Obras Completas de Luis de Camões, Tomo III - 05

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E colhia enganos;
Não vi, em meus anos,
Homem que apanhasse
O que semeasse.
Vi terra florída
De lindos abrolhos,
Lindos para os olhos,
Duros para a vida.
Mas a rez perdida,
Que tal herva pasce,
Em forte hora nasce.
Com quanto perdi,
Trabalhava em vão:
Se semeei grão,
Grande dor colhi.
Amor nunca vi
Que muito durasse,
Que não magoasse.
* * * * *

ALHEIO.
Se me levão ágoas,
Nos olhos as levo.
_Voltas._
Se de saudade
Morrerei ou não,
Meus olhos dirão
De mi a verdade.
Por elles me atrevo
A lançar as ágoas,
Que mostrem as mágoas
Que nesta alma levo.
As ágoas, qu'em vão
Me fazem chorar,
Se ellas são do mar,
Estas de amar são.
Por ellas relévo
Todas minhas mágoas;
Que se fôrça d'ágoas
Me leva, eu as levo.
Todas me entristecem,
Todas são salgadas;
Porém as choradas
Doces me parecem.
Correi, doces ágoas,
Que se em vós m'enlévo,
Não doem as mágoas,
Que no peito levo.
* * * * *

ALHEIO.
Menina dos olhos verdes,
Porque me não vedes?
_Voltas._
Elles verdes são,
E tẽe por usança
Na côr esperança,
E nas obras não.
Vossa condição
Não he d'olhos verdes,
Porque me não vêdes.
Isenções a mólhos
Qu'elles dizem terdes,
Não são d'olhos verdes,
Nem de verdes olhos.
Sirvo de giolhos,
E vós não me credes,
Porque me não vêdes.
Havião de ser,
Porque possa vê-los,
Que huns olhos tão bellos
Não se hão d'esconder:
Mas fazeis-me crer,
Que ja não são verdes,
Porque me não vêdes.
Verdes não o são,
No que alcanço delles;
Verdes são aquelles
Qu'esperança dão.
Se na condição
Está serem verdes,
Porque me não vedes?
* * * * *

ALHEIO.
Trocae o cuidado,
Senhora, comigo;
Vereis o perigo,
Qu'he ser desamado.
_Voltas._
Se trocar desejo
O amor entre nós,
He para qu'em vós
Vejais o que vejo.
E sendo trocado
Este amor comigo,
Ser-vos-ha castigo
Terdes meu cuidado.
Tendes o sentido
D'Amor livre e isento,
E cuidais qu'he vento
Ser tão mal querido.
Não seja o cuidado
Tão vosso inimigo,
Que queira o perigo
De ser desamado.
Mas nunca foi tal
Este meu querer,
Que a quem tanto quer,
Queira tanto mal
Seja eu maltratado,
E nunca o castigo
Vos mostre o perigo,
Qu'he ser desamado.
* * * * *

Á TENÇÃO DE MIRAGUARDA.
Ver, e mais guardar
De ver outro dia,
Quem o acabaria?
_Voltas._
Da lindeza vossa,
Dama, quem a vê,
Impossivel he
Que guardar-se possa.
Se faz tanta mossa
Ver-vos hum só dia,
Quem se guardaria?
Melhor deve ser
Neste aventurar
Ver, e não guardar,
Que guardar e ver.
Ver e defender,
Muito bom sería,
Mas quem poderia?
* * * * *

MOTE.
Irme quiero, madre,
Á aquella galera,
Con el marinero,
Á ser marinera.
_Voltas._
Madre, si me fuere,
Do quiera que vó,
No lo quiero yo,
Que el Amor lo quiere.
Aquel niño fiero,
Hace que me mueva
Por un marinero
Á ser marinera.
El que todo puede,
Madre, no podrá,
Pues el alma vá,
Que el cuerpo se quede.
Con él por que muero
Voy, porque no muera;
Que si es marinero,
Seré marinera.
Es tirana ley
Del niño Señor,
Que por un amor
Se deseche un Rey.
Pues desta manera
Quiero irme, quiero
Por un marinero
Á ser marinera.
Decid, ondas, cuando
Vistes vos doncella,
Siendo tierna y bella,
Andar navegando?
Mas qué no se espera
Daquel niño fiero?
Vea yo quien quiero,
Sea marinera.
* * * * *

MOTE.
Saudade minha,
Quando vos veria?
_Voltas._
Este tempo vão,
Esta vida escassa,
Para todos passa,
Só para mi não.
Os dias se vão
Sem ver este dia,
Quando vos veria.
Vêde esta mudança
Se está bem perdida,
Em tão curta vida
Tão longa esperança.
Se este bem se alcança,
Tudo soffreria,
Quando vos veria.
Saudosa dor,
Eu bem vos entendo;
Mas não me defendo,
Porque offendo Amor.
Se fôsseis maior,
Em maior valia
Vos estimaria.
Minha saudade,
Charo penhor meu,
A quem direi eu
Tamanha verdade?
Na minha vontade
De noite e de dia
Sempre vos teria.
* * * * *

MOTE.
Vida da minha alma,
Não vos posso ver:
Isto não he vida
Para se soffrer.
_Voltas._
Quando vos eu via,
Esse bem lograva,
A vida estimava,
Pois então vivia;
Porque vos servia
Só para vos ver.
Ja que vos não vejo
Para qu'he viver?
Vivo sem razão,
Porqu'em minha dor
Não a poz Amor;
Que inimigos são.
Mui grande traição
Me obriga a fazer
Que viva, Senhora,
Sem vos poder ver.
Não me atrevo ja,
Minha tão querida,
A chamar-vos vida,
Porque a tenho má.
Ninguem cuidará,
Que isto póde ser,
Sendo-me vós vida,
Não poder viver.
* * * * *

MOTE.
Coifa de beirame
Namorou Joanne.
_Voltas._
Por cousa tão pouca
Andas namorado?
Amas o toucado,
E não quem o touca?
Ando cega e louca
Por ti, meu Joanne,
Tu pelo beirame.
Amas o vestido?
Es falso amador.
Tu não vês que Amor
Se pinta despido?
Cego e mui perdido
Andas por beirame,
E eu por ti, Joanne.
A todos encanta
Tua parvoice;
De tua doudice
Gonçalo s'espanta,
E zombando canta:
Coifa de beirame,
Namorou Joanne.
Eu não sei que viste
Neste meu toucado,
Que tão namorado
Delle te sentiste.
Não te veja triste;
Ama-me, Joanne,
E deixa o beirame.
Joanne gemia,
Maria chorava,
E assi lamentava
O mal que sentia:
(Os olhos feria,
E não o beirame,
Que matou Joanne)
Não sei do que vem
Amares vestido;
Que o mesmo Cupido
Vestido não tem.
Sabes de que vem
Amares beirame?
Vem de ser Joanne.
* * * * *

MOTE.
Se Helena apartar
Do campo seus olhos,
Nascerão abrolhos.
_Voltas._
A verdura amena,
Gados, que pasceis,
Sabei que a deveis
Aos olhos d'Helena.
Os ventos serena,
Faz flores d'abrolhos
O ar de seus olhos.
Faz serras florídas,
Faz claras as fontes:
S'isto faz nos montes,
Que fara nas vidas?
Tra-las suspendidas,
Como hervas em mólhos,
Na luz de seus olhos.
Os corações prende
Com graça inhumana;
De cada pestana
Hum'alma lhe pende.
Amor se lhe rende,
E pôsto em giolhos,
Pasma nos seus olhos.
* * * * *

ALHEIO.
Verdes são os campos
De côr de limão;
Assi são os olhos
Do meu coração.
_Voltas._
Campo, que t'estendes
Com verdura bella;
Ovelhas, que nella
Vosso pasto tendes;
D'hervas vos mantendes
Que traz o verão;
E eu das lembranças
Do meu coração.
Gados, que pasceis
Com contentamento,
Vosso mantimento
Não no entendeis.
Isso que comeis,
Não são hervas, não;
São graça dos olhos
Do meu coração.
* * * * *

ALHEIO.
Verdes são as hortas
Com rosas e flores:
Moças, que as régão,
Matão-me d'amores.
_Voltas._
Entre estes penedos
Que daqui parecem,
Verdes hervas crescem,
Altos arvoredos.
Vai destes rochedos
Ágoa, com que as flores
D'outras são regadas,
Que mátão d'amores.
Com ágoa, que cai
Daquella espessura,
Outra se mistura,
Que dos olhos sai:
Toda junta vai
Regar brancas flores;
Onde ha outros olhos,
Que mátão d'amores.
Celestes jardins,
As flores estrellas:
Hortelôas dellas
São huns seraphins.
Rosas e jasmins
De diversas côres,
Anjos, que as régão,
Mátão-me d'amores.
* * * * *

ALHEIO.
Menina formosa,
Dizei de que vem
Serdes rigorosa
A quem vos quer bem?
_Voltas._
Não sei quem assella
Vossa formosura;
Que quem he tão dura
Não póde ser bella.
Vós sereis formosa;
Mas a razão tem
Que quem he irosa,
Não parece bem.
A mostra he de bella,
As obras são cruas:
Pois qual destas duas
Ficará na sella?
Se ficar _irosa_,
Não vos está bem:
Fique antes _formosa_,
Que mais fôrça tem.
O Amor formoso
Se pinta e se chama:
Se he amor, ama,
Se ama, he piedoso.
Diz agora a grosa
Que este texto tem,
Que quem he formosa
Ha de querer bem.
Havei dó, menina,
Dessa formosura;
Que se a terra he dura,
Secca-se a bonina.
Sêde piedosa;
Não veja ninguem
Que por rigorosa
Percais tanto bem.
* * * * *

ALHEIO.
Tende-me mão nelle,
Que hum real me deve.
_Voltas._
C'hum real d'amor,
Dous de confiança,
E tres d'esperança,
Me foge o trédor.
Falso desamor
S'encerra naquelle
Que hum real me deve.
Pedio-mo emprestado,
Não lhe quiz penhor:
He mao pagador;
Tendo-mo afferrado.
C'hum cordel atado,
Ao Tronco se leve;
Que hum real me deve.
Por esta travéssa
Se vai acolhendo:
Ei-lo vai correndo,
Fugindo a grã pressa.
Nesta mão, e nessa
O falso se atreve,
Que hum real me deve.
Comprou-me o amor,
Sem lhe fazer preço:
Eu não lhe mereço
Dar-me desfavor.
Dá-me tanta dor,
Que ando apos elle
Pelo que me deve.
Eu de cá bradando,
Elle vai fugindo;
Elle sempre rindo,
Eu sempre chorando.
E de quando em quando
No amor se atreve,
Como que não deve.
A fallar verdade
Elle ja pagou;
Mas ainda ficou
Devendo ametade.
Minha liberdade
He a que me deve:
Só nella se atreve.
* * * * *

MOTE.
Dó la mi ventura,
Que no veo alguna?
_Voltas._
Sepa quien padece,
Que en la sepultura
Se esconde ventura
De quien la merece.
Allá me parece,
Que quiere fortuna
Que yo halle alguna.
Naciendo mesquino,
Dolor fué mi cama;
Tristeza fué el ama,
Cuidado el padrino.
Vestióse el destino
Negra vestidura,
Huyó la ventura.
No se halló tormento,
Que alli no se hallase;
Ni bien, que pasase,
Sinó como viento.
Oh qué nacimiento,
Que luego en la cuna
Me siguió fortuna!
Esta dicha mia,
Que siempre busqué,
Buscándola, hallé
Que no la hallaria;
Que quien nace en dia
D'estrella tan dura,
Nunca halla ventura.
No puso mi estrella
Mas ventura em min:
Ansí vive en fin
Quien nace sin ella.
No me quejo della;
Quéjome que atura
Vida tan escura.
* * * * *

MOTE.
Vida de minha alma.
_Volta._
Dous tormentos vejo
Grandes por extremo:
Se vos vejo, temo,
E se não, desejo.
Quando me despejo,
E venho a escolher,
Temendo o desejo,
Desejo temer.
* * * * *

CANTIGA ALHEIA.
Pastora da serra,
Da serra da Estrella,
Perco-me por ella.
_Voltas._
Nos seus olhos bellos
Tanto Amor se atreve,
Que abraza entre a neve
Quantos ousão vellos.
Não sólta os cabellos
Aurora mais bella:
Perco-me por ella.
Não teve esta serra
No meio d'altura
Mais que a formosura,
Que nella se encerra.
Bem ceo fica a terra,
Que tẽe tal estrella:
Perco-me por ella.
Sendo entre pastores
Causa de mil males,
Não se ouvem nos vales
Senão seus louvores.
Eu só por amores
Não sei fallar nella,
Sei morrer por ella.
D'alguns, que sentindo
Seu mal vão mostrando.
Se ri, não cuidando
Qu'inda paga rindo.
Eu triste, encobrindo
Só meus males della,
Perco-me por ella.
Se flores deseja
Por ventura bellas,
Das que colhe dellas
Mil morrem d'inveja.
Não ha quem não veja
Todo o melhor nella:
Perco-me por ella.
Se n'ágoa corrente
Seus olhos inclina,
Faz a luz divina
Parar a corrente.
Tal se vê, que sente
Por ver-se a ágoa nella:
Perco-me por ella.
* * * * *

ENDECHAS.
Vós sois huma Dama
Das feias do mundo;
De toda a má fama
Sois cabo profundo.
A vossa figura
Não he para ver;
Em vosso poder
Não ha formosura.
Vós fostes dotada
De toda a maldade;
Perfeita beldade
De vós he tirada.
Sois muito acabada
De taixa e de glosa:
Pois quanto a formosa,
Em vós não ha nada.
Do grão merecer
Sois bem apartada;
Andais alongada
Do bem parecer.
Bem claro mostrais
Em vós fealdade:
Não ha hi maldade,
Que não precedais.
De fresco carão
Vos vejo ausente;
Em vós he presente
A má condição.
De ter perfeição
Mui alheia estais;
Mui muito alcançais
De pouca razão.
* * * * *

ENDECHAS.
Vai o bem fugindo,
Cresce o mal co'os annos,
Vão-se descubrindo
Co'o tempo os enganos.
Amor e alegria.
Menos tempo dura.
Triste de quem fia
Nos bens da ventura!
Bem sem fundamento
Tẽe certa a mudança,
Certo o sentimento
Na dor da lembrança.
Quem vive contente,
Viva receoso:
Mal que se não sente,
He mais perigoso.
Quem males sentio,
Saiba ja temer;
E pelo que vio
Julgue o qu'ha de ser.
Alegre vivia,
Triste vivo agora;
Chora a alma de dia,
E de noite chora.
Confesso os enganos
De meu pensamento:
Bem de tantos annos
Foi-se n'hum momento.
Meus olhos, que vistes?
Pois vos atrevestes,
Chorae, olhos tristes,
O bem que perdestes.
A luz do sol pura
Só a vós se negue;
Seja noite escura,
Nunca a manhãa chegue.
O campo floreça,
Murmurem as ágoas,
Tudo me entristeça,
Cresção minhas mágoas.
Quizera mostrar
O mal que padeço;
Não lhe dá lugar
Quem lhe deu comêço.
Em tristes cuidados
Passo a triste vida;
Cuidados cansados,
Vida aborrecida.
Nunca pude crer
O que agora creio:
Cegou-me o prazer
Do mal que me veio.
Ah ventura minha,
Como me negaste!
Hum so bem que tinha,
Porque mo roubaste?
Triste fantasia
Quanta cousa guarda!
Quem ja visse o dia,
Que tanto lhe tarda!
Nesta vida cega
Nada permanece;
O qu'inda não chega,
Ja desaparece.
Qualquer esperança
Foge como o vento:
Tudo faz mudança,
Salvo meu tormento.
Amor cego e triste,
Quem o tẽe padece:
Mal quem lhe resiste!
Mal quem lhe obedece!
No meu mal esquivo
Sei como Amor trata:
E pois nelle vivo,
Nenhum amor mata.
* * * * *

SEXTINAS.

SEXTINA I.
Foge-me pouco a pouco a curta vida,
Se por caso he verdade qu'inda vivo;
Vai-se-me o breve tempo d'ante os olhos;
Chóro por o passado; e em quanto fallo,
Se me passão os dias passo a passo.
Vai-se-me, emfim, a idade, e fica a pena.
Que maneira tão aspera de pena!
Pois nunca hum'hora vio tão longa vida
Em que do mal mover se visse hum passo.
Que mais me monta ser morto que vivo?
Para que chóro, emfim? para que fallo,
Se lograr-me não pude de meus olhos?
Oh formosos, gentís e claros olhos,
Cuja ausencia me move a tanta pena,
Quanta se não comprende em quanto fallo!
Se no fim de tão longa e curta vida
De vós m'inflammasse inda o raio vivo,
Por bem teria todo o mal que passo.
Mas bem sei que primeiro o extremo passo
Me ha de vir a cerrar os tristes olhos,
Que Amor me mostre aquelles por quem vivo.
Testimunhas serão a tinta e penna,
Qu'escrevêrão de tão molesta vida
O menos que passei, e o mais que fallo.
Oh que não sei qu'escrevo, nem que fallo!
Pois se d'hum pensamento em outro passo,
Vejo tão triste genero de vida,
Que se lhe não valerem tanto os olhos,
Não posso imaginar qual seja a penna
Qu'esta pena traslade com que vivo.
N'alma tenho contino hum fogo vivo,
Que se não respirasse no que fallo,
Estaria ja feita cinza a pena;
Mas sôbre a maior dor que soffro e passo,
O temperão com lagrimas os olhos:
Com que, se foge, não se acaba a vida.
Morrendo estou na vida, e em morte vivo;
Vejo sem olhos, e sem lingua fallo;
E juntamente passo gloria e pena.
* * * * *

SEXTINA II.
A culpa de meu mal só tẽe meus olhos,
Pois que derão a Amor entrada n'alma,
Para que perdesse eu a liberdade.
Mas quem póde fugir a huma brandura,
Que despois de vos pôr em tantos males,
Dá por bens o perder por ella a vida?
Assaz de pouco faz quem perde a vida
Por condição tão dura e brandos olhos;
Pois de tal qualidade são meus males,
Que o mais pequeno delles toca n'alma.
Não s'engane com mostras de brandura
Quem quizer conservar a liberdade.
Roubadora he de toda liberdade
(E oxalá perdoasse á triste vida!)
Esta que o falso Amor chama brandura,
Ai meus antes imigos, que meus olhos!
Que mal vos tinha feito esta vossa alma,
Para vós lhe fazerdes tantos males?
Cresção de dia em dia embora os males;
Perca-se embora a antigua liberdade;
Transforme-se em Amor esta triste alma;
Padeça embora esta innocente vida;
Que bem me págão tudo estes meus olhos,
Quando de outros, se os vem, vem a brandura.
Mas como nelles póde haver brandura,
Se causadores são de tantos males?
Engano foi d'Amor, porque meus olhos
Dessem por bem perdida a liberdade.
Ja não tenho que dar senão a vida,
Se a vida ja não deo, quem ja deo a alma.
Que póde ja'sperar quem a sua alma
Captiva eterna fez d'huma brandura,
Que quando vos dá morte, diz qu'he vida?
Forçado me he gritar nestes meus males,
Olhos meus: pois por vós a liberdade
Perdi, de vós me queixarei, meus olhos.
Chorae, meus olhos, sempre os damnos d'alma,
Pois dais a liberdade a tal brandura,
Que para dar mais males, dá mais vida.
* * * * *

SEXTINA III.
Oh triste, oh tenebroso, oh cruel dia,
Amanhecido só para meu damno!
Pudeste-me apartar daquella vista
Por quem vivia com meu mal contente?
Ah se o supremo fôras desta vida,
Qu'em ti se começára a minha glória!
Mas como eu não nasci para ter glória,
Senão pena que cresça cada dia,
O ceo m'está negando o fim da vida,
Porque não tenha fim com ella o damno:
Para que nunca possa ser contente,
Da vista me tirou aquella vista.
Suave, deleitosa, alegre vista,
Donde pendia toda a minha gloria,
Por quem na mor tristeza fui contente;
Quando será que veja aquelle dia
Em que deixe de ver tão grave damno,
E em que me deixe tão penosa vida?
Como desejarei humana vida,
Ausente d'hũa mais que humana vista,
Que tão glorioso me fazia o damno!
Vejo o meu damno sem a sua glória;
Á minha noite falta ja seu dia:
Triste tudo se vê, nada contente.
Pois sem ti ja não posso ser contente,
Mal posso desejar sem ti a vida;
Sem ti ja ver não posso claro dia,
Não posso sem te ver desejar vista;
Na tua vista só se via a glória,
Não ver a glória tua he ver meu damno.
Não via maior glória que meu damno,
Quando do damno meu eras contente:
Agora me he tormento a maior glória,
Que póde prometter-me Amor na vida,
Pois tornar-te não póde á minha vista,
Que só na tua achava a luz do dia.
E pois de dia em dia cresce o damno,
Nem posso sem tal vista ser contente,
Só com perder a vida acharei glória.
* * * * *

SEXTINA IV.
Sempre me queixarei desta crueza
Que Amor usou comigo quando o tempo,
A pezar de meu duro e triste fado,
A meus males queria dar remedio,
Em apartar de mi aquella vista,
Por quem me contentava a triste vida.
Levára-me, oxalá, traz ella a vida,
Para que não sentira esta crueza
De me ver apartado de tal vista!
E praza a Deos não veja o proprio tempo
Em mi, sem esperança de remedio,
A desesperação d'hum triste fado!
Porém ja acabe o triste e duro fado!
Acabe o tempo ja tão triste vida,
Qu'em sua morte só tẽe seu remedio.
O deixar-me viver he mor crueza,
Pois desespéro ja d'em algum tempo
Tornar a ver aquella doce vista.
Duro Amor! se pagava só tal vista
Todo o mal que por ti me fez meu fado,
Porque quizeste que a levasse o tempo?
E se o assi quizeste, porque a vida
Me deixas para ver tanta crueza,
Quando em não vê-la só vejo o remedio?
Tu só de minha dor eras remedio,
Suave, deleitosa e bella vista.
Sem ti, que posso eu ver senão crueza?
Sem ti, qual bem me póde dar o fado,
Se não he consentir que acabe a vida?
Mas elle della me dilata o tempo.
Azas para voar vejo no tempo,
Que com voar a muitos foi remedio;
E só não vôa para a minha vida.
Para que a quero eu sem tua vista?
Para que quer tambem o triste fado
Que não acabe o tempo tal crueza?
Não poderão fazer crueza, ou tempo,
Fôrça de fado, ou falta de remedio,
Qu'essa vista m'esqueça em toda a vida.
* * * * *


ELEGIAS

ELEGIA I.
O sulmonense Ovidio desterrado
Na aspereza do Ponto, imaginando
Ver-se de seus Penates apartado;
Sua chara mulher desamparando,
Seus doces filhos, seu contentamento,
De sua Patria os olhos apartando;
Não podendo encobrir o sentimento,
Aos montes ja, ja aos rios se queixava
De seu escuro e triste nascimento.
O curso das estrellas contemplava,
E aquella ordem com que discorria
O ceo e o ar, e a terra adonde estava.
Os peixes por o mar nadando via,
As feras por o monte procedendo
Como o seu natural lhes permittia.
De suas fontes via estar nascendo
Os saudosos rios de crystal,
Á sua natureza obedecendo.
Assi só, de seu proprio natural
Apartado, se via em terra estranha,
A cuja triste dor não acha igual.
Só sua doce Musa o acompanha
Nos soidosos versos qu'escrevia,
E nos lamentos com que o campo banha.
Dest'arte me figura a phantasia
A vida com que morro, desterrado
Do bem qu'em outro tempo possuia.
Aqui contemplo o gôsto ja passado,
Que nunca passará por a memoria
De quem o traz na mente debuxado.
Aqui vejo caduca e debil glória
Desenganar meu êrro co'a mudança
Que faz a fragil vida transitoria.
Aqui me representa esta lembrança
Quão pouca culpa tenho; e m'entristece
Ver sem razão a pena que m'alcança.
Que a pena que com causa se padece,
A causa tira o sentimento della;
Mas muito doe a que se não merece.
Quando a roxa manhãa, dourada e bella,
Abre as portas ao sol e cahe o orvalho,
E torna a seus queixumes Philomela;
Este cuidado, que co'o somno atalho,
Em sonhos me parece; que o que a gente
Por seu descanso tẽe me dá trabalho.
E despois de acordado cegamente,
(Ou, por melhor dizer, desacordado,
Que pouco acôrdo logra hum descontente)
Daqui me vou, com passo carregado,
A hum outeiro erguido, e alli m'assento,
Soltando toda a redea a meu cuidado.
Despois de farto ja de meu tormento,
Estendo estes meus olhos saudosos
Á parte donde tinha o pensamento.
Não vejo senão montes pedregosos;
E sem graça e sem flor os campos vejo,
Que ja floridos víra, e graciosos.
Vejo o puro, suave e rico Tejo,
Com as concavas barcas, que nadando
Vão pondo em doce effeito o seu desejo.
Humas com brando vento navegando,
Outras com leves reinos brandamente
As crystallinas ágoas apartando.
D'alli fallo com a ágoa que não sente
Com cujo sentimento est'alma sae
Em lagrimas desfeita claramente.
Ó fugitivas ondas, esperae;
Que pois me não levais em companhia,
Ao menos estas lagrimas levae.
Até que venha aquelle alegre dia
Qu'eu vá onde vós ides, livre e ledo.
Mas tanto tempo, quem o passaria?
Não póde tanto bem chegar tão cedo:
Porque primeiro a vida acabará,
Que se acabe tão aspero degredo.
Mas essa triste morte que virá,
S'em tão contrário estado me acabasse,
Est'alma assi impaciente adonde irá?
Que se ás portas Tartaricas chegasse,
Temo que tanto mal por a memoria
Nem ao passar do Lethe lhe passasse.
Que se a Tantalo e Ticio for notoria
A pena com que vai, e que a atormenta,
A pena que lá tẽe, terão por glória.
Essa imaginação, emfim, me augmenta
Mil mágoas no sentido, porque a vida
De imaginações tristes se contenta.
Que pois de todo vive consumida,
Porque o mal que possue se resuma,
Imagina na glória possuida.
Até que a noite eterna me consuma,
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