Viagens na Minha Terra - 03

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arrisca-se a ter por administrador algum escandecido que me atice as
orelhas.
Nos Elysios com o pae Anchises e outros barbaças classicos do mesmo
jaez? Eu sei? tambem isso não. Hade ser n'aquellas ilhas bemaventuradas
de que falla o poeta Alceu e onde elle poz a passear, por eternas
verduras, as almas tyrannicidas de Harmódio e Aristógiton...
Oh! ésta agora!... Sebastião José de Carvalho e Mello, conde de Oeiras,
marquez de Pombal, de companhia com os seus inimigos politicos!... Ahi é
que se ingánam; não ha amigos nem inimigos politicos em se largando o
mando e as pretenções a elle. Ora, passados os umbraes da eternidade, é
de fé que se não pensa mais n'isso. C. J. X., que morreu a assignar uma
portaria, ja tinha largado a penna quando chegou alli pelos _Prazeres_;
quanto mais!...
O homem hade estar nas ilhas _beatas_. Vamos lá...
E ei-lo alli: lá está o bom do marquez a jogar o whist com o barão de
Bidefeld, com o imperador Leopoldo e com o poeta Diniz. A partida deve
de ser interessante, talvez aposta essa gente toda--esses manes todos
que estão á roda. Que cara que fez o marquez a um finadinho que lhe foi
metter o nariz nas cartas! Quem havia de ser! O intromettido de M. de
Talleyrand. Estava-lhe cahindo. Mas não viu nada: o nobre marquez sempre
soube esconder o seu jôgo.
A mim é que elle ja me viu. 'Que diz? Ah!.. Sim senhor, sou portuguez; e
venho fazer uma pergunta a V. Exa., esclarecer-me sôbre um ponto
importante.'
Deitou-me a tremenda luneta.
--'Para que mandou V. Exa. arrancar as vinhas do Ribatejo?'
Apertou a luneta no sobrôlho e sorriu-se.
--'Ellas ahi estão centuplicadas, que até ja invadiram o pinhal de
Azambuja. Fez V. Exa. um despotismo inutil; e agora...'
'Agora quem bebe por lá todo esse vinho?'
Não sabía o que lhe havia de responder. Elle sacudiu a cabelleira de
anneis, virou-me as costas, deu o braço a Colbert, passou por-pé de
Ricardo Smith e de J. Baptista Say, que estavam a disputar, incolheu os
hombros em ar de compaixão, e foi-se por uma alameda muito viçosa que ia
por aquelles deliciosos jardins dentro, e sumiu-se da nossa vista.
Eu surdi ca n'este mundo, e achei-me emcima da azemola, aopé do grande
café do Cartaxo.


CAPITULO VII.

Reflexões importantes sôbre o Bois-de-Boulogne, as carruagens de
mollas, Tortoni, e o café do Cartaxo.--Dos cafés em geral, e de
como são o characteristico da civilização de um paiz.--O
Alfageme.--Hecatombe involuntaria immolada pelo A.--Historia do
Cartaxo.--Demonstra-se como a Gran'-Bretanha deveu sempre toda a
sua fôrça e toda a sua glória a Portugal.--Shakspeare e Laffitte,
Milton e Chateaumargot, Nelson e o principe de Joinville.--Próva-se
evidentemente que M. Guizot é a ruina de Albion e do Cartaxo.

Voltar á meia-noite do _Bois-de-Boulogne_--o bosque por excellencia,
descer, entre nuvens de poeira, o longo stadio dos Campos-Elysios,
entrever, na rapida carreira, o obelisco de Luxor, as árvores das
Tulherias, a columna da praça Vandomma, a magnificencia heteroclyta da
'Magdalena', e emfim sentir parar, de uma soffreada magistral, os dois
possantes inglezes que nos trouxeram quasi de um folego até ao
'boulevard de Gand'; ahi entreabrir mollemente os olhos, levantando meio
corpo dos regallados cochins de seda, e dizer: 'Ah! estamos em
Tortoni... que delicia um sorvete com este calor!'--é seguramente, é dos
prazeres maiores d'este mundo, sente-se a gente viver; é meia hora de
existencia que vale dez annos de ser rei em qualquer outra parte do
mundo.
Pois acredite-me o leitor amigo, que sei alguma coisa dos sabores e
dissabores d'este mundo, fie-se na minha palavra, que é de homem
experimentado: o prazer de chegar por aquelle modo a Tortoni, o apear da
elegante caleche balançada nas mais suaves mollas que fabricasse arte
ingleza do puro aço de Suecia, não alcança, não se compara ao prazer e
consolação de alma e corpo que eu senti ao apear-me de minha choiteira
mula á porta do grande café do Cartaxo.
Fazem idea do que é o café do Cartaxo? Não fazem. Se não viajam, se não
sahem, se não vêem mundo ésta gente de Lisboa! E passam a sua vida entre
o Chiado, a rua do Oiro e o theatro de San'Carlos, como hãode alargar a
esphera de seus conhecimentos, desinvolver o espirito, chegar á altura
do seculo?
Coroae-vos de alface, e ide jogar o bilhar, ou fazer sonetos á dama
nova, ide, que não prestais para mais nada, meus queridos Lisboetas; ou
discuti os deslavados horrores de algum mellodrama velho que fugiu
assoviado da 'Porte-Saint Martin' e veio esconder-se na Rua-dos-Condes.
Tambem podeis ir aos Toiros--estão imbolados, não ha perigo...
Viajar?.. qual viajar! até á Cova-da-Piedade, quando muito, em dia que
lá haja cavallinhos. Pois ficareis alfacinhas para sempre, cuidando que
todas as praças d'este mundo são como a do Terreiro-do-Paço, todas as
ruas como a rua Augusta, todos os cafés como o do Marrare.
Pois não são, não: e o do Cartaxo menos que nenhum.
O café é uma das feições mais characteristicas de uma terra. O viajante
experimentado e fino chega a qualquer parte, entra no café, observa-o,
examina-o, estuda-o, e tem conhecido o paiz em que está, o seu govêrno,
as suas leis, os seus costumes, a sua religião.
Levem-me de olhos tapados onde quizerem, não me desvendem senão no café;
e protesto-lhe que em menos de dez minutos lhe digo a terra em que estou
se for paiz sublunar.
Nós entrámos no café do Cartaxo, o grande café do Cartaxo; e nunca se
incruzou turco em divan de seda do mais splendido harem de
Constantinopla com tanto gôso de alma e satisfacção de corpo, como nós
nos sentámos nas duras e asperas tábuas das esguias banquetas mal
sarapintadas que ornam o magnífico estabelecimento bordalengo.
Em poucas linhas se descreve a sua simplicidade classica: será um
parallelogrammo pouco maior que a minha alcova; á esquerda duas mezas de
pinho, á direita o mostrador invidraçado onde campeam as garrafas
obrigadas de liquor de amendoa, de canella, de cravo. Pendem do tecto,
laboriosamente arrendados por não vulgar tesoira, os pingentes de papel,
convidando a lascivo repouso a inquieta raça das moscas. Reina uma
frescura admiravel n'aquelle recinto.
Sentámo-nos, respirámos largo, e entrámos em conversa com o dono da
casa, homem de trinta a quarenta annos, de physionomia experta e
sympathica, e sem nada do repugnante villão-ruim que é tam usual de
incontrar por similhantes logares da nossa terra.
--'Então que novidades ha por ca pelo Cartaxo, patrão?'
--'Novidades! Por aqui não temos senão o que vem de Lisboa.--Ahi está a
'Revolução' de hontem...'
--'Jornaes, meu caro amigo! Vimos fartos d'isso. Diga-nos alguma coisa
da terra. Que faz por ca o...'
--'O mestre J. P., o 'Alfageme?''
--'Como assim o Alfageme?'
--'Chamam-lhe o Alfageme ao mestre J. P.: pois então! Uns senhores de
Lisboa que ahi estiveram em casa do Sr. D. poseram-lhe esse nome, que a
gente bem sabe o que é; e ficou-lhe, que agora ja ninguem lhe chama
senão o Alfageme. Mas quanto a mim, ou elle não é Alfageme, ou não o
hade ser muito tempo. Não é aquelle, não. Eu bem me intendo.'
A conversação tornava-se interessante, especialmente para mim: quizemos
profundar o caso.
--'Muito me conta, Sr. patrão! Com que isto de ser Alfageme, parece-lhe
que é coisa de?..
--'Parece-me o que é, e o que hade parecer a todo o mundo. E alguma
coisa sabemos, ca no Cartaxo, do que vai por elle. O verdadeiro Alfageme
diz que era um espadeiro ou armeiro, cutileiro ou coisa que o valha, na
Ribeira de Santarem; e que foi um homem capaz, e que tinha pelo povo, e
que não queria saber de partidos, e que dizia elle: 'Rei que nos
inforque, e papa que nos excommungue, nunca hade faltar. Assim, deixar
os outros brigar, trabalhemos nós e ganhemos a nossa vida.' Mas que
extrangeiros que não queria, que ésta terra que era nossa e co'a nossa
gente se devia de governar. E mais coisas assim: e que porfim o deram
por traidor e lhe tiraram quanto tinha.--Mas que lhe valeu o Condestavel
e o não deixou arrazar, por que era homem de bem e fidalgo ás direitas.
Pois não é assim que foi?'
--'É, sim, meu amigo. Mas então d'ahi?'
--'Então d'ahi o que se tira, é que quando havia fidalgos como o sancto
Condestavel tambem havia Alfagemes como o de Santarem. E mais nada.'
--'Perfeitamente. Mas porque chamaram ao mestre P. o Alfageme do
Cartaxo?'
--'Eu lhe digo aos senhores: o homem nem era assim nem era assado.
Fallava bem, tinha sua labia com o povo. D'ahi fez-se juiz, pôs por ahi
suas coisas a direito--Deus sabe as que elle intortou tambem!.. ganhou
nome no povo, e agora faz d'elle o que quer. Se lhe der sempre para bem,
bom será.--Os senhores não tomam nada?'
O bom do homem visivelmente não queria fallar mais: e não deviamos
importuná-lo. Fizemos o sacrificio de bom número de limões que
expremémos em profundas taças--vulgo, copos de canada--e com agua e
assucar, offerecemos as devidas libações ao genio do logar.
Infelizmente o sacrificio não foi detodo incruento. Muitas hecatombes de
myrmidões cahiram no holocausto, e lhe deram um cheiro e sabor que não
sei se agradou á divindade, mas que injoou terrivelmente aos sacerdotes.
Sahimos a visitar o nosso bom amigo, o velho D., a honra e a alegria do
Ribatejo. Ja elle sabía da nossa chegada, e vinha no caminho para nos
abraçar.
Fomos dar, junctos, uma volta pela terra.
É das povoações mais bonitas de Portugal, o Cartaxo, aceada, alegre;
parece o bairro suburbano de uma cidade.
Não ha aqui monumentos, não ha historia antiga: a terra é nova, e a sua
prosperidade e crescimento datam de trinta ou quarenta annos, desde que
o seu vinho começou a ter fama. Ja descahida do que foi, pela estagnação
d'aquelle commercio, ainda é comtudo a melhor coisa da Borda-d'agua.
Não tem historia antiga, disse; mas tem-n'a moderna e importantissima.
Que memorias aqui não ficaram da guerra peninsular! Que espantosas
borracheiras aqui não tomaram os mais famosos generaes, os mais
distinctos militares da nossa _antiga e fiel_ alliada, que ainda então,
ao menos, nos bebia o vinho!
Hoje nem isso!.. hoje bebe a jacobina zurrapa de Bordeos, e as acerbas
limonadas de Borgonha. Quem tal diria da conservativa Albion! Como póde
uma leal goella britannica, rascada pelos acidos anarchicos d'aquellas
vinagretas francezas, intoar devidamente o God-save-the-King em um
_toast_ nacional! Como, sem Porto ou Madeira, sem Lisboa, sem Cartaxo,
ousa um subdito britannico erguer a voz, n'aquella harmoniosa
desafinação insular que lhe é propria e que faz parte de seu respeitavel
character nacional--faz; não se riam: o inglez não canta senão quando
bebe... alias quando está BEBIDO. _Nisi potus ad arma ruisse._ Inverta:
_Nisi potus in cantum prorumpisse_... E pois, como hade elle assim
_bebido_ erguer a voz n'aquelle sublime e tremendo hymno popular
Rulle-Britannia!
Bebei, bebei bem zurrapa franceza, meus amigos inglezes; bebei, bebei a
pêso de oiro, essas limonadas dos burgraves e margraves de Allemanha;
chamae-lhe, para vos illudir, chamae-lhe _hoc_, chamae-lhe _hic_,
chamae-lhe o _hic haec hoc_ todo, se vos dá gôsto... que em poucos annos
veremos o estado de _acetato_ a que hade ficar reduzido o vosso
character nacional.
Oh gente cega a quem Deus quer perder! pois não vêdes que não sois nada
sem nós, que sem o nosso alchool, d'onde vos vinha espirito, sciencia,
valor, ides cahir infallivelmente na antiga e priguiçosa rudeza saxonia!
D'essas traidoras praias da França donde vos vai hoje o veneno corrosivo
da vossa indole e da vossa fôrça, não tardará que tambem vos chegue
outro Guilherme bastardo que vos conquiste e vos castigue, que vos faça
arrepender, mas tarde, do criminoso êrro que hoje commetteis, ó
insulares sem fe, em abandonar a nossa alliança. A nossa alliança sim, a
nossa poderosa alliança, sem a qual não sois nada.
O que é um inglez sem Porto ou Madeira... sem Carcavellos ou Cartaxo?
Que se inspirasse Shakspeare com Lafitte, Milton com Chateaumargot--o
chanceller Bacon que se dilluisse no melhor Borgonha... e veriamos os
acidulos versinhos, os destemperados raciocininhos que faziam.
Com todas as suas dietas, Newton nunca se lembrou de beber Johannisberg;
Byron antes beberia _gin_, antes agua do Thamisa, ou do Pamiso, do que
essas escorreduras das areias de Bordeos.
Tirae-lhe o Porto aos vossos almirantes, e ninguem mais teme que torneis
a ter outro Nelson. Entra nos planos do principe de Joinville fazer-vos
beber da sua zurrapa: são tantos pontos de partido que lhe dais no seu
jôgo.
É M. Guizot quem perde a Inglaterra com a sua alliança; e tambem perde o
Cartaxo. Por isso eu ja não quero nada com os doutrinarios.
...........................................................................
Ha dôze annos tornou o Cartaxo a figurar conspicuamente na historia de
Portugal. Aqui, nas longas e terriveis luctas da última guerra de
_successão_, esteve muito tempo o quartel-general do marquez de
Saldanha.
Alguns dythirambos se fizeram; alguns echos das antigas canções
bacchicas do tempo da guerra peninsular ainda acordaram ao som dos
hymnos constitucionaes.
Mas o systema liberal, tirada a epocha das eleições, não é grande coisa
para a indústria vinhateira, dizem. Eu não o creio porém; e tenho minhas
boas razões, que ficam para outra vez.


CAPITULO VIII.

Sahida do Cartaxo--A charneca. Perigo imminente em que o A. se acha
de dar em poeta e fazer versos.--Ultima revista do imperador D.
Pedro ao exército liberal.--Batalha de
Almoster.--Waterloo.--Declara o A. solemnemente que não é
philosopho e chega á ponte da Asseca.

Eram dadas cinco da tarde, a calma declinava; montámos a cavallo, e
cortámos por entre os viçosos pampanos que são a glória e a e tomado
ânimo; breve, nos achámos em plena charneca.
Bella e vasta planicie! Desafogada dos raios do sol, como ella se
desenha ahi no horisonte tam suavemente! que delicioso aroma selvagem
que exhalam éstas plantas, acres e tenazes de vida, que a cobrem, e que
resistem verdes e viçosas a um sol portugez de julho!
A doçura que mette n'alma a vista refrigerante de uma joven seara do
Ribatejo nos primeiros dias de abril, ondulando lascivamente com a brisa
temperada da primavera,--a amenidade bucolica de um campo minhoto de
milho, á hora da rega, por meados de agosto, a ver-se-lhe pullar os
caules com a agua que lhe anda por pé, e á roda as carvalheiras
classicamente desposadas com a vide cuberta de racimos pretos--são ambos
esses quadros de uma poesia tam graciosa e cheia de mimo, que nunca a
dei por bem traduzida nos melhores versos de Theocrito ou de Virgilio,
nas melhores prosas de Gesner ou de Rodrigues-Lobo.
A majestade sombria o solemne de um bosque antigo e copado, o silencio e
escuridão de suas moitas mais fechadas, o abrigo solitario de suas
clareiras, tudo é grandioso, sublime, inspirador de elevados
pensamentos. Medita-se alli por fôrça; isola-se a alma dos sentidos pelo
suave adormecimento em que elles cahem... e Deus, a eternidade--as
primitivas e innatas ideas do homem--ficam unicas no seu pensamento...
É assim. Mas um rochedo em que me eu sente ao pôr do sol na gandra erma
e selvagem, vestida apenas de pastio bravo, baixo, e tosqueado rente da
bôcca do gado--diz-me coisas da terra e do ceo que nenhum outro
espectaculo me diz na natureza. Ha um vago, um indeciso, um vaporoso
n'aquelle quadro que não tem nenhum outro.
Não é o sublime da montanha, nem o augusto do bosque, nem o ameno do
valle. Não ha ahi nada que se determine bem, que se possa definir
positivamente. Ha a solidão que é uma idea negativa...
Eu amo a charneca.
E não sou romanesco. Romantico, Deus me livre de o ser--ao menos, o que
na algaravia de hoje se intende por essa palavra.
Ora a charneca d'entre Cartaxo e Santarem, áquella hora que a passámos,
começava a ter esse tom, e a achar-lhe eu esse incanto indefinivel.
Sentia-me disposto a fazer versos... a quê? Não sei.
Felizmente que não estava so; e escapei de mais essa caturrice.
Mas foi como se os fizesse, os versos, como se os estivesse fazendo,
porque me deixei cahir n'um verdadeiro estado poetico de distracção, de
mudez--cessou-me a vida toda de _relação_, e não me sentia existir senão
por dentro.
Derepente acordou-me do lethargo uma voz que bradou:--'Foi aqui!... aqui
é que foi, não ha dúvida'.
--'Foi aqui o quê?'
--'A última revista do imperador'.
--'A última revista! Como assim a última revista! Quando? Pois?...'
Então cahi completamente em mim, e recordei-me, com amargura e
desconsolação, dos tremendos sacrificios a que foi condemnada ésta
geração, Deus sabe para quê--Deus sabe se para expiar as faltas de
nossos passados, se para comprar a felicidade de nossos vindouros...
O certo é que alli comeffeito passára o imperador D. Pedro a sua última
revista ao exército liberal. Foi depois da batalha d'Almoster, uma das
mais lidadas e das mais insanguentadas d'aquella triste guerra.
Toda a guerra civil é triste.
E é difficil dizer para quem mais triste, se para o vencedor ou para o
vencido.
Ponham de parte questões individuaes, e examinem de boa fé: verão que,
na totalidade de cada facção em que a nação se dividiu, os ganhos, se os
houve para quem venceu, não balançam os padecimentos, os sacrificios do
passado, e menos que tudo, a responsabilidade pelo futuro...
Eu não sou philosopho. Aos olhos do philosopho, a guerra civil e a
guerra extrangeira, tudo são guerras que elle condemna--e não mais uma
do que a outra... a não ser Hobbes o ditto philosopho, o que é coisa
muito differente.
Mas não sou philosopho, eu: estive no campo de Waterloo, sentei-me aopé
do Leão de bronze sôbre aquelle monte de terra amassado com o sangue de
tantos mil, vi--e eram passados vinte annos--vi luzir ainda pela campina
os ossos brancos das victimas que alli se immolaram a não sei quê... Os
povos disseram que á liberdade, os reis que á realeza... Nenhuma d'ellas
ganhou muito, nem para muito tempo com a tal victoria...
Mas deixemos isso. Estive alli, e senti bater-me o coração com essas
recordações, com essas memorias dos grandes feitos e gentilezas que alli
se obraram.
Porque será que aqui não sinto senão tristeza?
Porque luctas fratricidas não podem inspirar outro sentimento e
porque...
Eu moía comigo so éstas amargas reflexões, e toda a belleza da charneca
desappareceu deante de mim.
N'esta desagradavel disposição de ânimo chegámos á ponte d'Asseca.


CAPITULO IX.

Prologomenos dramatico-litterarios, que muito naturalmente levam,
apezar de alguns rodeios, ao retrospecto e reconsideração do
capitulo antecedente.--Livros que não deviam ter titulo, e titulos
que não deviam ter livro.--Dos poetas d'este seculo. Bonaparte,
Rotchild e Silvio-Péllico.--Chega-se ao fim d'estas reflexões e á
ponte da Asseca.--Traducção portugueza de um grande poeta.--Origem
de um dictado.--Junot na ponte da Asseca.--De como o A. d'este
livro foi jacobino desde pequeno.--Inguiço que lhe deram.--A
duqueza de Abrantes.--Chega-se emfim ao val de Santarem.

Vivia aqui ha coisa de cinquenta para sessenta annos, n'esta boa terra
de Portugal, um figurão exquisitissimo que tinha inquestionavelmente o
instincto de descobrir assumptos dramaticos nacionaes--ainda, ás vezes,
a arte de desenhar bem o seu quadro, de lhe grupar, não sem mérito, as
figuras: mas ao pô-las em acção, ao collori-las, ao fazê-las fallar...
boas noites! era semsaboria irremediavel.
Deixou uma collecção immensa de peças de theatro que ninguem conhece, ou
quasi ninguem, e que nenhuma soffreria, talvez, representação; mas rara
é a que não poderia ser arranjada e appropriada á scena.
Que mina tam ricca e fertil para qualquer mediano talento dramatico! Que
bellas e portuguezas coisas se não podem extrahir dos treze volumes--são
treze volumes e grandes!--do theatro de Ennio-Manuel de Figueiredo!
Algumas d'essas peças, com bem pouco trabalho, com um dialogo mais vivo,
um stylo mais animado, fariam comedias excelentes.
Estão-me a lembrar éstas:
'O Casamento da Cadea'--ou talvez se chame outra coisa, mas o assumpto é
este; comedia cujos characteres são habilmente esboçados, funda-se
n'aquella nossa antiga lei que fazia casar da prisão os que assim se
suppunha podêrem reparar certos damnos de reputação feminina.
'O fidalgo de sua casa', satyra mui graciosa de um tam commum ridiculo
nosso.
'As duas educações', bello quadro de costumes: são dois rapazes, ambos
extrangeiramente educados, um francez, outro inglez, nenhum portuguez. É
eminentemente comico, frisante, ou, segundo agora se diz á moda,
'palpitante de actualidade.'
'O cioso', comedia ja remoçada da antiga comedia de Ferreira e que em si
tem os germens todos da mais ricca e original composição.
'O avaro dissipador', cujo so titulo mostra o ingenho e invenção de quem
tal assumpto concebeu: assumpto ainda não tractado por nenhum de tantos
escriptores dramaticos de nação alguma, e que é todavia um vulgar
ridiculo, todos os dias incontrado no mundo.
São muitas mais, não fica n'estas, as composições do fertilissimo
escriptor que, passadas pelo crivo de melhor gôsto, e animadas sôbretudo
no stylo, fariam um razoavel repertorio para acudir á mingua dos nossos
theatros.
Uma das mais semsabores porêm, a que vulgarmente se haverá talvez pela
mais semsabor, mas que a mim mais me diverte pela ingenuidade familiar e
sympathica de seu tom magoado e melancholicamento chocho, é a que tem
por titulo 'Poeta em annos de prosa'.
E foi por ésta, foi por amor d'esta que me eu deixei descahir na
digressão dramatico-litteraria do princípio d'este capitulo; pegou-se-me
á penna porque se me tinha pregado na cabeça; e ou o capitulo não sabia,
ou ella havia de sahir primeiro.
Poeta em annos de prosa! Oh Figueiredo, Figueiredo, que grande homem não
foste tu, pois imaginaste este titulo que so elle em si é um volume! Ha
livros, e conheço muitos, que não deviam ter titulo, nem o titulo é nada
n'elles.
Faz favor de me dizer o de que serve, o que significa o 'Judeu errante'
pôsto no frontispicio d'esse interminavel e mercatorio romance que ahi
anda pelo mundo, mais errante, mais sem fim, mais immorredoiro que o seu
prototypo?
E ha titulos tambem que não deviam ter livro, porque nenhum livro é
possivel escrever que os desimpenhe como elles merecem.
'Poeta em annos de prosa' é um d'esses.
Eu não leio nenhuma das raras coisas que hoje se escrevem
verdadeiramente bellas, isto é, simples, verdadeiras, e por consequencia
sublimes, que não exclame com sincero pesadume ca de dentro: 'Poeta em
annos de prosa!'
Pois este é seculo para poetas? ou temos nós poetas para este seculo?..
Temos sim, eu conheço tres: Bonaparte, Silvio-Péllico e o barão de
Rotchild.
O primeiro fez a sua Iliada com a espada, o segundo com a paciencia, o
último com o dinheiro.
São os tres agentes, as tres entidades, as tres divindades da epocha.
Ou cortar com Bonaparte, ou comprar com Rotchild, ou soffrer e ter
paciencia com Silvio-Péllico.
Todo o que fizer d'outra poesia--e d'outra prosa tambem--é tolo...
Vieram-me éstas mui judiciosas reflexões a proposito do capitulo
antecedente d'esta minha obra prima; e lancei-as aqui para instrucção e
edificação do leitor benevolo.
Acabei com ellas quando chegámos á ponte da Asseca.
Esquecia-me dizer que d'aquelles tres grandes poetas so um está
traduzido em portuguez--o Rotchild: não é litteral a traducção,
agallegou-se e ficou muito suja de erros de imprensa mas como não ha
outra...
Ora d'onde veio este nome da Asseca? Algures aqui perto deve de haver
sitio, logar ou coisa que o valha, com o nome de Meca; e d'ahi talvez o
admiravel rifão portuguez que ainda não foi bem examinado como devia
ser, e que decerto incerra algum grande dictame de moral primitiva:
'andou por Secca (Asseca?) e Meca e olivaes de Santarem.'--Os taes
olivaes ficam logo adiante. É uma ethymologia como qualquer outra.
A ponte da Asseca corta uma varzea immensa que hade ser um vasto pahul
de hynverno: ainda agora está a desangrar-se em agua por toda a parte.
É notavel na historia moderna este sítio. Aqui n'um recontro com os
nossos, foi Junot gravemente ferido, ferido na cara. _'Il ne sera plus
beau garçon'_ disse o parlamentario francez que veio, depois da acção,
tractar, creio eu, de troca de prisioneiros ou de coisa similhante. Mas
inganou-se o parlamentario; Junot ainda ficou muito guapo e gentil homem
depois d'isso.
Tenho pena de nunca ter visto o Junot nem o Maneta,[1] as duas primeiras
notabilidades que ouvi aclamar como taes e cujos nomes conhecí...
Ingano-me: conheci primeiro o nome de Bonaparte. E lembra-me muito bem
que nunca me persuadi que elle fossa o monstro disforme e horroroso que
nos pintavam frades e velhas n'aquelle tempo. Imaginei sempre que, para
excitar tantos odios e malquerenças, era necessario que fosse um bem
grande homem.
Desde pequeno que fui jacobino; ja se ve: e de pequeno me custou caro.
Levei bons puchões de orelhas de meu pae por comprar na feira de
San'Lazaro, no Porto, em vez das gaitinhas ou dos registos de sanctos,
ou das outras bogigangas que os mais rapazes compravam... não imaginam o
quê... um retrato de Bonaparte.
Foi 'inguiço'--diria uma senhora do meu conhecimento que accredita
n'elles: foi inguiço que aínda se não desfez e que toda a vida me tem
perseguido.
Quem me diria quando, por esse primeiro peccado politico da minha
infancia, por esse primeiro tractamento duro, e--perdoe-me a respeitada
memoria de meu sancto pae!--injustissimo, que me trouxe o mero instincto
das ideas liberaes, quem me diria que eu havia de ser perseguido por
ellas toda a vida! que apenas sahido da puberdade havia de ir a essa
mesma França, á patria d'esses homens e d'essas ideas com quem a minha
natureza sympathysava sem saber porquê, buscar asylo e guarida?
Não vi ja quasi nenhum d'aquelles que tanto desejára conhecer; as ruinas
do grande imperio estavam dispersas; os seus generaes mortos,
desterrados, ou trajavam interesseiros e covardes as librés do
vencedor...
De todas as grandes figuras d'essa epocha, a que melhor conheci e
tractei foi uma senhora, typo de graça, de amabilidade e de talento.
Pouco foi o nosso tracto, mas quanto bastou para me incantar, para me
formar no espirito um modêllo de valor e merecimento feminino que me
veio a fazer muito mal.
Custa depois a encher aquella altura que se marcou...
Eis aqui como eu fiz esse conhecimento.
Inda o estou vendo, coitado! o pobre C. do S., nobre, espirituoso,
cavalheiro, fazendo-se perdoar todos os seus prejuizos de casta, que
tinha como ninguem, por aquella polidez superior e affabilidade elegante
que distingue o verdadeiro fidalgo (stylo antigo); inda o estou vendo,
ja sexagenario, ja mais que 'ci-devant jeun'homme', o pescoço intallado
na inflexivel gravata, os pés pegando-se-lhe, como os de Ovidio, ao
limiar da porta--não que lh'os prendessem saudades, senão que lh'os
paralysava a cakexia incipiente--mas o espirito joven a reagir e a
teimar.
--'Vamos!' disse elle 'hoje estou bom, sinto-me outro: quero
apresentá-lo a madame de Abrantes. Está tam velha! Isto de mulheres não
são como nós, passam muito depressa.'
E o desgraçado tremiam-lhe as pernas, e suffocava-o a tosse.
Tomámos uma 'citadine', e fomos comeffeito á nova e elegante rua chamada
não impropriamente a rua de Londres, onde achámos rodeada de todo o
esplendor do seu occaso aquella formosa estrella do imperio.
Não quero dizer que era uma belleza; longe d'isso. Nem bella nem môça,
nem airosa de faser impressão era a duqueza d'Abrantes. Mas em meia hora
de conversação, de tracto, descubriam-se-lhe tantas graças, tanto
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