Obras Completas de Luis de Camões, Tomo III - 13

Total number of words is 3579
Total number of unique words is 1136
33.6 of words are in the 2000 most common words
46.4 of words are in the 5000 most common words
52.1 of words are in the 8000 most common words
Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
Tão transtornada me tem.

SCENA IV.
_Amphitrião, Alcmena e Sosea._
AMPHITRIÃO.
Com que palavras, Senhora,
Poderei engrandecer
Tão sublimado prazer,
Como he ver chegada a hora,
Em que vos pudesse ver?
Certo grão contentamento
Tive de meu vencimento;
Mas maior o hei de mim,
De me ver pôsto no fim
De tão longo apartamento.
ALCMENA.
Ja eu disse o que sentia
De vinda tão desejada.
Mas diga-me todavia:
Como não foi ver a Armada,
Que me disse hoje este dia?
AMPHITRIÃO.
Della venho eu inda agora
Desejoso de vos ver,
Muito mais que de vencer.
Mas que me dizeis, Senhora,
Que hoje me ouvistes dizer?
ALCMENA.
Se não estava remota,
Certamente que lhe ouvi,
Quando hoje partio daqui,
Que tornava a ver a frota.
Porque era forçado assi.
AMPHITRIÃO.
Sósea.
SOSEA.
Señor, aqui estoy yo.
AMPHITRIÃO.
Tu ouves tal desconcêrto?
SOSEA.
Grandes orejas ganó,
Pues estando en casa oyó
Quien estava allá nel puerto!
AMPHITRIÃO.
Quando dizeis, que m'ouvistes?
ALCMENA.
Hoje, quando vos partistes.
AMPHITRIÃO.
Donde?
ALCMENA.
Daqui, de me ver.
AMPHITRIÃO.
Nunca vi grande prazer,
Que não tenha os cabos tristes.
Quantos males d'improviso
Que causão grandes mudanças!
Que mulher de tanto aviso,
Agora minhas lembranças
A tẽe fóra de juizo!
ALCMENA.
Quereis-me fazer cuidar
Que poderia sonhar
O que pelos olhos vi?
Nunca vos eu mereci
Quererdes-me exprimentar.
AMPHITRIÃO.
Postoque he para pasmar
Ver hum caso tão estranho,
Todavia hei de attentar,
Se poderei concertar
Hum desconcêrto tamanho.
Quando dizeis que vim cá?
ALCMENA.
Esta noite que passou.
AMPHITRIÃO.
Dae-me alguem que aqui se achou,
Que me visse.
ALCMENA.
Esse que hi está,
Sósea que comvosco andou.
AMPHITRIÃO.
Sósea, podes-te lembrar,
Que hontem me vistes aqui?
SOSEA.
Nunca yo supe de mí
Que me pudiese acordar
De aquello que nunca vi.
ALCMENA.
Ora eu creo, e he assi,
Que ambos vindes conjurados,
Para zombardes de mi;
Mas eu darei hoje aqui
Sinaes que sejão provados.
AMPHITRIÃO.
Que sinaes póde ahi haver
De mentira tão notoria,
Que nem foi, nem póde ser?
ALCMENA.
Donde vim eu a saber
Novas de vossa victoria?
AMPHITRIÃO.
Que novas?
ALCMENA.
Dir-vo-las-hei,
Assi como mas contastes:
Que na batalha matastes
Aquelle soberbo Rei,
E tudo desbaratastes:
Não fazendo resistencia
N'huma batalha tão crua,
Dando-vos obediencia,
Vos derão huma copa sua,
Lavrada por excellencia.
AMPHITRIÃO.
Sósea he culpado só
Nestes acontecimentos.
SOSEA.
Señor, son encantamientos,
Porque aquel hombre, que es yo,
Le contaria estos cuentos.
AMPHITRIÃO.
Quem he esse, que vos deu
Taes novas, saber queria?
ALCMENA.
Quem mo pergunta.
AMPHITRIÃO.
Quem? Eu!
Quereis-me fazer sandeu?
ALCMENA.
Mas vós me fazeis sandia.
AMPHITRIÃO.
Ora quero perguntar:
Que fiz sendo aqui chegado?
ALCMENA.
Puzemos-nos a cear.
AMPHITRIÃO.
E despois de ter ceado?
ALCMENA.
Fomos-nos ambos deitar.
AMPHITRIÃO.
Nunca queira Deos que possa
Achar-se na minha honra
Nenhuma falta nem mossa:
Seja isto doudice vossa,
Antes que minha deshonra.
SOSEA.
Bien lo supe yo entender,
Que era esto encantaciones;
Y ahora me habrá de crer
Que dos Sóseas puede haber,
Pues hay dos Amphitriones.
ALCMENA.
Com me quererdes tentar
Tão torvada me fizestes,
Que me não pôde lembrar
Que vos mandasse mostrar
A copa que me hontem déstes.
AMPHITRIÃO.
Eu? copa? Se isso ahi ha,
Que estou doudo cuidarei.
SOSEA.
Señor, bien guardada está.
ALCMENA.
Bromia?
BROMIA, _de dentro_.
Senhora.
ALCMENA.
Dae cá
A copa que hontem vos dei.
SOSEA.
Pues yo parí otro yo,
Y vós otro Amphitrion,
No es mucha admiracion,
Si la copa otra parió,
Ni aun fuera de razon.

SCENA V.
_Amphitrião, Alcmena, Sosea e Bromia._
BROMIA.
Eis-aqui a copa vem,
Testimunho da verdade.
AMPHITRIÃO.
Oh estranha novidade!
ALCMENA.
Poder-me-ha dizer alguem
Que o que digo he falsidade?
AMPHITRIÃO.
Sósea, quando hontem cá vinhas,
Poder-me-has negar, ladrão,
Que lhe déste as novas minhas,
E mais a copa que tinhas
Guardada na tua mão?
SOSEA.
Señor, que no pude, no,
Ver á mi Señora Alcmena:
Si aquel eso acá ordenó,
No lleve este yo la pena
Del mal que hizo el otro yo.
AMPHITRIÃO.
Ora eu não sei entender
Tal caso, nem lhe acho fundo:
Com tudo venho a dizer,
Que ha tantos males no mundo,
Que tudo se póde crer.
Se vos trouxer quem vos diga
Como esta noite dormi
Na nao, crereis que he assi?
ALCMENA.
Nenhuma cousa me obriga
A que não creia o que vi.
AMPHITRIÃO.
Se o Patrão aqui vier,
Que he homem d'autoridade,
Crereis o que vos disser?
ALCMENA.
Sim, que ninguem póde haver
Que me negue esta verdade.
AMPHITRIÃO.
Eu estou em concrusão
D'hoje desembaraçar
Tão enleada questão:
Á nao me quero tornar
A trazer cá Belferrão.
Sósea, até minha tornada
Fica nesta casa em vela;
Qu'eu armarei tal cilada
A quem ma a mim tẽe armada,
Que venha hoje a cahir nella.

SCENA VI.
_Alcmena e Bromia._
ALCMENA.
Oh mulher triste e suspensa
Da mais alta confusão
Que nunca vio coração!
Em que mereces a offensa,
Que te faz Amphitrião?
Sempre de mi foi amado,
Tanto quanto em mi se sente,
Co'o coração tão liado,
Que se de mi era ausente,
Nelle o via figurado.
E pois mulher, que cumprisse
Melhor qu'eu fidelidade,
Não a vi, nem quem me visse
Que dos limites sahisse
Hum pouco da honestidade.
Pois porque he tão maltratada
Innocencia tão singella?
Que a pena mais apertada,
He a culpa levantada
Ao coração livre della.
Mas ja que minh'alma está
Sem culpa do que padeço,
Seja o que for; qu'eu conheço
Que a verdade me porá
No qu'eu pola ter mereço.
Bromia?
BROMIA.
Senhora.
ALCMENA.
Hi mandar
A Feliseo, que vá
Meu primo Aurelio chamar;
Que lhe quero perguntar
Que conselho me dará.
E pois que Amphitrião
Vai buscar somente quem
Lhe ajude a sua tenção,
Quero eu ter aqui tambem
Quem me defenda a razão.


ACTO QUARTO.

SCENA I.
_Jupiter, Alcmena e Sosea._
JUPITER.
Grão desconcêrto tẽe feito
Amphitrião com Alcmena!
Qualquer delles tẽe direito:
Eu sou o que venço o preito,
E ambos págão a pena.
Quero-me ir lá desfazer
Tão trabalhosa demanda,
Por nos tornarmos a ver;
Porque, emfim, quem muito quer
Com qualquer desculpa abranda.
E pois ja que a affeição
Ha de mudar tão asinha,
Quero ir alcançar perdão
Da culpa, que sendo minha,
Parece d'Amphitrião.
ALCMENA.
Parece que torna cá
Amphitrião, que ja se hia:
Não sei a que tornará.
Senão se lhe peza ja
Dos enganos que tecia.
JUPITER.
Senhora, não haja error
Que tantos males me faça,
Porque se o contrário for,
Pequeno será o amor,
Que manencória desfaça.
E pois com tanta alegria
De tantos perigos vim,
Pezar-me-ha se achar no fim,
Que huma leve zombaria
Vos possa aggravar de mim.
ALCMENA.
Com palavras de deshonra
Não se ha de tratar quem ama;
Nem zombaria se chama,
Por exprimentar a honra,
Pôr em tal perigo a fama.
Bem tive eu para mim,
Que era aquillo experiencia.
JUPITER.
Errei no que commetti:
Bem me basta a penitencia
De quanto me arrependi.
E se fiz algum error,
Com que vosso amor se mude
De quem vo-lo tẽe maior;
Não exprimentei virtude,
Mas exprimentei amor.
Que se com caso tão vário
Folguei de vos agastar,
Foi amor accrescentar;
Porque ás vezes hum contrário
Faz seu contrário avisar.
Daqui vem, que a leve mágoa
Firmeza e affeições augmenta,
Como bem se vê na frágoa,
Onde o fogo se accrescenta,
Borrifando-o com pouca ágoa.
Se hum mal grande se alevanta
N'hum coração que maltrata,
A affeição se desbarata;
Porque onde a ágoa he tanta
O fogo d'amor se mata.
E pois tive tal tenção,
Perdoae, Senhora, a culpa
Deste vosso coração.
ALCMENA.
Não se alcança assi perdão
D'erro que não tẽe desculpa.
JUPITER.
Ora pois assi tratais
Quem em tanto risco pôs
O amor que vós negais,
Eu m'ausentarei de vós
Onde mais me não vejais.
Que, pois desculpa não tem
Coração que tanto quer,
Vou-me; que não será bem
Que quem vós não podeis ver,
Que possa mais ver ninguem.
Se algum'hora meu cuidado
Vos der dor, em que pequena;
Peço-vos, pois fui culpado,
Que vos não peze da pena
De quem vos foi tão pezado.
E despois que a desventura
Puzer este coração
Debaixo da sepultura,
As letras na pedra dura
Vossa dureza dirão.
Isto vos hei de dizer,
Que m'ensinou minha dor:
Se quizerdes leda ser,
Nunca exprimenteis amor
Em quem vo-lo não tiver.
Deixae-me ir; não me tenhais.
ALCMENA.
Amphitrião, não choreis!
Amphitrião!
JUPITER.
Que quereis,
Ou para que nomeais
Homem, que ver não podeis?
ALCMENA.
Amphitrião, s'eu causei
Com manencória pequena
Cousa, com que o magoei;
Eu quero cahir na pena
Dessa culpa que lhe dei.
JUPITER.
Sempre serei magoado
Se vossa má condição
Me não perdôa o passado.
ALCMENA.
Perdôo, e peço perdão
De lhe não ter perdoado.
SOSEA.
No le perdone, Señora,
Hasta que con devocion
Tambien me pida perdon;
Que bien se me acuerda ahora
Que me ha llamado ladron.
JUPITER.
Sósea?
SOSEA.
Señor.
JUPITER.
Vae buscar
O Piloto Belferrão;
Dir-lhe-has, se desembarcar,
Que me parece razão
Que venha hoje cá cear.
SOSEA.
Si, Señor, voy á la hora.
JUPITER.
De nenhuma qualidade
Cure de fazer demora.
E nós vamos-nos, Senhora,
Confirmar nossa amizade.

SCENA II.
MERCURIO.
Grandes revoltas vão lá.
Grandes acontecimentos!
Cumpre-me que esteja cá,
Em quanto meu pae está
Em seus desenfadamentos.
Porque vi Amphitrião
Vir da nao mui apressado;
E tendo corrido e andado,
Não pôde achar Belferrão,
Que lhe era bem escusado.
Parece-me que virá
Ver se lhe abre aqui alguem;
Mas, porém, se chega cá,
Ja póde ser que se vá
Mais confuso do que vem.

SCENA III.
_Mercurio e Amphitrião._
AMPHITRIÃO.
Quiz-nos nossa natureza
Com tal condição fazer,
Que ja temos por certeza
Não haver grande prazer,
Sem mistura de tristeza.
Este decreto espantoso,
Que instituio nossa sorte,
He tal e tão rigoroso,
Que ninguem antes da morte
Se póde chamar ditoso.
Com esta justa balança
O Fado grande e profundo
Nos refreia a esperança,
Porque ninguem neste mundo
Busque bem-aventurança.
Eu, que cuidei de viver
Sempre contente de mi
Com tamanho Rei vencer,
Venho achar minha mulher
De todo fóra de si.
Mas d'outra parte, que digo?
Que s'he verdade o que vi,
E o que ella diz he assi;
Virei a cuidar comigo
Qu'eu sou o fóra de mi.
Quero ver se a acho ja
Fóra de tão seccos nós.
Ó de casa?
MERCURIO.
O de allá?
Quien sois?
AMPHITRIÃO.
Abre.
MERCURIO.
Santo Dios!
Pues no os conocen acá.
AMPHITRIÃO.
Oh que gentil desvario!
Abri-me ora se quizerdes.
MERCURIO.
No haré, que en mí confio
Que de fuera dormiredes,
Que no comigo, amor mio.
(Que cancion para oir!)
AMPHITRIÃO.
Ah Sósea! zombas de mi?
(Ora quero-me fingir
Que ainda o não conheci,
Por ver se me quer abrir)
Ah Senhor, não abrireis?
MERCURIO.
Qué quereis, hombre, por Dios?
AMPHITRIÃO.
Duas palavras de vós.
MERCURIO.
Tengo dicho mas de seis,
E ahora me pedis dos?
De fuera podeis dormir,
Que entrar no podeis acá.
AMPHITRIÃO.
Ora acabae, abri lá.
MERCURIO.
Digo que no quiero abrir:
Dije dos palabras ya.
AMPHITRIÃO.
Ora sus, bargante, abri.
MERCURIO.
Si no te vuelves de aqui,
Á gran peligro te ofreces.
AMPHITRIÃO.
Velhaco, não me conheces.
Ou estás fóra de ti?
MERCURIO.
Bonito venis, amor.
Quien sois, que hablais tan osado?
AMPHITRIÃO.
Abre, que sou teu Senhor.
MERCURIO.
Vuélvase de esotro lado,
Y conocerlehé mejor.
AMPHITRIÃO.
Sósea moço.
MERCURIO.
Así me llamo,
Huélgome que lo sepais;
Empero digo que os vais,
Que Amphitrion es mi amo;
Vos id buscar quien seais.
AMPHITRIÃO.
Pois quero saber de ti:
Eu quem sou?
MERCURIO.
Y quien sois vós?
Como os llaman?
AMPHITRIÃO.
Abri.
MERCURIO.
Á vos os llaman Abri?
Pues, Abri, andad con Dios.
AMPHITRIÃO.
Quem ha, que possa soffrer
Em sua honra tal destrôço,
Que para me endoudecer
Me tẽe negado a mulher,
E agora me nega o moço?
MERCURIO.
Mira el encantador
Como se lastima y llora,
Y fuese tomar ahora
La forma de mi Señor,
Para engañar mi Señora.
Pues esperad, y no os vais,
Por un espacio pequeño;
Verná quien representais,
Y él os hará que volvais
El falso gesto á su dueño.
AMPHITRIÃO.
Vae, velhaco, e chama cá
Esse falso feiticeiro;
Que se elle lá dentro está,
Esta espada julgará
Qual de nós he o verdadeiro.

SCENA IV.
_Amphitrião, Sosea e Belferrão._
BELFERRÃO.
Ora ninguem presumíra
Que tinhas tão pouco siso;
Pois vás achar d'improviso
Tão bem forjada mentíra,
Que me faz cahir de riso.
Hum moço, que alevantou
Tal graça, nunca nasceo:
Porque vos jura que achou
Que ou elle em dous se perdeo,
Ou de hum dous se tornou.
SOSEA.
Patron, que no burlo, no:
En uno son dos unidos,
Y en dos cuerpos repartidos;
Yo soy él, y él es yo,
De un padre y madre nacidos.
BELFERRÃO.
Esse tu que lá estás,
Tão velhaco he como ti?
SOSEA.
Mas aun pienso que es mas:
Por delante y por detrás
Todo se parece á mí.
Y fue gran merced de Dios
Ayuntar á mí mas uno,
Que peor fuera de nos,
Si Dios me hiciera ninguno,
Que no de uno hacer dos.
BELFERRÃO.
Assi que, se te perdeste
Vieste a cobrar mais hum:
Mui gentil conta fizeste,
Pois que perdido soubeste
Que eras dous, sendo nenhum.
SOSEA.
Pues teneis por abusion
Verdad tan clara, y tan rasa,
Aunque pone admiracion;
Quiera Dios, que allá en casa
No halleis otro Patron.
AMPHITRIÃO.
O Patrão, que fui buscar,
Parece que vejo vir:
Não sei quem o foi chamar;
Mas que me ha de aproveitar
Se me não querem abrir?
Ah Belferrão!
BELFERRÃO.
Ah Senhor!
Ja sinto que fui culpado;
Porque quem he convidado,
Se tão vagaroso for,
Merece não ser chamado.
AMPHITRIÃO.
A vós quem vos convidou?
BELFERRÃO.
Sósea, por mandado seu.
AMPHITRIÃO.
Disso, Patrão, não sei eu;
Que Sósea ja me negou,
E ja se não dá por meu.
E se alguem vos foi dizer
Qu'eu vos chamo á minha mesa;
Mal vos dara de comer
Quem de todo lhe he defesa
A casa, e mais a mulher.
BELFERRÃO.
Quem he esse tão ousado,
Que vos isso faz, Senhor?
AMPHITRIÃO.
Sósea, creio que enganado
Por algum encantador,
Que a honra me tẽe roubado.
BELFERRÃO.
Se elle aqui comigo vem,
Isso como póde ser?
AMPHITRIÃO.
Ah! que a íra que vou ter,
Tão cega a vista me tem,
Que mo não deixava ver.
Porque razão, cavalleiro,
Não me abris quando vos mando?
Vós fazeis-vos chocarreiro?
SOSEA.
Yo Señor? y como? y cuando?
AMPHITRIÃO.
Quereis-lo saber primeiro?
Esperae, dir-se-vos-ha,
Mas será por outro son.
SOSEA.
Ah Señor Amphitrion,
Porque matándome está,
Sin delito, y sin razon?
AMPHITRIÃO.
Agora que vos eu dou
Me chamais Amphitrião,
E para me abrirdes não?
BELFERRÃO.
Este moço em que peccou?
Porque pena sem razão?
Não mais por amor de mi.
AMPHITRIÃO.
Não, que não sou seu Senhor;
Eu sou hum encantador.
Não o dizeis vós assi,
Ladrão, perro, enganador?
SOSEA.
Porque fuy presto á llamar
Por su mandado al Patron,
Me quiere ahora matar?
AMPHITRIÃO.
Quem vo-lo mandou buscar?
SOSEA.
Si no hay otro Amphitrion,
Vuestra merced sin dudar.
AMPHITRIÃO.
Eu te mandei?
SOSEA.
Si Señor,
Si otro no.
AMPHITRIÃO.
Outro ha aqui,
Por quem tu zombes de mi?
Pois só desse encantador
Me quero vingar em ti.
SOSEA.
Oh Júpiter, á quien bramo
Por su bondad que me vala!
Pues porque Sósea me llamo,
Yo mismo, y despues mi amo,
Me dieron venida mala!


ACTO QUINTO.

SCENA I.
_Jupiter, Belferrão, Sosea e Amphitrião._
JUPITER.
Quem he o tão atrevido,
Que aqui ousa de fazer
Tão revoltoso arruido
Com meus moços, sem temer,
Que fui sempre tão temido?
Quem aqui faz união,
Toma mui grande despejo.
BELFERRÃO.
Oh grande admiração!
Vejo eu outro Amphitrião,
Ou he sonho isto que vejo?
SOSEA.
No mirais la encantacion,
Que aquel hizo á mi Señor?
El que sale, Belferron,
Es el cierto Amphitrion,
Que estotro es encantador.
JUPITER.
Sósea?
SOSEA.
Mi Señor, ya vó.
JUPITER.
Patrão, só por vós espero.
SOSEA.
No os lo dicia yo,
Que este era el verdadero,
Y esse que allá queda, no?
AMPHITRIÃO.
Bargante, aonde te vás?
Fazes teu Senhor sandeu?
Pois espera, e levarás.
JUPITER.
Ó lá, tornae por detrás,
Não deis no moço, que he meu.
AMPHITRIÃO.
Vosso?
JUPITER.
Meu.
AMPHITRIÃO.
Póde isto haver,
Que outrem minhas cousas tome?
Vós galante haveis de ser,
O que me tomais o nome,
Casa, moços e mulher.
Eu vos farei conhecer
Com quem tendes esse trato.
JUPITER.
Sósea?
SOSEA.
Señor.
JUPITER.
Vae dizer,
Que apparelhem de comer,
Em quanto este doudo mato.
BELFERRÃO.
Oh Senhor, não seja assim,
Haja em vós concêrto algum!
E senão, pois aqui vim,
Farei que só tome em mim
Os golpes de cada hum.
JUPITER.
Patrão, vossa boa estrella
Me fara deixar com vida
Quem me não merece tella.
AMPHITRIÃO.
Não a tenho eu merecida,
Pois que vos deixo com ella.
BELFERRÃO.
O homem que for sisudo,
N'huma tão grande questão
Ha de tomar por escudo
A justiça, e a razão;
Que estas armas vencem tudo.
E pois essa natureza
Muitos homens faz iguais,
Dê qualquer de vós signais
De quem he, para certeza
Da fórma que ambos mostrais.
JUPITER.
Sou contente de mostrar
Polos sinaes que vos dou,
Que são estes sem faltar.
AMPHITRIÃO.
Que sinaes podeis vós dar,
Para que sejais quem sou?
JUPITER.
Estes, que logo vereis
Se são vãos, se de raiz.
Patrão, vós sêde juiz,
Que vós logo enxergareis
Qual mais verdade vos diz.
BELFERRÃO.
Eu não sinto onde consista
A cura desta doença,
Que ha tão pouca differença,
Que aquelle em que ponho a vista,
Por esse dou a sentença.
Mas, Senhor, vós que ordenastes
Que o juiz disto fosse eu,
Quando se a batalha deu,
Dizei, que m'encommendastes
Que ficasse a cargo meu?
JUPITER.

Dei-vos cargo, qu'estivesse
Toda a Armada a bom recado,
E, se mal nos succedesse,
Que para os vivos houvesse
O refugio apparelhado.
BELFERRÃO.
Ora vós quantos dobrões
Esse dia m'entregastes?
AMPHITRIÃO.
Tres mil; e vós os contastes.
BELFERRÃO.
Ambos sois Amphitriões
Pelos sinaes que mostrastes.
JUPITER.
Para ser mais conhecida
A tenção deste sandeu,
Vêde est'outro sinal meu,
Que he neste braço a ferida
Que me ElRei Terela deu.
BELFERRÃO.
Mostrae vós, Senhor, tambem.
AMPHITRIÃO.
Aqui o podeis olhar.
BELFERRÃO.
Oh cousa para espantar!
Que ambos a ferida tem
D'hum tamanho, em hum lugar!

SCENA II.
_Jupiter, Amphitrião e Sosea._
SOSEA.
Dice mi Señora Alcmena
Que no se ha de así de estar
Con un bobo á razonar,
Que se le enfria la cena.
JUPITER.
Belferrão, vamos cear.
AMPHITRIÃO.
Belferrão, não me deixeis.
Como? tambem me negais?
JUPITER.
Andae, não vos detenhais,
Vamos comer, se quereis,
Não ouçais hum doudo mais.
AMPHITRIÃO.
Ah maos! assi me ordenais
Offensa tão mal olhada?
Eu farei, se m'esperais,
Com que todos conheçais
Os fios da minha espada.
JUPITER.
As portas prestes fechemos,
Não entre este doudo cá.
SOSEA.
De fuera se dormirá:
Entre tanto que cenemos,
Puede pasearse allá.

SCENA III.
AMPHITRIÃO _só_.
Oh ira para não crer,
Em que minh'alma se abraza,
Que me faz endoudecer,
E não me ajuda a romper
As paredes desta casa!
E porque? Não tenho eu
Forças, que tudo destrua?
Pois que tanto a salvo seu,
Outrem acho que possua
A melhor parte do meu;
Eu irei hoje buscar
Quem me ajude a vir queimar
Toda esta casa sem pena,
Donde veja arder Alcmena,
Com quem a vejo enganar.

SCENA IV.
_Aurelio e Moço._
AURELIO.
No hallo á mis males culpa,
Para que merezca pena
La causa que me condena.
MOÇO.
Essa está gentil desculpa
Para hoje dar a Alcmena!
Tẽe-no mandado chamar,
E elle está tão descuidado!
AURELIO.
Moço, queres-me matar?
Que desculpa posso eu dar
Melhor qu'este meu cuidado?
MOÇO.
E não ha mais que fazer?
Com isso a boca me tapa
Para mais nada dizer?
AURELIO.
Ora dá-me cá essa capa
E vamos ver o que quer:
Não trates de mais razão,
Pois não ha quem te resista.
Que vejo? outra novação!
MOÇO.
Que he?
AURELIO.
Ou me mente a vista,
Ou eu vejo Amphitrião.
MOÇO.
Eu ouvi a Feliseo,
Quando cá trouxe o recado,
Como elle era chegado,
E quiz-me dizer que veo
Do siso desconcertado.
AURELIO.
Isso quero eu ir saber,
Pois que tal cousa se sôa.

SCENA V.
_Aurelio e Amphitrião._
AURELIO.
Senhor, póde-se dizer
Que a vinda seja mui boa?
AMPHITRIÃO.
Essa não póde ella ser.
AURELIO.
Porque não?
AMPHITRIÃO.
Porque he roubada
Minha honra sem temor,
E minha casa tomada,
E vossa Prima enganada
Por hum grande encantador.
AURELIO.
Isso he certo?
AMPHITRIÃO.
E manifesto:
E tudo tẽe ja por seu
Adúltero e deshonesto:
Tẽe-me tomado o meu gesto,
E faz-lhe crer que sou eu.
AURELIO.
Contais hum caso d'espanto!
E pois não podeis entrar,
Defendei-me por em tanto,
Que eu hei lá de chegar
Para ver quem póde tanto,

SCENA VI.
AMPHITRIÃO _só_.
Se ver deshonra tão clara
Me não tivera o sentido
Totalmente endoudecido,
Que gravemente chorára
Ver tão grande amor perdido!
E quando vejo a verdade
Do nosso amor e amizade
Desfeita com tanta mágoa
Enchem-se-me os olhos d'ágoa,
E a alma de saudade.
Assi que quiz minha estrella,
Para nunca ser contente,
Que agora, estando presente
Viva mais saudoso della,
Que quando della era ausente.
Esta porta vejo abrir
Com impeto demasiado,
Que poderei presumir,
Que vejo Aurelio sahir,
Como homem desatinado?

SCENA VII.
_Amphitrião, Aurelio, Belferrão e Sosea._
AURELIO.
Oh estranha novidade!
Oh cousa para não crer!
BELFERRÃO.
Venho cego de verdade,
Que não puderão soffrer
Meus olhos a claridade.
SOSEA.
Oh triste, que vengo ciego
You have read 1 text from Portuguese literature.
Next - Obras Completas de Luis de Camões, Tomo III - 14
  • Parts
  • Obras Completas de Luis de Camões, Tomo III - 01
    Total number of words is 3859
    Total number of unique words is 1439
    35.2 of words are in the 2000 most common words
    49.7 of words are in the 5000 most common words
    56.2 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Obras Completas de Luis de Camões, Tomo III - 02
    Total number of words is 3880
    Total number of unique words is 1310
    35.3 of words are in the 2000 most common words
    47.9 of words are in the 5000 most common words
    53.8 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Obras Completas de Luis de Camões, Tomo III - 03
    Total number of words is 3737
    Total number of unique words is 1248
    33.4 of words are in the 2000 most common words
    46.1 of words are in the 5000 most common words
    52.8 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Obras Completas de Luis de Camões, Tomo III - 04
    Total number of words is 3775
    Total number of unique words is 1176
    34.5 of words are in the 2000 most common words
    46.3 of words are in the 5000 most common words
    52.2 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Obras Completas de Luis de Camões, Tomo III - 05
    Total number of words is 3791
    Total number of unique words is 1216
    35.3 of words are in the 2000 most common words
    48.6 of words are in the 5000 most common words
    55.4 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Obras Completas de Luis de Camões, Tomo III - 06
    Total number of words is 3981
    Total number of unique words is 1601
    31.0 of words are in the 2000 most common words
    45.7 of words are in the 5000 most common words
    53.0 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Obras Completas de Luis de Camões, Tomo III - 07
    Total number of words is 4087
    Total number of unique words is 1559
    32.6 of words are in the 2000 most common words
    47.3 of words are in the 5000 most common words
    55.9 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Obras Completas de Luis de Camões, Tomo III - 08
    Total number of words is 4185
    Total number of unique words is 1627
    32.6 of words are in the 2000 most common words
    46.9 of words are in the 5000 most common words
    53.2 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Obras Completas de Luis de Camões, Tomo III - 09
    Total number of words is 4206
    Total number of unique words is 1556
    35.5 of words are in the 2000 most common words
    51.3 of words are in the 5000 most common words
    58.2 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Obras Completas de Luis de Camões, Tomo III - 10
    Total number of words is 4150
    Total number of unique words is 1316
    36.2 of words are in the 2000 most common words
    49.9 of words are in the 5000 most common words
    55.4 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Obras Completas de Luis de Camões, Tomo III - 11
    Total number of words is 3700
    Total number of unique words is 1341
    32.8 of words are in the 2000 most common words
    43.0 of words are in the 5000 most common words
    49.2 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Obras Completas de Luis de Camões, Tomo III - 12
    Total number of words is 3686
    Total number of unique words is 1266
    28.0 of words are in the 2000 most common words
    37.8 of words are in the 5000 most common words
    42.4 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Obras Completas de Luis de Camões, Tomo III - 13
    Total number of words is 3579
    Total number of unique words is 1136
    33.6 of words are in the 2000 most common words
    46.4 of words are in the 5000 most common words
    52.1 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Obras Completas de Luis de Camões, Tomo III - 14
    Total number of words is 4072
    Total number of unique words is 1377
    34.6 of words are in the 2000 most common words
    49.4 of words are in the 5000 most common words
    55.2 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Obras Completas de Luis de Camões, Tomo III - 15
    Total number of words is 3761
    Total number of unique words is 1254
    34.7 of words are in the 2000 most common words
    47.8 of words are in the 5000 most common words
    54.5 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Obras Completas de Luis de Camões, Tomo III - 16
    Total number of words is 3980
    Total number of unique words is 1399
    30.7 of words are in the 2000 most common words
    42.2 of words are in the 5000 most common words
    48.5 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Obras Completas de Luis de Camões, Tomo III - 17
    Total number of words is 4708
    Total number of unique words is 1557
    34.6 of words are in the 2000 most common words
    47.6 of words are in the 5000 most common words
    54.4 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Obras Completas de Luis de Camões, Tomo III - 18
    Total number of words is 274
    Total number of unique words is 174
    59.7 of words are in the 2000 most common words
    72.2 of words are in the 5000 most common words
    77.2 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.