Viagens na Minha Terra - 12

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Talvez nenhum amou como tu me amaste ou... ou cuidaste amar-me. Eu...
oh! eu quiz-te... pelo eterno Deus que me ouve! eu quiz-te com uma
cegueira d'alma, n'uma singeleza de coração, com um abandôno tam
completo, uma abnegação tam inteira de mim mesma, que realmente creio,
este é o amor que so a Deus se deve, que so ao Creador a creatura póde
consagrar licitamente.
Bem castigada estou: mereci-o.'
--'Georgina, Georgina!'
--'Deixa-me, quero desabafar eu tambem agora. Ouve-me, tens obrigação de
me ouvir.--Se te dei provas d'este amor, tu o sabes; se desde que te
amei, uma palavra, um gesto, um pensamento unico, um so e o mais leve
relampejar da imaginação desmentiu em mim d'esta absoluta e exclusiva
dedicação de todo o meu ser... dize-o tu.'
--'Não, minha alma, não, minha vida, não; tu és um anjo, tu es...'
--'Sou uma mulher que te amava como creio que ordinariamente se não
ama.'
--'Não, certo, não.'
--'Fomos felizes, é verdade; e creio que poucos amantes ainda foram tam
felizes como nós nos breves dias que isto durou.--Tu partiste para a tua
ilha; era forçoso partir, conheci-o e resignei-me. Consolavam-me as tuas
cartas, as tuas cartas de fogo, escriptas, oh se o eram escriptas com o
mais puro sangue do teu coração. Nunca duvidei do que me ellas diziam:
não se mente assim, tu não mentias então. É falso que o amor seja cego:
o amor vulgar póde sê-lo, amor como o meu, o amor verdadeiro tem olhos
de lynce: eu bem via que era amada. Nunca me escreveste a protestar
fidelidade, e eu sabía, eu via que tu me eras fiel.--Assim passaram
meses, annos. Na ilha e no Porto foste o mesmo. Eu padecia muito, mas
confortava-me, vivia de esperanças... triste viver mas doce! Emfim
vieste para Lisboa, para aqui... e as tuas cartas que não eram menos
ternas nem menos apaixonadas...'
--'Se eu nunca deixei, nem um momento...'
Com um gesto expressivo, e de suave mas resoluta denegação, Georgina pôs
a mão na bôcca do pobre Carlos, como para o impedir de dizer uma
blasphemia. Elle segurou-a com as suas ambas e lh'a beijou mil vezes com
um arrebatamento, uma _furia_, n'um paroxismo de lagrymas e de soluços,
que partiriam o coração ao mais indifferente. Commoveu-se, vacillou a
inalteravel rigidez do bello rosto da dama, abaixaram-se as longas
palpebras de seus olhos; mas se chegou até elles alguma lagryma mais
rebelde, prompta refluiu para o coração, porque ao levantá-los outra vez
e ao fixá-los tranquillamente nos do seu amante, aquelles olhos puros,
celestes e austeros como os de um anjo offendido, estavam seccos.
Ella continuou:
--'As tuas cartas, que não eram menos ternas nem menos apaixonadas,
começaram todavia a ser menos naturaes, mais incarecidas... eram menos
verdadeiras por fôrça. Senti-o, vi-o, e cuidei morrer. Uma familia da
minha amizade vinha então para Portugal, accompanhei-a. Apenas cheguei,
procurei e obtive os meios seguros de tranzitar pelos dous campos
contendores: presagiava-me o coração que me havia de ser preciso. E foi;
cheguei ao valle no dia em que tu o deixavas para aquella fatal acção
que te ia custando a vida. Vim-te incontrar prisioneiro e meio morto no
hospital dos feridos. Aopé de ti estava um frade...'
--'Um frade! Meu Deus, se seria elle?'
--'Era elle.'
--'Pois tu sabes?..'
--'Sei: eu disse-lhe quem era e o que tu me eras...'
--'Tu a elle... disseste?..'
--'Disse. Não sei se fiz mal ou bem, sei que me não importava o que
fazia. Vi depois que me não inganára na confiança que posera n'elle.
Trouxemos-te para este convento, trattámos de ti, conseguimos salvar-te
a vida... E em quanto esse cuidado me livrava de outros, fui... fui
feliz. A tua gente... a tua familia do valle tambem veio para
Santarem... tua avó e tua prima, Carlos...'
--'Joanninha! Joanninha está aqui?'
--'Está; socega; ja t'o disse, logo a verás.'
--'Eu! Eu para quê? Eu não quero...'
--'Quero eu: hasde ve-la. Ja sabes que sei tudo.'
--'Tudo o quê, Georgina?'
--'Queres que t'o repitta? Repettirei. Que tu amas tua prima, que ella
que te adora. E por Deus, Carlos eu ja lhe quero como se fôra minha
irman. Intendes bem agora que te não amo? Comprehendes agora que tudo
acabou entre nós, e que não vejo, não posso ver em ti ja senão o espôso,
o marido da innocente criança que tomei debaixo da minha protecção, e a
quem juro que hasde pertencer tu?'
--'Juras falso.'
--'Como assim! Pois queres mais victimas? Não estás satisfeito com a
minha ruina? Eu aomenos não sou do teu sangue. E essa velha decrepita
que é tua avó, que duas vezes foi em verdade tua mãe porque te
criou,--essa innocente que te ama na singelleza do seu coração... e esse
pobre frade velho...'
--'Oh! aqui anda elle, bem o vejo, aqui anda o genio mau da minha
familia. Malditto sejas tu, frade!'
O desgraçado não acabára bem de pronunciar éstas palavras, quando a
porta da alcova se abriu de par em par, e a rigida, ascetica figura de
Fr. Diniz estava deante d'elle.


CAPITULO XXXIV.

Carlos, Georgina e Fr. Diniz.--A peripecia do drama.--

Carlos estava meio sentado meio deitado n'uma longa cadeira de recôsto;
Georgina em pé, com os braços cruzados e na attitude de reflexiva
tranquillidade. Um sol brilhante e ardente, um sol de maio, feria os
estreitos vidros da pequena janella que so dava luz áquelle quarto: a
excessiva claridade era velada por uma longa e ampla cortina.
Carlos lançou derepente a mão a essa cortina e a affastou para avivar a
luz do aposento. Um raio agudissimo de sol foi bater direito no macerado
rosto do frade, e reflectiu de seus olhos incovados, um como relampago
de íra celeste que fez estremecer os dous amantes.
Não foi porêm senão relampago; sumiu-se, apagou-se logo. Aquelles olhos
ficaram mortaes, mudos, fixos, invidraçados como os de um homem que
acabou de expirar e a quem não cerraram ainda as palpebras.
E assim mesmo aquelles olhos tinham o podêr magnetico de fixar os
outros, de os não deixar nem pestanejar.
Curvo, incostado a um bordão grosseiro, o seu chapeo alvadio debaixo do
braço, o frade deu alguns passos tremulos para onde estavam os dous,
arrastando a custo as sôltas alpercatas que davam um som baço e batido,
e faziam--não sei por quê nem como--estremecer a quem as sentia.
Parou a pouca distancia, e tirando a voz fraca e tenue, mas vibrante e
solemne, do íntimo do peito, disse para Carlos:
--'Tu mal disseste-me, filho, e eu venho perdoar-te. Tu detestas-me,
Carlos, de todos os podêres da tua alma, com toda a energia de teu
coração; e eu venho-te dizer que te amo, que tomára dar a minha vida por
ti, que do fundo das intranhas se ergue este immenso amor que não tem
outro egual, a pedir-te misericordia, a clamar-te em nome de Deus e da
natureza, a pedir-te, por quanto ha sancto no ceo e de respeito na
terra, que levantes essa maldicção, filho, de cima da cabeça de um
moribundo.'
Eram dittas em tal som estas vozes, vinham pronunciadas lá de dentro
d'alma com tal vehemencia, que lh'as não articulavam os labios,
rompiam-n'os ellas e sahiam.
O soldado parecia desaccordado, confuso e sem intelligencia do que
ouvia. Georgina impassivel até alli, rigida e inabalavel com o seu
amante, sentia commover-se agora d'aquella angústia do velho. É que
partia pedras a dor que vinha n'aquellas fallas sepulchraes, que
trassudava d'aquelle rosto cadaverico.
Ao mesmo tempo, um som confuso, um tumulto vago e abafado de mil sons
que pareciam arredar-se, incontrando-se, tornando, indo e vindo, e
dispersando-se para se tornar a unir, e tornando a dispersar-se emfim,
reboava ao longe pela villa, extendia-se nas praças, concentrava-se nas
ruas, e mandava áquella solitaria e remota cella do convento uns echos
surdos, como os do mar ao longe quando se retira da praia no murmurar
melancholico que precede um temporal d'equinoxio.
--'Ouves esse borburinho confuso, Carlos? É a tua causa que triumpha, é
a d'estes loucos que succumbe, é a de Deus que a si mesmo se desamparou.
A hora está chegada, escreveram-se as lettras de Balthasar; a confusão e
a morte reinam sos e senhoras na face da terra. Eu quero ir morrer onde
haja Deus... Perdoae-me, Senhor, a blasphemia!.. onde o seu nome não
seja profanado e malditto...
Ao canto de uma pedra, debaixo de uma árvore hade ser, n'algum logar
escuso d'essas charnecas, onde me não rasguem aomenos ésta mortalha, e
m'a não insultem nos ultimos instantes, porque eu sou frade, frade,
frade... o malditto frade! Mas frade quero morrer, e heide morrer. Oh!
assim tivera eu vivido!'
--'Mas que foi; que succedeu?'
--'O resto do exército realista evacua n'este momento Santarem; vão em
fuga para o Alemtejo. Os constitucionaes venceram na Asseiceira, e tudo
está ditto para nós. Para mim, Carlos, falta uma palavra so: quererás tu
dizê-la?'
--'Eu?'
--'Sim tu, Carlos. Revoca as palavras terriveis que proferiste, e em
nome de Deus, filho, perdoa a teu...'
A Carlos revolvia-se-lhe no peito uma grande lucta. O horror, a
compaixão, o odio, a piedade iam e vinham-lhe alternadamente do coração
ás faces, e tornavam do rosto para o peito. Uma exclamação involuntaria
lhe rebentou dos labios em meio d'este combate:
--'Padre, padre! e quem assacinou meu pae, quem cegou minha avó, e quem
cubriu de infamia a minha... a toda a minha familia?'
--'Tens razão, Carlos, fui eu; eu fiz tudo isso: mata-me. Mas oh!
mata-me, mata-me por tuas mãos, e não me maldigas. Mata-me, mata-me. É
decreto da divina justiça que seja assim. Oh! assim meu Deus! ás mãos
d'elle, Senhor! Seja, e a vossa vontade se faça...'
O frade cahiu de bruços no chão, e com as mãos postas e extendidas para
o mancebo, clamava:
--'Mata-me, mata-me! aqui ha pouca vida ja: basta que me ponhas o pé
sobre o pescoço; esmaga assim o reptil venenoso que mordeu na tua
familia e que fez a sua desgraça e a de quantos o amaram. Sim, Carlos,
sê tu o executor das íras divinas. Mata-me. Tantos annos de penitencia e
de remorsos nada fizeram; mata-me, livra-me de mim e da íra de Deus que
me persegue.'


CAPITULO XXXV.

Reunião de toda a familia.--Explicação dos mysterios.--O coração da
mulher.--Parricidio.--Carlos beija emfim a mão a Fr. Diniz e abraça
a pobre da avó.

Georgina disse para Carlos:
--'Dá a mão a esse homem, levanta-o e dize-lhe as palavras de perdão que
te pede.'
Carlos fez um gesto expressivo de horror e de repugnancia. Georgina
ajoelhou aopé do frade, tomou as mãos d'elle nas suas, e lh'as affagou
com piedade; depois levantou-lhe o rosto, incostou-o a si e gradualmente
o foi accalmando. O velho parecia uma criança mimada e sentida que se
vai accalantando nos braços da mãe: agora so murmurava de vez em quando
alguns soluços, a mais e a mais raros.
Estavam de joelhos ambos, o frade e a dama; elle mal se tinha, ella
amparava em seus braços e contra seu peito o amortecido corpo do velho.
E Georgina disse com aquelle som de voz irresistivel que as filhas de
Eva herdaram de sua primeira mãe, e que a ella ou lh'o tinham antes
insinado os anjos, ou o apprendeu depois da serpente,--um som de voz que
é a última e a mais decisiva da seducções femininas--disse:
--'Este homem vai morrer, Carlos: e tu hasde-o deixar morrer assim, _meu
Carlos_?'
Todo o odio, todas as offensas se callaram, desappareceram deante
d'aquellas palavras do anjo supplicante. _Meu Carlos_ ditto assim, não o
ouvíra elle ha muito tempo, não lhe pôde resistir: extendeu os braços
para o frade, cahiu de joelhos aopé d'elle, e um so abraço uniu a todos
tres.
Como no eterno grupo de Lacoonte, o velho e os dous mancebos sentiam
estreitar-se das cobras da mesma dor, e affogavam junctos da mesma
angústia.
Assim estiveram longamente; e não se ouvía entre elles senão algum
gemido sôlto, e aquelle sussurrar sumido das lagrymas que mais se ouve
com o coração do que com os ouvidos.
O frade disse emfim com uma voz apenas perceptivel de timida e de fraca:
--'Carlos, meu Carlos, perdoa tambem... oh perdoa á memoria de tua
desgraçada mãe!'
O mancebo saltou convulsamente como o cadaver na pilha galvanica. Em pé,
hirto, horrivel, tremendo, exclamou com um brado de trovão:
--'Demonio! demonio incarnado em figura de homem, que vieste
recordar-me? Dizias bem indagora, monstro: so ás minhas mãos deves
morrer. E hasde.'
Lançou-se a um enorme velador de pau-sancto que lhe jazia aopé, massa
terrivel d'Hercules, e bastante a fender craneos de ferro, quanto mais a
descarnada caveira do frade! D'ambas as mãos a levava no ar; e o velho
extendeu para elle a cabeça como na ancia de morrer... Georgina fechou
involuntariamente os olhos, e um grande e medonho crime ia
consummar-se...
Dous gritos agudissimos, dous gritos de desespêro e de terror,
d'aquelles que so sahem da bôcca do homem quando suspenso entre a morte
e a vida--soaram repentinamente no apposento; uma velha decrepita e meia
morta, arrastada por uma criança de pouco mais de dezeseis annos, estava
deante de Carlos, e ambas cubriam com seus debeis corpos a fragil e
extenuada figura da sua victima.
--'Filho, meu filho!' arrancou a velha com stertor do peito: 'é teu pae
meu filho. Este homem é teu pae, Carlos.'
O ponderoso velador cahiu inerte das mãos do mancebo, e rolou pesado e
baço pelo pavimento. Carlos cahiu por terra sem sentidos. De um pulo
Georgina estava aopé d'elle, e o fez incostar na longa cadeira de
braços. Estava lavado em sangue; era uma ferida do pescôço que o excesso
da commoção lhe fizera rebentar. Os dous velhos vieram ajoelhar-se aopé
d'elle. As duas mulheres moças lidavam pelo restaurar e lhe estancar o
sangue. A cambraia dos lenços, as rendas do collo e das cabeças, tudo se
fez em ataduras e compressas: o sangue parou emfim.
Admiravel belleza do coração feminino, generosa qualidade que todos seus
infinitos defeitos faz esquecer e perdoar! Essas duas mulheres amavam
esse homem. Esse homem não merecia tal amor: não, por Deus! o monstro
amava-as a ambas: está tudo ditto. E ellas que o sabiam, ellas que o
sentiam, e que o julgavam digno de mil mortes, ellas rivalizavam de
cuidados e de ancia para o salvarem.
De tanto não somos capazes nós.
E por isso admirâmos tanto.
E perdoâmos tanto.
E esquecêmos tanto.
Mas amar tanto, não sabemos: verdade, verdade...
Amâmos _melhor_; sim, isso sim: _tanto_ não.
O mancebo permanecia em deliquio. Fr. Diniz e a velha rezavam. Georgina
e Joanninha--ja vereis que era Joanninha--olharam uma para a outra,
coraram e ficaram suspensas. A ingleza extendeu a mão á amavel criança,
estremeceu involuntariamente, mas disse-lhe com firmeza:
--'O ditto ditto, Joanninha! Eu ja o não amo; prometto.'
--'Eu amo-o cada vez mais, Georgina: elle é tam infeliz!'
--'Juras-me tu de o não deixar, de velar por elle sempre, de o defender
de si mesmo que é o peior inimigo que tem?'
--'Se juro!'
--'Então adeus, Joanninha! Eu estou de mais aqui. Ja tenho ouvido o que
não devia ouvir. Os segredos da tua familia não me pertencem. O coração
d'esse homem não é meu, nem o quero. É um nobre e grande coração,
Joanninha; mas... Não te deixes dominar por elle se o queres segurar.
Adeus!--Santarem está desamparada pelos realistas; eu vou para Lisboa.
Consola tua boa avó, e esse pobre velho. Elle não é tam criminoso, estou
certa...'
--'Oh não! Carlos cuida-o assassino de seu pae; e é falso. Minha avó ja
me disse tudo.'
--'Falso!' murmurou Carlos sem abrir os olhos: 'é falso? Pois não foi
elle que matou meu pae?'
--'Não, filho, clamou a velha: 'não, meu filho; teu pae é este infeliz.'
--'E minha mãe?'
--'Tua mãe... e eu somos duas desgraçadas. Que mais queres saber? Tua
mãe amou esse homem...'
--'Ah!' disse Carlos: 'ah!' e abriu os olhos pasmados para a avó e para
o frade que cravaram os seus no chão, e ficaram como dous réos na
presença do seu inflexivel juiz.
--'Mas esse homem que é... que por fôrça querem que seja meu... meu
pae... Sancto Deus! elle matou o outro.'
--'Defendi-me, foi defendendo ésta vida miseravel... Oh nunca eu o
fizera! E paraquê? Paraque quiz eu viver? Para isto!'
--'E meu tio, o pae de Joanninha? Tambem esse era preciso que morresse?'
--'Ambos se junctaram para me assassinar, e me accommetteram
atraiçoadamente na charneca. Não os conheci; foi de noite escura e
cerrada. Defendi-me sem saber de quem, e tive a desgraça de salvar a
minha vida á custa da d'elles. Filho, filho, não queiras nunca sentir o
que eu senti, quando pegando, um a um, n'esses cadaveres para os lançar
no rio, conheci as minhas victimas... Era hynverno, a cheia ia de valle
a monte: quando abateu e se acharam os corpos ja meios desfeitos,
ninguem conheceu a morte de que morreram; passaram por se ter affogado.
Ninguem mais soube a verdade senão eu--e tua infeliz mãe a quem o disse
para meu castigo, a quem vi morrer de pezar e de remorsos, que expirou
nos meus braços chorando por elle, e maldizendo-me a mim. Não sería
bastante castigo, meu filho?--Não foi, não. Este burel que ha tantos
annos me roça no corpo, estes cilicios que m'o desfazem, os jejuns, as
vigilias, as orações nada obtiveram ainda de Deus. A sua íra não me
deixa, a sua cholera vai até a sepultura sôbre mim... Se me perseguirá
além d'ella!..'
Fez-se aqui um silencio horroroso: ninguem respirava; o frade proseguiu:
--'Não me dei por bastante castigado com a agonia de tua mãe, a mais
horrorosa e desesperada agonia que ainda presenciei, oh meu Deus!.. Tive
o cruel ânimo de explicar a tua avó as negras circumstancias d'aquella
morte, e de lhe patentear toda a fealdade e hediondez do meu crime.
Rasguei-lhe o coração, e vi-lhe sahir sangue e agua pelos olhos, até que
lhe cegaram. Que mais queres? Cuidei que podia morrer sem passar por
ésta derradeira expiação. Deus não o quiz. Aqui estou penitente a teus
pés, filho. Aqui está o assassino de tua mãe, de seu marido, de teu
tio... o algoz e a deshonra de tua familia toda.--Faze de mim como fôr
tua vontade. Sou teu pae...'
--'Meu pae!.. Misericordia meu Deus!'
--'Misericordia, filho, e perdão para teu pae!'
Carlos levantou-se deliberadamente, veio ao velho, tomou-o a pêso nos
braços, foi sentá-lo na cadeira que acabava de deixar, e pondo-se de
joelhos, beijou-lhe a mão em silencio. Depois foi abraçar-se com a avó,
que o apalpava soffregamente com as mãos trémulas, e murmurava baixo:
--'Agora sim, ja posso morrer, ja posso morrer porque o abracei, porque
o senti juncto a mim, o meu filho, o filho da minha filha querida...'
Carlos é que não proferiu mais palavra; tinha-se-lhe rompido corda no
coração, que ou lhe quebrára o sentimento ou lh'o não deixava expressar.
Sahiu da cella fazendo signal que vinha logo: mas esperaram-n'o em
vão... não tornou.
D'ahi a tres dias, veio uma carta d'elle, de juncto d'Evora onde estava
com o exército constitucional.


CAPITULO XXXVI.

Que não se acabou a historia de Joanninha.--Processo ao coração de
Carlos.--Immoralidade.--Defeito de organização não é
immoralidade.--Horror, horror, maldicção!--Um barão que não
pertence á familia lineana dos barões propriamente dittos--Porta de
Atamarma.--Senatus consulto santareno.--Nossa Senhora da Victoria
_afforada_.--Threnos sôbre Santarem.

--Pois ja se acabou a historia de Joanninha?
--Não, de todo ainda não.
--Falta muito?
--Tambem não é muito.
--Seja o que for, acabemos, que está a gente impaciente por saber como
se concluiu tudo isso, o que fez o frade, o que foi feito da ingleza,
Joanninha e a avó que caminho levaram, e o pobre Carlos se...
--Pois interessam-se por Carlos, um homem immoral, sem principios, sem
coração, que fazia a côrte--fazer a côrte ainda não é nada--que amava
duas mulheres ao mesmo tempo? Horror, horror! como dizem os dramaticos
romanticos: horror e maldicção!
--Horror seja, horror será... e horror é, sem dúvida. E maldicção que
deitaram ao pobre homem. Mas immoralidade! Immoralidade é inganar, é
mentir, é atraiçoar: e elle não o fez. Desgraça grande ter um coração
assim; mas não me digam que é próva de o não ter. Eu digo que elle tinha
coração de mais: o que é um defeito e grande, é um estado pathologico e
anormal. Physicamente produz a morte; e moralmente póde matar tambem o
sentimento. Bem o creio: mas é molestia commum, e com que vai vivendo
muita gente, até que um dia...
--Um dia, o orgam, que progressivamente se foi dilatando, não póde
funccionar mais, cessa a circulação e a vida. Deve ser horrivel morte!
--Fallam physicamente?
--Physicamente. Mas no moral anda pelo mesmo. E se esse é o defeito de
Carlos...
--Sentir muito?
--Não; ter sentido muito: que o coração, como orgam moral, não se dilata
a esse ponto senão pelo demaziado excesso e violencia de sensações que o
gastaram e relaxaram. Se esse é o defeito, a molestia de Carlos, digo
que ja sei o fim da sua historia sem a ouvir.
--Então qual foi?
--Que um bello dia cahiu no indifferentismo absoluto, que se fez o que
chamam sceptico, que lhe morreu o coração para todo o affecto generoso,
e que deu em homem politico ou em agiota.
--Póde ser.
--Mas qual das duas foi, deputado ou barão? queremos saber.
--Saberão.
--Queremos ja.
--E se fossem ambas?
--Oh horror, horror, maldicção, inferno! Ferros em braza, demonios
pretos, vermelhos, azues, de todas as côres! Aqui sim que toda a
artelharia grossa do romantismo deve cahir em massa sôbre esse monstro,
esse...
--Esse quê? Pois em se acabando o coração á gente...
--Eu não creio n'isso. Acaba-se lá o coração a ninguem!..
Houve gargalhada geral á custa do pobre incredulo, e levantamo'-nos para
ir ver o Sancto-milagre, que era a hora apprazada, e estava o prior á
nossa espera.
Ámanhan o fim da historia da menina dos olhos verdes.
No caminho incontrámos o nosso antigo amigo, o barão de P.--barão de
outro genero, e que não pertence á familia lineana que n'esta obra
procurámos classificar para illustração do seculo--cavalheiro generoso,
e typo bem raro ja hoje da antiga nobreza das nossas provincias, com
todos os seus brios e com toda a sua cortezia d'outro tempo, que em
tanto relêvo destaca da grosseria villan d'essas notabilidades
improvisadas...
Vinha em nossa procura para nos guiar. Seguimo-lo.
Fomos de passagem observando algumas das mais interessantes coisas
d'aquella interessantissima terra em que se não póde dar um passo sem
que a reflexão ou a imaginação incontre objecto para se entreter.
Inclinando um pouco á direita, démos na celebrada porta de Atamarma.
Por aqui entrou D. Affonso Henriques, por aqui foi aquella destemida
surpreza que lhe intregou Santarem, e acabou para sempre com o dominio
arabe n'esta terra.
Os illustrados municipaes Santarenos têem tido por vezes o nobre e
generoso pensamento de demolir ésta porta! o arco de triumpho de Affonso
Henriques, o mais nobre monumento de Portugal!
A idea é digna da epocha.
Felizmente parece que tem faltado o dinheiro para a demolição; e o
senatus consulto dos dignos padres conscriptos não pôde ainda
executar-se.
Não que eu creia este arco o genuino arco moiresco por onde entraram os
bravos de D. Affonso; mas creio que essa porta da antiga villa se foi
reparando, concertando e conservando em suas successivas alterações, até
chegar ao que hoje está: e ainda assim como está, é um monumento de
respeito que so barbaros pensariam desacatar e destruir.
Porcima d'ella está uma capellinha de N. S. da Victoria: quer a
tradicção que primeiro erguida e consagrada á Virgem pelo heroico
fundador da monarchia e da independencia portugueza. Este é um dos
muitos pontos em que a religião das tradições deve ser respeitada e
crida sem grandes exames, porque nada ganha a crítica em pôr dúvidas, e
o espirito nacional perde muito em as acceitar.
Deixá-la estar a Virgem da Victoria sôbre o arco de Affonso Henriques.
Prostremo'-nos e adoremos, como bons portuguezes, o symbolo da fé
christan e da fé patriotica levantado pelas mãos insanguentadas do
triumphador!
Mas sería elle ou não que levantou essa capellinha? os documentos
faltam, os escriptores contemporaneos guardam silencio; a historia deve
ser rigorosa e verdadeira...
Deve: e os grandes factos importantes que fazem epocha e são balizas da
historia de uma nação, tambem eu os regeitarei sem dó quando lhes
faltarem essas authênticas indispensaveis. Agora as circumstancias, para
assim dizer, episodicas de um grande feito sabido e provado, quem as
conservará senão forem os poetas, as tradições, e o grande poeta de
todos, o grande guardador de tradições, o povo?
Eu creio na Senhora da Victoria de Santarem, e em muitos outros sanctos
e sanctas, que a religião do povo tem por esses nichos e por essas
capellas e por esses cruzeiros de Portugal, a recordar memorias de que
se não lavrou outro auto, não se escreveu outra escriptura, de que não
ha outro documento, e que os frades chroniqueiros não julgaram dever
escrever no livro de terça ou de noa, em nenhum livro preto nem
incarnado, porque o tinham por melhor escripto e mais bem guardado nos
livros de pedra em que estava.
Coitados! não contaram com os apperfeiçoadores, reparadores e
demolidores das futuras civilizações que, para pôr as coisas em ordem,
tiram primeiro tudo do seu logar.
A camara de Santarem, não podendo demolir o arco, tomou um meio termo
que appósto que ninguem é capaz de adivinhar. Afforou a capella por cima
d'elle, com altar, com sanctos e tudo: e assim esteve afforada alguns
annos, não sei paraquê nem porquê; o caso é que esteve.
O anno passado porêm (1842) começou a manifestar-se ésta reacção
religiosa que os especuladores quizeram logo converter em ganancia
pessoal, descontando-a no mercado das agiotagens facciosas; mas perdem o
seu tempo, inda bem! Veio, digo, ésta reacção nas ideas das gentes; e a
capella da Senhora da Victoria sôbre o arco, não sei tambem como nem
porquê, foi _desafforada_, e restituida ao culto popular.
Subimos a ver a capella por dentro: é um rifacimento ridiculo e
miseravel, sem nenhuma da solemnidade do antigo, nem elegancia moderna
alguma.
Desappontou-me tristemente. Vamos ao Sancto-milagre depressa, que me
quero reconciliar com Santarem: e ja começa a ser difficil.
Mas é injustiça minha. Que culpa tem ella, coitada?
Ai Santarem, Santarem, abandonaram-te, mataram-te, e agora cospem-te no
cadaver.
Santarem, Santarem, levanta a tua cabeça coroada de tôrres e de
mosteiros, de palacios e de templos!
Mira-te no Tejo, princeza das nossas villas: e verás como eras bella e
grande, ricca e poderosa entre todas as terras portuguezas.
Ergue-te, esqueleto colossal da nossa grandeza, e mira-te no Tejo: verás
como ainda são grandes e fortes esses ossos desconjuntados que te
restam.
Ergue-te, esqueleto de morte, levanta a tua foice, sacode os vermes que
te poluem, esmaga os reptis que te corroem, as osgas torpes que te
babam, as lagartixas peçonhentas que se passeiam atrevidas por teu
sepulchro deshonrado.
Ergue-te Santarem, e dize ao ingrato Portugal que te deixe em paz ao
menos nas tuas ruinas, myrrhar tranquillamente os teus ossos gloriosos;
que te deixe em seus cofres de marmore, sagrados pelos annos e pela
veneração antiga, as cinzas dos teus capitães, dos teus lettrados e
grandes homens.
Dize-lhe que te não vendam as pedras de teus templos, que não façam
palheiros e estrebarias de tuas egrejas; que não mandem os soldados
jogar a pella com as caveiras dos teus reis, e a bilharda com as
cannellas dos teus sanctos.
Tiraram-te os teus magistrados, os teus mestres, os teus seminarios...
tudo, menos o intulho e a caliça, as immundices e os monturos que
deixaram accumular em tuas ruas, que espalharam por tuas praças.
Santarem, nobre Santarem, a Liberdade não é inimiga da religião do ceo
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