia...
Deus póde e deve, repitto... mas eu, como lhe heide perdoar eu este
rubor que sinto nas faces ao nomear minha mãe?
Tem padecido e soffrido muito... coitada! A sua penitencia é um
martyrio, a sua velhice uma longa paixão, e esse homem que a perdeu um
verdugo sem piedade. Mas tudo isso é com Deus, não é commigo.
Eu sou filho; minha mãe morreu sem perdoar--não posso perdoar eu.
E quem me hade perdoar a mim? Ninguem, nem quero.
Não serás tu, minha irman; não, que não deves. Porque eu amei-te com um
coração que ja não era meu; acceitei o teu amor sem o merecer, sem o
podêr possuir, trahi quando te amava, menti quando t'o disse, menti-te a
ti, menti-me a mim, e não guardei verdade a ninguem.
Mas espera, ouve; deixa-me ver se posso atar o fio d'esta minha incrivel
historia--incrivel para ti, bem simples para quem conheça o coração do
homem.
Sahi de Portugal, e posso dizer que não tinha amado ainda. Inclinações
de criança, galanteios de sociedade, ligações que nasceram da vaidade,
ou que so os sentidos alimentam, não merecem o nome de amor.
Eu não tinha amado.
Ha tres especies de mulheres n'este mundo: a mulher que se admira, a
mulher que se deseja, e a mulher que se ama.
A belleza, o espirito, a graça, os dotes d'alma e do corpo geram a
admiração.
Certas fórmas, certo ar voluptuoso criam o desejo.
O que produz o amor não se sabe; é tudo isto ás vezes, é mais do que
isto, não é nada d'isto.
Não sei o que é; mas sei que se póde admirar uma mulher sem a desejar,
que se póde desejar sem a amar.
O amor não está definido, nem o póde ser nunca. O amor verdadeiro; que
as outras coisas não são isso.
Eu vivi poucos mezes em Inglaterra; mas foram os primeiros que posso
dizer que vivi. Levou-me o acaso, o destino--a minha estrella, porque eu
ainda creio nas estrellas, e em pouco mais d'este mundo creio
ja--levou-me ao interior de uma familia elegante, ricca de tudo o que
póde dar distincção n'este mundo.
Extranhei aquelles habitos de alta civilização, que me agradavam
comtudo; moldei-me facilmente por elles, affiz-me a vejetar docemente na
branda atmosphera artificial d'aquella estufa sem perder a minha
natureza de planta extrangeira. Agradei: e não o merecia. No fundo
d'alma e de character eu não era aquillo por que me tomavam. Menti: o
homem não faz outra coisa. Eu detesto a mentira, voluntariamente nunca o
fiz, e todavia tenho levado a vida a mentir.
Menti pois, e agradei porque mentia. Sancto Deus! para que sahiria a
verdade da tua bôcca, e para que a mandaste ao mundo, Senhor?
Havia tres meninas n'aquella familia. Dizer que eram as tres graças é
uma vulgaridade cansada, e tam bannal que não dá idea de coisa alguma.
Tres anjos seriam; tres anjos posso dizer com mais propriedade. E quando
em nossos longos passeios solitarios, por aquelles campos sempre verdes,
por aquellas collinas coroadas de arvoredo, tapessadas de relva macia,
os seus vestidos brancos, singelos, simples, trajados sem arte,
fluctuavam com a brisa da tarde... e os longos anneis de seus
cabellos--os de uma eram loiros, os de outra castanhos, não ha nome para
a indefinida côr dos da terceira--quando esses longos anneis descahiam
de sua ondada spiral com o orvalho humido do crepusculo--e que a essa
luz vaga e mysteriosa eu as contemplava todas tres com adoração e
recolhimento devoto d'alma--sinceramente exclamava: 'São tres anjos
celestes que é forçoso adorar!..'
E assim é que os adorava os tres anjos, todos tres, e não podia adorar
um sem os outros.
Que me queriam ellas, é certo; que insensivelmente se habituaram á minha
companhia e ja não podiam viver sem ella... ai! era preciso ser um
monstro para o não confessar com lagrymas de gratidão e de remorso.
Os mais difficeis e delicados apices da perfeição de sua tam caprichosa
e tam expressiva lingua, as bellezas mais sentidas de seus auctores
queridos, o espirito e tom difficil de sua sociedade tam desdenhosa e
fastienta, mas tam completa e tam calculada para sublimar a vida e a
desmaterializar--isso tudo, e um indefinivel sentimento do _gentil_, que
so com natural tacto se adquire, é verdade, mas que se não alcansa com
elle so--isso tudo o apprendi alli das suaves licções que
insensivelmente recebia a cada instante.
Se valho alguma coisa, tudo valho por ellas; se tenho merecido alguma
consideração no mundo, toda lh'a devo.
Ves que confesso a dívida, verás como a paguei.
O tom perfeito da sociedade ingleza inventou uma palavra que não ha nem
póde haver n'outras linguas emquanto a civilização as não aparar. _To
flirt_ é um verbo innocente que se conjuga alli entre os dois sexos, e
não significa _namorar_--palavra grossa e absurda que eu detesto--não
significa 'fazer a côrte'; é mais do que estar amavel, é menos do que
galantear, não obriga a nada, não tem consequencias, começa-se,
acaba-se, interrompe-se, addia-se, continúa-se ou descontinúa-se á
vontade e sem compromettimento.
Eu _flartava_, nós _flartavamos_ ellas _flartavam_...
E não ha mais doce nem mais suave intertenimento d'espirito do que o
_flartar_ com uma elegante e graciosa menina ingleza; com duas é prazer
angelico, e com tres é divino.
Para quem nasceu n'aquillo, não é perigoso; para mim degenerou, breve,
aquella placida sensação em mais profundo sentimento.
Veio a admiração primeiro.
E como as eu admirava todas tres as minhas gentis fascinadoras!
E ellas conheciam-n'o, riam, folgavam e estavam incantadas de me
incantar.
Fizeram nascer os desejos!
Julguei-me perdido, e quiz fugir.
Não me deixaram e zombaram de mim, da ardencia do meu sangue hespanhol,
da vehemencia das minhas sensações...
Em breve eu amava perdidamente uma d'ellas--queria muito ás outras duas;
mas amar, amar devéras, d'alma cuidava eu, de coração ia jurá-lo, era a
segunda--Laura, a mais gentil, mais nobre, mais elegante e radiosa
figura de mulher que creio que Deus moldasse n'uma hora de verdadeiro
amor de artista que se dignou tomar por esse pouco de greda que tinha
nas mãos ao formá-la.


CAPITULO XLV.

Carta de Carlos a Joanninha: continúa.

Laura não era alta nem baixa, era forte sem ser gorda, e delicada sem
magreza. Os olhos de um côr-de-avelan diaphano, puro, avelludado,
grandes, vivos, cheios de tal majestade quando se iravam, de tal doçura
quando se abrandavam, que é difficil dizer quando eram mais bellos. O
cabello quasi da mesma côr tinha, demais, um reflexo dourado,
vacillante, que ao sol resplandecia, ou antes, relampejava,--mas a
espaços, não era sempre, nem em todas as posições da cabeça:--cabeça
pequena, modelada no mais classico da statuaria antiga, poisada sôbre um
collo de immensa nobreza, que harmonizava com a perfeição das linhas dos
hombros.
A cintura breve e estreita, mas sem exaggeração, via-se que o era assim
por natureza e sem a menor contrafeição d'arte. O pé não tinha as
exiguidades fabulosas da nossa peninsula, era proporcionado como o da
Venus de Medicis.
Tenho visto muita mulher mais bella, algumas mais adoraveis, nenhuma tam
fascinante.
Fascinante é a palavra para ella.
O rosto oval e perfeitamente symetrico, pallido; so os beiços eram
vermelhos como a rosa de côr mais viva.
A expressão de toda ésta figura é que se não descreve. A bôcca breve e
fina surria pouco; mas quando surria, oh!..
Ve-la n'um baile, vestida e calçada de branco, cingida com um cinto de
vidrilhos pretos--toilete inalteravel para ella desde certa epocha--sem
mais ornato, sem mais flores, apenas um farto fio de perolas
derramando-se-lhe pelo collo--era ver alguma coisa de superior, de mais
sublime que uma simples mulher.
Tal era Laura, Laura que eu amei quanto podia e sabía amar. Era pouco,
sei-o agora; entao parecia-me infinito.
Disse-lh'o a ella, disse-lh'o um dia que passeavamos sós, e depois de
andarmos horas e horas esquecidas, sem trocar uma phrase. Pensavamos, eu
n'ella, ella não sei em quê.
Sería em mim?
Sería mas não m'o confessou.
E ouviu-me sem dizer palavra, sem olhar para mim uma so vez, sem fugir
com a mão que lhe eu appertava, que lhe beijava, e que sentia fria e
humida nas minhas que escaldavam.
Era tarde, dirigimo'-nos para casa. Á porta disse-me: 'Não entre'; e
vi-a banhada em lagrymas. Quiz segui-la, fez-me um gesto imperioso que
me confundiu. Pela primeira vez, depois de tanto tempo, fui so, triste e
melancholico para a minha pobre habitação, onde passei a noite.
Quando era madrugada quiz-me deitar. Não dormi.
No dia seguinte recebi uma carta de Julia: assim se chamava a mais
velha, a mais sensivel e a mais carinhosa das tres irmans.
O bilhete parecia indifferente; não continha senão palavras usuaes,
pedia-me que fosse almoçar com ella... não fallava nas irmans.
Senti que era chegada a minha hora, pareceu-me que ia ser expulso
d'aquelle Eden de innocencia em que tinha vivido. A lettra de Julia, uma
lettra linda, perfeita, natural, figurava-se-me um aggregado de signaes
caballisticos terriveis que incerravam o mysterio da minha condemnação.
Vesti-me, fui, achei-me so com Julia no _parlour_ elegante de seu
exclusivo uso.
Era um pequeno gabinete de estudo, ornado somente de umas _etagères_ com
livros e musicas, uma harpa e um cavallete.
Sôbre o cavallete estava o meu retratto esboçado, na estante da harpa
uma romança franceza a que eu tinha feito lettras portuguezas...
A urna asoviava sôbre a mesa, Julia fazia o cha e não parecia attender a
mais nada.
É preciso que eu te descreva a piquena Julia--Julietta como nós lhe
chamavamos--nós, as duas irmans e eu que rivalizavamos a qual lhe havia
de querer mais...
Oh! que saudade e que remorso para toda a minha vida n'estas recordações
de fraternal intimidade!
Julia era piquena, delicadissima, propriamente infantina no rosto, na
figura, na expressão e no hábito de toda a sua incantadora e diminutiva
pessoa.
Nenhuma ingleza, desde o tempo da rainha Bess, teve pé e _ancle_ mais
delicado. Nenhuma, desde o rei Alfredo, se occupou tam elegantemente dos
elegantes cuidados de um interior britannico--gentil quadro 'de genero'
como não ha outro.
Lady Julia R. era a mais piquena e a mais bonita subdita britannica que
eu creio que tenha existido.
Vista á lua, no meio do seu parque, volteiando por entre os raros
exoticos que no curto verão inglez se expoem ao ar livre, facilmente se
tomava pela bella soberana das fadas realizando aquella preciosa visão
de Shakspeare, o 'Midsumer night's dream.'
Seus olhos de azul celeste, sempre humidos e sempre doces, os cabellos
de um claro e assedado castanho todos soltos em anneis á roda da cabeça
e cahindo pelos hombros, espalhando-se pelo rosto, que era uma lida
contínua para os tirar dos olhos, um corpo airoso, uma bôcca de beijar,
os dentes miudos, alvissimos e apertados, a mão piquena estreita, e de
cera--tudo isto fazia de Julia um typo ideal de bondade, de candura, de
innocencia angelica.
E era um anjo... oh se era!
Contemplei-a muito tempo em silencio: ella surria-me tristemente de vez
em quando, mas não fallava. Emfim almoçámos, levaram o trem.
Ella disse á sua aia:
--'Phebe, eu estou so com Carlos; e quero estar so. Em casa para
ninguem.'
--'Sim, minha senhora.' Resposta obrigada do criado inglez a tudo.
E ficámos sos completamente.


CAPITULO XLVI.

Carta de Carlos a Joanninha: continúa.

Julia levantou finalmente para mim os seus olhos humidos, assombrados
das mais longas e assedadas pestanas que ainda vi em olhos de mulher, e
disse-me:
--'Carlos, eu estou triste. Devia consolar-me; diga-me alguma coisa que
me console. Falle-me.'
--'Que heide eu dizer?..'
--'É um cavalheiro, Carlos: diga-me que o é, e desassombre-me d'este
terror em que estou.'
--'Pois duvída, Julia?..'
--'Não duvido. Queremos-lhe todos muito aqui... muito demais... receio:
como havemos de duvidar?'
--'Oh Julia, perdoe-me!' exclamei eu lançando-me a seus pés, tomando-lhe
as mãos ambas nas minhas, e beijando-lh'as mil vezes n'um paroxysmo de
verdadeira contricção. 'Perdoe-me, Julia: bem sei que fiz mal, e
prometto...'
--'Não prometta nada, senão que hade ser cavalheiro. Isso sei eu e sinto
que o póde cumprir.'
--'Juro por... por ella.'
--'Ella!.. Ella ama-o, Carlos. É melhor dizer a verdade de uma vez, e
incarar todas as consequencias de uma posição difficil, do que
illudir-se a gente sem as evitar. Laura ama-o, mas não deve nem póde
amá-lo. Se fosse livre, não sei o que diria--não sei o que faria eu...
Mas não se tratta de mim'--proseguiu com volubilidade febril--'não se
tratta de mim, Carlos, tratta-se d'ella. Laura não o póde amar, está
compromettida. Hade partir em tres mezes para a India.'
--'Para a India!'
--'Sim: é verdade: velo-ha. O seu noivo é capitão ao serviço da
companhia, e parte em casando.'
Eu sentia-me morrer o coração dentro do peito: foi a primeira dor
verdadeira d'alma que soffri... Aquelle era o primeiro amor sincero da
minha vida, e aquella foi tambem a primeira excruciante pena d'amor por
que passei.
Eu que de taes penas zombára sempre, que as desterrava da realidade para
os romances, eu!.. Ai! que poeta ou que novellista soube nunca pintar um
padecer como eu experimentei n'aquella hora?
Não sei o que fiz nem o que disse; não me recordo senão que senti as
lagrymas de Julia cahirem-me sôbre a face e misturarem-se com as minhas
que corriam em abundancia. Levantei os olhos para ella, e a expressão
que vi nos seus... oh! como a heide esquecer nunca?
Quanto ha de piedade e compaixão no thesouro infinito de um coração
feminino se derramava d'aquelles olhos celestes para me consolar. Lá não
ficava senão uma tristeza profunda, desanimada e mortal...
Não sei que vago pensamento, que idea louca... ou antes, que
presentimento indeterminado e confuso me atravessou pelo espirito--ou
sería pelo coração?--n'aquelle momento...
Se Julia?..
Mas não póde ser.
--'Julia, Julia' bradei eu 'quero vê-la: heide vê-la uma vez ao menos.
Não me negue este último favor. Sei que devo, que preciso, que é forçoso
fugir d'ella. Mas antes heide dizer-lhe...'
--'O quê?..'
--'Que a amo como nunca amei, como nunca mais heide amar...'
--'Ai Carlos!'
--'Que para sempre, sempre...'
Julia levantou-se sem dizer palavra, e lançando sôbre mim um olhar de
ineffavel compaixão, sahiu rapidamente do quarto.
Achei-me so, não sei o que pensei nem se pensei. Sentia-me aturdido da
cabeça, exhausto do coração--n'uma depressão d'espirito que tocava na
estupidez. Se me apontassem uma pistola aos peitos, não levantava o
braço para a arredar... Ja não sentia pena nem desejo. Parecia-me que
começava a morrer; e não achava que morrer custasse muito.
N'este estado fiquei não sei que tempo; muito não foi. Percebi que se
abria a porta, não tive fôrça para levantar os olhos. Até que senti uma
doce e querida mão na minha... era Julia... e era Laura tambem... sancto
Deus! que estavam aopé de mim ambas.
Julia tinha a minha mão na sua; e Laura incostada ao hombro da irman,
deixava cahir sôbre mim aquelles olhos em que a severidade habitual se
tinha relaxado n'uma indulgencia tam doce, n'uma compaixão tam celeste
que, juro por Deus, n'aquella hora acreditei firmemente que tinha deante
de mim dous anjos seus, baixados nas azas da piedade divina para me
trazer todo o perdão, toda a misericordia do ceo á minha alma.
Como te direi eu, Joanna, querida Joanninha, como te direi a ti que me
amas, a ti que eu amo--porque te amo, e Deus me castigue que deve!
porque te amo, cegamente te amo com este infame e abominavel coração que
Elle me deu--como te heide eu dizer a ti, e para quê, as palavras que
alli dissemos, os protestos que alli fiz, os juramentos que alli se
deram, as promessas que alli foram trocadas?
Julia foi para a janella--indulgente chaperão que nos não via e fingia
não nos ouvir. O dia passou-se assim, um longo dia de junho que tam
curto e rapido nos pareceu. Era noite quando fomos jantar.
Á mesa Laura appareceu em trajos de viagem; partia n'aquella noite para
o paiz de Galles onde tinha uma amiga, com quem ia estar até o dia
terrivel, e preparar-se para elle, me disse, longe de mim, no seio da
amizade.
Imagine-se aquelle jantar. Nem comer fingiamos. Ao sahir da mesa achámos
á porta da casa a caleche posta, o cocheiro na almofada, e o criado á
portinhola. Montámos, as tres irmans e eu.
Eram duas milhas d'alli á estalagem onde tocava a malla-posta e onde
Laura devia incontrá-la. Fizemo-las sem proferir palavra nenhum dos
quatro.
A lua ia grande e bella com sua luz triste e fria por um ceo sem nuvens.
Era uma d'aquellas noites raras, mas admiraveis do breve estio
britannico.
A areia que rangia com o attrito das rodas da carruagem nas lisas ruas
do parque, os ramos descahidos das árvores por que roçavamos levemente
ao passar, os veados mansos que se levantavam para nos ver--os phaesães
que erguiam seu rasteiro voo de moita para moita ao sentir o estalido do
chicote, com que o cocheiro mais moderava do que excitava os seus
cavallos, tudo para mim eram impressões de nunca sentida e inexplicavel
tristeza. Ficava-me a alma apoz tudo aquillo, sentia fugir-me a
felicidade para sempre, e que era eu que a affugentava, e que me ia
incontrar so, desamparado e proscripto no deserto da vida.
Não me sentia fôrça para blasphemar, para maldizer de Deus, senão
tinha-o feito.
Tinha: e outras ancias mais angustiadas e mortaes me teem afflicto na
vida; em nenhuma me senti tam capaz de renegar de Deus e descrer d'elle
como n'esta.
Sería effeito de sua inexhaurivel piedade que talvez quiz acudir á minha
alma antes que se perdesse, sería por certo--pois n'esse mesmo instante
distinctamente me appareceu deante dos olhos d'alma a unica imagem que
podia chamá-lo do abysmo: era a tua, Joanna! Era a minha Joanninha
piquena, innocente, aquelle anginho de criança, tam viva, tam alegre,
tam graciosa que eu tinha deixado a brincar no nosso valle: o nosso
valle rustico, tam grosseiro e tam inculto! oh como as saudades d'elle
me foram alcançar no meio d'aquellas allinhadas e perfeitas bellezas da
cultura britannica! Os raios verdes de teus olhos, faiscantes como
esmeraldas, atravessaram o espaço, e foram luzir no meio d'aquell'outros
lumes que me cegavam. A esteva brava, o tojo aspero da nossa charneca
mandavam-me ao longe as exhalações de seu perfume agreste, e matavam o
suave cheiro do feno macio d'essas relvas sempre verdes que me rodeavam.
As folhas crespas, sêccas, alvacentas das nossas oliveiras como que me
luziam por entre a espessura cerrada da luxuriante vegetação do norte,
promettendo-me paz ao coração, annunciando-me o fim de uma peleja em que
m'o dilaceravam as paixões.
E tu, Joanna, tu, pobre innocente, e desvallida criancinha, tu
apparecias-me no meio de tudo isso, extendendo para mim os teus
bracinhos amantes como no dia que me despedira de ti n'esse fatal,
n'esse querido, n'esse doce e amargo valle das minhas lagrymas e dos
meus risos, onde so me tinham de correr os poucos minutos de felicidade
verdadeira da minha vida, onde as verdadeiras dores da minha alma tinham
de m'a cortar e destruir para sempre...
Oh! de quê e como é feito o homem, para quê e porque vive elle? Que vim
eu, que vimos nós todos fazer a este mundo?
Eu sentado alli nas almofadas de seda d'aquella splendida e macia
carruagem, rodeado de tres mulheres divinas que me queriam todas, que eu
confundia n'uma adoração mysteriosa e mystica--cego, louco d'amores por
uma d'ellas, no momento de lhe dizer adeus para sempre... eu tinha o
pensamento fixo n'uma criança que ainda andava ao collo!--Revendo-me nos
olhos pardos de Laura que eu adorava, eram os teus olhos verdes que eu
tinha n'alma! Os sentidos todos embriagados d'aquelle perfume de luxo e
civilização que me cercava,--era o nosso valle rustico e selvagem o que
eu tinha no coração...
Oh! eu sou um monstro, um aleijão moral devéras, ou não sei o que sou.
Se todos os homens serão assim?
Talvez, e que o não digam.
Joanna, minha Joanna, minha Joanninha querida, anjo adorado da minha
alma, tem compaixão de mim, não me maldigas. Não quero que me perdoes,
nem tu nem ninguem, que o não mereço: mas que tenhas dó e lástima de
mim.
Ai! que isso mereço eu, oh sim.
Deixa-me parar aqui. Falta-me o ânimo para me estar vendo a este
terrivel espelho moral em que jurei mirar-me para meu castigo, d'onde
estou copiando o horroroso retratto de minha alma que te desenho n'este
papel.
Sabía que era monstro, não tinha examinado por partes toda a hediondez
das feições que me reconheço agora.
Tenho espanto e horror de mim mesmo.


CAPITULO XLVII.

Carta de Carlos a Joanninha: continúa.

Chegámos ao Inn (estalagem), triste casa solitaria no meio dos campos á
borda da estrada. A malla chegava ao mesmo tempo quasi.
Eu dei a mão a Laura para sahir da caleche e entrar no coche; e apenas
tivemos tempo para um convulsivo shake-hands e para nos dizer adeus!
adeus! com a affectada seccura que exige a lei das conveniencias
britannicas.
A malla partiu ao grande trote... E dir-te-hei a verdade ou queres que
minta? Não, heide dizer-te a verdade. Pois senti como um alívio
desesperado, uma consolação cruel em a ver partir. Senti o que imagino
que deve sentir um infêrmo depois da operação dolorosa em que lhe
amputaram parte do corpo com que já não podia viver, e que era forçoso
perder ou perder a vida.
Tambem deve de ser assim a morte: um descanço apathico e nullo depois de
inexplicavel padecer.
Era como morto que eu estava; não soffria pois.
E ja não pensava em ti, ja te não via na minha alma: eu não existia,
estava alli.
Voltámos ao parque; apeei silenciosamente as minhas duas gentis
companheiras, e eu fui so, apé, com passo firme e resoluto para a minha
habitação. Nenhuma d'ellas me procurou retter, nem me disse nada, nem
tentou consolar-me. Paraquê?
L. William R. chegava, na manhan seguinte, de uma de suas habituaes
excursões a Londres. Veio ver-me assim que chegou, e trazer-me cartas de
Portugal que eu esperava ha muito.--Disse-me que partia no outro dia
para Swansea, a terra de Galles para onde Laura fôra; e que me
incarregava de fazer companhia ás duas filhas que ficavam sos.
A mim!..
Estive tres dias sem as ver: em todos tres não fiz mais do que escrever
a Laura.
No quarto dia fui ao parque. Julia deu um grito de alegria quando me
viu: raro exemplo de excepção ás formuladas regras que tyrannizam a vida
ingleza, que prescrevem até a cara com que se hade morrer, e teem
graduado o tom em que se deve exhalar o último suspiro.
Mas a natureza chega a triumphar ás vezes até da propria etiqueta
britannica.
Julia cuidava que eu não queria voltar áquella casa, tinha-se resignado
a não tornar a ver-me; não pôde reprimir a alegria que lhe causou a
minha inexperada apparição.
Passámos todo o dia junctos e sos: quasi todo se nos foi passeando no
parque, ou sentados á sombra de seus espessos arvoredos, ou mirando-nos
nas crystallinas aguas de uma vasta represa povoada de aves aquaticas e
rodeada d'aquelles immensos mantos de velludo verde de que perpetuamente
se infeita a terra ingleza e que so desapparecem quando vem o hynverno
extender-lhe porcima seus alvos lençoes de neve.
Quiz ver o que eu escrevia á irman; dei-lhe a carta, leu-a, meditou-a,
restituiu-m'a sem dizer palavra.
Que horas passámos n'este silencio, n'esta eloquente mudez que não vem
senão do muito de mais que a alma sente, do muito de mais que diria se
fallasse!
Á despedida, essa noite, deu-me uma bolsa de rede que Laura tinha estado
fazendo para mim e que lhe deixára para me intregar. Senti que tinha
dentro o que quer que fosse a bolsa, não quiz examinar. Achei, quando
voltei a casa, que era o _fadado cinto_ de vidrilhos pretos que eu tanto
tinha admirado em certo baile onde foramos junctos, e que Laura não
deixára de pôr nunca mais em se vestindo de branco e que fizesse alguma
toilette.
Ainda o conservo aquelle cinto precioso, Joanna; ainda a tenho, no meu
thesoiro mais guardado, aquella joia, aquella reliquia. E amo-te, e
amo-te a ti so como realmente nunca amei nem poderei tornar a amar. Mas
aquelle cinto é uma sorte, um talisman, um amuleto em que está o meu
destino.
Amei... isto é, amei... pois sim, amei, ja que não ha outra palavra
n'estas estupidas linguas que fallam os homens; pois amei outras
mulheres, e nos dias de maior enthusiasmo por ellas, não deixei nunca de
beijar devotamente aquelle cinto, de o appertar sôbre o meu coração, de
me incommendar a elle--como o salteador napolitano se incommenda ao
escapulario da madona que traz ao peito, com as mãos insanguentadas de
matar, ou carregado do roubo que acaba de fazer.
Ai, Joanna, não te digo eu que estou perdido, sem remedio, e que para
mim não ha, não póde haver salvação nunca?
Vivi assim dois mezes. Laura não me escrevia: recebia as minhas cartas e
respondia a Julia: por este modo nos correspondiamos. Julia era parte de
nós, era uma porção do nosso amor, viviamos n'ella a nossa vida. E ja as
confundia ambas por tal modo no meu coração que me surpreendia a não
saber a qual queria mais. Julia parecia feliz d'este estado; eu era-o.
Insensivelmente me habituei a elle, ja não tinha saudades do passado. E
quando se approximou o casamento de Laura, que ella tinha de voltar de
Galles, e que eu, fiel ao que promettêra, devia pretextar negócio
urgentissimo em Londres que me obrigasse a ausentar-me até á sua partida
para a India, eu tive uma pena, uma difficuldade em cumprir o que
promettêra que me invergonhava.
Parti porêm; e alli me demorei um mez. Julia escrevia-me todos os dias e
eu a ella. Na véspera do dia fatal em que Laura ia ser de outro homem,
Julia escreveu-me éstas palavras sos:--'O nosso romance acabou; começa
uma historia séria. Laura manda-lhe o seu último adeus.'
E nunca mais se escreveu nem se pronunciou o nome de Laura entre nós
dous.
O galeão que me levava para o Oriente as ruinas de toda a minha
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