Viagens na Minha Terra - 06

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do claustro era nua e nulla, monotona e singela como a temos visto.
Chamava-se elle no seculo Diniz de Atahide, e seguira a carreira das
armas primeiro, depois a das lettras. Com distincção, e quasi com
paixão, tomára parte na campanha da Peninsula e a fizera quasi toda; mas
desgostoso do serviço ou despreoccupado da glória militar, entrou na
magistratura para que estava habilitado, e em 1825, do logar de
corregedor do Ribatejo, em que ja fôra reconduzido, devia passar á casa
do Porto.
Foi a Lisboa receber o seu despacho, beijou a mão a elrei, e d'ahi tomou
um dia o caminho de Santarem, chegou áquella villa, deixou criados e
cavallos na estalagem, e foi tocar á campa da portaria de San'Francisco.
Os criados esperaram em vão muitos dias: elle não voltou.
Desappareceu do mundo Diniz de Atahide, e d'alli a dous annos appareceu
Fr. Diniz da Cruz, o frade mais austero e o prégador mais eloquente
d'aquelle tempo. Raro prégava, e so de doutrina; mas era uma torrente de
vehemencia, uma uncção, uma fôrça!..
Dos institutos monasticos, ja então bem decahidos todos de esplendor e
reputação, a ordem de San'Francisco era talvez a que mais descêra no
conceito público. Quanto mais austera é a regra, tanto mais se nota
qualquer relaxação nos que a professam: a dos franciscanos tinha-se
feito proverbial e popular. Elles eram tantos por toda a parte, e tam
conversantes com todas as classes; familiarizára-se por tal modo o povo
com o aspecto d'aquellas mortalhas negras--aspecto ja não severo, e
apenas deixou de o ser... ridículo--e ellas appareciam em taes logares,
a taes horas, por tal modo... que todo o respeito, toda a estima, toda a
consideração se lhe perdera. Escriptores, ja os não tinham, prégadores
poucos e sem reputação, era em todo o sentido a religião mais humilhada
na geral decadencia das ordens.
Fr. Diniz procurou-a por isso mesmo. Queria ser frade, o frade
desprezado e apupado do seculo dezenove.
Em certos animos é preciso muito mais valor e enthusiasmo para affrontar
este martyrio, do que fôra nos antigos tempos para ir ao incôntro das
nobres perseguições do sangue e do fogo.
Luctava-se com honra então, cahia-se com glória, vencia-se muitas vezos
morrendo...
Agora é soffrer so.
O mundo applaudia aquelles grandes sacrificios, e assistia com
interêsse, com admiração, com espanto áquelles combates gigantescos. E o
tyranno tremia diante da sua victima... quando lhe não cahia aos pés
vencido, convertido e penitente...
Hoje o povo passa e ri, os reis cuidam de outra coisa, e a mesma Egreja
não sabe que tem martyres.
'Pois tem-n'os' dizia Fr. Diniz 'e precisa mais d'elles para se
regenerar, do que ja precisou para fundar-se.'
Eis aqui porque Diniz d'Atahide não quiz ser bento, nem jeronymo, nem
cartucho, e se foi metter frade franciscano.
De todos os seus bens, que eram consideraveis, tirou apenas a modica
somma de dinheiro que era necessaria para pagar o dote e piso de sua
entrada no convento. Do resto fez doação inteira a D. Francisca
Joanna--a velha hoje cega e decrepita que no princípio d'esta historia
incontrámos dobando á sua porta na casa do valle.
A velha não tinha mais familia que um neto e uma neta.
A neta era Joanninha, filha unica de seu unico filho varão, e ja orphan
de pae e de mãe.
O neto, orpham tambem, nascêra posthumo, e custára a vida a sua mãe,
filha querida e predilecta da velha.
Antes da splendida doação de Fr. Diniz, a familia, que era de boa e
honrada descendencia, podia dizer-se pobre; depois viviam
remediadamente. Mas a velha não quiz nunca sahir do modesto estado em
que atélli vivêra. Tinham fartura de pão, azeite e vinho de suas lavras;
corria-lhe com ellas um criado velho de confiança; trajavam e
tractavam-se como gente mean, mas independente.
Em tempos mais antigos e em vida dos dous filhos de D. Francisca, Fr.
Diniz, então Diniz d'Atahide e corregedor da commarca, frequentára
bastante aquella casa. Desde a morte do filho e do genro, que ambos
pereceram desastradamente n'um dia cruzando o Tejo n'um saveiro em
occasião de grande cheia, elle nunca mais lá tornára.
Até que se metteu frade, e que passaram annos e que o fizeram guardião
do seu convento.
Ja a nora e a filha da velha tinham morrido tambem.
E foi notavel que na mesma hora em que Fr. Diniz professava em
San'Francisco de Santarem, vestia D. Francisca aquella tunica roxa que
nunca mais largou.
Mas um dia, chegou Fr. Diniz á porta da casa do valle e disse:
--'Deus seja n'esta casa!'
A velha estremeceu, mas tornou logo a si, fez sahir as crianças que
brincavam aopé d'ella, fechou-se com o frade, e fallaram baixo um dia
inteiro. Rezaram e choraram, que tudo se ouviu; mas o que disseram e
conversaram nunca se soube.
O frade foi-se ao anoitecer, a velha ficou rezando e chorando, e rezou e
chorou toda a noite.
Isto fôra n'uma sexta-feira; d'ahi por deante em todas as sexta-feiras
de cada semana, Fr. Diniz vinha passar algumas horas com a velha.
Não era seu confessor, mas dirigia-a como se o fosse, em tudo e por
tudo, menos no que respeitava a Joanninha.
Havia no frade uma affectação visivel, um systema premeditado e
inalteravel de se abster completamente de tudo o que podesse intervir,
por mais remotamente que fosse, com aquella interessante criança.
Joanninha não lhe tinha medo, mas o respeito que lhe elle inspirava era
misturado de uma aversão instinctiva, que, por contradicção inaudita e
inexplicavel, a deixava sympathizar com tudo quanto elle dizia e
professava: doutrinas, opiniões, sentimentos, tudo lhe agradava no
frade, menos a pessoa.
Não assim Carlos, o primo, o companheiro, o unico amigo da nossa
Joanninha, o outro neto da velha por sua filha. Andava elle ja no último
anno de Coimbra e ia formar-se em leis, quando Fr. Diniz da Cruz começou
de novo a frequentar a casa que Diniz de Atahide tinha abandonado.
Sôbre esse a inspecção do frade era minuciosa, vigilante, inquieta. Os
livros que elle lia, os amigos com quem vivia, as ideas que abraçava, as
inclinações para que pendia--de tudo se occupava Fr. Diniz, tudo lhe
dava cuidado. A elle directamente pouco lhe dizia, mas com a avó tinha
longas conferencias a esse respeito.
Ultimamente parecia satisfazer-se com o geito que o mancebo indicava
tomar.
--'É temente a Deus, não tem o ânimo cubiçoso nem servil, não é
hypocrita, o mania do liberalismo não o mordeu ainda... hade ser um
homem de prestimo:' dizia o frade a D. Francisca com verdadeira
satisfacção e interêsse.
Passára porêm de seu meio o memoraval anno de 1830, e Carlos, que se
formára no princípio d'aquelle verão, tinha ficado por Coimbra e por
Lisboa, e so por fins d'agosto voltára para a sua familia. E veio
triste, melancholico, pensativo, inteiramente outro do que sempre fôra,
porque era de genio alegre e naturalmente amigo de folgar, o mancebo.
O dia em que elle chegou era uma sexta-feira, dia de Fr. Diniz vir ao
valle.
Passaram as primeiras saudações e abraços, ficaram sos os dous, e:
--'Não gósto de te ver:' disse o frade.
--'Pois quê? que tenho eu?'
--'Tens que vens outro do que foste, Carlos.'
--'Outro venho, é verdade; mas não se infadem de me ver, que o infado
hade durar pouco.'
--'Que queres tu dizer?'
--'Que estou resolvido a emigrar.'
--'A emigrar, tu!... Porquê, paraquê? Que loucura é essa?'
--'Nunca estive tanto em meu juizo.'
--'Carlos, Carlos! nem mais uma palavra a similhante respeito. Em que
más companhias andaste tu, que maus livros lêste, tu que eras um
rapaz?.. Carlos, prohibo-te de pensar n'esses desvarios.'
--'Prohibe-me... a mim... de pensar!... Ora, senhor...'
--'Prohibo de pensar, sim. Le no teu Horacio se estás cançado das
pandectas. Vai para a eira com o teu Virgilio... ou passeia, caça, monta
a cavallo, faze o que quizeres, mas não penses. Ca estou eu para pensar
por ti.'
--'Porquê? eu heide ser sempre criança? a minha vida hade ser ésta?
Horacio! tenho bom ânimo para ler Horacio agora... e a bella occupação
para um homem de vinteeum annos, scandar jambos e trocheus.'
--'Pois le na tua biblia, que é poesia medida n'alma e que repasce o
espirito e o coração.'
--'Eu não quero ser frade: sabe?'
--'Nem te eu quero para frade.'
--'Graças a Deus! Cuidei que... Mas em fim no seculo em que estamos...'
--'O seculo em que estamos é o da presumpção e o da immoralidade: e eu
quero-te livrar de uma e de outra, Carlos. Tua avó sabe as minhas
tenções a teu respeito, approva-as...'
--'Minha avó... approva muita coisa que eu reprovo.'
--'Como assim, Carlos! que queres tu dizer?'
--'Isto mesmo, senhor;--e que ámanhan que vou para Lisboa, imbarcar para
Inglaterra.'
--'Carlos!'
--'É uma resolução meditada e inalteravel. Não quero nada com ésta terra
nem com ésta...'
--'Com ésta o quê, Carlos?..'
--'Pois quer ouvi-lo, digo-lh'o: com ésta casa.'
O frade suffocava, e balbuciou entre cholerico e aterrado:
--'Dir-me-has porquê?..'
--'Porque me abhorrece e me humilha este mando de um extranho aqui...
porque sempre desconfiei, porque sei emfim...'
--'Sabes o quê?'
--'Sei, padre Fr. Diniz, mas não me pergunte o que eu sei.'
Amarello, roxo, pallido, negro, o frade tremia; sumiram-se-lhe mais os
olhos e faiscavam lá de dentro como duas brazas; fez um esfôrço sôbre si
mesmo para fallar, e disse com uma voz cava e cavernosa como de
sepulchro:
--'Pois pergunto, sim; e permitta Deus!..'
--'Padre, não jure nem pragueje' interrompeu Carlos com firmeza e
serenidade 'as suas intenções serão boas talvez... creio que são boas,
filhas de um remorso salutar...'
--'Que dizes tu, Carlos... que disseste?.. Oh, meu Deus!'
As scenas tinham mudado: Fr. Diniz parecia o pupillo, a sua voz tinha o
som da súpplica, ja não tremia de íra mas de anciedade; Carlos, pelo
contrario, fallava no tom austero e grave de um homem que está forte na
sua razão e que é generoso com a sua offensa. As palavras do mancebo
eram agras, via-se que elle o sentia e que procurava adoçá-las na
inflexão, que lhes dava.
--'O que eu digo, padre Fr. Diniz, o que eu sou obrigado a dizer-lhe é
isto. Minha avó consentiu, por fraqueza de mulher, no que eu não posso
nem devo consentir. O que ha n'ésta casa não é... não é meu; o pão que
aqui se come... é comprado por um preço... Padre! ja ve que não podêmos
fallar mais n'este assumpto. Eu parto ámanhan para Lisboa.--Minha avó!'
acrescentou Carlos, mudando de voz e chamando para dentro 'minha avó!'
A velha acudiu, elle disse-lhe a sua tenção, motivou-a em opiniões
politicas, declamou contra D. Miguel, mostrou-se enthusiasta da causa
liberal, e protestou que, n'aquelle anno, de tal modo se tinha
pronunciado em Coimbra e ainda em Lisboa, que só uma prompta fuga o
podia salvar...'
A velha chorou, pediu, rogou... inutilmente, em vão.
Fr. Diniz assistiu a tudo isto sem dizer palavra.
E aquella tarde voltou mais cedo para o convento.
No outro dia de manhan muito cedo, abraçado com a avó e com a priminha
que se desfaziam em lagrymas, Carlos dizia o último adeus áquella
querida casa, áquelle amado valle em que fôra criado... N'essa noite
estava em Lisboa, d'ahi a poucos dias em Inglaterra, e d'ahi a alguns
meses na ilha Terceira.
Na sexta-feira depois da partida de Carlos, Fr. Diniz veio ao valle e
teve larga conferencia com a avó.
Os tres dias seguintes a velha levou fechada no seu quarto a chorar...
no fim do terceiro dia estava cega.
Joanninha era uma criança a esse tempo, parecia não intender nada do que
se passava. Mas quem a observasse com attenção, veria que ella dobrou de
carinho e de amor para com a avó, e que se não tornou a rir para o
frade...
Elle, o frade, invelheceu de dez annos n'aquelle dia. Os olhos sumidos,
que era a feição dominante n'aquelle rosto ascetico, sumiram-se mais e
mais; a estatura alta e erecta curvou-se-lhe; o tremor nervoso, que o
tomava por accessos, tornou-se-lhe habitual; os tendões enrijaram-lhe,
os musculos da cara descarnaram-se, e a pelle ja sulcada de fundos
cuidados, arrugou-se e franziu-se toda em rugas cruzadas e confusas como
que se lh'a torrassem n'uma grelha.
Nunca mais houve um dia de alegria no valle. A sexta-feira porêm era o
dia fatal e aziago. Fr. Diniz ja não vinha senão no fim da tarde e
demorava-se pouco; mas tanto bastava. Suspirava-se por aquella hora e
tremia-se d'ella. As notícias que consolavam, e os terrores que matavam,
o frade é que os trazia. O resto da semana levava-se a chorar e a
esperar.
E assim se tinham passado dous annos até á sexta-feira em que primeiro
vimos junctas á porta da casa aquellas tres criaturas; assim se passou
até d'ahi a oito dias que a nossa historia volta a incontrá-los.


CAPITULO XVII.

De como, chegando outra sexta-feira e estando a avó e a neta á
espera do frade, este lhe appareceu, contra o seu costume, da banda
de Lisboa.--Porque razão muitas vezes a mais animada conversação é
a que mais facilmente pára e quebra derepente.--Nova demonstração
de dous grandes axiomas dos nossos velhos, a saber: Que o hábito
não faz o monge; e que ralhando as commadres, se descobrem as
verdades.--No ralhar da velha com o frade, levanta-se uma ponta do
veo que cobre os mysterios da nossa historia.

Passaram-se aquelles oito dias no valle, não ja como se tinham passado
tantas outras semanas em vagas tristezas, em desconsolação e
desconfôrto, mas em positiva anciedade e aguda afflicção pela certeza
que trouxera o frade de se achar Carlos no Porto fazendo parte do
pequeno exército do D. Pedro.
Incertos rumores, d'aquelles que percorrem um paiz em tempos similhantes
e que augmentam e exaggeram, confundem todos os successos tinham chegado
até ás pacificas solidões do valle com as notícias de combates
sanguinarios, de commoções violentas, de desacatos sacrilegos, de
vinganças e reprezalias atrozes tomadas pelos aggressores, retribuídas
pelos que se defendiam.
Chegou a sexta-feira; e as horas d'esse dia, sempre desejado e sempre
temido, foram contadas minuto a minuto--a qual mais longo, a qual mais
pezado e lento de volver, quanto mais se approximava o derradeiro.
O sol declinava ja... e Fr. Diniz sem apparecer!
No seu poiso ordinario aopé da porta da casa, Joanninha com os olhos
extendidos, a velha com os ouvidos álerta, devoravam o espaço na
direcção de nascente, esperando a cada momento, temendo a cada instante
ver apparecer o conhecido vulto, ouvir o som familiar dos passos do
frade.
E tam intentas, tam absortas estavam ainda n'este cuidado, que não deram
fe d'um religioso que pelo lado opposto, isto é, da banda de Lisboa,
para alli se incaminhava a passos arrastados mas presurosos.
Chegou rente d'ellas sem o sentirem; e uma voz conhecida, porêm mais
cava e funda do que nunca a ouviram, pronunciou a fórmula de saudação
costumada:
--'Deus seja n'esta casa!'
--'Amen!' responderam ambas machinalmente, com um estremeção
involuntario; e voltando derepente a cara para o lado d'onde vinha a
voz.
--'Jesus!' disse depois a velha tornando a si, 'Padre Fr. Diniz, de
d'onde vem tam tarde?'
--'Chego de Lisboa.'
--'De Lisboa? Deus lh'o pague!... Foi saber?..'
--'Fui, fui saber novas d'esta horrivel guerra, d'esta tremenda
visitação do Senhor á condemnada terra de Portugal...'
--'E então, diga'...
--'Boas novas, boas novas trago!'
--'Sente-se, padre, sente-se. Joanninha, chega uma cadeira: descanse.'
--'Não é tempo de descansar este, mas de vigiar e de orar.'
--'Pois que succedeu, padre? Não me tenha n'esta horrivel suspensão.
Diga: onde está elle? Alguma desgraça grande lhe aconteceu, oh meu
Deus!..
--'E que me importa a mim o que aconteceu ou podia acontecer a mais um
de tantos perdidos? Encherá a sua medida, irá após dos outros... caminha
nas trevas com elles, e como elles, so hade parar no abysmo.'
A éstas derradeiras palavras do frade asperamente pronunciadas e em tom
de indifferença e desprêzo, seguiu-se aquelle silencio comprimido,
aquella pausa de toda a conversação grave e íntima em que os pensamentos
são tantos que se atropellam e não acham sahida na voz.
Fr. Diniz mentia... na dureza d'aquellas expressões mentia ao seu
coração--não mentia ao seu espirito. Como o caustico se applica á
epiderme para deslocar a inflammação interior, elle roçava o peito com
as asperidões de sua doutrina e de seus principios rigidos para
amortecer dentro a viva dor d'alma que o consummia.
O frade estava por fóra, o homem por dentro.
O observador vulgar não via senão o burel e a corda que amortalhavam e
cadaver. O que attentasse bem n'aquelles olhos, o que reparasse bem nas
inflexões d'aquella voz, diria: 'Frade, tu mentes; mentes sem saberes
que mentes: es sincero na tua fe, na tua austeridade, na tua abnegação;
mas o teu sacrificio é como o de Abraham na montanha, e Deus sabe que tu
não tens fôrça para o cumprir.'
Não o percebeu assim a pobre velha aquem os rigores de Fr. Diniz faziam
tremer, e que para toda a affeição, para todo o sentimento humano
julgava morto o coração do cenobita.
Ella que no silencio de suas noites sempre veladas, na perpétua
escuridão de seus dias sempre tristes luctava ha tanto tempo, luctava
debalde para desprender das affeições do mundo, aquelle seu pobre
coração que queria immollar ao Senhor, ella via com sancta inveja e
admiração as sobrehumanas fôrças que imaginava no frade; e desanimada de
o podêr seguir n'essas alturas da perfeição evangelica, recahia, mais
desalentada e mais miseravel que nunca, em toda a sua fraqueza de mulher
e de mãe.
Oh! não sabe o que é tormento, o que é inferno n'este mundo, o que não
soffreu destas angústias!
Mas permitte Deus que as padeça quem não tem grandes culpas, grandes e
irreparaveis erros que expiar n'este mundo?
Eu creio firmemente que não.
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Cansada e exhausta ja de tam porfiada lucta, a velha perdeu de todo a
razão com as derradeiras palavras do frade, e n'um paroxismo de chôro
exclamou:
--'Diniz!.. Fr. Diniz, por aquelle pinhor sagrado que eu tenho em meu
podêr, por aquella preciosa cruz sôbre a qual se derramaram as últimas
lagrymas da minha desgraçada filha, Diniz!...'
--'Silencio!' bradou o frade, arrancando um brado de dentro do peito que
fez gemer os echos todos do valle: 'Silencio, mulher! não conjure o
demonio que eu trago incarcerado n'este seio, que á fôrça de penitencias
mal pude domar ainda... que so a morte poderá talvez expellir. Mulher,
mulher! este cadaver que ja morreu que ja apodreceu em tudo o mais, que
ja o comem, sem o elle sentir, os bichos todos da destruição... este
cadaver tem um unico ponto vivo no coração... e o dedo do teu egoismo
ahi foi tocar, oh mulher!.. Peccado que estás sempre contra mim! Justiça
eterna de Deus quando serás satisfeita?'
Rompêra na maior violencia a voz do frade, mas descahiu n'um tom baixo e
medonho ao fazer ésta última imprecação mysteriosa. As derradeiras
syllabas quasi que lhe morreram nos beiços convulsos, e ao balbuciá-las
deixou-se cahir, exhausto e como quem mais não podia, na cadeira que
Joanninha lhe chegára.
A velha aterrada e confusa tremia do que fizera, como deante do espirito
immundo que seus maleficios evocaram, treme a maga assustada de seu
proprio podêr.
Passaram alguns segundos que nenhumas palavras podem descrever.
O frade levantou o rosto, olhou para ella, olhou para Joanninha... e,
como quem emerge, por grande esfôrço, de um pêso enorme d'aguas que o
submergiam, sacudiu a cabeça, sorveu um longo trago de ar, e disse na
sua voz ordinario, so mais debil:
--'Carlos, senhora... minha irman, Carlos está vivo; e exaqui, vinda
pelo consul de França, uma carta d'elle.'
Tirou uma carta da manga e a intregou a Joanninha.


CAPITULO XVIII.

Descobre-se que ha grandes e espantosos segredos entre o frade e a
velha.--Piedosa fraude de Joanninha.--Lucta entre o hábito e o
monge.

O frade intregou a carta a Joanninha, que, lançando os olhos ao
sobrescripto, ficou indecisa e inquieta como quem receia e deseja e teme
de saber alguma coisa. Elle com voz trémula e sobresaltada accrescentou:
--'Adeus, que são horas!.. Leiam, e sexta-feira que vem... me dirão...'
--'Poisquê' disse timidamente a velha 'não quer ouvir o que elle nos
escreve?'
--'Sexta-feira que vem' continuou Fr. Diniz, sem ouvir ou sem attender a
pergunta 'sexta-feira que vem eu tomarei conta da resposta, e lh'a farei
chegar pela mesma via... So uma coisa! nem palavra a meu respeito: eu
para Carlos... morri.'
--'Diniz!' exclamou a velha fóra de si 'Diniz!..'
O frade tornou derepente ao seu tom austero, e respondeu gravemente: 'O
quê, minha irman?'
--'Era' disse ella timida e submissa outra vez 'era se, era que... Pois
não hade ouvir ler a carta d'elle?'
Fr. Diniz não respondeu, mas ficou sentado: descahiu-lhe a cabeça sôbre
o peito, e abraçando-se com o bordão, não deu mais signal de si.
A velha escutou em silencio alguns segundos, e com aquelle ouvido
agudissimo--penetrante vista dos cegos--percebeu sem dúvida o que se
passava, e com mais confôrto e serenidade na voz disse:
--'Abre, Joanna, lê, minha filha.'
Joanninha abriu a carta, e percorreu com avidez as poucas linhas que
ella incerrava.
--'Não les?' acudiu a avó com impaciencia: 'Lê, lê alto, Joanna.'
--'É para mim so a carta' disse ella friamente.
--'Para ti so, como?' tornou a outra.
--'É para mim so ésta carta... não diz nada que...'
--'Não diz nada!' replicou a avó 'Pois!... Lê, lê alto; seja como for,
lê, e oiçamos.'
Joanninha parecia hesitar ainda; lançou os olhos ao frade, achou-o na
mesma attitude impassivel; voltou-se para a avó, viu-a anciada e
anxiosa... leu.
A carta era com effeito para ella so, e carta bem singela, não continha
senão as ingenuas expressões de um amor fraterno nunca esquecido, longas
saudades do passado, poucas esperanças no futuro, quasi nenhumas de se
tornarem a ver tam cedo. Tudo isto porém era com a prima: para a
desconsolada avó, para ninguem mais... nem uma palavra.
Joanninha ia lendo, lendo... e a voz a descahir-lhe: no fim ajunctou uns
abraços, umas saudosas lembranças, e não sei que phrase incompleta e mal
articulada em que se pedia a bençam da avó.
A velha abanou a cabeça tristemente e disse: 'Ora pois... bemditto seja
Deus!'
Joanninha córou até o branco dos olhos... Inda bem que a não podia ver a
avó! Mas viu-a Fr. Diniz, e com a mão trémula e os olhos arrazados
d'agua lhe fez um mudo e expressivo signal de approvação e
agradecimento. Joanninha córou outra vez, e logo se fez pallida como a
morte: era a primeira vez que mentia... e Fr. Diniz, o austéro Fr. Diniz
apprová-la!
O frade levantou-se, e sem dizer palavra, tomou o caminho de Santarem.
Ouvia-se ao longe o arquejar de uns soluços suffocados... Seriam d'elle?
A avó e a neta abraçaram-se e choraram.
Nenhuma d'ellas disse palavra sôbre a carta: a velha tinha percebido a
piedosa fraude de Joanninha...
Oh! que existencias que eram aquellas quatro! Esse frade, essa velha e
essas duas crianças! E a maior parte da gente que é _gente_, vive
assim... E querem, querem-n'a assim mesmo, a vida, teem-lhe appêgo! Oh
que enigma é o homem!
Tornou a passar outra semana, e o frade tornou a vir no praso costumado,
e levou a resposta da carta--resposta que Joanninha so escreveu e so
viu--e dirigiu-a em Lisboa pela via segura que indicára.
Soube-se que fôra intregue; mas semanas e semanas decorreram, os meses
passaram de anno... e outra carta não veio.
No entretanto a guerra civil progredia; e depois de suas tremendas
peripecias, o grande drama da Restauração chegava rapidamente ao fim.
Eram meiados do anno de 33, a operação do Algarve succedêra
milagrosamente aos constitucionaes, a esquadra de D. Miguel fôra tomada,
Lisboa estava em podêr d'elles. Os tardios e inuteis esforços dos
realistas para retomar a capital tinham occupado o resto do verão. Ja
outubro se descoroava de seus ultimos fructos, e as folhas começavam a
impallidecer e a cahir, quando uma sexta-feira, ao pôr do sol, Fr. Diniz
apparecia no valle mais curvado e mais trémulo que nunca. Vinha do
exército realista que então cercava Lisboa.
Joanninha não era alli, a velha estava so.
--'Que nos traz, padre?' clamou ella mal que o sentiu: 'Soube d'elle?
Tem escapado a éstas desgraças, a esses combates mortaes?'
--'Não sei nada, minha irman: ha tres dias que de Lisboa se não póde
obter a menor informação. As linhas estão fechadas e guarnecidas como
nunca: tudo indíca havermos de ter cedo algum combate decisivo.'
--'Deus seja com!..'
--'Com quem, minha irman?'
--'Com quem tiver justiça.'
--'Nenhum a tem. De um lado e de outro está a ambição e a cubiça, de um
lado e de outro a immoralidade, a perdição e o desprêzo da palavra de
Deus. Por isso, vença quem vencer, nenhum hade triumphar.'
--'Ai, o meu pobre filho, o meu Carlos!'
--'Isso, irman Francisca, isso! Peça a Deus que dê a victoria a seu
neto, e á impiedade por que elle combate. Peça a Deus que vençam os
inimigos declarados do seu nome, os destruidores de seus altares, os
profanadores de seus templos... Oh! que dia bello e grande não hade ser
esse, quando Carlos... o seu Carlos, vier expulsar, ás baionetadas, do
pobre convento de San'Francisco, o velho guardião--que lhe não hade
fugir, minha irman!.. d'elle menos que de nenhum outro... que ajoelhado
deante do altar inclinará a cabeça como os antigos martyres para cahir
na presença do seu Deus ás mãos do seu...'
--'Diniz!.. Padre!.. Padre Frei Diniz, que horrorosas palavras sahem da
sua bôcca!.. Meu neto, o meu Carlos não é capaz... oh meu Deus!..'
--'Seu neto detesta-me... e tem... tem razão.'
--'Não sabe a verdade elle... Carlos está inganado, cuida... não sabe
senão meia verdade: e eu, eu heide--custe o que me custar--eu heide...'
--'Hade o quê?'
--'Heide desinganá-lo, heide-lhe dizer a verdade toda. Heide prostrar-me
na sua presença, heide humilhar-me deante do filho de minha filha, heide
arrastar na poeira de seus pés éstas cans e éstas rugas... morrerei de
vergonha e de remorsos deante do meu filho, mas elle hade saber a
verdade.'
Sahiam com tal impeto e com tam desacostumada energia éstas mysteriosas
e tremendas palavras da bôcca da velha, que Fr. Diniz não ousou
contê-la; ouviu até ao fim, deixou quebrar o impeto da torrente, e
erguendo então a sua voz austera mas pousada, disse n'aquelle tom
friamente decisivo que tanto impõe aos animos apaixonados:
--'Se tal fizesse, mulher, a minha maldicção, a maldicção eterna de Deus
sôbre a sua cabeça para sempre!... Oh mulher, pois não lhe basta que
elle me abhorreça--não lhe basta que seu neto lhe perdesse o amor...
quer... quer tambem que nos despreze?'
A velha gemeu profundamente, e, por um geito de antiga reminiscencia,
levou as mãos aos olhos como se os tapasse para não ver. Então disse com
desconsoladas lagrymas na voz:
--'A vontade de Deus seja feita!'


CAPITULO XIX.

Guerra de postos avançados. Joanninha no bivac--De como os
rouxinoes do valle se disciplinaram a ponto de tocar a alvorada e a
retreta.--Quem era a 'menina dos rouxinoes,' e porque lhe poseram
este nome.--A sentinella perdida e achada.

A velha disse aquellas últimas palavras com uma expressão de dor tam
resignada, mas tam desconsolada, que o frade olhou para ella commovido,
e sentiu as lagrymas escurecerem-lhe a vista.
N'este momento Joanninha, que passeiava a alguma distancia da casa na
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