Obras Completas de Luis de Camões, Tomo III - 03

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Costumadas artes são
Para enganar innocencias,
Piedosas apparencias
Sôbre isento coração.
Eu vos amo, e vós ingrato
Magoais-me,
Dizendo, que eu vos mato,
E vós matais-me.
Vêde agora qual de nós
Anda mais perto do fim,
Que a justiça faz-se em mim,
E o pregão diz que sois vós.
Quando mais verdade trato
Levantais-me
Que vos desamo e vos mato,
E vós matais-me.
* * * * *

PROPRIO.
Se de meu mal me contento,
He porque para vós vejo
Em todo o mundo desejo,
E em ninguem merecimento.
_Volta._
Para quem vos soube olhar
Tão impossivel foi ser
O poder-vos merecer,
Como o não vos desejar.
Pois logo a meu pensamento
Nenhum remedio lhe vejo,
Senão se der o desejo
Azas ao merecimento.
* * * * *

ALHEIO.
Vós, Senhora, tudo tendes,
Senão que tendes os olhos verdes.
_Voltas._
Dotou em vós natureza
O summo da perfeição;
Que o qu'em vós he senão,
He em outras gentileza:
O verde não se despreza,
Que, agora que vós os tendes,
São bellos os olhos verdes.
Ouro e azul he a melhor
Côr, por que a gente se perde;
Mas a graça desse verde
Tira a graça a toda côr.
Fica agora sendo a flor
A côr, que nos olhos tendes,
Porque são vossos e verdes.
* * * * *

ALHEIO.
Para que me dan tormento,
Aprovechando tan poco?
Perdido, mas no tan loco,
Que descubra lo que siento.
_Voltas._
Tiempo perdido es aquel
Que se passa en darme afan,
Pues cuanto más me lo dan,
Tanto menos siento dél.
Que descubra lo que siento?
No lo haré, que no es tan poco;
Que no puede ser tan loco
Quien tiene tal pensamiento.
Sepan que me manda Amor,
Que de tan dulce querella,
A nadie dé parte della,
Porque la sienta mayor.
Es tan dulce mi tormento,
Que aun se me antoja poco;
Y si es mucho, quedo loco
De gusto de lo que siento.
* * * * *

ALHEIO.
De vuestros ojos centellas,
Que encienden pechos de hielo,
Suben por el aire al cielo,
Y en llegando son estrellas.
_Voltas._
Falsos loores os dan,
Que essas centellas tan raras
No son nel cielo mas claras
Que en los ojos donde estan.
Porque cuando miro en ellas
Lo como alumbran al suelo,
No sé que seran nel cielo;
Mas sé que acá son estrellas.
Ni se puede presumir
Que al cielo suban, Señora;
Que la lumbre que en vós mora,
No tiene más que subir;
Mas pienso que dan querellas
Á Dios nel octavo cielo,
Porque son acá en el suelo
Dos tan hermosas estrellas.
* * * * *

ALHEIO.
De dentro tengo mi mal,
Que de fuera no hay señal.
_Volta._
Mi nueva y dulce querella
Es invisible á la gente;
El alma sola la siente,
Que el cuerpo no es dino della.
Como la viva centella
Se encubre en el pedernal,
De dentro tengo mi mal.
* * * * *

ALHEIO.
Amor loco, amor loco,
Yo por vós, y vós por otro.
_Voltas._
Dióme Amor tormentos dós,
Para que pene doblado;
Uno es verme desamado,
Otro es mancilla de vós.
Ved que ordena Amor en nós!
Porque vós haceisme loco,
Que seais loca por otro.
Tratais Amor de manera,
Que porque asi me tratais,
Quiere que, pues no me amais,
Que ameis otro que no os quiera.
Mas con todo, si no os viera
De todo loca por otro,
Con mas razon fuera loco.
Y tan contrario viviendo,
Alfin, alfin, conformamos;
Pues ambos a dós buscamos
Lo que mas nos vá huyendo.
Voy tras vós siempre siguiendo,
Y vós huyendo por otro:
Andais loca, y me haceis loco.
* * * * *

ALHEIO.
Vêde bem se nos meus dias
Os desgostos vi sobejos,
Pois tenho medo a desejos,
E quero mal a alegrias.
_Volta._
Se desejos fui ja ter,
Servírão de atormentar-me;
Se algum bem póde alegrar-me,
Quiz-me antes entristecer.
Passei annos, passei dias
Em desgostos tão sobejos,
Que só por não ter desejos,
Perderei mil alegrias.
* * * * *

PROPIO.
Pois he mais vosso que meu,
Senhora, meu coração,
Eu vosso captivo são,
Meus olhos, lembre-vos eu.
_Volta._
Lembre-vos minha tristeza,
Que jamais nunca me deixa;
Lembre-vos com quanta queixa
Se queixa minha firmeza:
Lembre-vos que não he meu
Este triste coração;
E pois ha tanta razão,
Meus olhos, lembre-vos eu.
* * * * *

OUTRO.
Senhora, pois minha vida
Tendes em vosso poder;
Por serdes della servida,
Não queirais que destruida
Possa ser.
_Volta._
Isto não por me pezar
De morrer, se vós quizerdes;
Que melhor me he acabar
Mil vezes, que supportar
Os males que me fizerdes;
Mas só por serdes servida
De mi, em quanto viver,
Vos peço que minha vida
Não queirais que destruida
Possa ser.
* * * * *

OUTRO.
Pois damno me faz olhar-vos,
Não quero, por não perder-vos,
Que ninguem me veja ver-vos.
_Voltas._
De ver-vos a não vos ver
Ha dous extremos mortaes;
E são elles em si taes,
Que hum por hum me faz morrer;
Mas antes quero escolher,
Que possa viver sem ver-vos,
Minh'alma, por não perder-vos.
Deste tamanho perigo
Que remedio posso ter,
Se vivo só com vos ver,
Se vos não vejo, perigo?
Mas quero acabar comigo,
Que ninguem me veja ver-vos,
Senhora, por não perder-vos.
* * * * *

A TRES DAMAS, QUE LHE DIZIÃO QUE O AMAVÃO.
_Mote._
Não sei se m'engana Helena,
Se Maria, se Joanna;
Não sei qual dellas m'engana.
_Voltas._
Huma diz que me quer bem,
Outra jura que me quer;
Mas em jura de mulher
Quem crerá, se ellas não crem?
Não posso não crer a Helena,
A Maria, nem Joanna;
Mas não sei qual mais m'engana.
Huma faz-me juramentos
Que só meu amor estima,
A outra diz que se fina,
Joanna, que bebe os ventos.
Se cuido que mente Helena,
Tambem mentirá Joanna;
Mas quem mente não m'engana.
* * * * *

A HUMA DAMA MAL EMPREGADA.
_Mote._
Menina, não sei dizer,
Vendo-vos tão acabada,
Quão triste estou por vos ver
Formosa e mal empregada.
_Voltas._
Quem tão mal vos empregou,
Pouco de mi se dohia,
Pois não vio o quanto me hia
Em tirar-me o que tirou.
Obriga o primor que tem
Lindeza tão extremada
Que digão quantos a vem,
Formosa e mal empregada!
Tomastes da formosura
Quanto della desejastes,
E com ella me guardastes
Para tão triste ventura.
Mataveis sendo solteira,
Matais agora em casada;
Matais de toda a maneira,
Formosa e mal empregada.
* * * * *

A HUMA Foãa Gonçalves.
_Mote._
Com vossos olhos, Gonçalves,
Senhora, captivo tendes
Este meu coração Mendes.
_Volta._
Eu sou boa testimunha,
Que Amor tem por cousa má,
Que olhos, que são homens ja,
Se nomeiem sem alcunha;
Pois o coração apunha,
E diz, olhos, pois vós tendes,
Chamae-me coração Mendes.
* * * * *

OUTRO
De que me serve fugir
De morte, dor e perigo,
Se me eu levo comigo?
_Voltas._
Tenho-me persuadido,
Por razão conveniente,
Que não posso ser contente,
Pois que pude ser nascido.
Anda sempre tão unido
O meu tormento comigo,
Qu'eu mesmo sou meu perigo.
E se de mi me livrasse,
Nenhum gôsto me sería:
Quem, senão eu, não teria
Mal, que esse bem me tirasse?
Fôrça he logo que assi passe,
Ou com desgôsto comigo,
Ou sem gôsto e sem perigo.
* * * * *

A HUMA DAMA, QUE JURAVA PELOS SEUS OLHOS.
Quando me quer enganar
A minha bella perjura,
Para mais me confirmar
O que quer certificar,
Polos seus olhos me jura.
Como meu contentamento
Todo se rege por elles,
Imagina o pensamento,
Que se faz aggravo a elles
Não crer tão grão juramento.
Porém como em casos tais
Ando ja visto e corrente,
Sem outros certos sinais,
Quanto me ella jura mais,
Tanto mais cuido que mente.
Então vendo-lhe offender
Huns taes olhos como aquelles,
Deixo-me antes tudo crer,
Só pola não constranger
A jurar falso por elles.
* * * * *

MOTE ALHEIO.
Ha hum bem, que chega e foge;
E chama-se este bem tal,
Ter bem para sentir mal.
_Volta._
Quem viveo sempre n'hum ser,
Inda que seja em pobreza,
Não vio o bem da riqueza,
Nem o mal d'empobrecer:
Não ganhou para perder;
Mas ganhou com vida igual
Não ter bem, nem sentir mal.
* * * * *

A HUMA DAMA, QUE LHE VIROU O ROSTO.
_Mote._
Olhos, não vos mereci
Que tenhais tal condição,
Tão liberaes para o chão,
Tão irosos para mi.
_Volta._
Baixos e honestos andais,
Por vos negardes a quem
Não quer mais que aquelle bem,
Que vós no chão espalhais?
Se pouco vos mereci,
Não m'estimeis mais que o chão,
A quem vós o galardão
Dais, e mo negais a mi.
* * * * *

PROPRIO.
Venceo-me Amor, não o nego;
Tẽe mais fôrça qu'eu assaz;
Que como he cego e rapaz,
Dá-me porrada de cego.
_Volta._
Só porque he rapaz ruim,
Dei-lhe hum boféte zombando.
Diz-me: Ó mao, estais me dando,
Porque sois maior que mim?
Pois se eu vos descarrégo,
E em dizendo isto, chaz;
Torna-me outra; tá rapaz,
Que dás porrada de cego.
* * * * *

AO DESCONCERTO DO MUNDO.
Os bons vi sempre passar
No mundo graves tormentos;
E para mais m'espantar,
Os maos vi sempre nadar
Em mar de contentamentos.
Cuidando alcançar assi
O bem tão mal ordenado,
Fui mao; mas fui castigado.
Assi, que só para mi
Anda o mundo concertado.
* * * * *

A HUMA DAMA, PERGUNTANDO-LHE QUEM O MATAVA.
_Mote._
Perguntais-me, quem me mata?
Não quero responder nada,
Por vos não fazer culpada.
_Volta._
E se a penna não me atiça,
A dizer pena tão forte,
Quero-me entregar á morte,
Antes que a vós á justiça.
Porém se tendes cobiça
De vos verdes tão culpada,
Direi que não sinto nada.
* * * * *

MOTE.
Esconjuro-te, Domingas,
Pois me dás tanto cuidado,
Que me digas se te vingas,
Viverei menos penado.
_Voltas._
Juravas-me, que outras cabras
Folgavas de apascentar;
Eu por não me magoar,
Fingia qu'erão palabras.
Agora d'arte te vingas
D'algum meu doudo peccado,
Qu'inda que queiras, Domingas,
Não posso ser enganado.
Qualquer cousa busca o seu;
A fonte vai para o Tejo,
E tu para o teu desejo,
Por te vingares do meu.
De mi t'esqueces, Domingas,
Como eu faço do meu gado:
Praza a Deos, que se te vingas,
Que morra desesperado.
Na phantasia te pinto,
Fallo-te, responde o monte,
Busco o rio, busco a fonte,
Endoudeço, e não o sinto:
Domingas no valle brado,
Responde o eco Domingas;
E tu inda te não vingas
De me ver doudo tornado!
* * * * *

ALHEIO.
Se a alma ver-se não póde
Onde pensamentos ferem,
Que farei para me crerem?
_Voltas._
Se n'alma huma só ferida
Faz na vida mil sinais,
Tanto se descobre mais,
Quanto he mais escondida.
S'esta dor tão conhecida
Me não vem, porque não querem,
Que farei para ma crerem?
Se se pudesse bem ver
Quanto callo, e quanto sento,
Despois de tanto tormento
Cuidaria alegre ser.
Mas se não me querem crer
Olhos, que tão mal me ferem,
Que farei para me crerem?
* * * * *

ALHEIO.
Vosso bem querer, Senhora,
Vosso mal melhor me fôra.
_Voltas._
Ja agora certo conheço
Ser melhor todo tormento,
Onde o arrependimento
Se compra por justo preço.
Enganou-me hum bom comêço;
Mas o fim me diz agora
Que o mal melhor me fôra.
Quando hum bem he tão damnoso,
Que sendo bem, dá cuidado,
O damno fica obrigado
A ser menos perigoso.
Mas se a mi por desditoso,
Co'o bem me foi mal, Senhora,
Co'o vosso mal bem me fôra.
* * * * *

ALHEIO.
Se me desta terra for,
Eu vos levarei, amor.
_Voltas._
Se me for, e vos deixar,
(Ponho por caso, que possa)
Est'alma minha, qu'he vossa,
Comvosco m'ha de ficar.
Assi que só por levar
A minha alma, se me for,
Vos levarei, meu amor.
Que mal póde maltratar-me,
Que comvosco seja mal?
Ou que bem póde ser tal,
Que sem vós possa alegrar-me?
O mal não póde enojar-me,
O bem me será maior,
Se vos levar, meu amor.
* * * * *

ALHEIO.
Pequenos contentamentos,
Hi buscar quem contenteis,
Que a mi não me conheceis.
_Voltas._
Os gostos, que tantas dores
Fizerão ja valer menos,
Não os acceita pequenos,
Quem nunca teve maiores:
Bem parecem vãos favores,
Pois tão tarde me quereis,
Qu'inda me não conheceis.
Offereceis-me alegria,
Tendo-me ja cego e mouco:
He baixeza acceitar pouco,
Quem tanto vos merecia.
Ide-vos por outra via,
Pois o bem que me deveis,
Nunca mo satisfareis.
* * * * *

ALHEIO.
Perdigão perdeo a penna,
Não ha mal que lhe não venha.
_Voltas._
Perdigão, que o pensamento
Subio a hum alto lugar,
Perde a penna do voar,
Ganha a pena do tormento:
Não tẽe no ar, nem no vento,
Azas com que se sostenha:
Não ha mal que lhe não venha.
Quiz voar a huma alta torre,
Mas achou-se desasado;
E vendo-se despennado,
De puro penado morre.
Se a queixumes se soccorre,
Lança no fogo mais lenha:
Não ha mal que lhe não venha.
* * * * *

A HUMAS SENHORAS, QUE HAVIÃO SER TERCEIRAS PARA COM HUMA DAMA.
Pois a tantas perdições,
Senhoras, quereis dar vida,
Ditosa seja a ferida,
Que tẽe taes Cirurgiões!
Pois ventura
Me subio a tanta altura,
Que me sejais valedoras,
Ditosa seja a tristura,
Que se cura
Por vossos rogos, Senhoras!
Ser minha pena mortal,
Ja qu'entendeis, que he assi,
Não quero fallar por mi,
Que por mi falla meu mal.
Sois formosas,
Haveis de ser piedosas,
Por ser tudo d'huma côr;
Que pois Amor vos fez rosas
Milagrosas,
Fazei milagres de Amor.
Pedi a quem vós sabeis,
Que saiba de meu trabalho,
Não pelo qu'eu nisso valho,
Mas pelo que vós valeis.
Que o valer
De vosso alto merecer,
Com lho pedir de giolhos,
Fara qu'em meu padecer
Possa ver
O poder que tẽe seus olhos.
Vossa muita formosura
Com a sua tanto val,
Que me rio de meu mal,
Quando cuido em quem me cura.
A meus ais,
Peço-vos que lhe valhais,
Damas de Amor tão valídas,
Que nunca tal dor sintais,
Que queirais,
Onde não sejais queridas.
* * * * *

CANTIGA ALHEIA.
Na fonte está Leonor
Lavando a talha, e chorando,
Ás amigas perguntando:
Vistes lá o meu amor?
_Voltas._
Pôsto o pensamento nelle,
Porque a tudo o Amor a obriga,
Cantava, mas a cantiga
Erão suspiros por elle.
Nisto estava Leonor
O seu desejo enganando,
Ás amigas perguntando:
Vistes lá o meu amor?
O rosto sôbre hũa mão,
Os olhos no chão pregados,
Que de chorar ja cansados,
Algum descanso lhe dão;
Desta sorte Leonor
Suspende de quando em quando
Sua dor; e em si tornando,
Mais pezada sente a dor.
Não deita dos olhos ágoa,
Que não quer que a dor s'abrande
Amor, porque em mágoa grande
Sécca as lagrimas a mágoa.
Despois que de seu amor
Soube novas perguntando,
D'improviso a vi chorando.
Olhae que extremos de dor!
* * * * *

ESTAS TROVAS MANDOU O AUTOR DA CADEIA, EM QUE O TINHA EMBARGADO POR HUMA
DIVIDA MIGUEL ROIZ, FIOS SECOS D'ALCUNHA, AO CONDE DO REDONDO D.
FRANCISCO COUTINHO, VISO-REI, QUE SE EMBARCAVA PARA FÓRA, PEDINDO-LHE O
FIZESSE DESEMBARGAR.
Que diabo ha tão damnado,
Que não tema a cutilada
Dos fios seccos da espada
Do fero Miguel armado?
Pois se tanto hum golpe seu
Sôa na infernal cadeia;
Do que o demonio arreceia
Como não fugirei eu?
Com razão lhe fugiria,
Se contr'elle, e contra tudo
Não tivesse hum forte escudo
Só em Vossa Senhoria.
Por tanto, Senhor, proveja,
Pois me tẽe ao remo atado,
Que antes que seja embarcado,
Eu desembargado seja.
* * * * *

ESTAS TROVAS MANDOU HEITOR DA SILVEIRA AO MESMO CONDE, INVERNANDO EM GOA.
Vossa Senhoria creia
Que não apura o engenho
Fome, se he como a que tenho,
Mas afraca e corta a veia.
E quem o contrário sente,
Está farto em toda a hora,
Como estou faminto agora:
Mas Martha, se está contente,
Dá-lhe pouco de quem chora.
E pois Vossa Senhoria
Em geral a tudo acode,
Acuda a mi, que só póde
Dar-me no engenho valia.
Esperte esta Musa minha,
Que o tempo traz somnolenta;
Valha-lhe nesta tormenta
Com essa doce mézinha,
Que só dá vida e contenta.
Acuda com provisão,
Não de papel, mas provída
D'ouro e prata; que esta vida
Não sustentão papéis, não.
De feitor a thesoureiro
Ser-me-hia trabalho grande;
Vossa Senhoria mande
Algum remedio, primeiro,
Com que a morte o ferro abrande.
_Ajuda de Luis de Camões._
Nos livros doutos se trata
Que o grande Achilles insano
Deo a morte a Heitor Troiano;
Mas agora a fome mata
O nosso Heitor Lusitano.
Só ella o póde acabar,
Se essa vossa condição
Liberal e singular
Não mete entr'elles bastão,
Bastante para o fartar.
* * * * *

A HUMA SENHORA, QUE LHE CHAMOU DIABO.
_Esparsa._
Não posso chegar ao cabo
De tamanho desarranjo,
Que sendo vós, Senhora, Anjo,
Vos queira tanto o Diabo.
Dais manifesto sinal
De minha muita firmeza,
Que os diabos querem mal
Aos Anjos por natureza.
* * * * *

CANTIGA.
Vi chorar huns claros olhos,
Quando delles me partia.
Oh que mágoa! Oh que alegria!
_Voltas._
Polo meu apartamento
Se arrazárão todos d'ágoa.
Quem cuidou qu'em tanta mágoa
Achasse contentamento?
Julgue todo entendimento
Qual mais sentir se devia,
Se esta dor, se esta alegria?
Quando mais perdido estive,
Então deo a est'alma minha
Na maior mágoa que tinha,
O maior gôsto que tive.
Assi, se minha alma vive,
Foi porque me defendia
Desta dor esta alegria?
O bem, que Amor me não deu
No tempo que desejei,
Quando delle me apartei,
Me confessou, qu'era meu.
Agora que farei eu,
Se a fortuna me desvia
De lograr esta alegria?
Não sei se foi enganado,
Pois me tinha defendido
Das íras de mal querido,
No mal de ser apartado.
Agora peno dobrado,
Achando no fim do dia
O princípio da alegria.
* * * * *

VILLANCETE PASTORIL.
Deos te salve, Vasco amigo.
Não me fallas? Como assi?
Bofé, Gil, não 'stava aqui.
_Voltas._
Pois onde te hão de fallar,
Se não 'stás onde appareces?
Se Magdanela conheces,
Nella me pódes achar.
E como te hão d'ir buscar
Aonde fogem de ti?
Pois nem eu estou em mi.
Porque te não acharei
Em ti, como em Magdanela?
Porque me fui perder nella
O dia que me ganhei.
Quem tão bem falla, não sei
Como anda fóra de si.
Ella falla dentro em mi.
Como estás aqui presente,
Se lá tens a alma e a vida?
Porqu'he d'hum'alma perdida
Apparecer sempre á gente.
Se es morto, bem se consente
Que todos fujão de ti.
Eu tambem fujo de mi.
* * * * *

OUTRO PASTORIL.
Porque no miras, Giraldo,
Mi zampoña como suena?
Porque no me mira Elena.
_Voltas._
Vuelve acá, no estês pasmado,
Mira que gentil sonar!
Como te podrá mirar
Quien no puede ser mirado?
Y que bueno enamorado!
No dirás, si es mala, o buena?
No, que me hizo mudo Elena.
Mira tan dulce armonía,
Déjate dessos enojos.
Tengo clavados los ojos
Con que mirar te podia.
Ansí Dios te dé alegría:
No vés cuan dulce que suena?
No, porque no veo Elena.
* * * * *

OUTRO PASTORIL.
Crescem, Camilla, os abrolhos
De chorares por Cincero:
Não he muito, que lhe quero,
Belisa, mais que meus olhos.
_Voltas._
Sempre os teus olhos estão,
Camilla, d'ágoas banhados.
De se verem desamados
Póde ser que chorarão.
Si, mas crescem os abrolhos,
E tu cegas por Cincero.
S'eu não vejo quem mais quero,
Para que quero mais olhos?
Se se foi ha mais d'hum mês,
Teus olhos não cansarão?
Não, que apos elle se vão
Estas lagrimas que vês.
Fazem logo estes abrolhos
O mato espinhoso e fero.
Pois eu não vejo a Cincero,
Isso só verão meus olhos.
Chorando queres morrer?
Mais quero viver chorando.
Tu não vês que vás cegando?
Se cego, como hei de ver?
Põe na vista outros antolhos.
Não posso, nem menos quero.
Outra para outro Cincero,
Antes não quero ter olhos.
* * * * *

A HUMA MULHER, QUE SE CHAMAVA GRACIA DE MORAES.
_Mote._
Olhos, em qu'estão mil flores,
E com tanta graça olhais,
Que parece que os Amores
Morão onde vós morais.
_Volta._
Vem-se rosas e boninas,
Olhos, nesse vosso ver;
Vem-se mil almas arder
No fogo dessas meninas.
E di-lo-hão minhas dores,
Meus suspiros e meus ais;
E dirão mais, que os amores
Morão onde vós morais.
* * * * *

MOTE.
Quem se confia em huns olhos,
Nas meninas delles vê
Que meninas não tẽe fé.
_Voltas._
Quem põe suas confianças
Em meninas sem assento,
Offereça o soffrimento
A duzentas mil mudanças.
Mostrão no ar esperanças;
Mas em seus olhos se vê
Como não tẽe n'alma fé.
Enganão ao parecer,
Porque no caso d'amar,
São mulheres no matar,
E meninas no querer.
Quem em seus olhos se crer,
Cem mil graças nelles vê;
Vê-las sim, mas não ter fé.
Amostrão-vos n'hum momento
Favores assi a mólhos;
Mas na mudança dos olhos
Se lhe muda o pensamento.
Em nada ja tẽe assento,
E o que mais nelles se vê
He formosura sem fé.
* * * * *

LOUVANDO E DESLOUVANDO UMA DAMA.
_Cantiga Velha._
Sois formosa, e tudo tendes,
Senão que tendes os olhos verdes,
_Voltas._
Ninguem vos póde tirar
Serdes tão bem assombrada;
Mas heis-me de perdoar,
Que os olhos não valem nada.
Fostes mal aconselhada
Em querer que fossem verdes:
Trabalhae de os esconderdes.
A vossa testa he jardim,
Onde Amor se desenfada;
He tão branca e bem talhada,
Que parece de marfim.
Assi he; e quanto a mim,
Isso vos nasce de a terdes
Tão perto dos olhos verdes.
Os cabellos desatados
O mesmo sol escurecem;
Senão que por ser ondados,
Algum tanto desmerecem:
Mas á fé, que se parecem
A furto dos olhos verdes,
Não vos peze, não, de os terdes.
As pestanas tẽe mostrado
Ser raios, que abrazão vidas:
Se não forão tão compridas,
Tudo o mais era pintado:
Ellas me tinhão levado
A alma, sem o vós saberdes,
Se não forão os olhos verdes.
O mimo desse carão
Nem pôr-lhe os olhos consente:
O ser liso e transparente
Rouba todo o coração:
Inda assi achareis nação,
Que lhe não peze de os verdes;
Mas não seja co'os olhos verdes.
Esse riso, que he compôsto
De quantas graças nascêrão,
Senão que alguns me disserão,
Vos faz covinhas no rôsto.
Na vontade tenho posto
Dar-vos a alma, se quizerdes,
A trôco dos olhos verdes.
Nunca se vio, nem se escreve
Boca co'huma graça igual,
Se não fôra de coral,
E os dentes de côr de neve.
Dou-me eu a Deos, que me leve!
Soffrerei quanto tiverdes,
Não me tenhais olhos verdes.
Essa garganta merece
Outras palavras não minhas,
Senão qu'he feita em rosquinhas
D'alfenim, ao que parece.
Eu sei bem quem se offerece
A tomar tudo o que tendes,
E tambem os olhos verdes.
Essas mãos são ferropeas:
Só o vê-las enfeitiça;
Senão que são alvas, cheias,
E tẽe a feição roliça;
Com que appellais por justiça,
Para com ellas prenderdes
Quem vê vossos olhos verdes.
A vossa galantaria
Matará a quem fallardes:
Tendes huns desdens e tardes,
Que eu logo vos roubaria.
Oh dou-me a Santa Maria!
Sou cujo de quanto tendes,
E tambem desses olhos verdes.
* * * * *

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