Viagens na Minha Terra - 13

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nem da religião da terra. Sem ambas não vive, degenera, corrompe-se, e
em seus proprios desvarios se suicida.
A religião do Christo é a mãe da Liberdade, a religião do Patriotismo a
sua companheira. O que não respeita os templos, os monumentos de uma e
outra, é mau amigo da Liberdade, deshonra-a, deixa-a em desamparo,
intrega-a á irrisão e ao odio do povo......................................
...........................................................................
Vamos ao Sancto-milagre.


CAPITULO XXXVII.

A Graça e sua bella fachada gothica.--Sepultura de Pedr'alvares
Cabral.--Outro barão que não é dos assignalados.--Egreja do
Sancto-milagre.--Bellos medalhões mosarabes.--De como, chegando o
prior e o juiz, houve o A. vista do Sancto-milagre, e com que
solemnidades.--Monumento da muito alta e poderosa princeza a
infanta D. Maria da Assumpção.--Casa onde succedeu o milagre,
convertida em capella de stylo philipino.--O homem das botas, e o
que tem elle que haver com o Sancto-milagre de Santarem.--Admiravel
e graciosa esperteza da regencia do Rocio.--Aaroun-el-Arraschid: e
theoria dos governos folgasões; os melhores governos
possiveis.--Volta o paladio scalabitano de Lisboa para Santarem.

Inclinámos o nosso caminho para a esquerda, e fomos passar deante do
arrendado e elegante frontispicio gothico da Graça. A ausencia de não
sei que regedor, ou insignificante personagem de egual importancia que
tem as chaves da egreja e convento, nos fez perder toda a esperança de
visitar a sepultura de Pedr'alvares Cabral que alli jaz, assim como
outras bellas e interessantes antiguidades de não menor preço.
Fomos seguindo até casa do barão d'A., outro illegitimo, porque não
pertence aos barões assignalados
Que, sem passar além da Taprobana,
No velho Portugal edificaram
Novo reino que tanto sublimaram.
Incontrámo-lo prompto a accompanhar-nos, e a presidir, como juiz da
irmandade que é, á grande cerimonia da exposição e ostensão do
Sancto-milagre.
Junctos descémos á egreja, que é perto.
A egreja pequena e do peior gôsto moderno por dentro e por fóra. Notavel
não tem nada se não uns quatro medalhões de pedra lavrada com bustos de
homens e mulheres em relêvo que visivelmente pertenceram a edificação
antiga, e que actualmente estão incrustados na tosca alvenaria do
cruzeiro.
Os bustos são de puro e finissimo lavor gothico, altos de relêvo e
desenhados com uma franqueza que se não incontra em esculpturas muito
posteriores.
São talvez reliquias da primitiva egreja do Sancto-milagre que nas
successivas reedificações se teem ido conservando. Abençoado seja o
escrupuloso que as salvou d'este último _melhoramento_ que houve no
desgraçado e desgraçioso templo: o que não foi ha muitos annos por
certo.
Chamo gothico ao lavor d'aquellas cabeças por que é a phrase vulgar e
impropria usada de toda a gente: segundo ja observei n'outra parte, com
mais exacção se devêra dizer mosarabe.
Chegou o prior, o Sr. juiz deu as suas ordens, vieram uns poucos de
irmãos com tochas, distribuiram-nos a cada um de nós a sua, e
processionalmente nos dirigimos á porta lateral do altar-mor, da qual se
sobe, por uma escada assás larga e commoda, á especie de camarim que
está parallelo com o mais alto do throno em que perpetuamente se
conserva o grande paladio santareno.
Subimos, accompanhados do prior em sobrepeliz e estola; chegados ao
alto, ajoelhámos em roda d'elle que subiu a uns degrausinhos, abriu, com
a chave dourada que trazia pendente ao pescosso, uma como porta de
sacrario, depois ajoelhou, incensou, tornou a ajoelhar, disse alguns
versetos a que respondeu o sacristão, e finalmente tirou de seu
repositorio uma especie de ambula de ouro de fábrica antiga, mas não
mais antiga que o decimo sexto, ou decimo quinto seculo, quando muito.
Depois de nos inclinarmos e receber a bençam que o padre nos deitou com
a reliquia, foi-nos permittido erguer-nos, e chegar perto para ver e
observar.
Entre uns cristaes ja bem velhos e imbaciados se descobre comeffeito o
pequeno vulto amarellado-escuro que piedosamente se crê ser o resto da
particula consagrada que a judia roubára para seus feitiços.
Escuso contar a historia do Sancto-milagre de Santarem que toda a gente
sabe. O bom do prior, ex-frade trino gordo e bem conservado, não nos
perdoou o menor ponto d'ella, que tivemos de ouvir com a maior
compuncção.
Incerrada outra vez a ambula com as mesmas solemnidades, entrámos em
conversação com o prior.
N'aquelle mesmo camarim juncto á devota reliquia se conservaram, por
espaço de cinco ou seis annos, se bem me recordo do que o bom do parocho
nos contou, os restos mortaes da senhora infanta D. Maria da Assumpção,
que fallecêra em Santarem nos ultimos mezes da occupação d'aquella villa
pelas fôrças realistas. O cadaver, mal imbalsemado e com más drogas, foi
mettido n'um caixão de folha de Flandres. Em pouco tempo a corrupção
estragou e rompeu a folha, e uma infecção terrivel apestava a egreja.
Soffreu-se isto annos, representou-se ao govêrno por vezes, mas nenhuma
resolução se pôde obter. Até que afinal, declarando o prior que, se não
mandavam tomar conta d'aquelles tristes restos da pobre princeza, elle
se via obrigado a mettê-los na terra, foi-lhe respondido que fizesse
como intendesse; e elle intendeu que os devia sepultar no cruzeiro da
egreja, como fez, do lado da epistola, isto é, á direita.
E ahi jaz em sepultura raza, sem mais distincção nem epitaphio, a muito
alta e poderosa princeza D. Maria, filha do muito alto e poderoso
principe D. João o VI, rei de Portugal, imperador do Brazil, e da
conquista e navegação etc.
Assim é o mundo, as suas grandezas e as suas glórias!
A visita ao Sancto-milagre não é completa sem se ir ver a casa onde elle
se operou. Conservou-se ella por alguns seculos em grande veneração, e
em mil seiscentos e tantos se converteu porfim em capella. Hoje está
abandonada, chove em toda ella, e apenas tem uma má porta que a defende
das incursões dos animaes. Pena e desleixo grande, porque é elegante e
graciosa a capellinha, lavrada de bons marmores, no melhor gôsto do
decimo-sexto seculo, de renascença ja muito adiantada no classico: é um
verdadeiro typo do stylo philippino, que tanto predomina n'essa epocha
em toda a peninsula.
A historia do Sancto-milagre de Santarem muitas vezes tem andado ligada
com a historia do reino; e ja n'este seculo, no tempo da guerra da
independencia, veio prender com um dos factos mais importantes, e tambem
com a mais curiosa e comica aventura de que em Lisboa ha memoria.
Alludo nada menos que ao 'homem das botas.' E perdoem-me as senhoras
beatas a irreverencia apparente, que bem sabem não ser eu de motejar com
as coisas sérias e sanctas. Mas o facto é que a historia do
Sancto-milagre está ligada com a célebre historia do 'homem das botas.'
Saiba pois o leitor contemporaneo, e saiba a posteridade, para cuja
instrucção principalmente escrevo este douto livro, que pela invasão de
Massena, o grande paladio scalabitano foi mandado recolher a Lisboa, e
ahi se conservou alguns annos até muito depois da completa retirada dos
francezes.
Passado todo o perigo de que o exército invasor roubasse--ou
profanasse--que era o mais provavel--a sancta reliquia, começou a
reclamá-la o senado e povo santareno, e a mostrar muito pouca vontade de
lh'a restituir o senado e povo ulyssiponense. Era uma questão d'entre
Alba e Roma que dava serio cuidado aos reflectidos Numas da regencia do
Rocio.
Em poucas preplexidades tam graves se viu aquelle pobre govêrno que
tantas teve, e de quasi todas se sahiu tam mal.
Não assim d'esta, que a evitou com o mais inesperado e admiravel
stratagema, digno de ornar os maravilhosos fastos do grande Aaroun
el-Raschid, ou de qualquer outro principe de bom humor, d'esses poucos
felizes que em felizes tempos reinaram a brincar, e zombaram com o seu
povo, mas fazendo-o rir.
Pois, senhores, apertada se via a regencia d'estes reinos com a
restituição do Sancto-milagre que era de justiça fazer-se a Santarem,
mas que Lisboa recusava, e ameaçava impedir. Temia-se alborôto no povo.
Não sei de quem foi o alvitre, mas foi de maganão de bom gôsto; e bom
gôsto teve tambem o govêrno em o acceitar e approveitar. Para o dia em
que o Sancto-milagre devia sahir de Lisboa Tejo acima, e que se esperava
fosse com grande solemnidade e pompa ecclesiastica,--fez-se annunciar
por cartazes que um fulano de tal passaria o rio, de Lisboa a Almada, em
umas botas de cortiça nas quaes se teria direito e inchuto, navegando a
pé sem mais embarcação, vela nem remo.
A logração era gorda e grande; melhor e mais depressa foi ingullida. No
dia apprazado despovoou-se a capital, e uns em barcos outros por navios,
outros por essas praias abaixo, tudo se encheu de gente de todas as
classes, e todos passaram o melhor do dia á espera do homem das botas.
No emtanto, muito surrateiramente imbarcava o Sancto-milagre no seu
barco de agua-arriba, e navegava com vento e maré para as ditosas
ribeiras de Santarem.
Ninguem o viu sahir, nem soube novas d'elle em Lisboa senão quando
constou da sua chegada a Santarem, e das grandes festas que lhe fizeram
aquelles saudosos e devotos povos ribatejanos.
Os Aarouns-el-Raschids do Rocio riram de soccapa: e nunca tam
innocentemente se riu govêrno algum de ter inganado o povo.
Nós celebrámos a historia como ella merecia, e fomos jantar á Alcaçova,
para irmos de tarde ver a Ribeira, e procurar os vestigios do seu
inclyto alfageme.


CAPITULO XXXVIII.

Jantar nos reaes paços de Affonso Henriques.--Sautés e
salmis.--Desce o A. á Ribeira de Santarem em busca da tenda do
Alfageme.--A espada do Condestavel.--Desappontamento.--O salão
elegante. Dissipam-se as ideas archeologicas. Os fosseis.--Tudo
melhor quando visto de longe.--O baile público.--Soirée de piano
obrigado.--Theatro. Desafinações da prima-dona. Syphlis incuravel
das traducções. Destempêro dos originaes.--A xácara de rigor, o
subterraneo e o cemiterio.--Sublime gallimathias do ridiculo.--A
bella e necessaria palavra 'gallimathias.'--Se as saudades
matam.--Perigo de applicar o scalpello ou a lente ao mais perfeito
das coisas humanas.--De como a logica é a mais perniciosa de todas
as incoherencias.

Esperava-nos comeffeito em casa do nosso bom hóspede, nos regios paços
de Affonso Henriques, um esplendido jantar a que assistiram quasi todos
os cavalheiros da terra.--Não quero dizer as notabilidades, por ser
palavra peralvilha a que tenho invencivel zanga.--As iguarias de
legítima eschola portugueza, não menos saborosas e delicadas por
apparecerem estremes de _sautés e salmis_ extrangeirados. Brilharam
sôbre tudo os productos das duas grandes vendimas rivaes, do Ribatejo e
Ribadouro. Foi largo e alegre o jantar.
Acabámos tarde, montámos logo a cavallo, e pela porta de Atamarma
descémos á Ribeira; era quasi sol pôsto quando la chegámos.
É o suburbio democratico da nobre villa, hoje o ricco e o forte d'ella.
Faz lembrar aquellas aldeas que se criaram á sombra dos castellos
feudaes e que, libertas, depois, da oppressora protecção, cresceram e
ingrossaram em substancia e fôrça: o castello, esse está vazio e em
ruinas.
Por aqui se faz quasi todo o commercio da Extremadura e Beira com o
Alemtejo. Os habitantes laboriosos e activos conservam os antigos brios
e independencia do character primitivo: é a unica parte viva de
Santarem.
Cruzámos a povoação em todos os sentidos, procurando rastrear algum
vestigio, confrontar algum sítio onde podessemos collocar, pela mais
atrevida supposição que fosse, a tenda do nosso alfageme com as suas
espadas bem 'corregidas', as suas armaduras luzentes e bem postas--e o
joven Nun'alvares passeando alli por pé, ao longo do rio--como diz a
chronica--namorado d'aquella perfeição de trabalho, e dando a 'correger'
a bella espada velha de seu pae ao rustico propheta que tantos
vaticinios de grandeza lhe fez, que o saudou condestavel, conde d'Ourem
e salvador da sua patria.
Nada podémos descubrir com que a imaginação se illudisse siquer, que nos
désse, com mais ou menos anachronismo, uma leve base tamsomente para
reconstruirmos a gothica morada do célebre cutileiro-propheta que a
historia herdou das chronicas romanescas, e hoje o romance outra vez
reclama da historia.
Em Santarem ha poucas casas particulares que se possam dizer
verdadeiramente antigas; na Ribeira, nenhuma. As implastagens e
replastagens successivas teem anachronizado tudo. É uma feliz expressão
do Sr. Conde de Raczinski bem applicada por elle ao estado de quasi
todos os nossos monumentos, ésta de anachronismo.
Mas alli, na villa alta ou Marvilla, no Santarem propriamente ditto, ha
os templos, os conventos, a cêrca das muralhas que todavia conservam a
physionomia historica da terra; aqui nem isso ha.
Voltei completamente desappontado da Ribeira, isto é, da sua pedra e
cal: gósto immenso da sua gente.
Outra surpreza de mui differente genero nos esperava á noite em
Marvilla, no elegante salão da B. d'A. com quem fomos tomar cha.
Em meio das ruinas e desconfôrto d'aquelles desertos e mortos pardeiros
circumstantes, ir incontrar uma casa em plena florescencia de
civilização e de vida; ver a amabilidade e a elegancia fazendo
graciosamente as honras d'ella--por mais que se devesse esperar--sempre
espanta á primeira vista: parecia golpe de varinha de condão.
Em tam agradavel e joven companhia todas as ideas archeologicas se
desvaneceram, apezar de dous ou tres fosseis que alli appareciam para se
não perder detodo a côr local talvez.
Largamente se conversou, de Lisboa principalmente, dos nossos mutuos
amigos, das festas do último hynverno, das probabilidades que se deviam
esperar do futuro.
Ralhámos muito da sociedade portugueza; exaltámos París e Londres e não
sei se Pekim e Nankim tambem, e concluimos que antes Timbokotuo do que a
seccante capital do nosso pobre reino. E comtudo estavamos com saudades
d'ella; e concessão d'aqui, concessão d'alli, viemos a que não era tam
má terra como isso.
Admiravel condicção da natureza humana, que tudo nos parece melhor e
menos feio quando visto de longe!
O baile público mais semsabor, detestavel de barulho e confusão, em que,
para repousar os olhos n'um rosto conhecido e agradavel, foi preciso
furar por entre centenas de cotovellos barbaros que se não sabe d'onde
vieram, levar desalmadas pisadellas do dançante noviço, do deputado
recemchegado, e das botas novas do novo director da Galocha--e, mais
horrivel que tudo! ver as absurdas toiletes, os penteados fabulosos, as
caras incriveis e as antidiluvianas figuras de tanta mulher feia e
desastrada... pois esse mesmo baile, quando ja não é senão reminiscencia
que acorda no meio do infado ronceiro de uma terra de provincia, parece
outro. As luzes, as flores, a musica, toda aquella animação lembra com
prazer, o mais esquece, e involuntariamente se descai um pobre homem a
suspirar por elle.
A soirée mais massante, de piano obrigado, com dueto das manas, polka
das primas e casino das tias velhas--recordada em eguaes circumstancias,
tambem ja não accode á memoria senão como uma reunião escolhida e
íntima, de facil e doce tracto... oh! o verdadeiro prazer da sociedade.
Pois o theatro... Que se lembre alguem, na provincia, dos martyrios que
soffreu o ouvido com os berros da prima-dona, as desafinações do tenor,
ou com o infadonho resonar d'aquella adormecida orchestra de San'Carlos!
A injoativa traducção de uma comedia da Rua-dos-condes, roída de
incuravel syphilis, figura-se avelludada de todas as graças do stylo de
Scribe.
E o destempêro original de um drama plusquam romantico, laureado das
imarcessiveis palmas do Conservatorio para eterno abrimento das nossas
bôccas! Lá de longe applaude-o a gente com furor, e esquece-se que
fummou todo o primeiro acto ca fóra, que dormiu no segundo, e conversou
nos outros, até á infallivel scena da xacara, do subterraneo, do
cemiterio, ou quejanda, em que a dama, soltos os cabellos e em penteador
branco, indoudece de rigor,--o gallan, passando a mão pela testa, tira
do profundo thorax os tres _ahs!_ do stylo, e promette matar seu proprio
pae que lhe appareça--o centro perde o centro de gravidade, o barbas
arrepella as barbas... e maldicção, maldicção, inferno!... 'Ah mulher
indigna, tu não sabes que n'este peito ha um coração, que d'este coração
sahem umas arterias, d'estas arterias umas veias--e que n'estas veias
corre sangue... sangue, sangue! Eu quero sangue, porque eu tenho sêde, e
é de sangue... Ah! pois tu cuidavas? Ajoelha, mulher, que te quero
matar... esquartejar, chacinar!'--E a mulher ajoelha, e não ha remedio
senão applaudir...
E applaude-se sempre.
E não é de mim que fallo, que eu gósto d'isto: os outros é que se
infastiam e cansam de tanta barafusta, sempre a mesma...
Mas emfim o que digo é que na provincia não ha tal fastio, que esquece a
canceira, e que nem o sublime gallimathias do ridiculo d'alli se
percebe.
Peço aos illustres puritanos que, á fôrça de sublimado quinhentista, tem
conseguido levar a lingua á decrepitude para a curar de suas
infermidades francezas, peço-lhes que me perdoem o _gallimathias_,
porque elle é muito mais portuguez que outra coisa. A célebre oração
_pro gallo Mathiae_ deu origem a ésta bella e expressiva palavra, que
sim foi procreada em francez, mas hoje precisâmos ca muito mais d'ella
que em parte nenhuma.
Volto ja da digressão philologica: tornemos á optica e á catoptrica.
Grande coisa é a distancia!
E dizem que saudades que matam! Saudades dão vida; são a salvação de
muita coisa que, em seu pleno gôso e posse pacífica, pereceria de
inanição ou morreria da oppressora molestia da saciedade.
Por isso eu não gósto de metter o scalpello no mais perfeito da
construcção humana, nem de applicar a lente ao mais fino e delicado do
seu funccionar...
Vamos usando d'estas palavras que herdámos, sem metter louvados na
herança; não succeda descobrirmos que estamos mais pobres do que se
cuidava... vamos repetindo éstas phrases que nos formularam nossos
antepassados sem as analysar com muito rigor; não succeda vermos claro
demais que temos passado a vida a mentir...
Detesto a philosophia, detesto a razão; e sinceramente creio que n'um
mundo tam desconchavado como este, n'uma sociedade tam falsa, n'uma vida
tam absurda como a que nos fazem as leis, os costumes, as instituições,
as conveniencias d'ella, affectar nas palavras a exactidão, a logica, a
rectidão que não ha nas coisas, é a maior e mais perniciosa de todas as
incoherencias.
Não fallemos mais n'isto, que faz mal, e acabemos aqui este capítulo.


CAPITULO XXXIX.

Processo de scepticismo em que está o auctor.--Moralistas de
_requiem_.--O maior sonho d'esta vida, a logica.--Differença do
poeta ao philosopho.--O coração de Horacio.--O collegio de
Santarem.--Jesuitas e templarios.--O alliado natural dos
reis.--'Ficar na gazeta' phrase muito mais exacta hoje do que
'Ficar no tinteiro.'--San'Frei Gil e o Doutor Fausto.--De como o A.
foi ao tumulo do sancto bruxo e o achou vazio.--Quem o roubaria?

O final do capítulo antecedente é, bem o sei, um terrivel documento para
este processo de scepticismo em que me mandaram metter certos moralistas
de _requiem_ de quem tenho a audacia de me rir, d'elles e da sua
querella e do seu processo, protestando não me aggravar nem appellar,
nem por nenhum modo recorrer da mirifica sentença que suas
excellentissimas hypocrisias se dignarem proferir contra mim.
Feita ésta declaração solemne, procedamos.
E quanto a ti, leitor benevolo, a quem so desejo dar satisfação, a ti,
se ainda te cansas com essas chymeras, dou-te de conselho que voltes a
pagina obnoxia, porque essas reflexões do último capítulo são tam
deslocadas no meu livro como tudo o mais n'este mundo. Dorme pois, e não
despertes do bello-ideal da tua logica.
É uma descuberta minha de que estou vaidoso e presumido, ésta de ser a
logica e a exacção nas coisas da vida muito mais sonho e muito mais
ideal do que o mais phantastico sonho e o mais requintado ideal da
poesia.
É que os philosophos são muito mais loucos do que os poetas; e de mais a
mais, tontos: o que est'outros não são.
Voltemos, voltemos a pagina comeffeito, que é melhor.
Amanheceu hoje um bello dia, puro e sublime. Dorme nas cavernas do padre
Eolo aquelle vento sêcco e duro, flagello dos estios portuguezes.
Suspira no ar uma viração branda e suave que regenera e dá vida. Mal
impregado dia para o passar a ver ruinas! No seio da sempre joven
natureza, sob a remoçada espessura das árvores, sôbre a alcatifa sempre
renovada das grammas verdes e variegadas boninas, queria eu que me
corresse este dia em ocio bemaventurado de corpo e d'alma, sentindo
pulsar lento e compassado o coração livre e sôlto de todo impenho, o
verdadeiro coração de Horacio,
Solutus omni foenore!
Tomára-me eu no valle outra vez, com a irman Francisca a dobar á porta,
a nossa Joanninha a deslindar-lhe a meada; e embora venha o terrivel
spectro de Fr. Diniz projectar sua funesta e tragica sombra no idilio
d'este quadro suave, que não póde destruir-lhe toda a amenidade
bucolica, por mais que faça.
Lá voltaremos ao nosso valle, amigo leitor, e lá concluiremos, como é de
razão, a historia da menina dos rouxinoes. Por agora almocemos, que é
tarde, e terminemos os nossos estudos archeologicos em Marvilla de
Santarem.
Cá estamos no Collegio, edíficio grandioso, vasto, magnífico, propria
habitação da companhia--rei que o mandou construir para educar os
infantes seus filhos.
Creio que ésta e a de Coimbra eram as duas principaes casas que para
isto tinham os Jesuitas em Portugal.
Foram os templarios dos seculos modernos, os Jesuitas. A potencia
formidavel e quasi régia que aquelles levantaram com a espada, tinham
estes fundado com a doutrina. Riquezas, podêr, influencia, uns e outros
as tiveram com applauso e acquiescencia geral; uns e outros as perderam
do mesmo modo.
Extinctas e perseguidas, ambas as ordens renasceram no mysterio, e se
converteram em associações secretas para conspirarem; ambas tomaram
diversos nomes e variadas máscaras para o fazerem mais seguramente.
Ambas em vão!
O predominio, crescente ha seculos, do elemento democratico annulla
todas essas conspirações. Sos e sem elle, os reis tinham succumbido... É
a alliada natural dos reis a democracia.
O edificio do Collegio é todo philippino, ja o disse: a egreja dos mais
bellos specimens d'esse stylo, que em geral sêcco, duro e sem poesia,
não deixa comtudo de ser grandioso.
Aqui esteve depois muitos annos o seminario patriarchal, cujas aulas
frequentava a mocidade do districto. Hoje leem-se alli outras palestras
da cathedra administrativa. É a séde do govêrno civil chamado: corrumper
a moral do povo, sophismar o systema representativo é o thema das
licções.
Todo outro insino se tirou de Santarem. Falla-se n'um liceu e não sei em
que mais 'que ficou na gazetta:' phrase portugueza moderna que deve
supprir a antiga e antiquada de--'ficou no tinteiro'--por muitas razões,
até porque hoje não fica nada no tinteiro senão o senso commum, tudo o
mais de lá sai, tudo. E muitas graças a Deus quando não passa ás ballas
do impressor para dar a volta do mundo.
Santarem é das terras de Portugal a melhor situada e qualificada para um
grande estabelecimento de instrucção e de educação pública. Porque não
hade estar aqui o Collegio-militar ou a Casa-pia, ou outra grande
eschola, seja qual for? Porque hade ser ésta centralização d'insino em
Lisboa? Em que se funda um privilegio dado á capital em prejuizo e á
custa das provincias?
Sahimos do Collegio, fomos direitos a San'Domingos, um dos mais antigos
estabelecimentos monasticos do reino e que eu tanto desejava visitar.
Não sei descrever o que senti quando a inferrujada chave deu a volta na
porta da egreja e o velho templo se patenteiou aos nossos olhos. Acabára
de servir, não imaginam de quê... de palheiro!
A derradeira camada de palha que apodrecêra, adheria ainda ao lagedo
humido, e exhalava um forte vapor mephitico que nos suffocava. Mal
podémos ver os tumulos dos Docems e tantos outros interessantes
monumentos que abundam na parte superior do templo. A inferior, ou corpo
da egreja como dizem, é de um miseravel e moderno anachronismo.
Respirando a custo aquelle ar infecto, todo o tempo que lhe pudesse
resistir, quiz approveitá-lo em examinar a principal e mais interessante
reliquia da profanada egreja--a capella e jazigo do grande bruxo e
grande santo, San'Frei-Gil.
Algures lhe chamei ja o nosso Doutor Fausto: e é comeffeito. Não lhe
falta senão o seu Goethe.
Vixere fortes ante Agamemnona multi.
Houve fortes homens antes de Agamemnão, e fortes bruxos antes e depois
do Doutor Fausto. Mas sem Homero ou Goethe é que se não chega á
reputação e fama que alcansaram aquelles senhores. Nós precisâmos de
quem nos cante as admiraveis luctas--ora comicas, ora tremendas--do
nosso Frei Gil de Santarem com o diabo. O que eu fiz na 'Dona Branca' é
pouco e mal esboçado á pressa. O grande mago lusitano não apparece alli
senão episodicamente; e é necessario que appareça como protagonista de
uma grande acção, pintado em corpo inteiro, na primeira luz, em toda a
luz do quadro.
Então o seu ardente e anciado desejo de saber, os seus vastos estudos,
os reconditos mysterios da natureza que descobriu até penetrar no mundo
invisivel--a sêde de oiro, de prazer e de podêr que o perseguia e o fez
cahir nas garras do espirito maligno--o fastio e saciedade que o
desincantaram depois--o seu arrependimento emfim, e a regeneração de sua
alma pela penitencia, pela oração e pelo desprêzo da van sciencia
humana--então essas variadas phases de uma existencia tam
extraordinaria, tam poetica, devem mostrar-se como ainda não foram
vistas, porque ainda não olhou para ellas ninguem com os olhos de grande
moralista e de grande poeta que são precisos para as observar e
intender.
Lembra-me que sempre entrevi isto desde pequeno, quando me faziam ler a
historia de San'Domingos, tam rabujenta e semsabor ás vezes, apezar do
incantado stylo do nosso melhor prosador; e que eu deixava os outros
capitulos para ler e reler somente as aventuras do sancto feiticeiro que
tanto me interessavam.
Com todas éstas reminiscencias que me reviviam n'alma, com os admiraveis
versos do Fausto a acudir-me á memoria, e com uma infinidade de
associações que essas ideas me traziam, caminhei direito á capella do
sancto, cheio de alvorôço, e como tocado, para assim dizer, de sua
magica vara de condão.
A capella--oh desappontamento! a cappella de San'Frei Gil é um mesquinho
rifacimento moderno, do lado esquerdo da egreja, sem nenhum vestigio de
antiguidade, nenhum ornato characteristico, pesada, grosseira--velha sem
ser antiga--um verdadeiro non-descriptum de mau gôsto e semsaboria. Quem
tal dissera?
O tumulo do sancto está elevado do altar n'uma especie de mau throno.
Subi acima da degradada e profanada credencia para o examinar deperto.
É de pedra o jazigo; mas ultimamente ve-se que tinham pintado a pedra;
não tem lavor algum.--E estava vazio, a loisa levantada e quebrada!..
Quem me roubou o meu sancto?
Quem foi o anathema que se atreveu a tal sacrilegio?..


CAPITULO XL.

As Claras.--Aventura nocturna.--Se as freiras mettem medo aos
liberaes?--O Psalmo.--Tres frades.--Práctica do franciscano.--O
corpo de San' Fr. Gil.--Que se hade fazer das freiras?--Mal do
govêrno que deixar comer mais aos barões.

Èra de noite, reinava a confusão, a desordem, o susto e a anciedade nos
muros de Santarem, tres homens chegavam, por horas mortas, ao antigo
mosteiro das Claras, davam á portaria um signal surdo e mysterioso;
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