Obras Completas de Luis de Camões, Tomo III - 15

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Ora vamos, que agora estou de vez, e cuido d'hoje fazer mil maravilhas,
com que vosso feito venha á luz.

SCENA III.
_Dionysa e Solina._
DIONYSA.
Solina, mana.
SOLINA.
Senhora.
DIONYSA.
Trazei-me cá a almofada;
Que a casa está despejada,
E esta varanda cá fóra
Está melhor assombrada.
Trazei a vossa tambem
Para estarmos cá lavrando;
Em quanto meu pae não vem,
Estaremos praticando,
Sem nos estorvar ninguem.
SOLINA.
Este he o mesmo lugar
Onde estava o bem logrado,
Tal que de muito enlevado
Se esquecia do cantar
Por se enlevar no cuidado.
DIONYSA.
Vós, mana, sois mui ruim!
Logo lhe fostes contar
Que me ergui polo escutar.
SOLINA.
Eu o disse?
DIONYSA.
Eu não o ouvi?
Como mo quereis negar?
SOLINA.
E pois isso que releva?
Que se perde nisso agora?
DIONYSA.
Que se perde! Assi, Senhora,
Folgareis vós que se atreva
A contá-lo lá por fóra?
Que se lhe meta em cabeça
Alguma parvoa tenção?
Que faça, se vem á mão,
Algũa cousa que pareça?
SOLINA.
Senhora, não tẽe razão.
DIONYSA.
Eu sei mui bem attentar
Do que se ha de ter receio,
E do que he para estimar.
SOLINA.
Não he o demo tão feio
Como alguem o quer pintar;
E não se espera isso delle,
Que não he ora tão moço.
E Vossa Mercê asselle
Que qualquer segredo nelle
He como huma pedra em poço.
DIONYSA.
E eu que segredo quero
Co'hum criado de meu pae?
SOLINA.
E vós, mana, fazeis fero?
Ao diante vos espero,
Se adiante o caso vae.
DIONYSA.
O madraço! quem o vir
Fallar de siso co'ella...
Então vós, gentil donzella,
Folgais muito de o ouvir?
SOLINA.
Si, porque me falla nella;
E eu como ouço fallar
Nella, como quem não sente,
Folgo de o escutar,
Só para lhe vir contar
O que della diz a gente;
Qu'eu não quero nada delle.
E mais, porque está fallando?
Não m'esteve ella rogando
Que fosse fallar com elle?
DIONYSA.
Disse-vo-lo assi zombando.
Vós logo tomais em grosso
Tudo quanto me escutais.
Parvo! que vê-lo não posso.
SOLINA.
Ella alli, e o cão co'o osso!
Inda isto ha de vir a mais.
Pois que tal odio lhe tem,
Fallemos, Senhora, em al;
Mas eu digo que ninguem
Merece por querer bem
Que a quem lho quer, queira mal.
DIONYSA.
Deixae-o vós doudejar.
Se meu pae, ou meu irmão,
O vierem a aventar,
Não ha elle de folgar.
SOLINA.
Deos meterá nisso a mão.
DIONYSA.
Ora hi polas almofadas,
Que quero hum pouco lavrar;
Por ter em que me occupar;
Qu'em cousas tão mal olhadas
Não se ha o tempo de gastar.
SOLINA.
Que cousa somos mulheres!
Como somos perigosas!
E mais estas tão viçosas
Qu'estão á boca _que queres_
E adoecem de mimosas!
Se eu não caminho agora
A seu desejo e vontade;
Como faz esta Senhora,
Fazem-se logo nessa hora
Na volta da honestidade.
Quem a vira o outro dia
Hum poucochinho agastada,
Dar no chão com a almofada,
E enlevar a phantasia,
Toda n'outra transformada!
Outro dia lhe ouvirão
Lançar suspiros a mólhos,
E com a imaginação
Cahir-lhe a agulha da mão,
E as lagrimas dos olhos.
Ouvir-lhe-heis á derradeira
A ventura maldizer,
Porque a foi fazer mulher.
Então diz que quer ser Freira;
E não se sabe entender.
Então gaba-o de discreto,
De musico e bem disposto,
De bom corpo e de bom rosto.
Quanté então eu vos prometo,
Que não tẽe delle desgôsto.
Despois, se vem a attentar,
Diz que he muito mal feito
Amar homem deste geito;
E que não póde alcançar
Pôr seu desejo em effeito.
Logo se faz tão Senhora,
Logo lhe ameaça a vida,
Logo se mostra nessa hora
Muito segura de fóra,
E de dentro está sentida.
Bofé, segundo vou vendo,
Se esta postema vier,
Como eu suspeito, a crescer,
Muito ha que della entendo
O fim que póde vir ter.

SCENA IV.
_Duriano e Filodemo._
DURIANO.
Ora deixae-a ir, que á vinda lhe fallaremos; entretanto cuidarei o como
hei de fazer; que não ha mor trabalho para huma pessoa que fingir-se.
FILODEMO.
Dar-lhe-heis esta carta; e fazei muito com ella que a dê á Senhora
Dionysa; que me vai nisso muito.
DURIANO.
Por mulher de tão bom engenho a tendes?
FILODEMO.
E porque me perguntais isso?
DURIANO.
Porque ainda hontem entrou pelo A, B, C, e ja quereis que leia carta
mandadeira: fa-la-heis cedo escrever materia junta.
FILODEMO.
Não lhe digais que vos disse nada, porque cuidará que por isso lhe
fallais; mas fingi que de puro amor a andais buscando a tempos que fação
á vossa tenção.
DURIANO.
Deixae-me vós a mi com o caso, que eu sei melhor as pancadas a estes
vintes, que vós; e eu vo-la farei hoje vir a nós sem gafas; e vós
entretanto acolhei-vos a sagrado, porque ei-la lá vem.
FILODEMO.
Olhae lá: fazei que a não vêdes, e fingi que fallais comvosco; que faz a
nosso caso.
DURIANO.
Dizeis bem. (Yo sigo tristeza, remedio de tristes: la terrible pena mia
no la espero remediar. Pois não devia assi de ser, polos santos
Evangelhos! mas muitos dias ha que eu sei que o amor, e os cangrejos,
andão ás vessas. Ora, emfim, las tristezas no me espanten, porque suelen
aflojar cuando mas duelen.)

SCENA V.
_Solina e Duriano._
SOLINA, _com a almofada_.
Aqui anda passeando
Duriano, e só comsigo
Pensamentos praticando:
Daqui posso estar notando
Com quem sonha, se he comigo.
DURIANO.
Ah quão longe estará agora
Minha Senhora Solina
De saber que estou bem fóra
De ter outra por senhora,
Segundo o amor determina!
Porém se determinasse
Minha bem-aventurança
Que de meu mal lhe pezasse.
Até que nella tomasse
Do que lhe quero vingança!...
SOLINA.
(Comigo sonha por certo.
Ora quero-me mostrar,
Assi como por acêrto:
Chegar-me-hei mais ao perto,
Por ver se me quer fallar.)
Sempre esta casa ha d'estar
Acompanhada de gente,
Que não possa homem passar!
DURIANO.
Á traição vindes tomar
Quem ja feridas não sente?
SOLINA.
Logo me a mi parecia
Que era elle o que passeava.
DURIANO.
E eu mal adivinhava
Que me viesse este dia,
Que ha tantos que desejava.
Se huns olhos por vos servir,
Com o amor que vos conquista,
Se atrevêrão a subir
Os muros da vossa vista,
Que culpa tẽe quem vos vir?
E se esta minha affeição,
Que vos serve de giolhos,
Não fez êrro na tenção,
Tomae vingança nos olhos,
E deixae o coração.
SOLINA.
Ora agora me vem riso.
Assi que vós sois, Senhor,
De siso meu servidor?
DURIANO.
De siso não, porque o siso
Me tẽe tirado o amor.
Porque o amor, se attentais,
N'hum tão verdadeiro amante
Não deixa siso bastante;
Senão se siso chamais
A doudice tão galante.
SOLINA.
Como Deos está nos Ceos,
Que se he verdade o que temo,
Que fez isto Filodemo.
DURIANO.
Mas fê-lo o démo; que Deos
Não faz mal tanto em extremo.
SOLINA.
Bem. Vós, Senhor Duriano,
Porque zombareis de mim?
DURIANO.
Eu zombo?
SOLINA.
Eu não m' engano.
DURIANO.
S' eu zombo, inda em meu dano
Vejais vós mui cedo a fim.
Mas vós, Senhora Solina,
Porque me querereis mal?
SOLINA.
Sou mofina.
DURIANO.
Oh! real.
Assi que minha mofina
He minha imiga mortal.
Dias ha qu'eu imagino
Qu'em vos amar e servir
Não ha amador mais fino;
Mas sinto que de mofino
Me fino sem o sentir.
SOLINA.
Bem derivais: quanté assi
Á popa o dito vos veio.
DURIANO.
Vir-me-ha de vós, porque creio
Que vós fallais dentro em mi,
Como esprito em corpo alheio.
E assi que em estas piós
A cahir, Senhora, vim;
Bem parecerá entre nós,
Pois vós andais dentro em mim,
Que ande eu tambem dentro em vós.
SOLINA.
He bem: que fallar he esse?
DURIANO.
Dentro na vossa alma, digo,
Lá andasse, e lá morresse!
E se isto mal vos parece,
Dae-me a morte por castigo.
SOLINA.
Ah mao! Como sois malvado!
DURIANO.
Mas vós como sois malvada,
Que de hum pouco mais de nada
Fazeis hum homem armado,
Como quem 'stá sempre armada!
Dizei-me, Solina, mana.
SOLINA.
Qu'he isso? Tirae lá a mão:
Oh! vós sois mao cortezão.
DURIANO.
O que vos quero m'engana,
Mas o que desejo não.
Não ha aqui senão paredes,
As quaes não fallão, nem vem.
SOLINA.
Está isso muito bem.
Bem: e vós, Senhor, não vêdes
Que poderá vir alguem?
DURIANO.
Que vos custão dous abraços?
SOLINA.
Não quero tantos despejos.
DURIANO.
Pois que farão meus desejos,
Que querem ter-vos nos braços,
E dar-vos trezentos beijos?
SOLINA.
Olhae que pouca vergonha!
Hi-vos d'hi, boca de praga.
DURIANO.
Eu não sei certo a que ponha
Mostrardes-me a triaga,
E virdes-me a dar peçonha.
SOLINA.
Ora ide rir á feira,
E não sejais dessa laia.
DURIANO.
Se vêdes minha canseira,
Porque lhe não dais maneira?
SOLINA.
Que maneira?
DURIANO.
A da saia.
SOLINA.
Por minha alma, hei de vos dar
Meia duzia de porradas.
DURIANO.
Oh que gostosas pancadas!
Mui bem vos podeis vingar,
Qu'em mim são bem empregadas.
SOLINA.
Ao diabo, que o eu dou.
Como me doeo a mão!
DURIANO.
Mostrae cá, minha affeição,
Que essa dor me magoou
Dentro no meu coração.
SOLINA.
Ora hi-vos embora asinha.
DURIANO.
Por amor de mi, Senhora,
Não fareis huma cousinha?
SOLINA.
Digo que vades embora.
Que cousa?
DURIANO.
Esta cartinha.
SOLINA.
Que carta?
DURIANO.
De Filodemo
A Dionysa vossa ama.
SOLINA.
Dizei, que tome outra dama,
E dê os amores ao démo.
DURIANO.
Não andemos pola rama.
Senhora, (aqui para nós)
Que sentis della com elle?
SOLINA.
Grandes alforges sois vós!
Pois hi-lhe dizer que appelle.
DURIANO.
Fallae, que aqui 'stamos sós.
SOLINA.
Qualquer honesta se abala,
Como sabe que he querida.
Ella he por elle perdida:
Nunca n'outra cousa falla.
DURIANO.
Ora vou-lhe dar a vida.
SOLINA.
E eu não lhe disse ja
Quanta affeição lh'ella tem?
DURIANO.
Não se fia de ninguem,
Nem crê que para elle ha
No mundo tamanho bem.
SOLINA.
Dir-vos-hia de mim lá
O que lh'eu disse zombando?
DURIANO.
Não disse, por S. Fernando!
SOLINA.
Ora ide-vos.
DURIANO.
Que me va!
E mandais que torne? Quando?
SOLINA.
Quando eu cá vir lugar,
Vo-lo mandarei dizer.
DURIANO.
Se o quizerdes buscar,
Não vos deve de faltar,
Se não faltar o querer.
SOLINA.
Não falta.
DURIANO.
Dae-me hum abraço
Em sinal do que quereis.
SOLINA.
Tá, que o não levareis.
DURIANO.
De quantos serviços faço
Nenhum pagar me quereis?
SOLINA.
Pagar-vos-hão algum'hora,
Que isso a mi tambem me toca;
Mas agora hi-vos embora.
DURIANO.
Essas mãos beijo, Senhora,
Em quanto não posso a boca.

SCENA VI.
_Solina que traz a almofada, e Dionysa._
SOLINA.
Ja Vossa Mercê dirá
Qu'estive muito tardando.
DIONYSA.
Bem vos detivestes lá.
Bofé que estava cuidando
Em não sei que.
SOLINA.
Que será?
Aqui somos. (Quanté agora
Está ella transportada.)
DIONYSA.
Que rosnais vós lá, Senhora?
SOLINA.
Digo que tardei lá fóra
Em buscar esta almofada.
Que estava ella agora só
Comsigo phantasiando?
DIONYSA.
Bofé que estava cuidando
Qu'he muito para haver dó
Da mulher que vive amando.
Que hum homem póde passar
A vida mais occupado:
Com passear, com caçar,
Com correr, com cavalgar,
Fórra parte do cuidado.
Mas a coitada
Da mulher sempre encerrada,
Que não tẽe contentamento,
Não tẽe desenfadamento,
Mais que agulha e almofada?
Então isto vem parir
Os grandes erros da gente:
Forão mil vezes cahir
Princezas d'alta semente.
Lembra-me que ouvi contar
De tantas affeiçoadas
Em baixo e pobre lugar,
Que as que agora vão errar
Podem ficar desculpadas.
SOLINA.
Senhora, a muita affeição
Nas Princezas d'alto estado
Não he muita admiração;
Que no sangue delicado
Faz amor mais impressão.
Mas deixando isto á parte,
Se m'ella quizer peitar,
Prometto de lhe mostrar
Huma cousa muito d'arte,
Que lá dentro fui achar.
DIONYSA.
Que cousa?
SOLINA.
Cousa d'esprito.
DIONYSA.
Algum panno de lavores?
SOLINA.
Inda ella não deo no fito?
Cartinha sem sobre-escripto,
Que parece ser de amores.
DIONYSA.
Essa he a boa ventura?
SOLINA.
Bofé que mo pareceo.
DIONYSA.
E essa donde nasceo?
SOLINA.
No meu cesto da costura:
Não sei quem m'alli meteo.
DIONYSA.
Mostrae-ma; não hajais medo,
Mana. Eu que vos descobri...
SOLINA.
E se ella vem para mi,
Logo quer ver meu segredo?
Não a veja: vá-se d'hi.
Ei-la-ahi.
DIONYSA.
Cuja será?
SOLINA.
Não sei certo cuja he.
DIONYSA.
Si; sabeis.
SOLINA.
Não sei, bofé.
DIONYSA.
Ora a carta mo dirá.
SOLINA.
Pois leia Vossa Mercê.
_Abre Dionysa a carta, e lê-a._
Se para merecer minha pena me não falta mais que viver contente della,
ja logo ma podeis consentir; pois que de nenhuma outra cousa vivo
triste, senão por não ser para tão doce tristeza. Se tendes por offensa
commetter tamanha ousadia; por maior a devieis ter, se a não
commettesse; que amor acostumado he fazer os extremos á medida das
affeições, e as affeições á medida da causa dellas. Pois logo, nem o meu
amor póde ser pouco, nem fazer menos: se este não bastar para
consentirdes em meu pensamento, baste para me dardes o que pelo ter
mereço; e senão muitas graças ao Amor, que me soube dar hum cuidado, que
com tê-lo se paga o trabalho de soffrê-lo.
SOLINA.
Quanta parvoice diz!
DIONYSA.
Ora muito boa está!
Como vós, mana, sois má!
Não sejais vós tão biliz;
Que bem vos entendo ja.
Cuja he?
SOLINA.
E eu que sei?
DIONYSA.
Pois quem o sabe?
SOLINA.
O démo.
DIONYSA.
Certo que he de quem temo;
Que os ditos que nella achei
São todos de Filodemo.
Este homem, que atrevimento
He este que foi tomar?
Qual será seu fundamento?
Que mil vezes me faz dar
Mil voltas ao pensamento.
Não entendo delle nada.
Mas inda qu'isto he assi,
Disso que delle entendi,
Me sinto tão alterada,
Que me arreceio de mi.
Eu inda agora não creio
Que he verdade este amor;
Mas praza a Deos, se assi for,
Que inda este meu arreceio
Se não converta em temor.
SOLINA.
Ja vós, ja sêdes,
Peixes, nas redes.
Senhora, quem mais confia,
Mais asinha a cahir vem:
Natural he o querer bem;
Que o amor n'alma se cria,
Sem o sentir quem o tem.
Filodemo, no que ouvi,
Tẽe-lhe sobeja affeição;
E postoque o creia assi,
Ou eu sonhei, ou ouvi.
Que era d'alta geração.
Logo na phisionomia,
Nas manhas, artes e geito,
Mostra mui grande respeito:
Nem tão alta phantasia
Não se põe em baixo peito.
DIONYSA.
Tudo isso cuido, e vi
Mil vezes miudamente;
Mas estas mostras assi
São desculpas para mi,
E não para toda a gente.
SOLINA.
O seu moço vejo vir
A nós, seu passo contado:
Este he muito para ouvir,
Que diz que me quer servir
D'amores esperdiçado.

SCENA VII.
_Vilardo, Solina e Dionysa._
VILARDO.
Senhora, o Senhor seu pae,
Mesmo de Vossa Mercê,
Ja lá para casa vae:
Por isso, Senhora, andae,
Que elle me mandou n'hum pé;
E diz que fosse jantar
Vossa Mercê mesmamente.
SOLINA.
E ja veio do pomar?
DIONYSA.
Oh quem pudéra escusar
De comer, nem de ver gente!
(Nenhuma côr de verdade
Tenho do que m'elle manda.)
VILARDO.
S'ella sem vontade anda,
Eu lh'emprestarei vontade,
Empreste-m'ella a vianda.
SOLINA.
Va, Senhora, por não dar
Mais em que cuidar á gente.
DIONYSA.
Irei, mas não por jantar;
Que quem vive descontente
Mantem-se de imaginar.
VILARDO.
Pois tambem cá minhas dores
Me não deixão comer pão;
Nem come minha affeição
Senão sopadas d'amores,
E mil postas de paixão.
Das lagrimas caldo faço,
Do coração escudella;
Esses olhos são panella
Que coze bofes e baço,
Com toda a mais cabedella.

SCENA VIII.
_O Monteiro, um pastor e um bobo._
MONTEIRO.
Perdeo-se por esta brenha
Venadoro, meu Senhor,
Sem que novas delle tenha:
Queira Deos que inda não venha
Desta perda outra maior.
Contra esta parte daqui
Des pos hum cervo correo,
Logo desappareceo:
Como da vista o perdi,
O gosto se me perdeo.
Eu, e os mais caçadores,
Corremos montes e covas;
Fallamos com lavradores
Deste valle, e com pastores,
Sem acharmos delle novas.
Quero ver nestes casais
Que cobre aquelle arvoredo,
Se acharei pastores mais,
Que me dem alguns sinais
Que me possão tornar ledo.
_Chama._
Ó dos casaes, ó de lá:
Ah pastores, não fallais?
PASTOR.
Quien sois, ó lo que buscais?
MONTEIRO.
Ouvis? Chegae para cá.
PASTOR.
Dicid vos lo que mandais.
BOBO.
No vayais adó os llamó,
Padre, sin saber quien es.
PASTOR.
Porque?
BOBO.
Porque este es
Aquel ladron que hurtó
El asno del Portugues.
Y se vais adó estan,
Os juro al cuerpo sagrado
De San Pisco, y San Juan,
Que tambien os hurtarán,
Que sois asno mas honrado.
PASTOR.
Déjame ir, que me llamó.
BOBO.
No, por vida de mi madre;
Que si allá vais, muerto so',
Y desta vez quedo yo,
Sin asno, triste! y sin padre.
MONTEIRO.
Vinde, que vo-lo encommendo,
E em vossas mãos me ponho.
BOBO.
No vais, que dijo _en comiendo_.
Encomiendoos al demonio! _(Ao Monteiro.)_
Y esso es lo que andais haciendo?
PASTOR.
Déjame ir adó está,
Que no es cosa que me espante.
BOBO.
No quereis sino ir allá?
Pues echadle pan delante,
Puede ser amansará.
PASTOR.
Dios os guarde! Qué cosa es
Esa por que voceais?
MONTEIRO.
Dar-m'heis novas, ou sinais
D'hum Fidalgo Portugues,
Se passou por onde andais?
BOBO.
Yo so' Hidalgo Portugues:
Que manda su Señoria?
PASTOR.
Cállate: oh que nescio es!
BOBO.
Padre, no me dejarés
Ser lo que quisiere un dia?
Ah Santo Dios verdadero!
No seré lo que otros son?
Digo ahora que no quiero
Ser Alonsico, el vaquero.
PASTOR.
Cállate ya, bobarron.
BOBO.
Ya me callo: ahora un poco
He de ser lo que yo quisiere.
PASTOR.
Señor, diga lo que quiere,
Porque este mochacho es loco,
Y muero porque no muere.
MONTEIRO.
Digo, que se por ventura
Sabeis o que ando buscando:
Hum Fidalgo, que caçando
Se perdeo nesta espessura
Apos hum cervo andando.
Tenho esta parte corrida,
Sem delle poder saber:
Trago a alegria perdida;
E se de todo a perder,
Perca-se tambem a vida.
Porque só polo buscar
Tenho trabalhos assás.
BOBO.
(Yo no puedo callar mas.)
PASTOR.
(Como no puedes callar?
Quítate allá para tras.)
Cuanto por aquesta tierra,
No siento nueva ninguna.
MONTEIRO.
Oh trabalhosa fortuna!
PASTOR.
Mas detras daquesta sierra
Hallareis, por dicha, alguna;
Que unas choças de vaqueros
Portugueses allí estan;
Y ahí muchas veces van
Cazadores Cavalleros:
Puede ser que lo sabran.
MONTEIRO.
Quero-me ir lá saber.
Ficae-vos a Deos, pastor.
PASTOR.
Dios os livre de dolor.
BOBO.
Y á nos dé siempre comer
Pan y sopas, qu'es mejor.
Mirad lo que os notifico:
En aquel valle, acullá,
Anda paciendo un burrico,
Hidalgo, manso, y bonico;
Puede ser que ese será.
PASTOR.
Calla, y acaba de andar.
BOBO.
Ya ando.
PASTOR.
Quieres callar?
Bobo, que tan poco sabe!
BOBO.
No diceis que ande y acabe?
Ando, y no quiero acabar.


ACTO TERCEIRO.

SCENA I.
_Florimena, pastora, com hum pote que vai á fonte._
FLORIMENA.
Por este formoso prado
Tudo quanto a vista alcança
Tão alegre está tornado,
Que a qualquer desesperado
Póde dar certa esperança.
O monte, e sua aspereza,
De flores se veste ledo;
Reverdece o arvoredo,
Somente em minha tristeza
Está sempre o tempo quedo.
Junto desta fonte pura,
Segundo a muitos ouvi,
D'altos parentes nasci:
Foi como quiz a Ventura,
Mas não como eu mereci.
O dia que fui nascida,
Minha mãe do parto forte
Foi sem cura fallecida;
E o dia que me deo vida
Lhe dei eu a ella a morte.
Do mesmo parto nasceo
Meu irmão, que entre os cabritos
Comigo tambem viveo;
Mas, assi como cresceo,
Crescêrão nelle os espritos.
Foi-se buscar a cidade;
Teve juizo e saber;
Eu fiquei, como mulher,
E não tive faculdade
Para poder mais valer.
A hum pastor obedeço
Por pae, que d'outro não sei;
E, pola mãe que matei,
A huma cabra conheço,
De cujo leite mamei.
Mas porém, ja qu'este monte
Me obriga e meu nascimento,
Quero, pois quer meu tormento,
Encher a talha na fonte
Que co'os olhos accrescento.
_Finge que enche a talha._

SCENA II.
_Venadoro e Florimena._
VENADORO.
Pois que me vim alongar
Dos caminhos e da gente,
Fortuna, que o consente,
Se devia contentar
De me ter tão descontente.
Porém, segundo adivinho,
Por tão espêsso arvoredo,
Por tão aspero rochedo,
Quanto mais busco o caminho,
Tanto mais delle me arredo.
O cavallo, como amigo,
Ja cansado me trazia:
Mas deixou-me todavia;
Que mal pudera comigo
Quem comsigo não podia.
Quero-me aqui assentar
Á sombra, nesta hervinha,
Porque canso ja de andar;
Mas inda a fortuna minha
Não cansa de me cansar.
Junto desta fonte pura
Não sei quem cuido qu'está;
Mas no coração me dá
Que aqui me guarda a Ventura
Alguma ventura má.
Ou ganhado, ou bem perdido,
Faça, emfim, o que quizer,
Qu'eu o fim disto hei de ver?
Que ja venho apercebido
A tudo quanto vier.
Oh que formosa serrana
Á vista se me offerece!
Deosa dos montes parece;
E se he certo que he humana,
O monte não a merece.
Pastora tão delicada,
De gesto tão singular,
Parece-me qu'em lugar
De perguntar pola estrada,
Por mim lhe hei de perguntar.
Atéqui sempre zombei
De qualquer outra pessoa
Que affeiçoada topei;
Mas agora zombarei
De quem se não affeiçoa.
Serrana, cuja pintura
Tanto a alma me moveo,
Dizei-me: Por qual ventura
Andareis nesta espessura,
Merecendo estar no ceo?
FLORIMENA.
Tamanho inconveniente
Andar na serra parece?
Pois a ventura da gente
Sempre he mui diferente
Do que, ao parecer, merece.
VENADORO.
Tal resposta he manifesto
Não se parecer co'as cabras.
Pois não vos parece honesto
Saberdes matar co'o gesto,
Senão inda com palabras?
No mato tudo he rudeza.
Ha tal gesto e discrição?
Não o creio.
FLORIMENA.
Porque não?
Não supprirá natureza
Onde falta criação?
VENADORO.
Ja logo nisso, Senhora,
Dizeis, se não sinto mal,
Que do vosso natural
Não era serdes pastora.
FLORIMENA.
Digo, mas pouco me val.
VENADORO.
Pois quem vos pôde trazer
Á conversação do monte?
FLORIMENA.
Perguntae-o a essa fonte;
Que as cousas duras de crer,
Hum as faça, outro as conte.
VENADORO.
Esta fonte, que está aqui,
Que sabe do que dizeis?
FLORIMENA.
Senhor, mais não pergunteis.
Porque outra cousa de mi
Sabei que não sabereis.
De vós agora sabei,
O que não tendes sabido:
Se quereis ágoa, bebei;
Se andais por dita perdido,
Eu vos encaminharei.
VENADORO.
Senhora, eu não vos pedia
Que ninguem m'encaminhasse;
Que o caminho qu'eu queria,
Se o eu agora achasse,
Mais perdido me acharia.
Não quero passar daqui;
E não vos pareça espanto
Qu'em vos vendo me rendi;
Porque quando me perdi,
Não cuidei de ganhar tanto.
FLORIMENA.
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