Viagens na Minha Terra - 01

Total number of words is 4661
Total number of unique words is 1853
31.8 of words are in the 2000 most common words
44.1 of words are in the 5000 most common words
51.7 of words are in the 8000 most common words
Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.


OBRAS
DE
J. B. DE A. GARRETT.
VIII.
(PRIMEIRO DAS VIAGENS)


VIAGENS NA MINHA TERRA

POR J. B. DE ALMEIDA-GARRETT.

I

LISBOA
NA TYPOGRAPHIA DA GAZETA DOS TRIBUNAIS.
1846.


Os editores d'esta obra, vendo a popularidade extraordinaria que ella
tinha publicada em fragmentos na _Revista_, intenderam fazer um serviço
ás lettras e á gloria do seu paiz, imprimindo-a agora reunida em um
livro, para melhor se podêr avaliar a variedade, a riqueza e a
originalidade de seu stylo inimitavel, da philosophia profunda que
incerra, e sôbre tudo o grande e transcendente pensamento moral a que
sempre tende, ja quando folga e ri com as mais graves coisas da vida, ja
quando seriamente discute por suas leviandades e pequenezas.
As _Viagens na minha terra_, são um d'aquelles livros raros que so
podiam ser escriptos por quem, como o auctor de _Camões_ e de _Catão_,
de _D. Branca_ e do _Portugal na Balança da Europa_, do _Auto de
Gil-Vicente_ e do _Tractado de Educação_, do _Alfageme_ e de _Fr. Luiz
de Souza_, do _Arco de Sanct'Anna_ e da _Historia Litteraria de
Portugal_, de _Adozinda_ e das _Leituras Historicas_ e de tantas
producções de tam variado genero, possue todos os stylos e, dominando
uma lingua de immenso podêr, a costumou a servir-lhe e
obedecer-lhe;--por quem com a mesma facilidade sobe a orar na tribuna,
entra no gabinete nas graves discussões e demonstrações da sciencia--voa
ás mais altas regiões da lyrica, da epopeia e da tragedia, lida com as
fortes paixões do drama, e baixa ás não menos difficeis trivialidades da
comedia;--por quem ao mesmo tempo, e como que mudando de natureza, póde
dar-se todo ás mais aridas e materiaes ponderações da administração e da
politica, e redigir com admiravel precisão, com uma exacção ideologica
que talvez ninguem mais tenha entre nós, uma lei administrativa ou de
instrucção pública, uma constituição politica, ou um tractado de
commercio.
Orador e poeta, historiador e philosopho, crítico e artista,
jurisconsulto e administrador, erudito e homem d'Estado, religioso
cultor da sua lingua e falando correctamente as extranhas--educado na
pureza classica da antiguidade, e versado depois em todas as outras
litteraturas--da meia-edade, da renascença e contemporanea--o auctor das
Viagens Na Minha Terra é egualmente familiar com Homero e com o Dante,
com Platão e com Rousseau, com Thucidides e com Thiers, com Guizot e com
Xenophonte, com Horacio e com Lamartine, com Machiavel e com
Chateaubriand, com Shakspeare e Euripedes, com Camões e Calderon, com
Goethe e Virgilio, Schiller e Sá-de-Miranda, Sterne e Cervantes, Fenelon
e Vieira, Rabelais e Gil-Vicente, Addison e Bayle, Kant e Voltaire,
Herder e Smith, Bentham e Cormenin, com os Encyclopedistas e com os
Sanctos-Padres, com a Biblia e com as tradicções sanscritas, com tudo o
que a arte e a sciencia antiga, com tudo o que a arte emfim e a sciencia
moderna teem produzido. Ve-se isto dos seus escriptos, e especialmente
se ve d'este que agora publicâmos apezar de composto bem claramente ao
correr da penna.
Mas ainda assim, e com isto somente, elle não faria o que faz se não
junctasse a tudo isso o profundo conhecimento dos homens e das coisas,
do coração humano e da razão humana; se não fosse, além de tudo o mais,
um verdadeiro homem do mundo, que tem vivido nas côrtes com os
principes, no campo com os homens de guerra, no gabinete com os
diplomaticos e homens d'Estado, no parlamento, nos tribunaes, nas
academias, com todas as notabilidades de muitos paizes--e nos salões
emfim com as mulheres e com os frivolos do mundo, com as elegancias e
com as falsidades do seculo.
De tantas obras de tam variado genero com que, em sua vida ainda tam
curta, este fecundo escriptor tem inriquecido a nossa lingua, é ésta
talvez, tornâmos a dizer, a que elle mais descuidadamente escreveu: mas
é tambem a que, em nossa opinião, mais mostra os seus immensos podêres
intellectuaes, a sua erudição vastíssima, a sua flexibilidade de stylo
espantosa, uma philosophia transcendente, e por fim de tudo, o natural
indulgente e bom de um coração recto, puro, amigo da justiça, adorador
da verdade, e inimigo declarado de todo o sophisma.
Tem sido accusado de sceptico: é a accusação mais absurda e que so
denuncia, em quem a faz, ou grande ignorancia ou grande má fe. Quando o
nosso auctor lança mão da cortante e destruidora arma do sarcasmo, que
elle maneja com tanta fôrça e dexteridade, e que talvez por isso mesmo,
conscio de seu podêr, elle rara vez toma nas mãos--veja-se que é sempre
contra a hypocrisia, contra os sophismas, e contra os hypocritas e
shopistas de _todas as côres_, que elle o faz. Crenças, opiniões,
sentimentos, respeita-os sempre. As mesmas suas ironias que tanto ferem,
não as dirige nunca sôbre individuos; ve-se que despreza a facil
vingança que, com tam poderosas armas, podia tomar de inimigos que o não
poupam, de invejosos que o calumniam, e a quem, por cada dicterio
insulso e ephemero com que o teem pretendido injuriar, elle podia
condemnar ao eterno oppróbrio de um pelourinho immortal como as suas
obras. Ainda bem que o não faz! mais immortaes são as suas obras, e
quanto a nós, mais punidas ficam os seus emulos com esse desprêzo do
homem superior que se não appercebe de sua malignidade insulsa e
insignificante.
Voltando á accusação de septicismo, ainda dizemos que não póde ser
septico o espirito que concebeu, e em si achou côres com que pintar tam
vivos, characteres de crenças tam fortes como o de Catão, de Camões, de
Fr. Luiz de Sousa,--e aqui n'esta nossa obra, os de Fr. Diniz, de
Joanninha, da Irman Francisca.
Não analysâmos agora as Viagens Na Minha Terra: a obra não está ainda
completa e não podia completar-se portanto o juizo; dizemos somente o
que todos dizem e o que todos podem julgar ja.
A nosso rôgo, e por fazer mais digna da sua reputação ésta segunda
publicação da obra, o auctor prestou-se a dirigi-la elle mesmo,
corrigiu-a, additou-a, alterou-a em muitas partes, e a illustrou com as
notas mais indispensaveis para a geral intelligencia do texto: de modo
que sahirá muito melhorada agora do que primeiro se imprimiu.


VIAGENS NA MINHA TERRA.

Qu' il est glorieux d'ouvrir une nouvelle carrière, et de paraitre
tout-à-coup dans le monde savant un livre de découvertes à la main,
comme une cométe inattendue étincelle dans l'espace!
X. DE MAISTRE.


CAPITULO I.

De como o auctor d'este erudito livro se resolveu a viajar na sua
terra, depois de ter viajado no seu quarto; e como resolveu
immortalizar-se escrevendo éstas suas viagens. Parte para Santarem.
Chega ao Terreiro-do-Paço, imbarca no vapor de Villa-Nova; e o que
ahi lhe succede. A Deducção-Chronologica e a Baixa de Lisboa. Lord
Byron e um bom charuto. Travam-se de razões os Ilhavos e os
Bordas-d'agua: os da calça larga levam a melhor.

Que viage á roda do seu quarto quem está á beira dos Alpes, de hynverno,
em Turim, que é quasi tam frio como San'Petersburgo--intende-se. Mas com
este clima, com este ar que Deus nos deu, onde a laranjeira cresce na
horta, e o mato é de murta, o proprio _Xavier de Maistre_, que aqui
escrevesse, ao menos ia até o quintal.
Eu muitas vezes, n'estas suffocadas noites d'estio, viajo até á minha
janella para ver uma nesguita de Tejo que está no fim da rua, e me
inganar com uns verdes de árvores que alli vegetam sua laboriosa
infancia nos intulhos do Caes-do-Sodré. E nunca escrevi éstas minhas
viagens nem as suas impressões: pois tinham muito que ver! Foi sempre
ambiciosa a minha penna: pobre e suberba, quer assumpto mais largo. Pois
hei de dar-lh'o. Vou nada menos que a Santarem: e protesto que de quanto
vir e ouvir, de quanto eu pensar e sentir se hade fazer chronica.
Era uma idea vaga, mais desejo que tenção, que eu tinha ha muito de ir
conhecer as riccas varzeas d'esse Ribatejo, e saudar em seu alto cume a
mais historica e monumental das nossas villas. Aballam-me as instancias
de um amigo, decidem-se as tonterias de um jornal, que por mexeriquice
quiz incabeçar em designio politico determinado a minha visita.
Pois por isso mesmo vou:--_pronunciei-me_.
São 17 d'este mez de julho, anno de graça de 1843, uma segunda-feira,
dia sem nota e de boa estrea. Seis horas da manham a dar em San'Paulo, e
eu a caminhar para o Terreiro-do-Paço. Chego muito a horas, invergonhei
os meus madrugadores dos meus companheiros de viagem, que todos se
prezam de mais matutinos homens que eu. Ja vou quasi no fim da praça,
quando oiço o rodar grave mas pressuroso de uma carroça _d'ancien
règime_: é o nosso chefe e commandante, o capitão da impreza, o Sr. C.
da T. que chega em estado.
Tambem são chegados os outros companheiros: o sino dá o último rebate.
Partimos.
N'uma _regata_ de vapores o nosso barco não ganhava decerto o premio. E
se, no andar do progresso, se chegarem a instituir alguns isthmicos ou
olympicos para este genero de carreiras--e se para ellas houver algum
Pindaro ancioso de correr, em strophes e antistrophes, atraz do vencedor
que vai coroar de seus hymnos immortaes--não cabe nem um triste minguado
epodo a este cançado corredor de Villa-nova. É um barco serio e sizudo
que se não mette n'essas andanças.
Assim vamos de todo o nosso vagar contemplando este majestoso e
pittoresco amphitheatro de Lisboa oriental, que é, vista de fóra, a mais
bella e grandiosa parte da cidade, a mais characteristica, e onde, aqui
e alli, algumas raras feições se percebem, ou mais exactamente se
adivinham, da nossa velha e boa Lisboa das chronicas. Da Fundição para
baixo tudo é prosaico e burguez, chato, vulgar e semsabor como um
periodo da _Deducção Chronologica_, aqui e alli assoprado n'uma
tentativa ao grandioso do mau gôsto, como alguma oitava menos rasteira
do _Oriente_.
Assim o povo, que tem sempre melhor gôsto e mais puro do que essa escuma
descórada que anda ao decima das populações, e que se chama a si mesma
por excellencia a _Sociedade_, os seus passeios favoritos são a
Madre-de-Deus e o Beato e Xabregas e Marvilla e as hortas de Chellas. A
um lado a immensa majestade do Tejo em sua maior extensão e podêr, que
alli mais parece um pequeno mar mediterraneo; do outro a frescura das
hortas e a sombra das árvores, palacios, mosteiros, sitios consagrados
todos a recordações grandes ou queridas. Que outra sahida tem Lisboa que
se compare em belleza com ésta? Tirado Bellem, nenhuma. E ainda assim,
Bellem é mais arido.
Já saudámos Alhandra, a toireira; Villa-franca, a que foi de Xira, e
depois da Restauração, e depois outra vez de Xira, quando a tal
restauração cahiu, como a todas as restaurações sempre succede e hade
succeder, em odio e execração tal que nem uma pobre villa a quiz para
sobrenome.
--'A questão não era de restaurar nem de não restaurar, mas de se livrar
a gente de um govérno de patuscos, que é o mais odioso e ingulhoso dos
governos possiveis.'
É a reflexão com que um dos nossos companheiros de viajem accudiu ao
princípio de ponderação que eu ia involuntariamente fazendo a respeito
de Villa-franca.
Mas eu não tenho odio nenhum a Villa-franca, nem a esse famoso cirio que
lá foi fazer à velha monarchia. Era uma coisa que estava na ordem das
coisas, e que por fôrça havia de succeder. Este necessario e inevitavel
reviramento por que vai passando o mundo, hade levar muito tempo, hade
ser contrastado por muita reacção antes de completar-se...
No entretanto vamos accender os nossos charutos, e deixemos os precintos
aristocraticos da ré: á proa, que é paiz de cigarro livre!
Não me lembra que lord Byron celebrasse nunca o prazer de fummar a
bórdo. È notavel esquecimento no poeta mais imbarcadiço, mais marujo que
ainda houve, e que até cantou o injôo, a mais prosaica e nauseante das
miserias da vida! Pois n'um dia d'estes, sentir na face e nos cabellos a
brisa refrigerante que passou por cima da agua, em quanto se aspiram
mollemente as narcoticas exhalações de um bom cigarro da Havana, é uma
das poucas coisas sinceramente boas que ha n'este mundo.
Fummemos!
Aqui está um campino fummando gravemente o seu cigarro de papel, que me
vai imprestar lume.
'Dou-lh'o eu, senhor...' accode cortezmente outra figura mui diversa,
cujas feições, trajo e modos singularmente contrastam com os do
_musarabe_ ribatejano.
Accenderam-se os charutos, e attentámos mais de vagar na companhia em
que estavamos.
Era com effeito notavel e interessante o grupo a que nos tinhamos
chegado, e destacava pittorescamente do resto dos passageiros, mistura
hybrida de trajos e feições descharacterizadas e vulgares--que abunda
nos arredores de uma grande cidade maritima e commercial.--Não assim
este grupo mais separado com que fomos topar. Constava elle de uns dôze
homens; cinco eram d'esses famosos athletas da Alhandra que vão todos os
domingos colher o _pulverem olympicum_ da praça de Sanct'Anna, e que, á
voz soberana e irresistivel de: _á unha, á unha, á cernelha!_.... correm
a arcar com mais generosos, não mais possantes, animaes que elles, ao
som das immensas palmas, e a trôco dos raros pintos por que se manifesta
o sempre clamoroso e sempre vazio enthusiasmo das multidões. Voltavam á
sua terra os meus cinco luctadores ainda em trajo de praça, ainda
esmurrados e cheios de glória da contenda da vespera. Mas aopé d'estes
cinco e de altercação com elles--ja direi porquê--estavam seis ou sette
homens que em tudo pareciam os seus antipodas.
Emvez do calção amarello e da jaqueta de ramagem que caracterizam o
homem do forcado, estes vestiam o amplo saiote grego dos varinos, e o
tabardo arrequifado siciliano de panno de varas. O campino, assim como o
saloio, tem o cunho da raça africana; estes são da familia pelasga:
feições regulares e moveis, a fórma agil.
Ora os homens do norte estavam disputando com os homens do sul: a
questão fôra interrompida com a nossa chegada á proa do barco. Mas um
dos Ilhavos--bella e poetica figura de homem--voltando-se para nós,
disse n'aquelle seu tom accentuado:--'Ora aqui está quem hade decidir:
vejam-n'os senhores. Elles, por agarrar um toiro, cuidam que são mais
que ninguem, que não ha quem lhes chegue. E os senhores, a serem ca de
Lisboa, hãode dizer que sim. Mas nós...'
--Nenhum de nós é de Lisboa: so este senhor que aqui vem agora.
Era o C. da T. que chegava.
--'Este conheço eu; este é dos nossos (bradou um homem de forcado, assim
que o viu). Isto é um fidalgo como se quer. Nunca o vi n'uma ferra, isso
é verdade; mas aqui de Vallada a Almeirim ninguem corre mais do que elle
por sol e por chuva, e hade saber o que é um boi de lei, e o que é lidar
com gado.'
--'Pois oiçamos lá a questão.'
--'Não é questão'--tornou o Ilhavo: 'mas se este senhor fidalgo anda por
Almeirim, para Almeirim vamos nós, que era uma charneca o outro dia, e
hoje é um jardim, benza-o Deus!--mas não foram os campinos que o
fizeram, foi a nossa gente que o sachou e plantou, e o fez o que é, e
fez terra das areas da charneca.'
--'Lá isso é verdade'.
--'Não, não é! Que está forte habilidade fazer dar trigo aqui aos
nateiros do Tejo, que é como quem semeia em manteiga. É uma lavoira que
a faz Deus por sua mão, regar e adubar e tudo: e o que Deus não faz, não
fazem elles, que nem sabem ter mão n'esses monchões c'o plantio das
arvores: so lá por cima é que algumas teem mettido, e é bem pouco para o
rio que é, e as riccas terras que lhes levam as inchentes.--Mas nós, pe
no barco pe na terra, tam depressa estamos a sachar o milho na charneca,
como vimos por ahi abaixo com a vara no peito, e o saveiro a pegar
n'area por não haver agua... mas sempre labutando pela vida'.
--'A fôrça é que se falla'--tornou o campino para estabelecer a questão
em terreno que lhe convinha.--'A fôrça é que se falla: um homem do campo
que se deita alli á cernelha de um toiro que uma companha inteira de
varinos lhe não pegava, com perdão dos senhores pelo rabo!..'
E reforçou o argumento com uma gargalhada triumphante, que achou echo
nos interessados circumstantes que ja se tinham apinhado a ouvir os
debates.
Os Ilhavos ficaram um tanto abatidos; sem perderem a consciencia da sua
superioridade, mas acanhados pela algazarra.
Parecia a esquerda de um parlamento quando ve sumir-se, no borburinho
acintoso das turbas ministeriaes, as melhores phrases e as mais fortes
razões dos seus oradores.
Mas o orador ilhavo não era homem de se dar assim por derrotado. Olhou
para os seus, como quem os consultava e animava, com um gesto
expressivo, e voltando-se a nós, com a direita estendida aos seus
antagonistas:
--'Então agora como é de fôrça, quero eu saber, e estes senhores que
digam, qual é que tem mais fôrça, se é um toiro ou se é o mar'.
--'Essa agora!..'
--'Queriamos saber'.
--'É o mar'.
--'Pois nós que brigâmos com o mar, oito e dez dias a fio n'uma
tormenta, de Aveiro a Lisboa, e estes que brigam uma tarde com um toiro,
qual é que tem mais fôrça?'
Os campinos ficaram cabisbaixos; o publico imparcial applaudiu por ésta
vez a opposição, e o Vouga triumphou do Tejo.


CAPITULO II.

Declaram-se typicas, symbolicas e mythicas éstas viagens. Faz o A.
modestamente o seu proprio elogio. Da marcha da civilização; e
mostra-se como ella é dirigida pelo cavalleiro da Mancha D.
Quixote, e por seu escudeiro Sancho Pança.--Chegada a
Villa-Nova-da-Rainha, Supplicio de Tantalo.--A virtude galardão de
si mesma; e sophisma de Jeremias Bentham.--Azambuja.

Éstas minhas interessantes viagens hãode ser uma obra prima, erudita,
brilhante de pensamentos novos, uma coisa digna do seculo. Preciso de o
dizer ao leitor, paraque elle esteja previnido; não cuide que são
quaesquer d'essas rabiscaduras da moda que, com o titulo de _Impressões
de Viagem_, ou outro que tal, fatigam as imprensas da Europa sem nenhum
proveito da sciencia e do adiantamento da especie.
Primeiro que tudo, a minha obra é um symbolo... é um mytho, palavra
grega, e de moda germanica, que se mette hoje em tudo e com que se
explica tudo... quanto se não sabe explicar.
É um mytho porque--porque... Ja agora rasgo o veo, e declaro abertamente
ao benevolo leitor a profunda idea que está occulta debaixo d'esta
ligeira apparencia de uma viagemzita que parece feita a brincar, e no
fim de contas é uma coisa séria, grave, pensada com um livro novo da
feira de Leipsick, não das taes brochurinhas dos _boulevards_ de Paris.
Houve aqui ha annos um profundo e cavo philosopho d'alêm Rheno, que
escreveu uma obra sôbre a marcha da civilização, do intellecto--o que
diriamos, para nos intenderem todos melhor, _o Progresso_. Descobriu
elle que ha dois principios no mundo: o _espiritualista_, que marcha sem
attender á parte material e terrena d'esta vida, com os olhos fittos em
suas grandes e abstractas theorias, hirto, sêcco, duro, inflexivel, e
que póde bem personalizar-se, symbolizar-se pelo famoso mytho do
cavalleiro da Mancha, D. Quixote;--o _materialista_, que, sem fazer caso
nem cabedal d'essas theorias, em que não crè, e cujas impossiveis
applicações declara todas utopias, póde bem representar-se pela rotunda
e anafada presença do nosso amigo velho, Sancho Pança.
Mas, como na historia do malicioso Cervantes, estes dois principios tam
avessos, tam desincontrados, andam comtudo junctos sempre; ora um mais
atraz, ora outro mais adiante, impecendo-se muitas vezes, coadjuvando-se
poucas, mas _progredindo_ sempre.
E aqui está o que é possivel ao progresso humano.
E eisaqui a chronica do passado, a historia do presente, o programma do
futuro.
Hoje o mundo é uma vasta Barataria, em que domina elrei Sancho.
Depois hade vir D. Quixote.
O senso commum virá para o millenio: reinado dos filhos de Deus! Está
promettido nas divinas promessas... como elrei de Prussia prometteu uma
constituição; e não faltou ainda, porque--porque o contracto não tem
dia; prometteu mas não disse para quando.
Ora n'esta minha viagem Tejo-a-riba está symbolizada a marcha do nosso
progresso social: espero que o leitor intendesse agora. Tomarei cuidado
de lh'o lembrar de vez em quando, porque receio muito que se esqueça.
Somos chegados ao triste desimbarcadoiro de Villa-Nova-da-Rainha, que é
o mais feio pedaço de terra alluvial em que ainda poisei os meus pés. O
sol arde como ainda não ardeu este anno.
Um immenso arraial de caleças, de machinhos, de burros e arrieiros, nos
espera n'aquelle descampado africano. É forçoso optar entre os dois
martyrios da caleça ou do macho. Do mal o menos... seja este.
E acolá--oh supplício de Tantalo!--vejo duas possantes e nedeas mulas
castelhanas jungidas a um vehiculo que, n'estas paragens e ao pé
d'aquell'outros, me parece mais esplendido do que um landaw de
Hyde-Park, mais elegante que um caleche de Long-champs, mais commodo e
elastico do que o mais acrio briska da princeza Hellena. E com tudo--oh
magico podêr das situações!--elle não é senão, uma substancial e bem
apessoada traquitana de cortinas.
Togados manes dos antigos desimbargadores, venerandas cabelleiras de
anneis e castanhola, que direis, ó respeitadas sombras, se d'esse limbo
onde estais esperando pela resurreição do Pêgas... e do livro
quinto--vêdes este degenerado e espurio successor vosso, em calças
largas, frak verde, chapeu branco, gravata de côr, chicotinho de
caoutchouc na mão, prompto a cavalgar em mulinha de Palito-Metrico como
um garraio estudantinho do segundo anno, e deitando olhos invejosos para
esse natural, proprio e adscripticio modo de conducção desimbargatoria?
Oh que direis vós! Com que justo desprêzo não olhareis para tanta
degradação e derogação!
Eu commungava silenciosamente commigo n'estas graves meditações, e
revolvia incertamente no ânimo a ponderosa dúvida:--se o administrar
justiça direita aos povos valia a pena de andar um desimbargador a
pé!... Luctava no meu ser o Sancho Pança da carne com o D. Quixote do
espirito--quando a Providencia, que nos maiores apertos e tentações nos
não abandona nunca, me trouxe a generosa offerta de um amigo e
companheiro do vapor, o Sr. L. S.: era sua a invejada carroça, e n'ella
me deu logar até á Azambuja.
A virtude é o galardão de si mesma, disse um philosopho antigo; e eu não
creio no famoso ditto de Bentham, que sabedoria antiga seja um sophisma.
O mais moderno é o mais velho, não ha dúvida; mas o antigo que dura
ainda, é porque tem achado na experiencia a confirmação que o moderno
não tem. Jeremias Bentham tambem fazia o seu sophisma como qualquer
outro.
Vamos percorrendo lentamente aquelle mal-composto marachão que poucos
palmos se eleva do nivel baixo e salgadiço do solo: de hynverno não se
passará sem perigo; ainda agora se não anda sem incómmodo e receio.
Estamos em Villa-Nova e ás portas do nojento caravanseray, unico asylo
do viajante n'esta, hoje, a mais frequentada das estradas do reino.
Parece-me estar mais deserto e sujo, mais abandonado e em ruinas este
asqueroso logarejo, desde que alli aopé tem a estação dos vapôres, que
são a commodidade, a vida, a alma do Ribatéjo. Imagino que uma aldeia de
Alarves nas faldas do Atlas deve ser mais limpa e commoda.
Oh! Sancho, Sancho, nem siquer tu reinarás entre nós! Cahiu o carunchoso
throno de teu predecessor, antagonista e ás vezes amo; açoitaram-te
essas nadegas para desincantar a formosa _del Toboso_, proclamaram-te
depois rei em _Barataria_, e n'esta tua provincia lusitana nem o
paternal govêrno de teu estupido materialismo póde estabelecer-se para
commodo e salvação do corpo; ja que a alma... oh! a alma...
Fallemos n'outra coisa.
Fujamos depressa d'este monturo.--É monótona, arida e sem frescura de
árvores a estrada: apenas alguma rara oliveira mal-medrada, a longos e
desiguaes espaços, mostra o seu tronco rachitico e braços contorcidos,
ornados de ramusculos doentes, em que o natural verde-alvo das folhas é
mais alvacento e desbotado que o costume. O solo porêm, com raras
excepções, é optimo, e a trôco de pouco trabalho e insignificante
despeza, daria uma estrada tam boa como as melhores da Europa.
Dizia um secretario d'Estado meu amigo que para se repartir com
egualdade o melhoramento das ruas por toda Lisboa, deviam ser obrigados
os ministros a mudar de rua e bairro todos os tres mezes. Quando se
fizer a lei de responsabilidade ministerial, para as kalendas gregas, eu
heide propor que cada ministro seja obrigado a viajar por este seu reino
de Portugal ao menos uma vez cada anno, como a desobriga.
Ahi está a Azambuja, pequena mas não triste povoação, com visiveis
signaes de vida, aceadas e com ar de confôrto as suas casas. É a
primeira povoação que dá indicio de estarmos nas ferteis margens do Nilo
portuguez.
Corrémos a apear-nos no elegante estabelecimento que ao mesmo tempo
cumulla as tres distinctas funcções, de _hotel, de restaurant e de café_
da terra.
Sancto Deus! que bruxa que está á porta! que antro lá dentro!... Cai-me
a penna da mão.


CAPITULO III.

Acha-se desappontado o leitor com a prosaica sinceridade do A.
d'estas viagens. O que devia ser uma estalagem nas nossas eras de
litteratura romantica?--Suspende-se o exame d'esta grave questão
para tractar, em prosa e verso, um mui difficil ponto de
economia-politica e de moral social.--Quantas almas é preciso dar
ao diabo, e quantos corpos se teem de intregar no cemiterio para
fazer um ricco n'este mundo.--Como se veio a descobrir que a
sciencia d'este seculo era uma grandessissima tola.--Rei de facto,
e rei de direito.--Belleza e mentira não cabem n'um sacco.--Põe-se
o A. a caminho para o pinhal da Azambuja.

Vou _desappontar_ decerto o leitor benevolo; vou perder, pela minha
fatal sinceridade, quanto em seu conceito tinha adquirido nos dois
primeiros capitulos d'esta interessante viagem.
Pois que esperava elle de mim agora, de mim que ousei declarar-me
escriptor n'estas eras de romantismo, seculo das fortes sensações, das
descripções a traços largos e _incisivos_ que se intalham n'alma e
entram com sangue no coração?
No fim do capitulo precedente parámos á porta de uma estalagem: que
estalagem deve ser ésta, hoje no anno de 1843, ás barbas de Victor Hugo,
com o Doutor Fausto a trotar na cabeça da gente, com os _Mysterios de
Paris_ nas mãos de todo o mundo?
Ha paladar que supporte hoje a classica _posada_ do Cervantes com o seu
_mesonero_ gordo e grave, as pulhas dos seus arrieiros, e o mantear de
algum pobre lorpa de algum Sancho! Sancho, o invisivel rei do seculo,
aquelle _por quem hoje os reis reinam e os fazedores de leis decretam e
afferem o justo!_ Sancho manteado por vis muleteiros! Não é da epocha.
Eu coroarei de trevo a minha espada,
De cenoiras, luzerna e betarrava,
Para cantar Harmódios e Aristógilons,
Que do tyranno jugo vos livraram
Da sciencia velha, inutil carunchosa,
Que elevava da terra, erguia, alçava
O que no homem ha de Ser divino,
E para os grandes feitos e virtudes
Lhe despegava o espirito da carne...
Não: plantae batatas, ó geração de vapor e de pó de pedra, macadamisae
estradas, fazei caminhos de ferro, construí passarolas de Icaro, para
andar a qual mais depressa, éstas horas contadas de uma vida toda
material, massuda e grossa como tendes feito ésta que Deus nos deu tam
differente do que a hoje vivemos. Andae, ganha-pães, andae; reduzi tudo
a cifras, todas as considerações d'este mundo a equações de interêsse
corporal, comprae, vendei, agiotae.--No fim de tudo isto, o que lucrou a
especie humana? Que ha mais umas poucas de duzias de homens riccos. E eu
pergunto aos economistas-politicos, aos moralistas, se ja calcularam o
número de individuos que é forçoso condemnar á miseria, ao trabalho
desproporcionado, á desmoralização, á infamia, á ignorancia crapulosa, á
desgraça invencivel, á penuria absoluta, para produzir um ricco?--Que
You have read 1 text from Portuguese literature.
Next - Viagens na Minha Terra - 02
  • Parts
  • Viagens na Minha Terra - 01
    Total number of words is 4661
    Total number of unique words is 1853
    31.8 of words are in the 2000 most common words
    44.1 of words are in the 5000 most common words
    51.7 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Viagens na Minha Terra - 02
    Total number of words is 4560
    Total number of unique words is 1797
    32.8 of words are in the 2000 most common words
    47.2 of words are in the 5000 most common words
    53.6 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Viagens na Minha Terra - 03
    Total number of words is 4598
    Total number of unique words is 1797
    33.4 of words are in the 2000 most common words
    46.4 of words are in the 5000 most common words
    52.4 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Viagens na Minha Terra - 04
    Total number of words is 4615
    Total number of unique words is 1747
    34.2 of words are in the 2000 most common words
    46.9 of words are in the 5000 most common words
    54.1 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Viagens na Minha Terra - 05
    Total number of words is 4713
    Total number of unique words is 1617
    35.7 of words are in the 2000 most common words
    47.8 of words are in the 5000 most common words
    53.5 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Viagens na Minha Terra - 06
    Total number of words is 4665
    Total number of unique words is 1643
    36.5 of words are in the 2000 most common words
    50.0 of words are in the 5000 most common words
    55.6 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Viagens na Minha Terra - 07
    Total number of words is 4637
    Total number of unique words is 1730
    34.9 of words are in the 2000 most common words
    48.1 of words are in the 5000 most common words
    54.4 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Viagens na Minha Terra - 08
    Total number of words is 4644
    Total number of unique words is 1576
    37.5 of words are in the 2000 most common words
    51.0 of words are in the 5000 most common words
    58.0 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Viagens na Minha Terra - 09
    Total number of words is 4126
    Total number of unique words is 1649
    33.1 of words are in the 2000 most common words
    47.8 of words are in the 5000 most common words
    53.5 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Viagens na Minha Terra - 10
    Total number of words is 4581
    Total number of unique words is 1841
    34.0 of words are in the 2000 most common words
    47.8 of words are in the 5000 most common words
    54.2 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Viagens na Minha Terra - 11
    Total number of words is 4614
    Total number of unique words is 1783
    36.2 of words are in the 2000 most common words
    50.4 of words are in the 5000 most common words
    56.7 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Viagens na Minha Terra - 12
    Total number of words is 4712
    Total number of unique words is 1677
    35.6 of words are in the 2000 most common words
    49.1 of words are in the 5000 most common words
    55.3 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Viagens na Minha Terra - 13
    Total number of words is 4508
    Total number of unique words is 1838
    33.6 of words are in the 2000 most common words
    45.5 of words are in the 5000 most common words
    53.0 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Viagens na Minha Terra - 14
    Total number of words is 4536
    Total number of unique words is 1724
    34.0 of words are in the 2000 most common words
    47.8 of words are in the 5000 most common words
    54.9 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Viagens na Minha Terra - 15
    Total number of words is 4698
    Total number of unique words is 1635
    36.0 of words are in the 2000 most common words
    50.1 of words are in the 5000 most common words
    56.9 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Viagens na Minha Terra - 16
    Total number of words is 3829
    Total number of unique words is 1522
    37.2 of words are in the 2000 most common words
    49.3 of words are in the 5000 most common words
    54.1 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.