Viagens na Minha Terra - 11

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Fui a erguer os olhos, mal os levantava,
Os seus lindos olhos na terra os pregava.
Fui-lhe pôr a cea, muito bem ceava;
A cama lhe fiz, n'ella se deitava.
Dei-lhe as boas noites, não me replicava:
Tam má cortezia nunca a vi usada!
Lá por meia noite que me eu suffocava,
Sinto que me levam co'a bôcca tapada...
Levam-me a cavallo, levam-me abraçada,
Correndo, correndo sempre á desfilada.
Sem abrir os olhos, vi quem me roubava;
Callei-me e chorei--elle não fallava.
D'alli muito longe que me perguntava
Eu na minha terra como me chamava.
--'Chamavam-me Iria, Iria a fidalga;
Por aqui agora Iria, a cansada.'[3]
Andando, andando, toda a noite andava;
Lá por madrugada que me attentava...
Horas esquecidas commigo luctava;
Nem fôrça nem rogos, tudo lhe mancava.
Tirou do alfange... alli me matava,
Abriu uma cova onde me interrava.

No fim de sette annos passa o cavalleiro,
Uma linda ermida viu n'aquelle outeiro.
--'Minha Sancta Iria, meu amor primeiro,
Se me perdoares, serei teu romeiro.'
--'Perdoar não te heide, ladrão carniceiro,
Que me degollaste que nem um cordeiro.'

Ou houve duas sanctas d'este nome, ambas de aventurosa vida e que ambas
deixassem longa e profunda memoria de sua belleza e martyrio--o de que
não tenho a menor idea--ou nos escriptos dos frades ha muita fábula de
sua unica invenção d'elles que o povo não quiz acreditar: alias é
inexplicavel a singeleza d'esta tradição oral.
Tam simples, tam natural é a narração poetica do romance popular, quanto
é complicada e cheia de maravilhas a que se auctoriza nas recordações
ecclesiasticas.
O caso é grave, fique para novo capitulo.


CAPITULO XXX.

Historia de Sancta Iria segundo os chronistas e segundo o romance
popular.

A milagrosa Sancta Iria--Sancta Irene--que deu o seu nome a Santarem,
donzella nobre, natural da antiga Nabancia[4], e freira no convento
dupplex[5] benedictino que pastoreava o sancto abbade Celio, floreceu
pelos meados do septimo seculo. Namorou-se d'ella extremosamente o joven
Britaldo, filho do conde ou consul Castinaldo que governava aquellas
terras, e não podendo conseguir nada de sua virtude, cahiu infêrmo de
molestia que nenhum physico acertava a conhecer, quanto mais a curar.
É sabido que a mais sancta lhe não pêza de que estejam a morrer por
ella; e, mais ou menos, sempre sympathisa com as victimas que faz.
Sancta Iria resolveu consolar o pobre Britaldo; e ja que mais não podia
por sua muita virtude, quiz ver se lhe tirava aquella louca paixão e o
convertia. Sahiu, uma bonita manhan, do seu convento--que não guardavam
ainda as freiras tam absoluta e estreita clausura--e foi-se a casa do
namorado Britaldo.
Consolou como mulher e ralhou como sancta, e porfim, impondo-lhe na
cabeça as lindas e bemdittas mãos, n'um instante o sarou de todo achaque
do corpo; e se lhe não curou o d'alma tambem, pelo menos lh'o
adormentou, que parecia acabado.
Mas como o demo, em chegando a entrar n'um corpo humano, parece que não
sai d'elle senão para se ir metter n'outro; tam depressa o inimigo
deixou ao pobre Britaldo, como logo se foi incaixar em não menor
personagem do que o monge Remigio, que era o mestre e director da bella
Iria.
Arde o frade em concupiscencia, e não obtendo nada com rogos e lamentos,
jurou vingar-se. Disfarçou porêm, fingiu-se emendado, e deu-lhe, quando
ella menos cuidava, uma bebida de sua diabolica preparação, que apenas a
sancta a havia tomado, lhe appareceram logo e continuaram a crescer
todos os signaes da mais apparente maternidade.
Corre a fama do supposto estado da donzella, chovem as injúrias e os
insultos dos que mais a tinham respeitado até então. E Britaldo, que se
julga escarnecido pela hypocrisia d'aquella mulher artificiosa, em vez
de a esquecer com desprêzo--sente reviver-lhe, senão tam pura, muito
mais ardente, toda a antiga paixão.
Tam mysterioso é o coração do homem!--tam vil! dirão os asceticos--tam
inexplicavel! direi eu com os mais tolerantes.
Novas tentativas, promessas, ameaças do furioso amante... A sancta
resiste a tudo, forte na sua virtude.
Costumava a devota donzella ir todas as noites a uma occulta lapa que
jazia no fim da cêrca e juncto ao rio Nabão, para alli estar mais so com
Deus, e desabafar com Elle á sua vontade. Soube-o Britaldo, espreitou a
occasião e alli a fez apunhalar por um seu criado cujo nome a legenda
nos conservou para maior testimunho de verdade: chamava-se Banam.
Banam! é um verdadeiro nome de mellodrama.
Morta a innocente, Banam despiu-lhe o hábito e lançou o corpo ao rio,
que depressa a levou ás arrebatadas correntes do Zezere em que desagua;
e logo este ao Tejo--que defronte da antiga Scalabicastro lhe deu
sepultura em suas louras areas, para maior glória da sancta e perpétua
honra da nobillissima villa que hoje tem o seu nome.
Mas emquanto ia navegando o corpo da sancta, teve Celio, o abbade do
convento, uma revelação que lhe descobriu a verdade e os milagres do
caso; e communicando-a logo aos monges e ao povo de Nabancia, sahiu com
todos de cruz alçada, e foi por esses campos da Golegan fóra, até chegar
á Ribeira de Santarem. Ahi benzendo as aguas do rio, éstas se retiraram
cortezes e deixaram ver o sepulchro que era de fino alabastro, obrado á
maravilha pelas mãos dos anjos.
Chegaram aopé do tumulo, abriram-n'o, viram e tocaram o corpo da sancta,
mas não o poderam tirar, por mais diligencias que fizeram. Conheceu-se
que era milagre; e contentando-se de levar reliquias dos cabellos e da
tunica, voltaram todos para a sua terra.
As aguas tornaram a junctar-se e a correr como d'antes, e nunca mais se
abriram senão d'ahi a seis seculos e meio, quando a boa rainha sancta
Isabel, mulher d'el-rei D. Diniz, tam fervorosas orações fez aopé do rio
pedindo á sancta que lhe apparecesse, que o rio tornou a abrir-se como o
mar Vermelho á voz de Moises, dizem os devotos chronistas, e patenteou o
benditto sepulchro.
Entrou a rainha a pé inchuto pelo rio dentro, seguida de seu real espôso
e de toda a sua côrte; mas por mais que rezasse ella, e que trabalhassem
os outros com todas as fôrças humanas, não poderam abrir o tumulo;
quebraram todas as ferramentas, era impossivel. Desinganado el-rei de
que um podêr sobrehumano não permittia que elle se abrisse, mandou a
toda a pressa levantar um padrão muito alto sôbre o mesmo tumulo, e tam
alto que o rio na maior inchente o não podesse cubrir.
O rio esperou com toda a paciencia que os pedreiros acabassem, e quando
viu que podia continuar a correr, deu aviso, retiraram-se todos,
tornaram a junctar-se as aguas e o padrão ficou sobresahindo por cima
d'ellas.
Passaram mais tres seculos e meio; e no anno de 1644 a camara de
Santarem mandou refazer de cantaria lavrada o ditto marco ou pedestal
que não era senão de alvenaria, e pôr-lhe em cima a imagem da sancta.
Ainda lá está, assás mal cuidado com tudo; lá o vi com estes olhos
peccadores no corrente mez de julho de 1843. Mas, sem milagre nem
orações, o rio tinha-se retirado, havia muito, para um cantinho do seu
leito, e o padrão estava perfeitamente em sêcco, e em sêcco está todo o
anno até começarem as cheias.
Tal é, em fidelissimo resummo, a historia da Sancta Iria dos livros.
A das cantigas é, como ja disse, muito outra e muito mais simples,
conta-se em duas palavras. A sancta está em casa de seus paes; um
cavalleiro desconhecido, a quem dão pousada uma noite, levanta-se por
horas mortas, rouba a descuidada e innocente donzella, foge a todo o
correr de seu cavallo, e chegado a um descampado d'alli muito longe,
pretende fazer-lhe violencia... A sancta resiste, elle mata-a. D'alli a
annos passa por ahi o indigno cavalleiro, ve uma linda ermida levantada
no proprio sítio onde commetteu o crime, pergunta de que sancta é,
dizem-lhe que é de Sancta Iria. Elle cai de joelhos a pedir perdão á
sancta, que lhe lança em rosto o seu peccado e o amaldiçoa.
E acabou a historia.
Sería o povo que se esqueceu nas suas tradições, ou os frades que
augmentaram nas suas escripturas? Pois a legenda monastica é realmente
bella e cheia de poesia e romance, coisas que o povo não costuma
desprezar.
É difficil de explicar-se este phenomeno, interessantissimo para
qualquer observador não vulgar, que n'estas crenças do commum, n'estas
antigualhas, desprezadas pela suberba philosophia dos nescios, quer
estudar os homens e as nações e as edades onde elles mais sinceramente
se mostram e se deixam conhecer.
A extrema simplicidade do romance ou xacara de Sancta Iria, o ser elle,
d'entre todos os que andam na memoria do nosso povo, o mais geralmente
sabido e mais uniformente repettido em todos os districtos do reino, e
com poucas variantes nas palavras, nenhuma no contexto, me faz crer que
ésta seja das mais antigas composições não so da nossa lingua, mas de
toda a peninsula. A phrase tem pouco sabor antigo: este é um d'aquelles
poemas quasi aborigines que a tradição tem vindo intregando, e ao mesmo
tempo traduzindo, de paes a filhos insensivelmente; e tambem não é
porcerto dos que desceram do palacio ás choupanas e fugiram da cidade
para as aldeas, como em muitos outros se conhece: este visivelmente
nasceu nos arraiaes, nos oragos dos campos, e por lá tem vivido até
agora.
A fórma metrica da composição é a que a phrase didatica das Hispanhas
chamou _romance em endechas_. Eu, adoptando para elle, mais que para a
fórma ordinaria do metro octosyllabo, a theoria do ingenhoso philologo
allemão, Deeping, tam benemerito da nossa litteratura peninsular, creio
que estes são verdadeiros versos de dôze syllabas, e que as coplas não
constam senão de dous versos cada uma, segundo a óbvia significação da
palavra. O povo cantando não separa os hemistychios d'estes versos como
fazem os que os escrevem: e ao contrário nos romances da medida mais
commum, o canto popular reparte distinctamente cada membro de oito
syllabas sôbre si.
Não sei se me ingano, mas desconfio que as quatro coplas últimas, em que
muda completamente a rhyma, sejam additamento posterior feito á cantiga
original. Todavia estes oito versos apparecem, com ligeiras variantes,
em toda a parte.


CAPITULO XXXI.

Quommodo sedet sola civitas.--Santarem.--Portugal em verso e
Portugal em prosa.--Exquisito lavor de umas portas e janellas de
architectura mosarabe.--Busto de D. Affonso Henriques.--As
salgadeiras de Affrica.--Porta do Sol.--Muralhas de
Santarem.--Voltemos á historia de Fr. Diniz e da menina dos olhos
verdes.

Eram mais de dez horas da manhan quando sahimos a começar a longa
viasacra de reliquias, templos e monumentos que são hoje toda Santarem.
A vida palpitante e actual acabou aqui inteiramente: hoje é um livro que
so recorda o que foi. Entre a historia maravilhosa do passado que todas
éstas pedras memoram, e as prophecias tremendas do futuro que parecem
gravadas n'ellas em characteres mysteriosos, não ha mais nada: o
presente não é, ou é como se não fosse: tam pequeno, tam mesquinho, tam
insignificante, tam desproporcionado parece a tudo isto.
Dá vontade de intoar com o poeta inspirado de Jerusalem: 'Quommodo sedet
sola civitas!' Portugal é, foi sempre uma nação de milagre, de poesia.
Desfizeram o prestigio; veremos como elle vive em _prosa_. Morrer, não
morre a terra, nem a familia, nem as raças: mas as nações deixam de
existir.--Pois embora, ja que assim o querem. A mim não me fica
escrupulo.
Passámos a egreja da Alcaçova, que achámos ja fechada; e tomando sempre
sôbre a esquerda, fomos pelo que hoje parece uma azinhaga de entre
quintas, mas que visivelmente foi n'outras eras a rua mais _fashionavel_
d'esta villa cortezan. Aqui estão quasi aopé da egreja umas portas e
janellas do mais fino lavor e gôsto mosarabe que me lembra de ter visto.
E a proposito, porque se não hade adoptar na nossa peninsula ésta
designação de _mosarabe_ para characterizar e classificar o genero
architectonico especial nosso, em que o severo pensamento christão da
architectura da meia edade se sente relaxar pelo contacto e exemplo dos
habitos sensuaes moirescos, e de sua luxuosa e redundante elegancia?
De que palacio incantado foram éstas portas tam primorosamente lavradas?
Que bellezas se debruçaram d'essas arrendadas janellas para ver passar o
cavalleiro escolhido do seu coração? São tam lindas, tam elegantes ainda
éstas pedras desconjunctadas, e mal sustidas de um muro insosso e
grosseiro que as facea, que naturalmente despertam a mais adormecida
imaginação a quanto sonho de fadas e trovadores a poesia fez nascer dos
mysterios da edade-média.
Pouco mais adeante está, em um mau nicho escalavrado e feio, um
pretendido busto de D. Affonso Henriques, a que attribuem grande
antiguidade. Não me fez esse effeito a mim.
Chegámos á porta do _Sol_; sentamo'-nos alli a gosar da majestosa vista.
É majestosa mas triste. A ribanceira que d'alli corta abaixo, até ao
rio, é arida e quasi calva: cobrem-n'a apenas, como a mal povoada nuca
de um velho, alguns tufos de verdura cinzenta e grisalha de um arbusto
rasteiro, meio _frutex_ meio herbaceo que aqui chamam 'Salgadeira' e que
a tradicção diz ter vindo de Affrica para segurar a terra n'estes
taludes e precipicios. O aspecto e hábito da planta é realmente
affricano e oriental, não tem nada de europeu. Mas ésta derradeira e
occidental parte da nossa Hespanha é, geologicamente fallando, ja tam
affrica, tam pouco europa, que não sería necessaria a transplantação
talvez; e porventura ficou ésta memoria entre o povo do uso que os
moiros faziam da planta para esse fim.
Ésta porta do sol dizem que é onde se faziam as execuções em tempos
antigos. Foi bem escolhido o sítio; não o ha mais triste e melancholico.
Aopé está um torreão quadrado da muralha que ahi fórma canto para seguir
depois na direcção de sul a norte. D'este lado as fortificações e lanços
de muro estão todas pouco estragadas; e do mirante a que subimos,
póde-se formar perfeita idea do que era uma antiga cidade murada.
Sería aqui, dizia eu commigo, que o nosso Fr. Diniz de quem ja tenho
saudades--o velho guardião de San'Francisco veio chorar o seu ultimo
threno sôbre as ruinas da antiga monarchia? Sería aqui n'este logar de
desolação e melancholia que correram as suas derradeiras lagrymas! Elle
que ja não chorava, acharia aqui quem desse aos seus olhos as fontes de
agua que o coração lhe pedia para se desaffogar dos pezares que o
rallavam na aridez e seccura de sua desconsolada velhice?
Passavam-me éstas ideas pelo pensamento quando o historiador que tantos
capitulos nos retteve no vale, contando-nos os successos de Joanninha e
da sua familia, nos disse:
'Sentemo-nos aqui na sombra que faz ésta muralha e acabemos a historia
da menina dos rouxinoes. De tarde vamos á Ribeira saudar a memoria do
Alfageme. Ámanhan de manhan está detalhado que iremos ver a Graça, o
Sancto milagre, San' Domingos e San' Francisco. Concluamos hoje ésta
historia.'
'Seja' respondemos nós.
Entraremos portanto em novo capitulo, leitor amigo; e agora não tenhas
medo das minhas digressões fataes, nem das interrupções a que sou
sujeito. Irá direita e corrente a historia da nossa Joanninha até que a
terminemos... em bem ou em mal? D'antes um romance, um drama em que não
morria ninguem era havido por semsabor; hoje ha um certo horror ao
tragico, ao funesto que perfeitamente quadra ao seculo das commodidades
materiaes em que vivemos.
Pois, amigo e benevolo leitor, eu nem em principios nem em fins tenho
eschola a que esteja sujeito, e heide contar o caso como elle foi.
Escuta.


CAPITULO XXXII.

Tornámos á historia de Joanninha.--Preparativos de guerra.--A
morte.--Carlos ferido e prisioneiro.--O hospital.--O
infermeiro.--Georgina.

'Escuta!' disse eu ao leitor benevolo no fim do último capítulo. Mas não
basta que escute, é preciso que tenha a bondade de se recordar do que
ouviu no capitulo XXV e da situação em que ahi deixámos os dous primos,
Carlos e Joanninha.
N'este despropositado e inclassificavel livro das minhas Viagens, não é
que se quebre, mas inreda-se o fio das historias e das observações por
tal modo, que, bem o vejo e o sinto, so com muita paciencia se póde
deslindar e seguir em tam imbaraçada meada.
Vamos pois com paciencia, caro leitor; farei por ser breve e ir direito
quanto eu podér.
Lembra-te como n'uma noite pura, serena e estrellada, aquelles dous se
despediram um do outro no meio do valle, como se despediram tristes,
duvidosos, infelizes, e ja outros, tam outros do que d'antes foram.
N'essa mesma noite, a ordenada confusão de um grande movimento de guerra
reinava nos postos dos constitucionaes. Á longa apathia de tantos mezes
succedia uma inesperada actividade. Preparavam-se os sanguinolentos
combates de Pernes e de Almoster, que não foram decisivos logo, mas que
tanto appressaram o termo da contenda.
Carlos achou ordem de se appresentar no quartel-general, partiu
immediatamente. O pensamento absorvido por ideas tam differentes, tam
confuso, tam alheado de si mesmo, seguiu machinalmente o corpo. Foi,
chegou, recebeu as instrucções que lhe deram, e voltou mais satisfeito,
mais tranquillo.
Tractava-se de morrer. Não sabe o que é verdadeira angústia d'alma o que
ainda não abençoou a morte que viu deante de si, o que a não invocou
ainda como unico remedio de seu mal, ou, o que é mais desesperado, como
unica sahida de suas fataes perplexidades.
Estes momentos são raros na vida, é certo; mas quando occorrem, não ha
exaggeração nenhuma em dizer que antes, muito antes a morte do que
elles.
Oh! e se a morte que se contempla é de honra e glória, se o enthusiasmo,
tirando fortemente a corda dos nervos, os faz vibrar n'aquelles tons
secretos e mysteriosos que arrebatam, e elevam o coração do homem á
sublime abnegação de si, e de tudo o que é piqueno, baixo e vil na sua
natureza--oh então a morte parece um triumpho, uma bemaventurança
porcerto!
Carlos esqueceu-se de tudo, menos da sua espada que affiou com
escrupuloso cuidado, e das suas boas e seguras pistolas inglezas que
limpou minuciosamente, carregou e escorvou com um verdadeiro amor de
artista que se compraz no último acabamento de um trabalho predilecto.
O pouco da noite que lhe restava passou-se n'isto, a marcha começou
antes do dia. E os primeiros raios do sol foram saudados pelo fuzilar
das espingardas, e pelo trovejar dos canhões.
Combateu-se larga e incarniçadamente--como entre irmãos que se odeiam de
todo o odio que ja foi amor--o mais cruel odio que tem a natureza!
O dia declinava ja quando n'um hospital em Santarem entravam muitas
maccas de feridos, e entre elles, um todo crivado de ballas e cuberto de
sangue que, assim pelos restos do uniforme como por certo ar bem
conhecido--e charecteristica então, se via claramente ser do exército
constitucional.
Eram muitas e perigosas as feridas d'esse homem; estenderam-n'o n'uma
especie de tarimba sôbre que havia alguma palha, e quando lhe chegou a
sua vez foi examinado e pençado como os outros. Não dava signal de
padecer, tinha os olhos fechados, o pulso forte mas não agitado de
febre; não proferia uma syllaba, não soltava um ai, e prestava-se a tudo
o que lhe diziam e faziam, menos a soltar da mão esquerda que apertava
contra o peito o que quer que fosse que alli tinha seguro e que lhe
pendia ao pescosso de uma estreita fitta preta.
Assim o deixaram largo tempo: elle adormeceu. Não sería largo, mas foi
profundo o seu dormir. Quando acordou ja se não viu no vasto
caravanseray d'aquelle confuso hospital, mas n'um pequeno quarto
arejado, limpo, e quasi confortavel que em tudo parecia cella de
convento, menos na boa cama em que jazia o doente, e na extremada
elegancia do infermeiro que o velava.
O quarto era comeffeito uma cella do convento de San'Francisco em
Santarem, o doente o nosso Carlos; e o infermeiro que o velava, uma
bella mulher de estatura não acima de ordinaria mas nem uma linha menos,
involvida nas amplissimas pregas de um longo roupão de seda d'aquella
acertada côr que, em dialecto da rua Vivienne, se diz _scabieuse_; a
cabeça toucada de finissima Bruxellas, com uns laços de preto e côr de
granada que realçavam a transparencia das rendas, a infinita graça dos
longos e ondados aneis louros do cabello, e a pureza symetrica de um
rosto oval, classico, perfeito, sem grande mobilidade de expressão mas
bello, bello, quanto póde ser bello um rosto em que pouco d'alma se
reflecte, e em que a serena languidez de uns olhos azues entibía e
modera a energia do sentimento que não é menos profundo talvez, mas
certamente se expande menos.
De joelhos juncto ao leito de Carlos, com a mão direita d'elle nas suas,
os olhos seccos mas fixos nas descahidas palpebras do soldado, aquella
mulher estava alli como a estátua da dor e da anxiedade. A uma porta
interior e que abria para uma especie de alcova obscura, em pé, os
braços cruzados e mettidos nas mangas, o capuz na cabeça, estava um
frade velho, alto mas curvado do pêso dos annos ou dos soffrimentos.
O frade contemplava o infêrmo e a infermeira, mas visivelmente não
queria ser visto n'essa occupação, porque ao menor estremecimento do
doente recuava apressado e como assustado para o interior da sua alcova.
Uma so vela de cera allumiava este quadro, accidentando-o de fortes
sombras, e dando-lhe um tom de solemnidade verdadeiramente magico e
sublime.
Carlos segurava ainda na esquerda com o mesmo affêrro o relicario ou
talisman, o que quer que era que não queria desprender de seu coração. A
bella infermeira beijava de vez em quando aquella mão tenaz que
estremecia a cada beijo, por mais suave e mimoso que fosse o leve
contacto d'esses labios delicados.
A outra mão estava nas mãos d'ella, mas era insensivel a tudo, essa.
O silencio era o do sepulchro: so se ouvia o respirar incerto e
descompassado do infêrmo.
Derepente Carlos entreabriu as palpebras e exclamou em inglez: '_Oh
Georgina, Georgina, I love you still._'--(Georgina, Georgina, eu ainda
te amo).
Duas lagrymas--duas perolas, d'estas que se criam com tanta dor no
coração e que ás vezes sahem com tanto prazer dos olhos--romperam do
celeste azul dos olhos da dama e suavemente correram por aquellas faces
de uma alvura pallida e mortal.
Carlos accordou de todo, abriu os olhos e cravou-os fixamente no rosto
angelico d'essa mulher.
Esteve assim minutos: ella não dizia nada nem de voz nem de gesto:
fallavam-lhe so as lagrymas que corriam quietas, quietas, como corre uma
fonte perenne e nativa d'agua que mana sem esfôrço nem impeto, por um
declive natural e facil.
--'Onde estou eu, Georgina?'
--'Nos meus braços.'
--'Que me succedeu?'
--'Que não podes ser feliz senão n'elles: bem sabes.'
--'Sei... devia saber.'
--'Hasde sabe-lo agora. O passado...'
--'O passado! qual?'
--'O passado deixou de existir.'
--'E o futuro?'
--'Eu não creio no futuro.'
--'Porquê?'
--'Porque tu me disseste que não cresse.'
--'Eu!.. Eu sou um...'
--'Um homem.'
--'Oh!'
--'Basta e descança. Amanhan fallaremos.'
--'Estou ferido, muito; e doe-me agora... não me doía.'
--'Estás, mas sem perigo: e estou eu aqui. Dorme.'
--'Não posso. Que casa é ésta?'
--'San'Francisco de Santarem.'
--'Deus de misericordia!'
--'Es prisioneiro: sára, e eu te livrarei.'
--'Tu!--E tu aqui, como?'
--'Vim buscar-te, e achei-te assim.'
--'Georgina!'
--'Que tens tu ahi tam seguro na mão esquerda?'
--'Vê: a medalha com o teu cabello.'
--'Então amas-me tu ainda?'
--'Se te amo! Como no primeiro...'
--'Não mintas, Carlos... E dorme.'
--'Oh meu Deus, meu Deus! Georgina aqui, eu n'este estado e... E a minha
gente?'
--'A tua gente está salva.'
--'Aonde?'
--'Aqui mesmo, em Santarem.'
--'Quero... não quero... Oh sim, quero mas é morrer. Tende misericordia
de mim, meu Deus!'
--'Socega, Carlos.'
Mas Carlos não socegava: immudeceu porque a torrente de seus
pensamentos, o incontrado d'elles, e o inesperado d'aquella situação lhe
imbargavam a voz, e o quebramento das fôrças lhe tolhia os movimentos do
corpo; mas o espirito inquieto e alvoraçado revolvia-se dentro com um
phrenesi louco. Era pasmar o que elle soffria.
Á fôrça de bebidas calmantes o accesso diminuiu, a noite passou mais
tranquilla; e pela manhan o doente não dava cuidado ao facultativo que o
veio ver.
Prohibiram-lhe fallar; e Georgina tinha a coragem de lhe resistir, de
lhe não responder todas as vezes que elle tentava quebrar o preceito de
que dependia a sua vida... e a d'ella, porque a infeliz amava-o... oh!
amava-o como se não ama senão uma vez n'este mundo.
Passaram dias, semanas, Carlos estava melhor, estava salvo; Georgina
pôde dizer-lhe um dia:
--'Carlos, meu Carlos, tu estás livre de perigo, vou restituir-te aos
teus.'
--'Os meus!'
--'Os teus. Tua avó, tua prima...'
--'Joaninha! oh! Joanninha...'
--'Tua avó que tambem tem estado a morrer mas que emfim está escapa,
ignora que tu estejas aqui. Occultámo-lo egualmente a tua prima.'
--'Ah!'
--'Sim, assentámos de lh'o não dizer a uma nem a outra até que
tivessemos certeza da tua melhora. Hoje porêm vais ve-las. E eu...'
--'Tu!'
--'Eu não tenho aqui mais nada que fazer.'
--'Georgina!'
--'Carlos!'
--'Tu ja me não amas?'
--'Não.'
Seguiu-se um silencio torvo e abafado como o da calma que precede as
grandes tempestades. O rosto de Georgina estava impassivel, Carlos
estorcia-se debaixo de uma compressão horrivel e incapaz de se
descrever.


CAPITULO XXXIII.

Carlos e Georgina. Explicação.--Ja te não amo! palavra
terrivel.--Que o amor verdadeiro não é cego.--Frade no caso outra
vez. _Ecce iterum Crispinus_; ca está o nosso Fr. Diniz comnosco.

--'Tu ja me não amas, Georgina, tu!' exclamou Carlos depois de uma longa
e penosa lucta comsigo mesmo: 'Ja me não amas tu, Georgina? Ja não sou
nada para ti n'este mundo? Aquelle amor cego, louco, infinito, que
derramavas em torrentes sôbre a minha alma, em que trasbordava o teu
coração; aquelle amor que eu cheguei a persuadir-me que era o maior, o
mais sincero, talvez o unico verdadeiro amor de mulher que ainda houve
no mundo, esse amor acabou, Georgina? Seccou-se no teu peito a fonte
celeste d'onde manava? Nem as recordações de nossa passada felicidade,
nem as memorias dos crueis lances que nos custou, dos sacrificios
tremendos que por mim fizeste, nada, nada póde acordar na tua alma um
echo, um echo sumido que fosse, da antiga harmonia de nossas vidas--da
nossa vida, Georgina, porque nós chegámos a confundir n'um só os dois
seres da nossa existencia--Oh! porque vivi eu até este dia? E tu, tu que
refinada crueldade te inspirou o salvar uma vida que tinhas condemnado,
que tinhas sacrificado quando a separaste da tua?'
--'Carlos,' respondeu Georgina com a fria mas compassiva piedade que
mais o desesperava:--'Carlos, não abuses da pouca saude que ainda tens.
O esfôrço d'alma que estás fazendo póde-te ser prejudicial. Socega. Tu
illudes-te, e sem querer, procuras illudir-me tambem a mim. Entra em ti,
Carlos, e discorramos pausadamente sôbre a nossa situação, que não é
agradavel porcerto nem para um nem para outro, mas que póde supportar-se
se tivermos juizo para a incarar toda e sem medo, e para nos
convencermos com lealdade e franqueza do que ella realmente é. Ouve-me,
Carlos: tu amaste-me muito...'
--'Oh como, oh quanto! Nenhum homem...'
--'Poucos homens, é certo, amaram ainda como tu... quem sabe! talvez
nenhum.--Não quero perder ésta última illusão... ja não tenho outra...
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