Viagens na Minha Terra - 04

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natural, tanta amabilidade, um complexo tam verdadeiro e perfeito da
mulher franceza, a mulher mais seductora do mundo, que involuntariamente
se dizia a gente no seu coração: 'Como se está bem aqui!'
Fallámos de Portugal, de Lisboa, do imperio--da restauração, da
revolução de julho (isto era em 1831), de M. de Lafayette, de
Luiz-Philippe, de Chateaubriand--o seu grande amigo d'ella--do
_Sacré-Coeur_ e das suas elegantes devotas--fallámos artes, poesia,
politica... e eu não tinha ânimo para acabar de conversar...
Benevolo e paciente leitor, o que eu tenho decerto ainda é consciencia,
um resto de consciencia: acabemos com éstas digressões e perennaes
divagações minhas. Bem vejo que te deixei parado á minha espera no meio
da ponte d'Asseca. Perdoa-me por quem es, dêmos d'espora ás mulinhas, e
vamos que são horas.
Ca estâmos n'um dos mais lindos e deliciosos sitios da terra: o valle de
Santarem, patria dos rouxinoes e das madresilvas, cincta de faias bellas
e de loureiros viçosos. D'isto é que não tem París, nem França nem terra
alguma do occidente senão a nossa terra, e vale bem por tantas, tantas
coisas que nos faltam.


CAPITULO X.

Valle de Santarem--Namora-se o A. de uma janella que ve por entre
umas árvores.--Conjecturas várias a respeito da ditta
janella.--Similhança do poeta com a mulher namorada, e
inquestionavel inferioridade do homem que não é poeta.--Os
rouxinoes. Reminiscencia de Bernardim Ribeiro e das suas
saudades.--De como o A. tinha quasi completo o seu romance, menos
um vestido branco e uns olhos pretos.--Sahem verdes os olhos com
grande admiração e pasmo seu.--Verificam-se as conjecturas sôbre a
mysteriosa janella.--A menina dos rouxinoes.--Censura das damas
muito para temer, crítica dos elegantes muito para rir.--Começa o
primeiro episodio d'esta Odyssea.

O valle de Santarem é um d'estes logares privilegiados pela natureza,
sitios amenos e deleitosos em que as plantas, o ar, a situação, tudo
está n'uma harmonia suavissima e perfeita: não ha alli nada grandioso
nem sublime, mas ha uma como symetria de côres, de sons, de disposição
em tudo quanto se ve e se sente, que não parece senão que a paz, a
saude, o socêgo do espirito e o repouso do coração devem viver alli,
reinar alli um reinado de amor e benevolencia. As paixões más, os
pensamentos mesquinhos, os pezares e as villezas da vida não podem senão
fugir para longe. Imagina-se por aqui o Eden que o primeiro homem
habitou com a sua innocencia e com a virgindade do seu coração.
Á esquerda do valle, e abrigado do norte pela montanha que alli se corta
quasi a pique, está um masisso de verdura do mais bello viço e
variedade. A faia, o freixo, o alamo enterlaçam os ramos amigos; a
madresilva, a musqueta penduram de um a outro suas grinaldas e festões;
a congossa, os fettos, a malva-rosa do vallado vestem e alcatifam o
chão.
Para mais realçar a belleza do quadro, ve-se por entre um claro das
árvores a janella meia aberta de uma habitação antiga mas não
dilapidada--com certo ar de confôrto grosseiro, e carregada na côr pelo
tempo e pelos vendavais do sul a que está exposta. A janella é larga e
baixa; parece mais ornada e tambem mais antiga que o resto do edificio
que todavia mal se ve...
Interessou-me aquella janella.
Quem terá o bom gôsto e a fortuna de morar alli?
Parei e puz-me a namorar a janella.
Incantava-me, tinha-me alli como n'um feitiço.
Pareceu-me entrever uma cortina branca... e um vulto por de traz...
Imaginarão decerto! Se o vulto fosse feminino!.. era completo o romance.
Como hade ser bello ver pôr o sol d'aquella janella!..
E ouvir cantar os rouxinoes!..
E ver raiar uma alvorada de maio!..
Se haverá alli quem a aproveite, a deliciosa janella?.. quem apprecie e
saiba gosar todo o prazer tranquillo, todos os sanctos gosos de alma que
parece que lhe andam esvoaçando em tôrno?
Se fôr homem é poeta; se é mulher está namorada.
São os dois entes mais parecidos da natureza, o poeta e a mulher
namorada: vêem, sentem, pensam, fallam como a outra gente não ve, não
sente, não pensa nem falla.
Na maior paixão, no mais acrysolado affecto do homem que não é poeta,
entra sempre o seu tanto da vil prosa humana: é liga sem que se não
lavra o mais fino de seu oiro. A mulher não; a mulher apaixonada devéras
sublima-se, idealiza-se logo, toda ella é poesia; e não ha dor physica,
interêsse material, nem deleites sensuaes que a façam descer ao positivo
da existencia prosaica.
Estava eu n'estas meditações, começou um rouxinol a mais linda e
desgarrada cantiga que ha muito tempo me lembra de ouvir.
Era aope da ditta janella!
E respondeu-lhe logo outro do lado opposto; e travou-se entre ambos um
desafio tam regular, em strophes alternadas tam bem medidas, tam
accentuadas e perfeitas, que eu fiquei todo dentro do meu romance,
esqueci-me de tudo o mais.
Lembrou-me o rouxinol de Bernardim-Ribeiro, o que se deixou cahir n'agua
de cançado.
O arvoredo, a janella, os rouxinoes... áquella hora, o fim da tarde...
que faltava para completar o romance?
Um vulto feminino que viesse sentar-se áquele balcão--vestido de
branco--oh! branco por fôrça... a frente descahida sôbre a mão esquerda,
o braço direito pendente, os olhos alçados ao ceo... De que côr os
olhos? Não sei, que importa! é amiudar muito demais a pintura, que deve
ser a grandes e largos traços para ser romantica, vaporosa, desenhar-se
no vago da idealidade poetica...
--'Os olhos, os olhos...' disse eu pensando ja alto, e todo no meu
extasi, 'os olhos... pretos.'
--'Pois eram verdes!'
--'Verdes os olhos... d'ella, do vulto da janella?'
--'Verdes como duas esmeraldas orientaes, transparentes, brilhantes, sem
preço.'
--'Quê! pois realmente?.. É gracejo isso, ou realmente ha alli uma
mulher, bonita, e?..'
--'Alli não ha ninguem--ninguem que se nomeie hoje, mas houve... oh!
houve um anjo, um anjo, que deve de estar no ceo.'

--'Bem dizia eu que aquella janella...'
--'É a janella dos rouxinoes.'
--'Que lá estão a cantar.'
--'Estão, esses lá estão ainda como ha dez annos--os mesmos ou outros,
mas a _menina dos rouxinoes_ foi-se e não voltou.'
--'A menina dos rouxinoes! que historia é essa? Pois devéras tem uma
historia aquella janella?'
--'É um romance todo inteiro, _todo feito_ como dizem os francezes e
conta-se em duas palavras.'
--'Vamos a elle. A menina dos rouxinoes, menina com olhos verdes! Deve
ser interessantissimo. Vamos á historia ja.'
--'Pois vamos. Apeemo'-nos e descancemos um bocado.'
Ja se ve que este dialogo passava entre mim e outro dos nossos
companheiros de viagem.
Apeámo'-nos comeffeito; sentamo'-nos; e eisaqui a historia da _menina
dos rouxinoes_ como ella se contou.
É o primeiro episodio da minha Odyssea: estou com medo de entrar n'elle
porque dizem as damas e os elegantes da nossa terra que o portuguez não
é bom para isto, que em francez que ha outro não-sei-quê...
Eu creio que as damas que estão mal informadas, e sei que os elegantes
que são uns tolos; mas sempre tenho meu receio, porque emfim, enfim,
d'elles me rio eu, mas poesia ou romance, musica ou drama de que as
mulheres não gostem, é porque não presta.
Ainda assim, bellas e amaveis leitoras, intendamo'nos: o que eu vou
contar não é um romance, não tem aventuras inredadas, peripecias,
situações e incidentes raros; é uma historia simples e singella,
sinceramente contada e sem pretenção.
Acabemos aqui o capitulo em fórma de prologo, e a materia do meu conto
para o seguinte.


CAPITULO XI.

Tracta-se do unico privilegio dos poetas que tambem os philosophos
quizeram tirar, mas não lhes foi concedido; aos romancistas
sim.--Exemplo de Aristoteles e Anacreonte.--O A., tendo declarado
no capitulo nono d'esta obra que não era philosopho, agora
confessa, quasi solemnemente, que é poeta, e pretende manter-se,
como tal, em seu direito.--De como S. M. elrei de Dinamarca tinha
menos juizo do que Yorick, seu bobo.--Doutrina d'este. Funda n'ella
o A. o seu admiravel systema de physiologia e pathologia
transcendente do coração. Por uma deducção appertada e cerrada da
mais constrangente logica vem a dar-se no motivo porque foi
concedido aos poetas o direito indefinido de andarem sempre
namorados.--Applicam-se todas éstas grandes theorias á posição
actual do A. no momento de entrar no episodio promettido no
capitulo antecedente.--Modestia e reserva delicada o obrigam a
duvidar da sua qualificação para o desimpenho: pede votos ás
amaveis leitoras. Decide-se que a votação não seja nominal, e
porquê.--Dido e a mana Annica.--Entra-se emfim na prometida
historia.--De como a velha estava á porta a dobar, e
imbaraçando-se-lhe a meada, chamou por Joaninha, sua neta.

Este é o unico privilegio dos poetas: que até morrer podem estar
namorados. Tambem não lhes conheço outro. A mais gente tem as suas
epochas na vida, fóra das quaes lhes não é permittido apaixonarem-se.
Pretenderam accolher-se ao mesmo beneficio os philosophos, mas não lhes
foi consentido pela rainha Opinião, que é soberana absoluta e juiz
supremo de que se não appella nem aggrava ninguem.
Anacreonte cantou, de cabellos brancos, os seus amores, e não se
extranhou. Aristoteles mal teria a barba russa quando foi d'aquelle seu
último namôro porque ainda hoje lhe apouquentam a fama.
Ora eu philosopho, seguramente não sou, ja o disse; de poeta tenho o meu
pouco, padeci, a fallar a verdade, meus ataques assás agudos d'essa
molestia, e bem podéra desculpar-me com elles de certas fragilidades de
coração... Mas não senhor, não quero desculpar-me como quem tem culpa
senão defender-me como quem tem razão e justiça por si.
Estou, com o meu amigo Yorick, o ajuizadissimo bobo d'elrei de
Dinamarca, o que alguns annos depois ressuscitou em Sterne com tam
elegante penna, estou sim. 'Toda a minha vida' diz elle 'tenho andado
apaixonado ja por esta ja por aquella princeza, e assim heide ir,
espero, até morrer, firmemente persuadido que se algum dia fizer uma
acção baixa, mesquinha, nunca hade ser senão no intervallo de uma paixão
á outra: n'esses interregnos sinto fechar-se-me o coração, esfria-me o
sentimento, não acho dez reis que dar a um pobre... por isso fujo ás
carreiras de similhante estado; e mal me sinto acceso de novo, sou todo
generosidade e benevolencia outra vez.'
Yorick tem rasão, tinha muito mais razão e juizo que seu augusto amo,
elrei de Dinamarca. Por pouco mais que se generalize o principio, fica
indisputavel, inexcepcionavel para sempre e para tudo. O coração humano
é como o estomago humano, não pode estar vazio, preciza de alimento
sempre: são e generoso so as affeições lh'o podem dar; o odio, a inveja
e toda a outra paixão má é estímulo que so irrita mas não sustenta. Se a
razão e a moral nos mandam abster d'estas paixões, se as chymeras
philosophicas, ou outras, nos vedarem aquellas, que alimento dareis ao
coração, que hade elle fazer? Gastar-se sôbre si mesmo, consummir-se...
Altera-se a vida, appressa-se a dissolução moral da existencia, a saude
d'alma é impossivel.
O que póde viver assim, vive para fazer mal ou para não fazer nada.
Ora o que não ama, que não ama apaixonadamente, seu filho se o tem, sua
mãe se a conserva, ou a mulher que prefere a todas, esse homem é o tal,
e Deus me livre d'elle.
Sôbretudo que não escreva: hade ser um massador terrivel. Talvez seja
este o motivo da indefinida permissão que é dada aos poetas de andarem
namorados sempre.
O romancista gosa do mesmo fôro e tem as mesmas obrigações. É como o
privilegio de desimbargador que tiravam d'antes os fidalgos, quando ser
desimbargador valia alguma coisa... e tanta coisa!
Como heide eu então, eu que n'esta grave Odyssea das minhas viagens
tenho de inserir o mais interessante e mysterioso episodio d'amor que
ainda foi contado ou cantado, como heide eu fazê-lo, eu que ja não tenho
que amar n'este mundo senão uma saudade e uma esperança--um filho no
berço e uma mulher na cova?..
Será isto bastante? Dizei-o vós, ó benevolas leitoras, póde com isto so
alimentar-se a vida do coração?
--Póde sim.
--Não póde, não.
--Estão divididos os suffragios: peço votação.
--Nominal?
--Não, não.
--Porquê?
--Porque ha muita coisa que a gente pensa, e crê e diz assim a
conversar, mas que não ousa confessar publicamente, professar aberta e
nomeadamente no mundo...
Ah! sim... elle é isso? Bem as intendo, minhas senhoras: reservemos
sempre uma sahida para os casos difficeis, para as circumstancias
extraordinarias. Não é assim?
Pois o mesmo farei eu.
E pôsto que hoje, faz hoje um mez, em tal dia como hoje, dia para sempre
assignalado na minha vida, me apparecesse uma visão, uma visão celeste
que me surpreendeu a alma por um modo novo e extranho, e do qual não
podia dizer decerto como a rainha Dido á mana Annica:
Reconheço o queimar da chamma antiga,
Agnosco veteris vestigia flammae;
pôsto que a visão passou e desappareceu... mas deixou gravada n'alma a
certeza de que... Pôsto que seja assim tudo isto, a confidencia não
passará d'aqui, minhas senhoras: tanto basta para se saber que estou
sufficientemente habilitado para chronista da minha historia, e a minha
historia é ésta.
Era no anno de 1832, uma tarde de verão como hoje calmosa, sêcca, mas o
ceo puro e desabafado. Á porta d'essa casa entre o arvoredo, estaca
sentada uma velhinha bem passante dos settenta, mas que o não mostrava.
Vestia uma especie de tunica rosa que apertava na cintura com um largo
cinto de coiro preto, e que fazia resahir a alvura da cara e das mãos
longas, descarnadas, mas não ossudas como usam de ser mãos de velhas;
toucava-se com um lenço da mais escrupulosa brancura, e pôsto de um
geito particular a modo de toalha de freira; um mandil da mesma
brancura, que tinha no peito e que affectava, não menos, a fórma de um
escapulario de monja, completava o extranho vestuario da velha. Estava
sentada n'uma cadeira baixa do mais classico feitio: textualmente
parecia a que serviu de modêllo a Raphael para o seu bello quadro da
_Madonna della Sedia_.
Como nota historica e illustração artistica, seja-me permittido juntar
aqui em parenthesis que, não ha muito, vi em casa de um sapateiro
remendão, em Lisboa, no Bairro-alto, um cadeira tal e qual; torneados
pyramidaes, simples, sem nobreza, mas elegantes.
Tornemos á velhinha.
Estava ella alli sentada na ditta cadeira, e deante de si tinha uma
dobadoira, que se movia regularmente com o tirar do fio que lhe vinha
ter ás mãos a inrollar-se no ja crescido novello.
Era o unico signal de vida que havia em todo esse quadro. Sem isso,
velha, cadeira, dobadoira, tudo pareceria uma graciosa sculptura de
Antonio Ferreira ou um d'aquelles quadros tam verdadeiros do morgado de
Setubal.
O movimento bem visivel da dobadoira era regular, e respondía ao
movimento quasi imperceptivel das mãos da velha. Era regular o
movimento, mas durava um minuto e parava, depois ia seguido outros dous,
tres minutos, tornava a parar: e n'esta regularidade de intermitencias
se ia alternando como o pulso de um que treme sesões.
Mas o velha não tremia, antes se tinha muito direita e aprumada: o parar
do seu lavor era porque o trabalho interior do espirito dobrava, de vez
em quando, de intensidade, e lhe suspendia todo o movimento externo. Mas
a suspensão era curta e mesurada; reagia a vontade, e a dobadoira
tornava a andar.
Os olhos da velha é que tinham uma expressão singular: voltada para o
poente, não os tirou d'essa direcção nem os inclinava de modo algum para
a dobadoira que lhe ficava um pouco mais á esquerda. Não pestanejavam, e
o azul de suas pupillas, que devia de ter sido brilhante como o das
saphyras, parecia desbotado e sem lume.
O movimento da dobadoira estacou agora de repente, a velha poisou
tranquillamente as mãos e o novello no regaço, e chamou para dentro da
casa:
--'Joanninha?'
Uma voz doce, pura, mas vibrante, d'estas vozes que se ouvem rara vez,
que retinem dentro d'alma e que não esquecem nunca mais, respondeu de
dentro:
--'Senhora? Eu vou, minha avó, eu vou.'
--'Querida filha!.. Como ella me ouviu logo! Deixa, deixa: vem quando
podéres. É a meada que se me imbaraçou.'
A velha era cega, cega de gotta-serena, e paciente, resignada como a
providencia misericordiosa de Deus permitte quasi sempre que sejam os
que n'este mundo destinou á dura provança de tam desconsolado martyrio.


CAPITULO XII.

De como Joanninha desimbaraçou a meada da avó, e do mais que
aconteceu.--Que casta de rapariga era Joanninha.--Dá o A. insigne
próva de ingenuidade e boa fe confessando um grave senão do seu
Ideal. Insiste porém que é um adoravel deffeito.--Em que se parece
uma mulher desannellada com um Sansão tosquiado.--Pasmosas
monstruosidades da natureza que desmentem o credo velho dos
peralvilhos.--Os olhos verdes de Joanninha.--Religião dos olhos
pretos strenuamente professada pelo A. Perigo em que ella se acha á
vista de uns olhos verdes.--De como estando a avó e a neta a
conversar muito de mano a mano, chega Frei Diniz e se interrompe a
conversação.--Quem era Frei Diniz.

--'Aqui estou, minha avó: é a sua meada?.. eu lh'a indireito:'--disse
Joanninha sahindo de dentro, e com os braços abertos para a velha.
Apertou-a n'elles com innefavel ternura, beijou-a muitas vezes, e
tomando-lhe o novello das mãos n'um instante desimbaraçou o fio e lh'o
tornou a intregar.
A velha surria com aquelle surriso satisfeito que exprime os tranquillos
gosos de alma, e que parecia dizer: 'Como eu sou feliz ainda, apezar de
velha e de cega! Bemdito sejais, meu Deus.'
Ésta última phrase, ésta bençam de um coração agradecido, que spira
suavemente para o ceo como sobe do altar o fummo do incenso consagrado,
ésta última phrase trasbordou-lhe e sahiu articulada dos labios:
--'Bemditto seja Deus' minha filha, minha Joanninha, minha querida neta!
E Elle te abençoe tambem, filha!'
--'Sabe que mais, minha avó? Basta de trabalhar hoje, são horas de
merendar'.
--'Pois merendemos'.
Joannninha foi dentro da casa, trouxe uma banquinha redonda, cubriu-a
com uma toalha alvissima, pôs em cima fructa, pão, queijo, vinho,
chegou-a para aopé da velha, tirou-lhe o novello da mão, e arredou a
dobadoira. A velha comeu alguns bagos de um cacho doirado que a neta lhe
escolheu e pôs nas mãos, bebeu um trago de vinho, e ficou callada e
quieta, mas ja sem a mesma expressão de felicidade e contentamento
socegado que ainda agora lhe luzia no rosto.
As animadas feições de Joanninha reflectiam sympathicamente a mesma
alteração.
Joanninha não era bella, talvez nem galante siquer no sentido popular e
expressivo que a palavra tem em portuguez, mas era o typo da gentileza,
o ideal da spiritualidade. N'aquelle rosto, n'aquelle corpo de dezeseis
annos, havia por dom natural e por uma admiravel symetria de proporções
toda a elegancia nobre, todo o desimbaraço modesto, toda a flexibilidade
graciosa que a arte, o uso e a conversação da côrte e da mais escolhida
companhia vêem a dar a algumas raras e privilegiadas creaturas no mundo.
Mas n'esta foi a natureza que fez tudo, ou quasi tudo, e a educação nada
ou quasi nada.
Poucas mulheres são muito mais baixas, e ella parecia alta: tam
delicada, tam _elancée_ era a fórma airosa de seu corpo.
E não era o garbo teso e aprumado da perpendicular _miss_ ingleza que
parece fundida de uma so peça; não, mas flexivel e ondulante como a
hástea joven da árvore que é direita mas dobradiça, forte da vida de
toda a seiva com que nasceu, e tenra que a estalla qualquer vento forte.
Era branca, mas não d'esse branco importuno das loiras, nem do branco
terso, duro, marmoreo das ruivas--sim d'aquella modesta alvura da cera
que se illumina de um pallido reflexo de rosa de Bengalla.
E d'outras rosas, d'estas rosas-rosas que denunciam toda a franqueza de
um sangue que passa livre pelo coração e corre á sua vontade por
artérias em que os nervos não dominam, d'essas não as havia n'aquelle
rosto: rosto sereno como é sereno o mar em dia de calma, porque dorme o
vento... Alli dormiam as paixões.
Que se levante a mais ligeira brisa, basta o seu macio bafejo para
increspar a superficie espelhada do mar.
Sussurre o mais ingenuo e suave movimento d'alma no primeiro acordar das
paixões, e verão como se sobresaltam os musculos agora tam quietos
d'aquella face tranquilla.
O nariz ligeiramente aquilino: a bôcca pequena e delgada não cortejava
nem desdenhava o surriso, mas a sua expressão natural e habitual era uma
gravidade singela que não tinha a menor aspereza nem doutorice.
Ha umas certas boquinhas gravesinhas e espremidinhas pela doutorice que
são a mais abhorrecidinha coisa e a mais pequinha que Deus permitte
fazer ás suas creaturas femeas.
Em perfeita harmonia de côr, de fórma e de tom com a fina gentileza
d'estas feições, os cabellos de um castanho tam escuro que tocava em
preto, cahiam de um lado e outro da face, em tres longos, deseguaes e
mal inrolados canudos, cuja ondada spiral se ia relaxando e diminuindo
para a extremidade, até lhe tocarem no collo quasi lisos.
Em stylo de arte--no stylo da primeira e da mais bella das bellas artes,
a _toilete_--este é um defeito; bem sei.
Que votos, que novenas se não fazem a San'Barometro nas vésperas de um
baile para lhe pedir uma atmosphera sêcca e benigna que deixe conservar,
até á quarta contradança ao menos, a preciosa obra de carrapito e ferro
quente, de macassar e mandolina que tanto trabalho e tanto tempo, tantos
sustos e cuidados custou!
Bem sei pois que é defeito, é, será... mas que adoravel defeito! Que
deliciosas imagens que excita de abandôno--passe o gallicismo--de
confiança, de absoluta e generosa renúncia a todo o caprixo, de perfeita
e completa abdicação de toda a vontade propria!
Em geral, as mulheres parecem ter no cabello a mesma fé que tinha
Sansão: o que n'elle se ia em lh'os cortando, cuidam ellas que se lhes
vai em lh'os desannellando? Talvez; e eu não estou longe de o crer:
canudo inflexivel, mulher inflexivel.
Os peralvilhos negam a existencia do tal canudo _in rerum natura_, dizem
que é como a ave phenix que nasceu de nossos avós não saberem grego. Eu
não digo tal, porque tenho visto descuidar-se a natureza em pasmosas
monstruosidades.
Emfim suspendâmos, sem o terminar, o exame d'esta profunda e
interessante questão. Fica addiada para um capitulo _ad hoc_, e voltemos
á minha Joanninha.
Cahiam d'um lado e de outro da sua face gentil aquelles graciosos
anneis; e o resto do cabello, que era muito, ia intrançar-se, e
inrolar-se com singela elegancia abaixo da coroa de uma cabeça pequena,
estreita e do mais perfeito modêlo.
As sobrancelhas, quasi pretas tambem, desenhavam-se n'uma curva de
extrema pureza; a as pestanas longas e assedadas faziam sombra na alvura
da face.
Os olhos porêm--singular capricho da naturesa, que no meio de toda esta
harmonia quiz lançar uma nota de admiravel discordancia! Como poderoso e
ousado _maestro_ que, no meio das pbrases mais classicas e deduzidas da
sua composição, atira derepente com um som agudo e stridulo que ninguem
espera e que parece lançar a anarchia no meio do rythmo musical... os
dillettantes arripiam-se, os professores benzem-se; mas aquelles cujos
ouvidos lhes levam ao coração a musica, e não á cabeça, esses estremecem
de admiração e enthusiasmo... Os olhos de Joanninha eram verdes... não
d'aquelle verde descorado e traidor da raça felina, não d'aquelle verde
mau e destingido que não é senão azul imperfeito, não; eram
verdes-verdes, puros e brilhantes como esmeraldas do mais subido
quilate.
São os mais raros e os mais fascinantes olhos que ha.
Eu, que professo a religião dos olhos pretos, que n'ella nasci e n'ella
espero morrer... que alguma rara vez que me deixei inclinar para a
heretica pravidade do ôlho azul, soffri o que é muito bem feito que
soffra todo o renegado... eu firme e inabalavel, hoje mais que nunca,
nos meus principios, sinceramente persuadido que fóra d'elles não ha
salvação, eu confesso todavia que uma vez, uma unica vez que vi dos taes
olhos verdes, fiquei halucinado, senti abalar-se pelos fundamentos o meu
catholicismo, fugi escandalizado de mim mesmo, e fui retemperar a minha
fé vacillante na contemplação das eternas verdades, que so e unicamente
se incontram aonde está toda a fé e toda a crença... n'uns olhos sincera
e lealmente pretos.
Joanninha porêm tinha os olhos verdes; e o effeito d'esta rara feição
n'aquella physionomia á primeira vista tam discordante--era em verdade
pasmosa. Primeiro fascinava, halucinava, depois fazia uma sensação
inexplicavel e indecisa que doía e dava prazer ao mesmo tempo: porfim
pouco o pouco, estabelecia-se a corrente magnetica tam poderosa, tam
carregada, tam incapaz de solução-de-continuidade, que toda a lembrança
de outra coisa desapparecia, e toda a intelligencia e toda a vontade
eram absorvidas.
Resta so accrescentar--e fica o retrato completo, um simples vestido
azul escuro, cinto e avental preto, e uns sapatinhos com as fitas
traçadas em cothurno. O pé breve e estreito; o que se adivinhava da
perna admiravel.
Tal era a ideal e espiritualissima figura que em pé, incostada á banca
onde acabava de comer a boa da velha, contemplava, n'aquelle rosto
macerado e apagado, a indicivel expressão de tristeza que elle pouco a
pouco ía tomando e que toda se reflectia, como disse, no semblante da
contempladora.
A velha suspirou profundamente, e fazendo como um esfôrço para se
distrahir de pensamentos que a affligiam, buscou incertamente com as
mãos o novêllo da sua meada:
--'O meu novêllo, filha: não posso estar sem fazer nada, faz-me mal.'
--'Conversemos, avó.'
--'Pois conversemos; mas dá-me o meu novêllo. Não sei o que é, mas
quando não trabalho eu, trabalha não sei o que em mim que me cansa ainda
mais. Bem dizem que a ociosidade é o peior lavor.'
Joanninha deu-lhe o novêllo e pôs-lhe a dobadoira a geito.
A velha sentiu o que quer que fosse na mão, levou-a á bôcca e pareceu
beija-la, depois disse:
--'Bem vi, Joanninha!'
--'O quê, minha avó? que viu?'
--'Vi, filha, vi.., sem ser com os olhos que Deus me cerrou para
sempre--louvado seja Elle por tudo!--vi, sentindo, ésta lagryma tua que
me cahiu na mão, e que ja ca está no peito por que a bebi, Joanna. Oh
filha, ja! é muito cedo para começar, deixa isso para mim que estou
costumada: mas tu, tu com deseseis annos e nenhum desgôsto!'
--'Nenhum, avó! E estamos sosinhas nós duas n'este mundo, minha avó
n'esse estado, eu n'esta edade, e...'
--'E Deus no ceu para tomar conta em nós... Mas que é? olha, Joanna: eu
sinto passos na estrada vê o que é.'
--'Não vejo ninguem.'
--'Mas oiço eu... Espera... é Fr. Diniz; conheço-lhe os passos.'
Mal a velha acabava de pronunciar este nome, surdiu, de traz de umas
oliveiras que ficam na volta da estrada, da banda de Santarem, a figura
sêcca, alta e um tanto curvada de um religioso franciscano que abordoado
em seu pau tosco, arrastando as suas sandalias amarellas e tremendo-lhe
na cabeça o seu chapeo alvadio, vinha em direcção para ellas.
Era Fr. Diniz comeffeito, o austero guardião de San'Francisco de
Santarem.


CAPITULO XIII.

Dos frades em geral.--O frade moralmente considerado, socialmente e
artisticamente.--Próva-se que é muito mais poetico o frade do que o
barão.--Outra vez D. Quixote e Sancho-Pansa.--Do que seja o barão,
sua classificação e descripção linneana.--Historia do castello do
Chucherumello.--Erro palmar de Eugenio Sue: mostra-se que os
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