Viagens na Minha Terra - 05

Total number of words is 4713
Total number of unique words is 1617
35.7 of words are in the 2000 most common words
47.8 of words are in the 5000 most common words
53.5 of words are in the 8000 most common words
Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
jesuitas não são a cholera-morbus, e que é preciso refazer o 'Judeu
errante'--De como o frade não intendeu o nosso seculo nem o nosso
seculo ao frade.--De como o barão ficou em logar do frade, e do
muito que n'isso perdémos.--Unica voz que se ouve no actual deserto
da sociedade: os barões a gritar contos de reis.--Como se contam e
como se pagam os taes contos.--Predilecção artistica do A. pelo
frade: confessa-se e explica-se ésta predilecção.

Frades... frades... Eu não gósto de frades. Como nós os vimos ainda os
d'este seculo, como nós os intendêmos hoje, não gósto d'elles, não os
quero para nada, moral e socialmente fallando.
No ponto de vista artistico porêm o frade faz muita falta.
Nas cidades, aquellas figuras graves e sérias com os seus habitos
tallares, quasi todos picturescos e alguns elegantes, atravessando as
multidões de macacos e bonecas de casaquinha esguia e chapelinho de
alcatruz que distinguem a peralvilha raça europea--cortavam a monotonia
do ridiculo e davam physionomia á população.
Nos campos o effeito era ainda muito maior: elles characterizavam a
payzagem, poetisavam a situação mais prosaica de monte ou de valle; e
tam necessarias tam obrigadas figuras eram em muitos d'esses quadros,
que sem ellas o painel não é ja o mesmo.
Alêm d'isso o convento no povoado e o mosteiro no êrmo animavam,
amenizavam, davam alma e grandeza a tudo: elles protegiam as árvores,
sanctificavam as fontes, enchiam a terra de poesia e de solemnidade.
O que não sabem nem podem fazer os agiotas barões que os substituiram.
É muito mais poetico o frade que o barão.
O frade era, até certo ponto, o Dom Quixote da sociedade velha.
O barão é, em quasi todos os pontos, o Sancho-Pansa da sociedade nova.
Menos na graça...
Porque o barão é o mais desgracioso e estupido animal da creação.
Sem exceptuar a familia asinina que se illustra com individualidades tam
distinctas como o Ruço do nosso amigo Sancho, o asno da Poncella de
Orleans e outros.
O barão (_onagros-baronius_ de Linn., _l'ânne-baron_ de Buf.) é uma
variedade monstruosa ingendrada na burra de Balaham, pela parte
essencialmente judaica e usuraria de sua natureza, em coito damnado com
o urso Martinho do Jardim das Plantas[2], pela parte franchinotica e
sordidamente revolucionaria de seu character.
O barão é pois usurariamente revolucionario, e revolucionariamente
usurario.
Por isso é _zebrado_ de riscas monarchico-democraticas por todo o pêllo.
Este é o barão verdadeiro e puro-sangue: o que não tem estes characteres
é especie differente, de que aqui se não tracta.
Ora, sem sahir dos barões e tornando aos frades, eu digo: que nem elles
comprehenderam o nosso seculo nem nós os comprehendémos a elles..
Por isso brigámos muito tempo, a final vencêmos nós, e mandámos os
barões a expulsá-los da terra. No que fizemos uma sandice como nunca se
fez outra. O barão mordeu no frade, devorou-o... e escouceou-nos a nós
depois.
Com que havemos nós agora de matar o barão?
Porque este mundo e a sua historia é a historia do 'castello do
Chucherumello'. Aqui está o cão que mordeu no gato, que matou o rato,
que roeu a corda etc. etc.: vai sempre assim seguindo.
Mas o frade não nos comprehendeu a nós, por isso morreu, e nós não
comprehendemos o frade, por isso fizemos os barões de que havemos de
morrer.
São a molestia d'este seculo; são elles, não os jesuitas, a
cholera-morbus da sociedade actual, os barões. O nosso amigo Eugenio Sue
errou de meio a meio no 'Judeu errante' que precisa refeito.
Ora o frade foi quem errou primeiro em nos não comprehender, a nós, ao
nosso seculo, ás nossas inspirações e aspirações: com o que falsificou a
sua posição, isolou-se da vida social, fez da sua morte uma necessidade,
uma coisa infallivel e sem remedio. Assustou-se com a liberdade que era
sua amiga, mas que o havia de reformar, e uniu-se ao despotismo que o
não amava senão relaxado e vicioso, porque de outro modo lhe não servia
nem o servia.
Nós tambem errámos em não intender o desculpavel êrro do frade, em lhe
não dar outra direcção social; e evitar assim os barões, que é muito
mais damninho bicho e mais roedor.
Porque, desinganem-se, o mundo sempre assim foi e hade ser. Por mais
bellas theorias que se façam, por mais perfeitas constituições com que
se comece, o _status in statu_ forma-se logo: ou com frades ou com
barões ou com pedreiros livres se vai pouco a pouco organizando uma
influencia distincta, quando não contraria, ás influencias manifestas e
apparentes do grande corpo social. Esta é a opposição natural do
Progresso, o qual tem a sua opposição como todas as coisas sublunares e
superlunares; ésta corrige saudavelmente, ás vezes, e modera sua
velocidade, outras, a impece com demazia e abuso: mas emfim é uma
necessidade.
Ora eu, que sou ministerial do Progresso, antes queria a opposição dos
frades que a dos barões. O caso estava em a saber conter e approveitar.
O Progresso e a liberdade perdeu, não ganhou.
Quando me lembra tudo isto, quando vejo os conventos em ruinas, os
egressos a pedir esmola e os barões de berlinda, tenho saudades dos
frades--não dos frades que foram, mas dos frades que podiam ser.
E sei que me não inganam poesias; que eu reajo fortemente com uma logica
inflexivel contra as illusões poeticas em se tractando de coisas graves.
E sei que me não namóro de paradoxos, nem sou d'estes espiritos de
contradicção desinquieta que suspiram sempre pelo que foi, e nunca estão
contentes com o que é.
Não, senhor: o frade, que é patriota e liberal na Irlanda, na Polonia,
no Brazil, podia e devia sê-lo entre nós; e nós ficavamos muito melhor
do que estamos com meia duzia de clerigos de requiem para nos dizer
missa; e com duas grozas de barões, não para a tal opposição salutar,
mas para exercer toda a influencia moral e intellectual da
sociedade--porque não ha de outra ca.
E se não digam-me: onde estão as universidades, e o que faz essa que ha
senão dar o seu grausito de bacharel em leis e em medicina? O que
escreve ella, o que discute, que príncipios tem, que doutrinas professa,
quem sabe ou ouve d'ella senão algum echo timido e acanhado do que
n'outra parte se faz ou diz?
Onde estão as academias?
Que palavra poderosa retine nos pulpitos?
Onde está a fôrça da tribuna?
Que poeta canta tam alto que o oiçam as pedras brutas e os robres duros
d'esta selva materialista a que os utilitarios nos reduziram?
Se exceptuarmos o debil clamor da imprensa liberal ja meio-esganada da
policia, não se ouve no vasto silencio d'este ermo senão a voz dos
barões gritando contos de réis.
Dez contos de réis por um eleitor!
Mais duzentos contos pelo tabaco!
Três mil contos para a conversão de um amphigouri!
Cinco mil contos para as estradas dos areonautas!
Seis mil contos para isto, dez mil contos para aquillo!
Não tardam o contar por centenas de milhares.
Contar a elles não lhes custa nada.
A quem custa é a quem paga para todos esses balões de papel--a terra e a
indústria..................................................................
...........................................................................
...........................................................................
Este capítulo deve ser considerado como introducção ao capítulo
seguinte, em que entra em scena Fr. Diniz, o guardião do San' Francisco
de Santarem.
Ja me disseram que eu tinha o genio frade, que não podia fazer conto,
drama, romance sem lhe metter o meu fradinho.
O 'Camões' tem um frade, Frei José Indio;
A 'Dona Branca' tres, Frei Soeiro, Frei Lopo e San'-Frei Gil--faz
quatro;
A 'Adozinda' tem um ermitão, especie de frade--cinco;
'Gil-Vicente' tem outro--isto é, verdadeiramente não tem senão meio
frade, que é André de Rezende, demais a mais, pessoa muda--cinco e meio;
O 'Alfageme' tres quartos do frade, Froilão-Dias, chibato da ordem de
Malta--seis frades e um quarto;
Em 'Frei Luiz de Sousa' tudo são frades: vale bem n'esta computação, os
seus tres, quatro, meia duzia de frades--são já dôze e quarto:
Alguns, não eu, querem metter n'esta conta o 'Arco-de-Sanct'Anna', em
que ha bem dous frades e um leigo:
E aqui tenho eu ás costas nada menos de quinze frades e quarto.
Com este Frei Diniz é um convento inteiro.
Pois, senhores, não sei que lhes faça: a culpa não é minha. Desde mil
cento e tantos que começou Portugal, até mil oitocentos trinta e tantos
que uns dizem que elle se restaurou, outros que o levou a breca, não sei
que se passasse ou podesse passar n'esta terra coisa alguma pública ou
particular, em que frade não entrasse.
Para evitar isto não ha senão usar da receita que vem formulada no
capitulo V[3] d'esta obra.
Faça-o quem gostar; eu não, que não quero nem sei.


CAPITULO XIV.

Emendado emfim de suas distracções e divagações, prosegue o A.
direitamente com a historia promettida.--De como Fr. Diniz deu a
manga a beijar á avó e á neta, e do mais que entre elles se
passou.--Ralha o frade com a velha, e começa a descobrir-se onde a
historia vai ter.

Este capitulo não tem divagações, nem reflexões, nem considerações de
nenhuma especie, vai direito e sem se distrahir, pela sua historia
adeante.
Fr. Diniz chegava aopé das duas mulheres e disse:
--'Louvado seja Nosso Senhor Jesus Christo!'
Joanna adeantou-se alguns passos a beijar-lhe a manga. Elle
accrescentou:
--'A benção de Deus te cubra, filha, e a de nosso padre San'Francisco!'
--'Benedicite, padre guardião:' disse a velha inclinando-se meia
levantada da cadeira.
--'Em nome do Senhor! amen'.--respondeu o frade aproximando-se, e
chegando o braço a alcance de lh'o ella beijar:
--'Ora aqui estou, minha irman; que me quer? E como vai isto por cá?
Vamo-nos confortando, tendo paciencia, e soffrendo com os olhos no
Senhor?'
--'Ja os não tenho senão para elle, padre.'
--'Ah, ah! irman Francisca, sempre esse pensamento, sempre essa queixa!
Tenho-a reprehendido tanta vez e não se emenda.'
--'Eu não me queixei, meu padre. Deus sabe que me não queixo... ao menos
por mim.'
--'Pois por quem?'
--'Oh padre!'
--'Irman Francisca, tenho medo de a intender. Eu não conheço as
affeições da carne nem lido com os fracos pensamentos do mundo. Sou
frade, minha irman, sou um que ja não é do número dos vivos, que vestiu
ésta mortalha para não ser d'elles, que a vestiu n'um tempo em que a
mofa e o desprêzo são o unico patrimonio do frade, em que o escarneo, a
derisão, o insulto--o peior e o mais cruel de todos os martyrios--são a
nossa unica esperança. Eu quiz ser frade, fiz-me frade, sabendo e vendo
tudo isto, fiz-me frade no meio de tudo isto, já velho e experimentado
no mundo, farto de o conhecer, e certo do que me espera--a mim e á
profissão que abraçei. Que quer de um homem que assim se resolveu a
cortar por quanto prende a humanidade a ésta miseravel vida da terra,
para não viver senão das esperanças da outra? Eu vesti este hábito para
isso. O seu, irman, o seu para que o vestiu? É um divertimento, é um
capricho, é uma comedia com Deus? Rasgue-o depressa, vista-se das galas
do mundo, não apperte com a paciencia divina, trajando por fóra o sacco
da penitencia e trazendo o coração pordentro desappertado de todo o
cilicio e mortificação.'
A velha com as mãos postas, a face alevantada e os apagados olhos para o
ceo, offerecia a Deus todo o amargor d'aquella austeridade que não
cuidava merecer nem lhe parecia intender. Joanninha, que insensivelmente
se fôra approximando da avó, e a tinha como amparada portraz com um de
seus braços, firmava a outra mão nas costas da cadeira e cravava fita no
frade a vista penetrante e cheia de luz. A expressão do seu rosto era
indefinivel: irisava-lh'o, distincta mas promiscuamente, um mixto
inextricavel de enthusiasmo e desanimação, de fé e de incredulidade, de
sympathia e de aversão.
Disseras que n'aquelles olhos verdes e n'aquelle rosto mal córado estava
o typo e o symbolo das vascillações do seculo.
--'Padre!' tornou a velha com sincera humildade na voz e no gesto:--'se
o mereci, castigae-me. Deus, que me vê e me ouve, bem sabe que o digo em
toda a verdade do meu coração, e hade perdoar-me porque eu sou fraca e
mulher.'
--'Pois aos fracos não é que Elle disse: _Toma a tua cruz e segue-me_.
Quem a obrigou a fazer os votos que fez?'
--'É verdade, padre, é verdade: bem sei o que prometti, que me votei a
Deus d'alma e corpo, que me não pertenço, que nem das minhas affeições
posso dispor, mas...'
--'Mas o quê? Irman Francisca, a Deus não se ingana. Os seus votos não
foram feitos n'um mosteiro, nem proferidos n'um altar no meio das
solemnidades da egreja. Mas ja lh'o tenho ditto, no fôro da consciencia,
na presença de Deus, ligam-n'a tanto ou mais do que se o fossem.
Abjure-os se quizer; nenhuma lei, nenhuma fôrça humana a constrange.
Diga-m'o por uma vez, desingane-me, e eu não torno aqui.'
--'Oh, por compaixão, padre! pelas chagas de Christo! Mas uma pergunta
so, uma so, e eu prometto não pensar, não fallar mais em... Onde está
elle?'
--'Joanna, retire-se.'
Joanninha appertou a avó com ambos os braços; e sem dizer uma palavra,
sem fazer um so gesto, lentamente e silenciosamente se retirou para
dentro de casa.
--'E ésta, padre?' disse a velha sem esperar a resposta á primeira
pergunta que com tanta ancia fizera--'e ésta, tambem d'ella me heide
separar, tambem heide renunciar a ella?'
--'Esta é uma innocente, e emquanto o for'...
--'Em quanto o for! A minha Joanna é um anjo.'
--'Blasphemia, blasphemia! E o Senhor a não castigue por ella. Joanna é
boa e temente a Deus: esperemos que Elle a conserve da sua mão. O
outro...'
--'Que é feito d'elle padre? Oh! diga-m'o, e eu prometto...'
--'Não prometta senão o que póde cumprir. Seu neto está com esses
desgraçados que vieram das ilhas, é dos que desimbarcaram no Porto...'
--'Oh filho da minha alma! que não tórno a abraçar-te...'
--'Não decerto; vencedores ou vencidos, toda a communhão, toda a
possibilidade de união acabou entre nós e estes homens. Nós temos
obrigação de os destruir, elles o seu unico desejo é exterminar-nos.'
--'Meu Deus meu Deus! pois a isto somos chegados! Pois ja não ha
misericordia no ceo nem na terra!'
--'A misericordia de Deus cansou-se; a da terra não sei onde está nem
onde esteve nunca. Os fracos dão sacrilegamente esse nome á sua
relaxação.'
--'Pois é relaxação desejar a paz, querer a união, supplicar a
indulgencia? Não nos manda Deus perdoar as nossas dividas, amar os
nossos inimigos?'
--'Os nossos sim, os d'Elle não.'
--'Tende compaixão de mim, Senhor!'
--'Se as suas afflicções são as da carne e do sangue, se são pensamentos
da terra como desgraçadamente vejo que são, mulher fraca e de pouco
ânimo, console-se, que para mim é claro e seguro que estes homens hãode
vencer.'
--'Quaes homens?'
--'Esses inimigos do altar e da verdade, esses homens desvairados pelas
speciosas doutrinas do seculo. Esperam muito, promettem muito, estão em
todo o vigor das suas illusões. E nós, nós carregâmos com o desingano de
muitos seculos, com os peccados de trinta gerações que passaram, e com a
inaudita corrupção da presente... nós havemos de succumbir. Os templos
hãode ser destruidos, os seus ministros proscriptos, o nome de Deus
blasphemado á vontade n'esta terra malditta.'
--'Pois tam perdidos, tam abandonados da mão de Deus são elles todos...
todos?'
--'Todos. E que cuida, irman? que são melhores os nossos, esses que se
dizem nossos? que ha mais fé na sua crença, mais verdade em sua
religião? Oh sancto Deus!'
--'Faz-me tremer, padre!'
--'E para tremer é. A impiedade e a cubiça entraram em todos os
corações. _Duvidar_ é o unico princípio, _inriquecer_ o unico objecto de
toda essa gente. Liberaes e realistas, nenhum tem fé: os liberaes ainda
teem esperança; não lhe hade durar muito. Deixem-n'os vencer e verão.'
--'E hãode vencer elles?'
--'Decerto.'
--'Ninguem mais diz isso.'
--'Digo-o eu.'
--'Tantos mil soldados que o govêrno tem por si!'
--'E tantos milhões de peccados contra. Não póde ser, não póde ser: a
misericordia divina está exhausta, e o dia desejado dos impios vem a
chegar. A sua missão é facil e prompta; não sabem, não podem senão
destruir. Edificar não é para elles, não teem com quê, não creem em
nada. O symbolo christão não é so uma verdade religiosa é um princípio
eterno e universal. _Fe, esperança e charidade_. Sem crer, sem
esperar...'
--'E sem amar!'
--'Mulher, mulher! o amor é a última virtude...'
--'Mas por ella, por ella se chega ás outras.'
--'Não, mulher fraca, não. E de uma vez para sempre, irman Francisca,
desinganemo'-nos. Entre mim, entre o Deus que eu sirvo, não ha
transacção com os seus inimigos. Indulgencia n'esse ponto não sei o que
é. Vejo a sorte que me espera n'este mundo, e não tremo deante d'ella.
Quem teme, siga outro caminho; eu nunca.'
--'Padre eu não temo nem receio por mim. Sou fraca e mulher, e em toda a
tribulação e desgraça heide glorificar o meu Deus e dar testimunho da
minha fé. Mas... mas o meu neto é o meu sangue, a minha vida, é o filho
querido da minha unica e tam amada filha, elle não conheceu outra mãe
senão a mim, quero-lhe por elle e por ella. Abandoná-lo não posso, tirar
d'elle o pensamento não sei. A vontade de Deus...'
--'A vontade de Deus é que o justo se aparte do impio, é que os
cordeiros da benção vão para um lado, e os cabritos da maldicção para
outro. Esse rapaz... oh! minha irman, eu não sou de pedra, não, não sou,
e tambem o coração se me parte de o dizer... mas esse rapaz é malditto,
e entre nós e elle está o abysmo todo do inferno.'
--'Misericordia, meu Deus!'
Pallido, infiado, mais descorado e mais amarello do que era sempre
aquelle rosto, Fr. Diniz pronunciou, tremendo mas com fôrça, as suas
últimas e terriveis palavras. Os olhos, habitualmente sumidos e cavos,
recuaram-lhe ainda mais para dentro das orbitas descarnadas; o bordão
tremia-lhe na esquerda; e a direita suspensa no ar parecia intimar ao
culpado a terrivel imprecação que lhe sahia dos labios.
--'Malditto! malditto sejas tu!' proseguiu o frade, 'filho ingrato,
coração derrancado e perverso!'
--'Meu Deus, não o escuteis!' bradou a velha cahindo de joelhos no chão
e prostrando-se na terra dura 'Meu Deus, não confirmeis aquellas
palavras tremendas. Não o ouçais, Senhor, e valha o sangue precioso de
vosso filho, as dores bemdittas de sua mãe, oh meu Deus! para arredar da
cabeça do meu pobre filho as crueis palavras d'este homem sem piedade,
sem amor!..'
A velha queria dizer mais; as angústias que se tinham estado juntando
n'aquella alma, que porfim não podia mais e transbordava, queriam sahir
todas, queriam derramar-se alli em lagrymas e soluços na presença do seu
Deus que ella via sempre no throno das misericordias, que não podia
acabar comsigo que o visse o inflexivel, o terrivel Deus das vinganças
que lhe annunciava o frade. Mas a carne não pôde com o espirito, as
fôrças do corpo cederam: tomou-a um mortal deliquio, immudeceu, e...
suspendeu-se-lhe a vida.
Fr. Diniz contemplou-a alguns momentos n'esse estado e pareceu
commover-se; mas aquelles nervos eram fios de ferro temperado que não
vibravam a nenhuma suave percussão: deu dous passos para a porta da
casa, bateu com o bordão e disse com voz firme e segura:
--'Joanna, acuda a sua avó que não está boa.'
D'ahi tomou por onde viera, e, sem voltar uma vez a cabeça, caminhou
ápressado; breve se escondeu para lá das oliveiras da estrada.


CAPITULO XV.

Retratto de um frade franciscano que não foi para o depósito da
Terra-sancta, nem consta que esteja na Academia das
Bellas-artes.--Ve-se que a logica de Fr. Diniz se não parecia nada
com a de Condillac.--Suas opiniões sôbre o liberalismo e os
liberaes.--Que o podêr vem de Deus, mas como e paraquê.--Que os
liberaes não intendem o que é liberdade e egualdade; e o para que
eram os frades, se fossem.--Próva-se, pelo texto, que o homem não
vive so de pão, e pergunta-se o de que vivia então Fr. Diniz.

Quem era Frei Diniz?
Disse-o elle:--um homem que se fizera frade, ja velho e cançado do
mundo, que vestíra o hábito n'um tempo em que a mofa, o escarneo e o
desprêzo seguiam aquella profissão; que o sabía, que o conhecia e que
por isso mesmo o affrontára.
D'estes raros e fortes characteres apparecem sempre na agonia das
grandes instituições para que nenhuma pereça sem protesto, paraque de
nenhum pensamento duravel e consagrado pelo tempo se possa dizer que lhe
faltou quem o honrasse na hora derradeira por uma devoção nobre,
gloriosa e digna do alto espirito do homem:--que o homem é uma grande e
sublime creatura por mais que digam philosophos.
Tal era Fr. Diniz, homem de principios austeros, de crenças rigidas, e
de uma logica inflexivel e teimosa: logica porêm que regeitava toda a
anályse, e que forte nas grandes verdades intellectuaes e moraes em que
fixára o seu espirito, descia d'ellas com o tremendo pêso de uma
synthese asperrima e oppressora que esmagava todo o argumento, destruía
todo o raciocinio que se lhe punha de deante.
Condillac chamou á synthese methodo de trevas: Fr. Diniz ria-se de
Condillac... e eu parece-me que tenho vontade de fazer o mesmo.
O despotismo, detestava-o como nenhum liberal é capaz de o abhorrecer;
mas as theorias philosophicas dos liberaes, escarnecia-as como absurdas,
regeitava-as como perversoras de toda a idea san, de todo o sentimento
justo, de toda a bondade praticavel. Para o homem em qualquer estado,
para a sociedade em qualquer fórma não havia mais leis que as do
decalogo, nem se precisavam mais constituições que o Evangelho: dizia
elle. Reforçá-las é superfluo, melhorá-las impossivel, desviar d'ellas
monstruoso. Desde o mais alto da perfeição evangelica, que é o estado
monastico, ha regras para todos alli; e não falta senão observá-las.
Não sei se ésta doutrina não tem o quer que seja de um certo sabor
independente e livre, se não cheira o seu tanto á confiança heretica dos
reformistas evangelicos. O que sei é que Fr. Diniz a professava de
boafé, que era catholico sincero, e frade no coração.
Segundo os seus principios, podêr de homem sôbre homem, era usurpação
sempre e de qualquer modo que fosse constituido. Todo o podêr estava em
Deus--que o delegava ao pae sôbre o filho, d'ahi ao chefe da familia
sôbre a familia, d'ahi a um d'esses sôbre todo o Estado; mas para o
reger segundo o Evangelho e em toda a austeridade republicana dos
primitivos principios christãos.
Assim fôra ungido Saul, e n'elle todos os reis da terra--sem o quê, não
eram reis.
Tudo o mais, anarchia, usurpação, tyrannia, peccado--absurdo
insustentavel e impossivel.
E sôbre isto tambem não disputava, que não concebia como: era dogma.
Nas applicações sim questionava, ou antes, arguía, com sua logica de
ferro. As antigas leis, os antigos usos, os antigos homens, não os
poupava mais do que aos novos. A tyrannia dos reis, a cubiça e a suberba
dos grandes, a corrupção e a ignorancia dos sacerdotes, nunca houve
tribuno popular que as açoitasse mais sem dó nem caridade.
O princípio porêm da monarchia antiga, defendia-o, ja se ve, por
verdadeiro, embora fossem mentirosos e hypocritas os que o invocavam.
Quanto ás doutrinas constitucionaes, não as intendia, e protestava que
os seus mais zelosos apostolos as não intendiam tam pouco: não tinham
senso-commum, eram abstracções d'eschola.
Agora, do frade é que me eu queria rir... mas não sei como.
O chamado liberalismo, esse intendia elle. 'Reduz-se' dizia 'a duas
cousas, _duvidar e destruir_ por principio, _adquirir e inriquecer_ por
fim: é uma seita toda material em que a carne domina e o espirito serve;
tem muita fôrça para o mal; bem verdadeiro, real e perduravel, não o
póde fazer. Curar com uma revolução liberal um paiz estragado, como são
todos os da Europa, é sangrar um tysico: a falta de sangue diminue as
ancias do pulmão por algum tempo, mas as fôrças vão-se, e a morte é mais
certa.'
Dos grandes e eternos principios da Egualdade e da Liberdade dizia: 'Em
elles os practicando devéras, os liberaes, faço-me eu liberal tambem.
Mas não ha perigo: se os não intendem! Para intender a liberdade é
preciso crer em Deus, para acreditar na egualdade é preciso ter o
Evangelho no coração.'
As instituições monasticas eram, no seu intender e no seu systema,
condicção essencial de existencia para a sociedade civil--para uma
sociedade normal. Não paliava os abusos dos conventos, não cubria os
defeitos dos monges, accusava mais severamente que ninguem a sua
relaxação; mas sustentava que, removido aquelle typo da perfeição
evangelica, toda a vida christan ficava sem norma, toda a harmonia se
destruía, e a sociedade ia, mais depressa e mais sem remedio,
precipitar-se no golpham do materialismo estupido e brutal em que todos
os vinculos sociaes apodreciam e cahiam, e em que mais e mais se isolava
e estreitava o individualismo egoista--última phase da civilização
exaggerada que vai tocar no outro extrêmo da vida selvagem.
Taes eram os principios d'este homem extraordinario que junctava a uma
erudição immensa o profundo conhecimento dos homens e do mundo em que
tinha vivido até a edade de cinquenta annos.
Como e porque deixára elle o mundo? Como e porquê, um espirito tam
activo e superior se occupava apenas do obscuro incargo de guardião do
seu convento--cargo que acceitára por obediencia--e quasi que limitava
as suas relações fóra do claustro áquella casa do valle onde não havia
senão aquella velha e aquella criança?
Apezar de sua rigidez ascetica, prendia esse espirito por alguma coisa a
este mundo? Aquelle coração macerado do cilicio dos pensamentos austeros
e terriveis do eterno futuro, consummido na abstinencia de todo o gôso,
detodo o desejo no presente, teria acaso viva ainda bastante alguma
fibra que vibrasse com recordações, com saudades, com remorsos do
passado?
No seu convento elle não tinha senão uma cella nua com um cruxifixo por
todo adôrno, um breviario por unico livro. N'aquella so familia que
conversava, havia, ja o disse, a velha cega e decrepita, Joanninha com
quem apenas fallava, e um ausente, um rapaz de quem ha dous annos quasi
que se não sabia. Em intrigas politicas, em negocios ecclesiasticos, em
coisa mais nenhuma d'este mundo não tinha parte. De que vivia pois este
homem--homem que certo não era d'aquelles que vivem so de pão?
E este era dos poucos textos latinos que elle repettia, este o thema
predilecto dos raros sermões que prégava: _Non in solo pane vivit homo_,
Nem so de pão vive o homem.
Vivia então de alguma outra coisa este homem; e a meditação e a oração
não lhe bastavam, porque elle sahia do seu convento e não ia prégar nem
rezar... todas as sextas feiras era certo na casa do valle á mesma hora,
do mesmo modo...
Alli estava pois alguma parto da vida do frade que de todo se não
desprendêra da terra, e que, por mais que elle diga, lhe faltava
_castrar_ ainda por amor do ceo.
É que meio seculo de viver no mundo deixa muita raiz que não morre
assim. E talvez é uma so a raiz, mas funda, e rija de fevra e de seiva,
que as folhas morrem, os ramos seccam, o tronco apodrece, e ella teima a
viver.
Saibamos alguma coisa d'essa vida.


CAPITULO XVI.

Saibâmos da vida do frade.--Era franciscano porquê?--Dos antigos e
dos novos martyres.--Alguns particulares de Fr. Diniz antes e
depois de ser frade.--Emigração.--Explicação incompleta.--De como a
velha tinha perdido a vista e Joanninha o riso.--Sexta feira dia
aziago.

Saibamos alguma coisa da vida do frade, da sua vida no seculo, porque a
You have read 1 text from Portuguese literature.
Next - Viagens na Minha Terra - 06
  • Parts
  • Viagens na Minha Terra - 01
    Total number of words is 4661
    Total number of unique words is 1853
    31.8 of words are in the 2000 most common words
    44.1 of words are in the 5000 most common words
    51.7 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Viagens na Minha Terra - 02
    Total number of words is 4560
    Total number of unique words is 1797
    32.8 of words are in the 2000 most common words
    47.2 of words are in the 5000 most common words
    53.6 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Viagens na Minha Terra - 03
    Total number of words is 4598
    Total number of unique words is 1797
    33.4 of words are in the 2000 most common words
    46.4 of words are in the 5000 most common words
    52.4 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Viagens na Minha Terra - 04
    Total number of words is 4615
    Total number of unique words is 1747
    34.2 of words are in the 2000 most common words
    46.9 of words are in the 5000 most common words
    54.1 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Viagens na Minha Terra - 05
    Total number of words is 4713
    Total number of unique words is 1617
    35.7 of words are in the 2000 most common words
    47.8 of words are in the 5000 most common words
    53.5 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Viagens na Minha Terra - 06
    Total number of words is 4665
    Total number of unique words is 1643
    36.5 of words are in the 2000 most common words
    50.0 of words are in the 5000 most common words
    55.6 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Viagens na Minha Terra - 07
    Total number of words is 4637
    Total number of unique words is 1730
    34.9 of words are in the 2000 most common words
    48.1 of words are in the 5000 most common words
    54.4 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Viagens na Minha Terra - 08
    Total number of words is 4644
    Total number of unique words is 1576
    37.5 of words are in the 2000 most common words
    51.0 of words are in the 5000 most common words
    58.0 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Viagens na Minha Terra - 09
    Total number of words is 4126
    Total number of unique words is 1649
    33.1 of words are in the 2000 most common words
    47.8 of words are in the 5000 most common words
    53.5 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Viagens na Minha Terra - 10
    Total number of words is 4581
    Total number of unique words is 1841
    34.0 of words are in the 2000 most common words
    47.8 of words are in the 5000 most common words
    54.2 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Viagens na Minha Terra - 11
    Total number of words is 4614
    Total number of unique words is 1783
    36.2 of words are in the 2000 most common words
    50.4 of words are in the 5000 most common words
    56.7 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Viagens na Minha Terra - 12
    Total number of words is 4712
    Total number of unique words is 1677
    35.6 of words are in the 2000 most common words
    49.1 of words are in the 5000 most common words
    55.3 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Viagens na Minha Terra - 13
    Total number of words is 4508
    Total number of unique words is 1838
    33.6 of words are in the 2000 most common words
    45.5 of words are in the 5000 most common words
    53.0 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Viagens na Minha Terra - 14
    Total number of words is 4536
    Total number of unique words is 1724
    34.0 of words are in the 2000 most common words
    47.8 of words are in the 5000 most common words
    54.9 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Viagens na Minha Terra - 15
    Total number of words is 4698
    Total number of unique words is 1635
    36.0 of words are in the 2000 most common words
    50.1 of words are in the 5000 most common words
    56.9 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Viagens na Minha Terra - 16
    Total number of words is 3829
    Total number of unique words is 1522
    37.2 of words are in the 2000 most common words
    49.3 of words are in the 5000 most common words
    54.1 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.