Viagens na Minha Terra - 08

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para aquelle pôsto, bem contava, bem esperava elle, estando alli, saber
de mais perto da sua familia, vê-los talvez, mais dia menos dia,
incontrar-se com alguns d'elles... e de todos elles, a innocente e
graciosa criança com quem vivêra como irmão desde os seus primeiros
annos, era quem elle mais esperava, mais desejava ver decerto.
Mas uma criança era a que elle tinha deixado, uma criança a brincar, a
colhêr as boninas, a correr atraz das borboletas do valle... uma criança
que sim o amava ternamente, cuja suave imagem o não tinha deixado nunca
em sua longa peregrinação, cuja saudade o accompanhára sempre, de quem
se não esquecêra um momento, nem nos mais alegres nem nos mais
occupados, nem nos mais difficeis nem nos mais perigosos da sua vida...
Mas era uma criança!.. era a imagem d'uma criança.
É certo, sim: e nas batalhas, em presença da morte... no longo cêrco do
Porto entre os flagellos da cholera e da fome, nas horas de mais viva
esperança, no descoroçoamento dos mais tristes dias, a doce imagem de
Joanninha, d'aquella Joanninha com quem elle andava ao colo, que
levantava em seus hombros para ella chegar aos ninhos dos passaros no
verão, aos medronhos maduros no outomno, que elle suspendia nos braços
para passar no hynverno os alagadiços do valle,--essa querida imagem não
o abandonára nunca.
Nunca!.. nem quando as pennas d'amor, nem quando as suas glórias--mais
esquecidiças ainda!--pareciam absorver-lhe todos os sentidos, e todo o
sentimento de seu coração.
A saudade, a memoria de Joanninha, suavemente impressa no mais puro e no
mais sancto de sua alma, resplandecia no meio de todas as sombras que
lh'a obscurecessem, sobreluzia no meio de qualquer fogo que lh'a
allumiasse.
Uma luz quieta, limpida, serena como a tocha na mão do anjo que ajoelha
em innocencia e piedade deante do throno do Eterno!
Mas, no mesmo dia em que chegou ao valle, quasi na mesma hora, cheio
d'aquella luz, mais viva e animada agora pela proximidade do foco d'onde
sahia... n'essa mesma hora, ir incontrar alli, n'aquella solidão, entre
aquellas árvores, á tibia e seductora claridade do crepusculo... a quem,
sancto Deus! Não ja a mesma Joanninha de ha tres annos, não a mesma
imagem que elle trazia, como a levára, no coração; mas uma gentil e
airosa donzella, uma mulher feita e perfeita, e que nada perdêra,
comtudo, da graça, do incanto, do suave e delicioso perfume da
innocencia infantil em que a deixára!
Não esperava, não estava preparado para a impressão que recebeu, foi uma
surpreza, um choque, um reviramento confuso de todas as suas ideas e
sentimentos.
Qual fosse porêm a precisa e verdadeira impressão que recebeu, nem elle
a si proprio o podéra explicar: era de um genero novo, unico na historia
de suas sensações: não a conhecia, extranhava-a, e quasi que tinha medo
de a analysar.
Sería annúncio d'amor?
Mas elle tinha amado, amado muito e devéras... e cuidava amar ainda, e
devia amar; por quanto ha sagrado e sancto nos deveres do coração, era
obrigado a amar ainda.
Oh obrigações d'amor, obrigações d'amor! se vós não sois, se vós ja não
sois senão obrigações!..
Não o pensava Carlos, não o cria elle assim: leal e sincero tinha
intregue o seu coração á mulher que o amava, que tantas próvas lhe dera
d'amor e devoção; que descançava em sua fé, que não existia senão para
elle: mulher môça, bella, cheia de prendas e de incantos, mulher de um
espirito, de uma educação superior, que atravessára, desprezando-as,
turbas de adoradores nobres, riccos, poderosos, para descer até elle,
para se intregar ao foragido, pobre, extrangeiro, desprezado.
Quem era essa mulher?
Aonde, como obtivera elle a posse d'essa joia, d'esse talisman com o
qual se tinha por tam seguro para não ver na graciosa prima senão?..
Senão o quê?
A innocente criança que alli deixára?
Mas não é verdade isso: outra era a impressão que Joanninha lhe fizera,
fosse ella qual fosse.
O que era então?
E sôbre tudo, quem era ess'outra mulher que elle amava?
E amava-a elle ainda?
Amava.
E Joanninha?
Joanninha era... nem eu sei o que lhe era Joanninha... o que lhe estava
sendo n'aquelle momento.
O que lhe ella fôra, assas t'o tenho explicado, leitor amigo e benevolo:
o que lhe ella será... Pódes tu, leitor candido e sincero,--aos
hypocritas não fallo eu--pódes tu dizer-me o que hade ser ámanhan no teu
coração a mulher que hoje somente achas bella, ou gentil, ou
interessante?
Pódes responder-me da parte que tomará ámanhan na tua existencia a
imagem da donzella que hoje contemplas apenas com olhos de artista, e
lhe estás notando, como em quadro gracioso, os finos contornos; a pureza
das linhas, a expressão verdadeira e animada?
E quando vier, se vier, esse fatal dia de ámanhan, responder-me-has
tambem da parte que ficará tendo em tua alma ess'outra imagem que lá
estava d'antes e que, ao reflexo d'esta agora, d'aqui observo que vai
impallidecendo, descórando... ja lhe não vejo senão os lineamentos
vagos... ja é uma sombra do que foi... Ai! o que será ella ámanhan?
Leitor amigo e benevolo, caro leitor meu indulgente, não accuses, não
julgues á pressa o meu pobre Carlos; e lembra-te d'aquella pedra que o
Filho da Deus mandou levantar á primeira mão que se achasse innocente...
A adultera foi-se em paz, e ninguem a apedrejou.
Pois é verdade: Carlos tinha amado, amado muito, e amava ainda a mulher
a quem promettêra, a quem estava resolvido a guardar fé. E essa mulher
era bella, nobre, ricca, admirada, occupava uma alta posição no mundo...
e tudo lhe sacrificára a elle exilado, desconhecido.
E Carlos estava seguro que nenhuma mulher o havia de amar como ella; que
os longos e ondados anneis de loiro cendrado, que os languidos olhos de
gazella, que o ar majestoso e altivo, que a tez d'uma alvura celeste,
que o espirito, o talento, a delicadeza de Georgina... Chamava-se
Georgina; e é tudo quanto por agora póde dizer-vos, ó curiosas leitoras,
o discreto historiador d'este mui veridico successo: não lhe pergunteis
mais, por quem sois. Carlos estava seguro, dizia eu, que todas essas
perfeições, que o seu amor sem limites, que a sua confiança sem reserva,
não podiam ter rival, nem a haviam de ter.
Mas aquelle beijo, aquelle abraço de Joanninha... oh! que lhe tinha elle
feito? Como o sentíra elle? Como lhe guardára o seu talisman o coração e
a alma?..
Não, Carlos estava certo de si, certo do seu antigo amor, lembrado de
quanto lhe devia: e n'isso reflectiu toda aquella noite que se fôra em
claro.
A imagem de Joanninha lá apparecia, de vez em quando, como um raio de
luz transiente e magica, no meio d'ess'outras visões do passado que a
reflexão lhe acordava. Ai! essas era a reflexão que as acordava...
aquella vinha espontanea; era repellida, e tornava, e tornava...
Ha sua notavel differença n'estes dois modos de accudir ao pensamento.
A manhan veio em fim; Carlos respirou o ar puro e vivo da madrugada,
sentiu-se outro.
Quando chegou a carta de Joanninha, leu-a e reflectiu n'ella sem
sobresalto. Certo e seguro de si, resolveu ir ao prazo dado para a
tarde.


CAPITULO XXIII.

Continúa a accudir muita coisa vaga e incontrada ao pensamento de
Carlos.--Dança de fadas e duendes.--Fr. Diniz o fado-mau da
familia.--Veremos, é a grande resolução nas grandes
difficuldades.--Carlos poeta romantico.--Olhos verdes.--Desafio a
todos os poetas moyen-ages do nosso tempo.

Não ha nada como tomar uma resolução.
Mas hade tomar-se e executar-se: aliás, se o caso é difficil e
complicado, pouco a pouco as dúvidas solvidas começam a inliar-se outra
vez, a inredar-se... a surgir outras novas, a appresentarem-se faces
ainda não vistas da questão... em fim, se o intervallo é largo, quando a
resolução tomada chega a executar-se, a maior parte das vezes ja não é
por fôrça de razão e convicção que se faz, mas por capricho, ponto
d'honra, teima.
Carlos tinha resolvido ir ao prazo dado, no fim do dia. Mas o dia era
longo, custou-lhe a passar. Todas as ponderações da noite lhe recorreram
ao pensamento, todas as imagens que lhe tinham fluctuado no espirito se
avivaram, se animaram, e lhe começaram a dançar n'alma aquella dança de
fadas e duendes que faz a delicia e os tormentos d'estes sonhadores
acordados que andam pelo mundo e a quem a douta faculdade chama
_nervosos_; em stylo de romance _sensiveis_, na phrase popular
_malucos_.
Carlos era tudo isso: para que o heide eu negar?
Entre aquellas imagens que assim lhe bailavam no pensamento, vinha uma
agora... talvez a que elle via mais distincta entre todas, a da avó que
tanto amára, em cujo maternal coração elle bem sabía que tinha a
primeira, a maior parte... da avó que tam carinhosa mãe lhe tinha sido!
Pobre velhinha, hoje decrepita e cega... Cega, coitada! Como e porque
cegaria ella?
Havia ahi mysterio que Joanninha indicára, mas que não explicou.
Atraz da paciente e humilhada figura d'aquella mulher de dores e
desgraças, se erguia um vulto austero e duro, um homem armado da cabeça
aos pés de ascetica insensibilidade, um homem que parecia o fado-mau
d'aquella velha, de toda a sua familia... o cumplice e o verdugo de um
grande crime... um ser de mysterio e de terror.
Era Fr. Diniz aquelle homem; homem que elle desejava, que elle cuidava
detestar, mas por quem, no fundo d'alma, lhe clamava uma voz mystica e
íntima, uma voz que lhe dizia: 'Assim será tudo, mas tu não pódes
abhorrecer esse homem.'
Sim, mas sôbre Fr. Diniz pesava uma accusação tremenda, que o fizera, a
elle Carlos, abandonar a casa de seus paes! Accusação horrivel que
tambem comprehendia a pobre velha, aquella avó que o adorava, e que
elle, ainda criminosa como a suppunha, não podia deixar de amar...
E d'estes medonhos segredos sabía Joanninha alguma coisa?
Esperava em Deus que não.
Desconfiaria alguma coisa?... O quê?
E iria elle polluir o pensamento, desflorar os ouvidos, corromper os
labios da innocente criança com o esclarecimento de taes horrores?
Havia de lhe fallar na infamia dos seus? Havia de lhe explicar o motivo
porque fugira da casa paterna?
Havia de?..
Não.--Se Joanninha tivesse suspeitas, havia de destrui-las antes; se
ella soubesse alguma coisa, negar-lh'a.
Mentiria, juraria falso se fosse preciso.
E não havia de ir ver a avó, não havia de entrar na casa dos seus a
consolar a infeliz que só vivia d'uma esperança, a de ver o filho de sua
filha?
Não, nunca... O limiar d'aquella porta, que elle julgava contaminado,
infame, manchado de sangue e cuspido de opprobrios e deshonras, tinha-o
passado sacudindo o po de seus sapatos, promettendo a Deus e á sua honra
de o não tornar a cruzar mais.
Mas que diria então elle a Joanninha? Como havia de explicar-lhe um
proceder tam extranho, e apparentemente tam cruel, tam ingrato?
Por emquanto as impossibilidades materiaes da guerra serviriam de
desculpa, depois o tempo daria conselho.
_Veremos_!--é a grande resolução que se toma nas grandes difficuldades
da vida, sempre que é possivel espaçá-las.
Carlos disse: '_Veremos!_'
Tomou todas as disposições para podêr estar seguro e socegado no sítio
onde ia incontrar a prima: e o resto do dia, ancioso mas contente,
occupou-se de seus deveres militares, fatigou o corpo para descançar o
espirito, e em parte e por bastantes horas o conseguiu.
Mas um dia de abril é immenso, interminavel. E as últimas horas pareciam
as mais compridas. Nunca houve horas tammanhas! Carlos ja não tinha que
inventar para fazer: pôz-se a pensar.
Que remedio!
Pensou n'isto, pensou n'aquillo... uma idea lhe vinha, outra se lhe ia.
A imaginação, tanto tempo comprimida, tomava o freio nos dentes e corria
á redea sôlta pelo espaço...
Anneis dourados, transas de ebano, faces de leite e rosas como de
cherubins, outras pallidas, transparentes, diaphanas como de princezas
incantadas, olhos pretos, azues, verdes... os de Joanninha em fim...
todas éstas feições, confusas e indistinctas mas de estremada belleza
todas, lhe passavam deante da vista, e todas o infeitiçavam. O
desgraçado...--Porque não heide eu dizer a verdade?--o desgraçado era
poeta.
Inda assim! não me esconjurem ja o rapaz... Poeta, intendamo'-nos; não é
que fizesse versos: n'essa não cahiu elle nunca, mas tinha aquelle fino
sentimento d'arte, aquelle sexto sentido do _bello_, do _ideal_ que so
teem certas organizações privilegiadas de que se fazem os poetas e os
artistas.
Eis aqui um fragmento de suas aspirações poeticas. Vejam as amaveis
leitoras que não teem metro, nem rhyma--nem razão... Mas emfim versos
não são.

'Olhos verdes!..
'Joanninha tem os olhos verdes...
'Não se reflecte n'elles a pura luz do ceo, como nos olhos azues.
'Nem o fogo--e o fummo das paixões, como nos pretos.
'Mas o viço do prado, a frescura e animação do bosque, a fluctuação e a
transparencia do mar...
'Tudo está n'aquelles olhos verdes.
'Joanninha, porque tens tu os olhos verdes?
'Nos olhos azues de Georgina arde, em sereno e modesto brilho, a luz
tranquilla de um amor provado, seguro, que deu quanto havia de dar,
quanto tinha que dar.
'Os olhos azues de Georgina não dizem senão uma so phrase d'amor, sempre
a mesma e sempre bella: _Amo-te, sou tua!_
'Nos olhos negros e inquietos de Soledade nunca li mais que éstas
palavras: _Ama-me, que es meu!_
'Os olhos de Joanninha são um livro immenso, escripto em characteres
moveis, cujas combinações infinitas excedem a minha comprehensão.
'Que querem dizer os teus olhos, Joanninha?
'Que lingua fallam eles?
'Oh! paraque tens tu os olhos verdes, Joanninha?
'A assucena e o jasmim são brancos, a rosa vermelha, o alecrim azul...
'Roxa é a violeta, e o junquilho côr de ouro.
'Mas todas as côres da natureza vêem de uma so, o verde.
'No verde está a origem e o primeiro typo de toda a belleza.
'As outras côres são parte d'ella; no verde está o todo, a unidade da
formosura creada.
'Os olhos do primeiro homem deviam de ser verdes.
'O ceo é azul...
'A noite é negra...
'A terra e o mar são verdes...
'A noite é negra mas bella: e os teus olhos, Soledade, eram negros e
bellos como a noite.
'Nas trevas da noite luzem as estrellas que são tam lindas... mas no fim
de uma longa noite quem não suspira pelo dia?
'E que se vão... oh! que se vão emfim as estrellas!..
'Vem o dia... o ceo é azul e formoso: mas a vista fatiga-se de olhar
para elle.
'Oh! o ceo é azul como os teus olhos, Georgina...
'Mas a terra é verde: e a vista repousa-se n'ella, e não se cança na
variedade infinita de seus matizes tam suaves.
'O mar é verde e fluctuante... Mas oh! esse é triste como a terra é
alegre.
'A vida compõe-se de alegrias e tristezas...
'O verde é triste e alegre como as felicidades da vida.
'Joanninha, Joanninha, porque tens tu os olhos verdes?..'

Ja se vê que o nosso doutor de bivac, o soldado que lhe chamou _maluco_
ao pensador de taes extravagancias, tinha razão e sabía o que dizia.
Infelizmente não se formulavam em palavras estes pensamentos poeticos
tam sublimes. Por um processo milagroso de photographia mental, apenas
se pôde obter o fragmento que deixo transcripto.
Que honra e glória para a eschola romantica se podessemos ter a
collecção completa!
Fazia-se-lhe um prefacio incisivo, palpitante, _britante_....
Punha-se-lhe um titulo vaporoso, phosphorescente... por exemplo:--Echos
surdos do coração--ou--Reflexos d'alma--ou--Hymnos
invisiveis--ou--Pesadellos poeticos--ou qualquer outro d'este genero,
que se não soubesse bem o que era nem tivesse senso commum.
E que viesse ca algum menestrel de frak e chapeu redondo, algum trovador
renascença de collete á Joinville, luctar com o meu Carlos em pontos de
romantismo vago, descabellado, vaporoso, e nebuloso!
Se algum d'elles era capaz de escrever com menos logica,--(com menos
grammatica, sim) e com mais triumphante desprêzo das absurdas e
escravizantes regras d'essa paleta d'essa eschola classica que não
produziu nunca senão Homero e Virgilio, Sophocles e Horacio, Camões e o
Tasso, Corneille e Racine, Pope e Moliere, e mais algumas duzias de
outros nomes tam obscuros como estes?


CAPITULO XXIV.

Novo Génesis.--O Adam social muito differente do Adam
natural.--Carlos sempre um por seus bons instinctos, sempre outro
por suas más reflexões.--De como Joanninha recebeu o primo com os
braços abertos, e do mais que entre elles se passou.--Dor meia dor,
meia prazer.

Formou Deus o homem, e o pôs n'um paraizo de delicias; tornou a formá-lo
a sociedade, e o pôs n'um inferno de tolices.
O homem--não o homem que Deus fez, mas o homem que a sociedade tem
contrafeito, appertando e forçando em seus moldes de ferro aquella pasta
de limo que no paraizo terreal se affeiçoára a imagem da divindade--o
homem, assim aleijado como nós o conhecêmos, é o animal mais absurdo, o
mais disparatado e incongruente que habita na terra.
Rei nascido de todo o creado, perdeu a realeza; principe desherdado e
proscripto, hoje vaga foragido no meio de seus antigos estados; altivo
ainda e suberbo com as recordações do passado, baixo vil e miseravel
pela desgraça do presente.
D'estas duas tam oppostas actuações constantes, que ja per si sos o
tornariam ridiculo, formou a sociedade, em sua van sabedoria, um systema
chymerico, desarrazoado e impossivel, complicado de regras a qual mais
desvairada, incontrado de repugnancias a qual mais opposta. E vazado
este perfeito modêlo de sua arte pretenciosa, metteu dentro d'elle o
homem, desfigurou-o, contorceu-o, fê-lo o tal ente absurdo e
disparatado, doente, fraco, rachitico; collocou-o no meio do Eden
phantastico de sua creação,--verdadeiro inferno de tolices--e disse-lhe,
invertendo com blasphêmo arremêdo as palavras de Deus Creador:
'De nenhuma árvore da horta comendo comerás;
'Porêm da árvore da sciencia do bem e do mal, d'ella so comerás se
quizeres viver.'
Indigestão de sciencia que não commutou seu mau estomago, presumpção e
vaidade que d'ella se originaram--tal foi o resultado d'aquele preceito
a que o homem não desobedeceu como ao outro: tal é o seu estado
habitual.
E quando as memorias da primeira existencia lhe fazem nascer o desejo de
sahir d'esta outra, lhe influem alguma aspiração de voltar á natureza e
a Deus, a sociedade, armada de suas barras de ferro, vem sôbre elle, e o
prende, e o esmaga, e o contorce de novo, e o apperta no equuleo
doloroso de suas fôrmas.
Ou hade morrer ou ficar monstruoso e aleijão.
...........................................................................
...........................................................................
Poucos filhos do Adam social tinham tantas reminiscencias da outra
patria mais antiga, e tendiam tanto a aproximar-se do primitivo typo que
sahíra das mãos do Eterno, forcejavam tanto por sacudir de si o pesado
appêrto das constricções sociaes, e regenerar-se na sancta liberdade da
natureza, como era o nosso Carlos.
Mas o melhor e o mais generoso dos homens segundo a sociedade, é ainda
fraco, falso e acanhado.
Demais, cada tentativa nobre, cada aspiração elevada de sua alma lhe
tinha custado duros castigos, severas e injustas condemnações d'esse
grande juiz hypocrita, mentiroso e venal... o mundo.
Carlos estava quasi como os mais homens... ainda era bom e verdadeiro no
primeiro impulso de sua natureza excepcional; mas a reflexão descia-o á
vulgaridade da fraqueza, da hypocrisia, da mentira commum.
Dos melhores era, mas era homem.
Os seus pensamentos, as suas considerações em toda aquella noite, em
todo o dia que a seguíra, na hora mesma em que ia incontrar-se com o
objecto que mais lhe prendia agora o espírito, senão é que tambem o
coração, todas participavam d'aquella fluctuação inquieta e doentia de
seu ser d'homem social, em quem o tibio reflexo do homem natural apenas
relampejava por acaso.
Dúvida, incerteza, vaidade, mentira deslocavam e annullavam a bella
organização d'aquella alma.
Assim chegou aopé de Joanninha que o esperava de braços abertos, que o
appertou n'elles, que o beijou sem nenhum falso recato de maliciosa
modestia, e com o riso da alegria no coração e na bôcca lhe disse:
--'Ora pois, meu Carlos, sentemo-nos aqui bem junctos aopé um do outro e
conversemos, que temos muito que fallar. Dá ca a tua mão. Aqui na
minha... Está fria a tua mão hoje! E hontem tam quente estava!.. Oh!
agora vai aquecendo... tanto tanto... é demais! Terás tu febre?'
--'Não tenho.'
--'Não tens, não: a cara é de saude. E como tu estás forte, grande, um
homem como eu sempre imaginei que um homem devia ser, como sempre te via
nos meus sonhos!.. Que é extranho isto, Carlos: quando sonhava comtigo,
não te via como tu d'aqui foste, magro, triste e doente; via-te como
vens agora, forte, são, alegre. Mas tu não estás alegre hoje, como
hontem; não estás... Que tens tu?'
--'Nada, querida Joanninha, não tenho nada. Pensava...'
--'Em que pensas tu? dize-me.'
--'Pensava na differença dos nossos sonhos: que eu tambem sonhava
comtigo.'
--'Sonhavas, Carlos! E como sonhavas tu? como me vias nos teus sonhos?'
--'Tudo pelo contrario do que tu. Via-te aquella Joanninha piquena,
desinquieta, travêssa, correndo por essas terras, saltando essas vallas,
trepando a essas árvores... aquella Joanninha com quem eu andava ao
collo, que trazia ás cavalleiras, que me fazia ser tam doido e tam
criança como ella, apezar de eu ter quinze annos mais. Via-te alegre,
cantando...'
--'Sonhos de homem! Creiam n'elles! Eu que nunca mais ri nem brinquei
desde o dia que tu partiste... E oh que dia, Carlos!.. E os que vieram
depois! Não houve nunca mais um so dia de alegria n'ésta casa. Oh!..
deixa-me te dizer: Fr. Diniz... Sabes que não gósto d'elle?'
--'Não gostas?'
--'Nada: tenho-lhe aversão. E Deus me perdoe! parece-me que é injusta a
minha antipathia.'
--'Porquê?'
--'Porque elle é teu amigo devéras. Um pae, Carlos, um pae não tem maior
ternura e desvellos por seu filho, do que elle tem por ti.'
--'Deus lhe perdoe!'
--'Deus lhe perdoe a quem...e que lhe hade perdoar? O amor que te tem?'
--'Não, mas...'
--'Bem sei o que queres dizer: e tens razão.'
--'Tenho razão!'
--'Tens: o que elle bem precisa que Deus lhe perdoe é um grande
peccado.'
--'Que dizes tu, Joanna! E como sabes?'
--'Sei, sei tudo.'
--'Tu!'
--'Eu. Sei que foi elle quem fez cegar minha avó... a nossa boa, a nossa
sancta avó, Carlos!.. quem a cegou á fôrça de lagrymas que lhe fez
chorar áquelles pobres olhos que, de puro cançados, se apagaram para
sempre... Minha ricca avó!--E porquê, meus Deus, porquê!'
--'Porquê?'
--'Por amor de ti, por escrupulos que lhe metteu na cabeça de tu seres
mau christão, inimigo de Deus, que te não podias salvar... tu meu
Carlos! Vê que cegueira a do triste frade.'
--'Bem triste!'
--'Mas olha que o diz de boa-fé e pelo muito amor que te tem... que é um
amor que eu não intendo: e o mesmo é com minha avó, que treme deante
d'elle. E mais elle estima-a, estou certa que dava a vida por ella... e
por nós todos... por mim não tanto, mas por ti e por ella, dava decerto.
Mas o seu amor é dos que rallam, que, apoquentam... quasi que estou em
dizer que matam.'
--'Matam, matam!'
--'Nossa avó é elle que a mata decerto. Sempre a metter-lhe medos,
sempre escrupulos! O seu Deus d'elle é um Deus de terrores, de
vinganças, de castigos, e sem nenhuma misericordia. Oh! que homem! para
elle tudo é peccado, maldade... Não o posso ver.'
Carlos respirava como desopprimido de um grande pêso, ouvindo as
explicações da prima que bem claro lhe mostravam a sua perfeita
ignorancia dos fataes segredos da familia.
--'E comtigo' disse elle ja n'outra voz mais desaffogada 'comtigo,
Joanninha, como se avêm elle, como te tracta?'
--'Commigo não se mette, e rara vez me falla. Mas oh, se elle soubesse
que eu estava aqui comtigo, sancto Deus! o que ouviria a pobre da minha
avó! Inda bem que hoje não é sexta-feira, senão não vinha eu ca.'
--'Porquê? Ainda vem todas as sexta-feiras?'
--'Sempre o mesmo. Ámanhan ca o temos por peccado, que é sexta-feira.'
--'Não te vejo então ámanhan aqui?'
--'Não decerto, aqui. Mas vamos, que a isso é que eu venho ca hoje, para
te fallar n'isso... e para te ver, para fallar comtigo, para estar com o
meu Carlos... e ao mesmo tempo tambem para ajustarmos como isto hade
ser. Quando has-de tu ir ver a avó?.. a nossa mãe; que ella é nossa mãe,
Carlos, não conhecémos nunca outra, nem eu nem tu. Quando lhe heide eu
dizer que estás aqui? A pobre velhinha está tam doente! Ha quinze dias
que se não levanta da cama.'
--'Coitada da minha pobre mãe!.. Oh! se não fosse!.. Deixa estar,
Joanninha; um dia será. Por agora, não póde ser: bem vês. Como heide eu
atravessar as sentinellas dos realistas, ir a um pôsto inimigo?--A minha
vida... isso pouco importa, mas a minha honra ficava em perigo: por
todos os modos a perdia, e talvez...'
--'Não senhor, Sr. Carlos, essa desculpa não basta. Vai n'um anno que
aqui temos a guerra á porta de casa, e ja sabemos como isso é e como as
coisas se fazem. O commandante do nosso pôsto é um homem de bem, um
cavalheiro perfeito. Em lhe eu dizendo quem tu es e a que ca vens...
elle sabe o estado da minha avó, e tem-lhe muita amizade, da-nos decerto
licença para tu vires em toda a segurança. Pensas que elle não sabe que
estou comtigo aqui? Pois disse-lh'o eu; só lhe não expliquei quem tu
eras; disse-lhe que eras um parente nosso que nos trazia notícias de
outros, e que precisava fallar-te. Não pôs dificuldade alguma: é uma
pessoa excellente, bom, bom devéras.'
--'É môço o teu commandante?'
--'Môço elle? coitado! Tem bons cinquenta annos, e creio que outros
tantos filhos. Mas por que perguntas tu isso? E arqueaste as
sobrancelhas com aquelle teu ar de antes quando te zangavas! Porque foi
isso, Carlos?'
--'Nada, criança, foi uma pergunta á toa.'
--'Pois será; mas não me franzas nunca mais a testa assim, que te
pareces todo... é que nunca vi tal parecença...'
--'Com quem?'
--'Com Fr. Diniz.'
--'Eu com elle!'
--'Tal e qual quando fazes essa cara. Olha: ahi estás tu na mesma.
Vamos! ria-se e esteja contente se se quer parecer commigo, que todos
dizem que nos parecemos tanto.'
--'Querida innocente!'
E beijou-lhe a mão que tinha appertada na sua, beijou-lh'a uma e muitas
vezes com um sentimento de ternura misturado de não sei que vaga
compaixão, vindo de lá de dentro d'alma com não sei que dor, meia dor
meia prazer, que entre ambos se communicou e a ambos humedeceu os olhos.


CAPITULO XXV.

O excesso da felicidade que aterra e confunde tambem.--Pasmosa
contradicção da nossa natureza.--De como os olhos verdes de
Joanninha se inturvaram e perderam todo o brilho.--Que o coração da
mulher que ama, sempre adivinha certo.

Carlos tinha a mão de Joanninha appertada na sua; e os olhos humidos de
lagrymas cravados nos olhos d'ella, de cujo verde transparente e
diaphano sahiam raios de ineffavel ternura.
Dizer tudo o que elle sentia é impossivel: tam incontrados lhe andavam
os pensamentos, em tam confuso tumulto se lhe alvorotavam todos os
sentidos.
Por muito tempo não proferiram palavra, nem um nem outro; mas fallaram
assim longos discursos.
Emfim, Joanninha voltou á sua primeira insistencia e disse para o primo:
--'Olha, Carlos, ámanhan é sexta-feira, ja te disse, vem Fr. Diniz:
quando haja a menor difficuldade do commandante, a elle não lhe recusa
nada...'
--'Por quanto ha no ceo, Joanninha, pela tua vida, pela de nossa avó,
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