Obras Completas de Luis de Camões, Tomo III - 17

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SCENA IV.
_Duriano e o Monteiro._
DURIANO, _como cantando_.
Ti ri ri, ti ri rão.
MONTEIRO.
Que he isso, Senhor Duriano? Que descuidos são esses? Onde he cá a ida
agora?
DURIANO.
Vou assi como parvo, porque o melhor he não saber homem nada de si.
MONTEIRO.
Que dizeis a vosso amigo Filodemo, que assi se soube aproveitar do tempo
que ficou só em casa?
DURIANO.
Eu que hei de dizer? Digo que descreio desta minha capa, se não he isso
caso para sahir com elle a desafio.
MONTEIRO.
Porque?
DURIANO.
Porque não basta que lhe dê a Fortuna gostos tão medidos sôbre o funil,
que lhe põe nos braços Dionysa, a mais formosa dama que nunca espalhou
cabellos ao vento, senão ainda para o assegurar em sua boa ventura, lhe
vem a descobrir, que he filho de não sei quem, nem quem não.
MONTEIRO.
Esses são outros quinhentos. Cujo filho dizem que he? que eu ouvi ja
sôbre isso não sei que fábulas.
DURIANO.
Dir-vo-lo-hei; pasmareis, que não he menos que Principe, e peor ainda.
Nunca ouvistes dizer de hum irmão do Senhor Dom Lusidardo que aggravado
del Rei, se foi para os Reinos de Dinamarca?
MONTEIRO.
Tudo isso ouvi ja.
DURIANO.
Pois esse galante, em satisfação de muitas mercês que ElRei de Dinamarca
lhe fizera, meteo-se d'amores com huma sua filha, a mais moça; e como
era bom justador, manso, discreto, galante, partes que a qualquer mulher
abalão, desejou ella de ver geração delle; senão quando, livre-nos Deos!
se lhe começou d'encurtar o vestido; e porque estes sirgos não se
desistem em nove dias, senão em nove mezes, foi-lhe a elle então
necessario acolher-se com ella, porque não colhessem a ella com elle:
acolheu-se em huma galé; e vêde la Princeza em huma galera nueva, con el
marinero á ser marinera. Finalmente, vindo navegando todo esse Oceano
Germanico, bancos de Frandes, mar d'Inglaterra, e trazidos á costa
d'Hespanha, não os quiz a Ventura deixar gozar do repouso que nella
buscavão: deo-lhe subitamente tamanha tormenta, que sem remedio deo a
galé á costa, onde feita pedaços, morrêrão todos desastradamente, sem
escapar mais que a Princeza com o que trazia na barriga, a quem parece
que a Fortuna guardava para dar o descanso, que a seu pae e mãe negára.
Sahio finalmente a moça na praia, tal qual o temeroso naufragio deixaria
huma Princeza mais delicada que hum arminho; e indo assi a pobre mulher
pola terra estranha e despovoada, e sem quem a encaminhasse por onde,
despois de ter perdido toda a esperança de ter algum remedio, derão-lhe
as dores de parto junto de huma fonte, aonde em breve espaço lançou duas
crianças, macho e femia, como vizagras. E como a fraca compreição da
delicada mulher não pudesse sustentar tantos e tão desacostumados
trabalhos, facilmente deo a vida, que tanto havia que desejava de dar,
deixando vivos aquelles dous retratos della e de seu pae, que por causa
de seus nascimentos a vida lhe tirárão, como acontece a viboras. E como
as crianças fossem destinadas ao que vêdes, não faltou hum pastor que as
criasse, que alli veio ter, dando a mãe a alma a Deos: de maneira que,
por não gastar mais palavras, o macho he vosso amigo Filodemo, e a femia
he a serrana Florimena, mulher que he ja de Venadoro.
MONTEIRO.
Estranhas cousas me contais. Assi que logo de seu pae herdou Filodemo
namorar a filha do Senhor que serve: não haverá logo por mal o Senhor
Dom Lusidardo tomar por genro e nora, quem acha por sobrinhos.
DURIANO.
Sabei que chora de prazer com elles, que ja diz que acha que Filodemo se
parece natural com seu irmão, e Florimena com sua mãe.
MONTEIRO.
Dae-me a entender, como se creo tão de ligeiro o Senhor Dom Lusidardo de
quem isso contou.
DURIANO.
No caso não ha dúvida, porque o pastor que hi achastes, lhe certificou
todo o caso; e fez ao pastor muitas mercês, e mandou fazer muitas festas
solemnes. Venadoro, casado com sua mulher e prima, e Filodemo, que o
mesmo parentesco tẽe com a Senhora Dionysa, estão fóra de crer tamanho
contentamento; cuido que zombão delle.
MONTEIRO.
Ora deixa-me ir a ver o rosto a esse velhaco de Filodemo; pois de meu
matalote se me tornou Senhor. Creio que vem o Senhor Dom Lusidardo:
dissimulemos.

SCENA V.
_Dom Lusidardo com Venadoro, que traz Florimena pela mão, e Filodemo a
Dionysa._
LUSIDARDO.
Quem não ficará pasmado
De ver que por tal caminho
Tẽe a Ventura ordenado
Filodemo, meu criado,
Vir ser meu genro e sobrinho!
Quem não pasmará agora
De ver a ventura minha,
Que tẽe tornado n'hum'hora
Florimena, huma pastora,
Ser minha nora e sobrinha!
Dem-se graças ao Senhor,
Cujo segredo he profundo;
Pois que vemos que quiz dar
A ventura e o amor
Por prazeres deste mundo.
* * * * *


CARTAS.


CARTAS.

CARTA I.
Desejei tanto huma vossa, que cuido que pola muito desejar a não vi;
porque este he o mais certo costume da Fortuna, consentir que mais se
deseje o que mais presto ha de negar. Mas porque outras naos me não
fação tamanha offensa, como he fazerem-me suspeitar que vos não lembro,
determinei de vos obrigar agora com esta; na qual pouco mais ou menos
vereis o que quero que me escrevais dessa terra. Em pago do qual, d'ante
mão vos pago com novas desta, que não serão más no fundo de huma arca
para aviso de alguns aventureiros, que cuidão que todo o mato he
ouregãos, e não sabem que cá e lá más fadas ha.
Despois que dessa terra parti, como quem o fazia para o outro mundo,
mandei enforcar a quantas esperanças dera de comer até então, com pregão
público: _Por falsificadoras de moeda_. E desenganei esses pensamentos,
que por casa trazia, porque em mim não ficasse pedra sobre pedra. E assi
posto em estado, que me não via senão por entre lusco e fusco, as
derradeiras palavras que na nao disse, forão as de Scipião Africano:
_Ingrata patria, non possidebis ossa mea_. Porque quando cuido, que sem
peccado que me obrigasse a tres dias de Purgatorio, passei tres mil de
más linguas, peores tenções, damnadas vontades, nascidas de pura inveja,
de verem _su amada yedra de sí arrancada, y en otro muro asida_.... Da
qual tambem amizades mais brandas que cera, se accendião em odios que
disparavão lume que me deitava mais pingos na fama, que nos couros de
hum leitão. Então ajuntou-se a isto acharem-me sempre na pelle a virtude
de Achilles, que não podia ser cortado senão pelas solas dos pés; as
quaes de mas não verem nunca, me fez ver as de muitos, e não engeitar
conversações da mesma impressão, a quem fracos punhão mao nome, vingando
com a lingua o que não podião com o braço. Emfim, Senhor, eu não sei com
que me pague saber tão bem fugir a quantos laços nessa terra me armavão
os acontecimentos, como com me vir para esta, onde vivo mais venerado
que os touros de Merceana, e mais quieto que a cella de hum Frade
Prégador. Da terra vos sei dizer que he mãe de villões ruins, e madrasta
de homens honrados. Porque os que se cá lanção a buscar dinheiro, sempre
se sustentão sobre ágoa como bexigas; mas os que sua opinião deita á las
armas Mouriscote, como maré corpos mortos á praia, sabei que antes que
amadureção, se seccão. Ja estes que tomavão esta opinião de valentes ás
costas, crede que nunca riberas de Duero arriba cavalgaron Zamoranos,
que roncas de tal soberbia entre si fuesen hablando; e quando vem ao
effeito da obra, salvão-se com dizer que se não podem fazer tamanhas
duas cousas, como he, prometter e dar. Informado disto veio a esta terra
João Toscano, que, como se achava em algum magusto de rufiões,
verdadeiramente que alli era su comer las carnes crudas, su beber la
viva sangre. Callisto de Siqueira se veio cá mais humanamente, porque
assi o prometteo em huma tormenta grande em que se vio. Mas hum Manoel
Serrão, que, _sicut et nos_, manqueja de hum olho, se tẽe cá provado
arrezoadamente, porque fui tomado por juiz de certas palavras, de que
elle fez desdizer a hum Soldado, o qual pela postura de sua pessoa era
cá tido em boa conta. Se das damas da terra quereis novas, as quaes são
obrigatorias a huma carta, como marinheiros á festa de S. Frei Pero
Gonçalves, sabei que as Portuguezas todas cahem de maduras, que não ha
cabo que lhe tenha os pontos, se lhe quizerem lançar pedaço. Pois as que
a terra dá? além de serem de rala, fazei-me mercê que lhe falleis alguns
amores de Petrarca, ou de Boscão; respondem-vos huma linguagem meada de
hervilhaca, que trava na garganta do entendimento, a qual vos lança ágoa
na fervura da mor quentura do mundo. Ora julgae, Senhor, o que sentirá
hum estomago costumado a resistir ás falsidades de hum rostinho de
tauxia de huma Dama Lisbonense, que chia como pucarinho novo com ágoa,
vendo-se agora entre esta carne de salé, que nenhum amor dá de si. Como
não chorará las memorias de in illo tempore! Por amor de mi, que ás
mulheres dessa terra digais de minha parte que se querem absolutamente
ter alçada com baraço e pregão, que não receiem seis mezes de má vida
por esse mar, que eu as espero com procissão e palio, revestido em
pontifical, aonde est'outras Senhoras lhe irão entregar as chaves da
cidade, e reconhecerão toda a obediencia, a que por sua muita idade são
ja obrigadas. Por agora não mais, senão que este Soneto[3]
que aqui vai, que fiz á morte de Dom Antonio de Noronha, vos mando em
sinal de quanto della me pezou. Huma Ecloga fiz sobre a mesma materia, a
qual tambem trata alguma cousa da morte do Principe, que me parece
melhor que quantas fiz. Tambem vo-la mandára para a mostrardes lá a
Miguel Dias, que pela muita amizade de D. Antonio, folgaria de a ver;
mas a occupação de escrever muitas cartas para o Reino, me não deo
lugar. Tambem lá escrevo a Luis de Lemos em resposta d'outra que vi sua:
se lha não derem, saiba que he a culpa da viagem, na qual tudo se perde.
Vale.
[3] He o Soneto 12.
* * * * *

CARTA II.
Esta vai com a candeia na mão morrer nas de v. m.; e se dahi passar,
seja em cinza; porque não quero que do meu pouco comão muitos. E se
todavia quizer meter mais mãos na escudella, mande-lhe lavar o nome, e
valha sem cunhos.
La mar en medio y tierras, he dejado
Á cuanto bien cuitado yo tenia:
Cuan vano imaginar, cuan claro engaño
Es darme yo á entender que con partirme
De mí se ha de partir un mal tamaño!
Quão mal está no caso quem cuida que a mudança do lugar muda a dor do
sentimento! E senão, diga-o quien dijo que la ausencia causa olvido.
Porque emfim la tierra queda, e o mais a alma acompanha. Ao alvo destes
cuidados jogão meus pensamentos á barreira, tendo-me ja, pelo costume,
tão contente de triste, que triste me faria ser contente; porque o longo
uso dos annos se converte em natureza. Pois o que he para mor mal, tenho
eu para mor bem. Aindaque, para viver no mundo, me debruo d'outro panno,
por não parecer coruja entre pardaes, fazendo-me hum para ser outro,
sendo outro para ser hum; mas a dor dissimulada dara seu fruito; que a
tristeza no coração, he como a traça no panno.
E por tão triste me tenho,
Que se sentisse alegria,
De triste não viviria.
Porque a tal sorte vim,
Que não vejo bem algum
Em quanto vejo,
Que não nasceo para mim;
E por não sentir nenhum,
Nenhum desejo.
Porque cousas impossiveis, he melhor esquecê-las que deseja-las. E por isso
Só, tristeza, vos queria,
Pois minha ventura quer
Que só ella
Conheça por alegria;
E que se outra quizer,
Morra por ella.
Pouco sabe da tristeza quem (sem remedio para ella) diz ao triste que se
alegre. Pois não vê que alheios contentamentos a hum coração
descontente, não lhe remediando o que sente, lhe dóbrão o que padece.
Vós, se vem á mão, esperais de mim palavrinhas joeiradas, enforcadas de
bons propositos. Pois desenganae-vos, que desque professei tristeza,
nunca mais soube jogar a outro fito. E porque não digais, que não sou
gente fóra do meu bairro, vêdes, vai huma volta feita a este mote, que
escolhi na manada dos engeitados; e cuido que não he tão dedo queimado,
que não seja dos que ElRei mandou chamar; o qual falla assi:
Não quero, não quero
Jubão amarello.
Se de negro for,
Tão bem me parece,
Quanto me aborrece
Toda alegre côr:
Côr que mostra dor,
Quero, e não quero
Jubão amarello.
Parece-vos que se póde dizer mais? Não me respondais: Quem gabará a
noiva? porque assentae, que fui comendo e fazendo, ou assoprando, que
não he tão pequena habilidade. E porque vos não pareça, que foi mais
acertar, que querê-lo fazer; vêdes, vai outra do mesmo jaez, com tanto
que se não vá a pasmar.
Perdigão perdeo a penna,
Não ha mal, que lhe não venha.
Em hum mal outro começa,
Que nunca vem só nenhum;
E o triste que tẽe hum,
A soffrer outro se offreça;
E só pelo ter conheça,
Que basta hum só que tenha,
Para que outro lhe venha.
Que graça será esperardes de mim propositos em cousa que os não tẽe
para comigo? Pois ainda que queira, não posso o que quero; que hum sentido
remontado, de não pôr pé em ramo verde, tudo lhe succede assi; e cada
hum acode ao que lhe mais doe; e mais eu, que o que mais me entristece
he ter contentamento, pois fujo delle, que minha alma o aborrece, porque
lhe lembra que he virtude viver sem elle. Que ja sabeis que mágoa he,
vê-lo-has e não o paparás. Por fugir destes inconvenientes,
Toda a cousa descontente
Contentar-me só convinha
De meu gôsto:
Que o mal, de que sou doente,
Sua mais certa mézinha
He desgôsto.
Ja ouvirieis dizer: Mouro, o que não podes haver, dá-o pola tua alma. O
mal sem remedio, o mais certo que tẽe, he fazer da necessidade virtude:
quanto mais, se tudo tão pouco dura, como o passado prazer. Porque,
emfim, allegados son iguales los que viven por sus manos etc. A este
proposito, pouco mais ou menos, se fizerão humas voltas a hum mote
d'enchemão, que diz por sua arte zombando, mais que não de siso (que
toda a galantaria he tirá-la donde se não espera), o qual crede que tẽe
mais que roer do que hum praguento. Por tanto recuerde el alma adormida,
e mande escumar o entendimento, que d'outra maneira, de fuera
dormiredes, pastorcico. E o meu Senhor diz assi:
Dava-lhe o vento no chapeirão,
Quer lhe dê, quer não.
Bem o póde revolver,
Que o vento não traz mais fruito;
E mais vento he sentir muito
O que, emfim, fim ha de ter.
O melhor, he melhor ser,
Que o vento no chapeirão,
Quer lhe dê, quer não.
Huma cousa sabei de mim, que queria antes o bem do mal, que o mal do
bem; porque muito mais se sente o por vir, que o passado; e a morte até
matar, mata. Não sei se sereis marca de voar tão alto; porque para tomar
a palha a esta materia, são necessarias azas de Nebri. Mas vós sois
homem de prol, e desculpa-me a conta em que vos tenho. E a que de mi vos
sei dar he:
Que esperança me despede,
Tristeza não me fallece,
E tudo o mais me aborrece.
Ja que mais não mereceo
Minha estrella,
Só a tristeza conheço,
Pois que para mi nasceo,
E eu para ella.
No mundo não tẽe boa sorte, senão quem tẽe por boa a que tẽe. E
daqui me vem contentar-me de triste. Mas olhae de que maneira:
Vivo assi ao revés,
Tomando por certa vida
Certa morte,
Com que fólgo em que me pês;
Pois minha sorte he servida
De tal sorte.
Huma cousa sabei, que o mal, inda que ás vezes o vejais louvar, não ha
quem o louve com a boca, que o não tache com o coração.
Ajuda-me a soffrer
Vida tão sem soffrimento,
E tão sem vida,
Ver que, emfim, fim hão de ter
Desgôsto e contentamento
Sem medida.
Attentae que não são maos confeitos de enforcado, para os que estão com
o baraço na garganta, cuidar que o bem e o mal, aindaque sejão
differentes na vida, são conformes na morte; porque vemos
Que não ha tão alta sorte,
Nem ventura tão subida,
Ou desastrada,
A quem o assópro da morte
Não sopre o fogo da vida.
A seu fim todas cousas vão correndo;
Nem ha cousa, que o tempo não consuma,
Nem vida, que de si tanto presuma,
Que se não veja nada, em se vendo.
Que o mais certo que temos,
He não termos nada certo
Cá na terra.
Pois para seus não nascemos;
Se o seu nos dá incerto,
Nada erra.
Quero-vos dar conta de hum Soneto sem pernas, que se fez a hum certo
recontro que se teve com este destruidor de bons propositos, e não se
acabou, porque se teve por mal empregada a obra; cujo teor he o seguinte:
Forçou-me amor hum dia, que jogasse;
Deo as cartas, e az de ouros levantou;
E sem respeitar mão, logo triumphou,
Cuidando que o metal, que me enganasse.
Dizendo, pois triumphou, que triumphasse
A huma sota de ouros, que jogou,
Eu então por burlar quem me burlou,
Tres paos joguei, e disse que ganhasse.
Principes de condição, ainda que o sejão de sangue, são mais enfadonhos
que a pobreza: fazem com sua fidalguia, com que lhe cavemos fidalguias
de seus avós, onde não ha trigo tão joeirado, que não tenha alguma
hervilhaca. Ja sabeis que basta hum Frade ruim, para dar que fallar a
hum convento. Duas cousas não se soffrem sem discordia; companhia no
amar, mandar villão ruim sôbre cousa de seu interesse. Não se póde ter
paciencia com quem quer que lhe fação o que não faz. Desagradecimentos
de boas obras destruem a vontade para não fazê-las a amigo, que tẽe
mais conta com o interesse, que com a amizade: rezae delle, que he dos cá
nomeados.
Grande trabalho he querer fazer alegre rosto, quando o coração está
triste: panno he, que não toma nunca bem esta tinta; que a lua recebe a
claridade do sol, e o rosto do coração. Nada dá quem não dá honra no que
dá: não tẽe que agradecer, quem, no que recebe, a não recebe; porque
bem comprado vai o que com ella se compra. Não se dá de graça o que se
pede muito. Estai certo, que quem não tẽe huma vida, tẽe muitas. Onde
a razão se governa pela vontade, ha muito que praguejar, e pouco que
louvar. Nenhuma cousa homizia os homens tanto comsigo, como males de que
se não guardárão, podendo. Não ha alma sem corpo, que tantos corpos faça
sem almas, como este purgatorio, a que chamais honra: onde muitas vezes
os homens cuidão que a ganhão, ahi a perdem. Onde ha inveja, não ha
amizade; nem a póde haver em desigual conversação. Bem mereceo o engano,
quem creo mais o que lhe dizem, que o que vio. Agora ou se ha de viver
no mundo sem verdade, ou com verdade sem mundo. E para muito pontual,
perguntae-lhe donde vem: vereis que algo tiene en el cuerpo, que le
duele. Ora temperae-me lá esta gaita, que nem assi, nem assi achareis
meio real de descanso nesta vida; ella nos trata somente como alheios de
si, e com razão;
Pois somente nos he dada
Para que ganhemos nella
O que sabemos.
Se se gasta mal gastada,
Juntamente com perdella
Nos perdemos.
Enfim, esta minha senhora, sendo a cousa por que mais fazemos, he a mais
fraca alfaia de que nos servimos. E se queremos ver quão breve he,
Ponderemos e vejamos
Que ganhamos em viver
Os que nascemos:
Veremos, que não ganhamos,
Senão algum bem fazer,
Se o fazemos.
E por isso respeitando,
Que o por vir tal será,
Enthesouremos;
Porque ao certo não sabemos
Quando a morte pedirá
Que lhe paguemos.
Nunca vi cousa mais para lembrar, e menos lembrada, que a morte: sendo
mais aborrecida que a verdade, tẽe-se em menos conta que a virtude. Mas
com tudo, com seu pensamento, quando lhe vem á vontade, acarreta mil
pensamentos vãos; que tudo para com ella he hum lume de palhas. Nenhuma
cousa me enche tanto as medidas para com estes que vivem na mor bonança,
como ella; porque quando lhe menos lembra, então lhe arranca as amarras,
dando com os corpos á costa; e, se vem á mão, com as almas no inferno,
que he bem ruim gasalhado.
E pois todos isto temos,
Não nos engane a riqueza,
Por que tanto esmorecemos,
Traz que vamos;
Ja que temos por certeza
Que quando mais a queremos,
A deixamos.
Gastâmos em alcançá-la
A vida; e quando queremos
Usar della,
Nos tira a morte lográ-la:
Assi que a Deos perdemos,
E a ella.
Porque ja ouvirieis dizer: _Ninho feito, pêga morta_. Que me dizeis ao
contentamento do mundo, que toda a dura delle está emquanto se alcança?
Porque acabado de passar, acabado de esquecer. E com razão, porque
acabado de alcançar, he passado; e maior saudade deixa, do que he o
contentamento que deo. Esperae, por me fazer mercê, que lhe quero dar
humas palavrinhas de proposito.
Mundo, se te conhecemos,
Porque tanto desejamos
Teus enganos?
E se assi te queremos,
Mui sem causa nos queixamos
De teus danos.
Tu não enganas ninguem;
Pois a quem te desejar,
Vemos que danas:
Se te querem qual te vem,
Se se querem enganar,
Ninguem enganas.
Vejão-se os bens que tiverão
Os que mais em alcançar-te
Se esmerárão;
Que huns vivendo, não vivêrão,
E outros, só com deixar-te,
Descansárão.
Se esta tão clara fé
Te põe claros teus enganos,
Desengana:
Sobejamente mal vê,
Quem com tantos desenganos
Se engana.
Mas como tu sempre mores
No engano em que andamos,
E que vemos,
Não cremos o que tu podes,
Senão o que desejamos
E queremos.
Nada te póde estimar
Quem bem quizer conhecer-te
E estimar-te;
Qu'em te perder ou ganhar,
O mais seguro ganhar-te
He perder-te.
E quem em ti determina
Descanso poder achar,
Saiba que erra;
Que sendo a alma divina,
Não a póde descansar
Nada da terra.
Nascemos para morrer,
Morremos para ter vida,
Em ti morrendo:
O mais certo he merecer
Nós a vida conhecida,
Ca vivendo.
Emfim, mundo, es estalagem,
Em que pousão nossas vidas
De corrida:
De ti levão de passagem
Ser bem ou mal recebidas
Na outra vida.
Á fuera, á fuera Rodrigo, que eu se muito for por este caminho, darei em
enfadonho, de que me parece me não livrará, nem ainda privilegio de
Cidadão do Porto. E pois me vendo a vós, soffrei-me com meus encargos. E
porque não digais que sou herege de amor, e que lhe não sei orações,
vêdes, vai huma: _Di, Juan, de qué murió Blas?_ com hum pé á Portugueza,
e outro á Castelhana: e não vos espanteis da libré, que eu em qualquer
palmo desta materia perco o norte. E os supplicantes dizem assi:
Di, Juan, de que murió Blas,
Tan niño y tan mal logrado?
Gil, murió de desamado.
Dime, Juan, quien se engañó,
Que con amor se engañase,
Pensando que el bien hallase,
Adonde el mal cierto halló?
Despues que el engaño vió,
Que hizo desenganado?
Gil, murió de desamado.
Travou com elle pendença,
Em ter razão confiado;
Mas Amor, como he letrado,
Houve contr'elle a sentença:
E co'aquella differença,
Disse entre si o coitado:
Gil, morreo de desamado.
Quem tẽe razão tão cerrada,
Que não saiba, sendo rudo
E sem respeito,
Que sem Deos he tudo nada,
E nada com elle tudo
Sem defeito?
E sendo isto assi tão certo,
Como todos confessamos
E sabemos;
Não troquemos pelo incerto
O em que tão certo estamos,
Pois o vemos.
A tudo isto podeis responder, que todos morremos do mal de Phaeton,
porque del dicho al hecho, vá gran trecho. E de saber as cousas a passar
por ellas, ha mais differença, que de consolar a ser consolado. Mas assi
entrou o mundo, e assi ha de sahir: muitos a reprehendê-lo, e poucos a
emendá-lo. E com isto amaino, beijando essas poderosas mãos huma
quatrinqua de vezes, cuja vida e reverendissima pessoa nosso Senhor etc.
* * * * *
_O seguinte fragmento de uma composição satyrica em prosa e verso, em
que Luis de Camões descreve uns jogos de canas, com que na cidade de Goa
se festejou a successão de Francisco Barreto no governo daquelle Estado,
appareceo na 3.ª edição das suas Rimas, com as duas antecedentes cartas,
e em seguimento da ultima. O intento do poeta he mostrar por meio das
divisas que tirárão os Justadores, que todos elles erão ou sacerdotes de
Baccho, ou parvos, ou homens perdidos._
.....e hum que bebia excessivamente, tirou por divisa hum morcego; ave
em que foi convertida Alcithoe com as irmãas, por desprezarem os
sacrificios de Baccho. E como aquelle, que se em tal êrro cahisse, não
queria ser convertido em tão baixo animal e tão nojoso, dizia a sua
letra assi em Castelhano:
Si yo desobedeciere
Á tu deidad santa y pura,
En al mudes mi figura.
Alguns praguentos quizerão dizer que esta letra era maliciosa, e que não
queria dizer tanto desejar este galante de ser mudado em al, como que
desejava almudes deste licor. Mas he muito grande falsidade, que sendo a
letra assi feita, acaso acertou de sahir aquella palavra, com que
molhava as suas quem tirava a divisa. Do que o innocente Autor, despois
ficou para se enforcar. Mas outro galante, que de fino bebado ja passava
os limites do bom e costumado beber, tirou por divisa huma palmeira;
árvore, que entre os Antigos significava victoria; e ao pé della alguns
ramos de vides e de parreiras pizadas; e dizia a letra assi:
Ficae vencidas, sem gloria,
Vós vides e vós parreiras;
Porque os ramos das palmeiras
São os que tẽe a victoria.
Tambem aqui não faltárão praguentos, que quizerão dizer que este devoto,
deixando ja atraz Portugal, commettia com valeroso animo Orracas e
Fullas, tendo em pouco Caparicas e Seixaes. Mas quem ha que fuja de más
linguas, ou de mal costumadas gargantas?
Outro galante, a quem fazia mal ao estomago beber o vinho agoado, tirou
por divisa huma peça de chamalote sem ágoas, que apresentava Baccho; e
dizia a letra, como por parte do mesmo Baccho:
Sem ágoas, Senhor, levaio
Se for bom,
Que las aguas de Moncaio
Frias son.
Aqui não tiverão praguentos que dizer, por ser opinião de physica, serem
melhores os mantimentos simples, que os compostos.
Outro, que no beber lançava a barra inda mais além que os acima
escritos, tirou por divisa huma salamandra, passeando por cima de humas
brazas de fogo; e a letra dizia:
En el fuego vivo yo.
Mas o pintor errando as letras, acertou de pôr: _De fuego la bebo yo_.
Donde os praguentos quizerão adivinhar que este galante bebia Orraca de
fogo. O demonio foi fazer tal êrro, para delle sahir tamanho acêrto.
Outro devoto, que desque estava quente, dizia dos companheiros,
quaesquer que fossem, o que de cada hum sabía, sem respeito, tirou por
divisa hum demoninhado, lançando os olhos em alvo, escumando e apontando
com o dedo para hum frasco de vinho; e dizia a letra:
Se fallar demasiado,
Não mo tachem, porque, emfim,
Aquella alma falla em mim.
Sendo atéqui introduzidos os religiosos de Baccho, pedírão dous d'outra
religião que tambem os deixassem jogar as canas, e que elles tirarião
tal divisa, com que se tirasse a limpo sua habilidade; e sendo entrados
ambos juntos, por certa conformidade que havia entre ambos, trouxerão
pintados nas bandeiras cada hum seu par de pombas; e dizia a letra:
Se como vós ha hi par,
Vós o podereis julgar.
Certo, que atéqui chegou a malicia dos homens, porque tão subtilmente
quizerão interpretar a innocencia desta letra, que tomárão a derradeira
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