Obras Completas de Luis de Camões, Tomo III - 10

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Não dês materia nova a novos danos,
Não pagues verde á morte o seu tributo:
Olha que tens em mi (não são cautelas)
Outro Reino, outro esposo, outras donzelas.
Não faças mentirosa a natureza
Que dá d'amor em ti grande esperança.
Que se póde alcançar d'essa belleza,
Se ja piedade della não s'alcança?
Aos tigres, aos leões deixa a braveza,
E deixa aos meus soldados a vingança.
Se por ver-me cruel queres ser crua,
Ja te vingas de mi em cousa tua.
Volve esses olhos ja com mais brandura;
Esses olhos, d'Amor doce morada:
Delles não faça em mi a formosura,
O qu'em tantos ja fez a minha espada.
Se queres derribar minha ventura,
Que delles estar vejo pendurada,
Acabarei de ver quão pouca tenho,
Pois donde a matar vim a morrer venho.
Como do rôgo meu não te aproveitas,
Quando o teu risco a me rogar te obriga?
Ou não conheces bem a quem engeitas,
Ou m'engeitas por mais que seja e diga.
Em que cuidas, Senhora? ou que suspeitas?
Mais proprio era chamar-te dura imiga.
Mas não consente Amor nome tão duro
Em parecer tão brando e tão seguro.
Os raios desses olhos ja serenos
Enxuguem desse rosto as puras rosas;
O triste suspirar ja sôe menos
Nestas concavidades saudosas.
Não fação grande mal males pequenos;
Que não soffre esperanças vagarosas
Quem anda costumado em seus amores
A medir por seu gôsto seus favores.
Que gôsto podes ter de maltratar-me,
Vendo-me do passado arrependido?
Attenta que mais ganhas em ganhar-me,
Do que neste destrôço tens perdido.
Se queres insistir em desprezar-me,
Ver-me-has, sôbre amoroso, enfurecido.
Não me declaro mais, porque não quero
Que o medo faça o que d'amor espero.
Ah perfido amador! deixa o teu êrro.
Não vês quanto enganado e cego andas?
Aquella a quem não vence o duro ferro,
Como a podem vencer palavras brandas?
Manda a sua alma ja deste destêrro,
Com essas que a seu doce Esposo mandas.
Não a detenhas mais em teus amores,
Se dobrar-lhe não queres suas dores.
Vendo o cruel, emfim, que o que dizia,
Tomava a bella virgem por affronta,
E que quanto d'amor mais se accendia,
Ella delle fazia menos conta;
No concavo arco que na mão trazia,
Huma setta embebeo d'aguda ponta,
E o peito lhe passou de banda a banda.
Assi rendeo o esprito a virgem branda.
Vae-te, Esprito gentil, desta baixeza;
As azas abre ja, ja a luz derrama;
Vôa com desusada ligeireza
Onde o teu Bem t'espera, onde te chama.
Verás baixa do mundo a mór alteza;
Verás qu'engana mais a quem mais ama;
E lá do teu Amor, cá suspirado,
O fructo colherás tão desejado.
Em paz te vae, ó alma pura e bella,
Mais bella inda no sangue que verteste;
Vae-te alegre a gozar, vae, ja daquella
Formosa Região, alta e celeste.
Coroada de glória immortal, nella
Com Christo lograrás, a quem te déste
Com tantas e tão bem nascidas almas,
(Formosura do Ceo) onze mil palmas.
* * * * *


COMEDIAS.

INTERLOCUTORES.

DO PROLOGO.
O MORDOMO, ou DONO DA CASA.
MARTIM CHINCHORRO.
AMBROSIO, Escudeiro.
LANÇAROTE, Moço.

DA COMEDIA.
ELREI SELEUCO.
A RAINHA ESTRATONICA.
O PRINCIPE ANTIOCHO.
LEOCADIO, Pagem do Principe Antiocho.
FROLALTA, Criada da Rainha Estratonica.
HUM PORTEIRO DA CANA.
HUMA MOÇA DA CAMARA.
HUM PHYSICO, ou MEDICO.
SANCHO, Moço do Physico.
ALEXANDRE DA FONSECA, hum dos Musicos.

* * * * *

ELREI SELEUCO.
COMEDIA.


PROLOGO.
_Diz logo o Mordomo, ou Dono da Casa._
Eis, Senhores, o Autor, por me honrar nesta festival noite, me quiz
representar huma Farça; e diz, que por não se encontrar com outras ja
feitas, buscou huns novos fundamentos para a quem tiver hum juizo assi
arrazoado satisfazer. E diz que quem se della não contentar, querendo
outros novos acontecimentos, que se vá aos soalheiros dos Escudeiros da
Castanheira, ou de Alhos Vedros e Barreiro, ou converse na Rua Nova em
casa do Boticario; e não lhe faltará que conte. Porém diz o Autor que
usou nesta obra da maneira de Isopete. Ora quanto á obra, se não parecer
bem a todos, o Autor diz que entende della menos que todos os que lha
puderem emendar. Todavia, isto he para praguentos: aos quaes diz que
responde com hum dito de hum Philosopho, que diz: _Vós outros estudastes
para praguejar, e eu para desprezar praguentos?_ Eu com tudo quero saber
da Farça, em que ponto vai. Lançarote?
MOÇO.
Senhor.
MORDOMO.
São ja chegadas as figuras?
MOÇO.
Chegadas são ellas quasi ao fim de sua vida.
MORDOMO.
Como assi?
MOÇO.
Porque foi a gente tanta, que não ficou capa com friza, nem talão de
çapato, que não sahisse fóra do couce. Ora vierão huns embuçadetes, e
quizerão entrar por fôrça; ei-lo arrancamento na mão: derão huma pedrada
na cabeça ao Anjo, e rasgárão huma meia calça ao Ermitão; e agora diz o
Anjo que não ha de entrar, até lhe não darem huma cabeça nova, nem o
Ermitão até lhe não pôrem huma estopada na calça. Este pantufo se perdeo
alli; mande-o v. m. Domingo apregoar nos pulpitos; que não quero nada do
alheio.
MORDOMO.
Se elle fôra outra peça de mais valia, tu botáras a consciencia pela
porta fóra, para o metteres em tua casa.
MOÇO.
Oh! se o elle fôra, mais consciencia sería torná-lo a seu dono, quem o
havia mister para si.
MORDOMO.
Ora vem cá: vai daqui a casa de Martim Chinchorro, e dize-lhe que temos
cá Auto com grande fogueira; que se venha sua mercê para cá, e que traga
comsigo o Senhor Romão d'Alvarenga, para que sôbre o Canto-chão botemos
nosso contraponto de zombaria. Ouves, Lançarote? ir-lhe-has abrir a
porta do quintal, porque mudemos o vinte aos que cuidão de entrar por
fôrça.
_Indo-se o Moço diz:_
Chichelo de Judeo, assi como foste pantufo, que te custava ser huma
bolsa com hum par de reales, que são bons para Escudeiro hypocrita; que
são pouco, e valem muito?
MORDOMO.
Moço, que estás fazendo que não vás?
MOÇO.
Senhor, estou tardando, e porém estou cuidando que se agora fôra aquelle
tempo, em que corrião as moedas dos sambarcos, sempre deste tiraria para
humas palmilhas. Mas ja que assi he, diga-me v. m. que farei deste?
MORDOMO.
Oh fideputa bargante! esperae, que est'outro vo-lo dirá.
_Faz que lhe atira com outro pantufo; vai-se o Moço, e diz o Mordomo:_
Não ha mais mao conselho, que ter hum villão destes mimoso, porque logo
passão o pé além da mão, e zombão assi da gravidade de seu amo. Mas
tornando ao que importa; vossas mercês he necessario que se cheguem huns
para os outros, para darem lugar aos outros Senhores que hão de vir; que
de outra maneira, se todo o corro se ha de gastar em palanques, será bom
mandar fazer outro alvalade; e mais, que me hão de fazer mercê, que se
hão de desembuçar, porque eu não sei quem me quer bem, nem quem me quer
mal: este só desgôsto tẽe hum Auto, que he como offício de Alcaide; ou
haveis deixar entrar a todos, ou vos hão de ter por villão ruim.
_Entra Martim Chinchorro, fallando com o Escudeiro Ambrosio, e diz:_
MARTIM.
Entre v. m.
AMBROSIO.
Dias ha, Senhor, que ando de quebras com cortezias; e por isso vou
diante. Beijo as mãos a v. m. A verdade he esta, passear em casa
juncada, fogueira com castanhas, mesa posta com alcatifa e cartas; além
disto Auto para esgaravatar os dentes: esta he a vida, de que se ha de
fazer consciencia.
MORDOMO.
Senhor, o descanso dizem lá, que se ha de ter em quanto homem puder,
porque os trabalhos, sem os chamarem, de seu se vem por seu pé, que seu
nome he.
MARTIM.
Ora pois, Senhor, o Auto que tal dizem que he? Porque hum Auto enfadonho
traz mais somno comsigo que huma prégação comprida.
MORDOMO.
Senhor, por bom mo vendêrão, e eu o tomei á cala de sua boa fama. E se
tal he, eu acho que, por outra parte, não ha tal vida, como ouvir hum
villão, que arranca a falla da garganta, mais sem sabor que huma
pera-pão, e huma donzella, que vem podre de amor, fallando como
Apostolo, mais piedosa que huma lamentação.
MARTIM.
Para estes taes he grande peça rapaz travesso com mólho de junco, porque
não andem mais ao coscorrão, mais roucos que huma cigarra, trazendo de
si enfadamento.
MOÇO.
O lá Senhoras; pedem as figuras alfinetes para toucarem hum Escudeiro.
Ora sus, ha hi quem dê mais? que ainda vos veja todas a mim ás
rebatinhas: ora sus, venhão de mano em mano, ou de mana em mana.
MORDOMO.
Moço, falla bem ensinado.
MOÇO.
Senhor, não faz ao caso; que os erros por amores tẽe privilegio
de Moedeiro.
AMBROSIO.
Ó rapaz, não me entendes? Pergunto-te se tardarão muito por entrar.
MOÇO.
Parece-me, Senhor, que antes que amanheça começarão.
AMBROSIO.
Oh que salgado moço! Zombas de mi? Vem cá. Donde es natural?
MOÇO.
Donde quer que me acho.
AMBROSIO.
Pergunto-te onde nasceste.
MOÇO.
Nas mãos das parteiras.
AMBROSIO.
Em que terra?
MOÇO.
Toda a terra he huma; e mais eu nasci em casa assobradada, varrida
daquella hora, que não havia palmo de terra nella.
MARTIM.
Bem varrido de vergonha que me tu pareces. Dize: Cujo filho es? He para
ver com que disparate respondes.
MOÇO.
A fallar verdade, parece-me a mi, que eu sou filho de hum meu tio.
MARTIM.
Vem cá. De teu tio! E isso como?
MOÇO.
Como? Isto, Senhor, he adivinhação, que vossas mercês não entendem. Meu
pae era Clerigo, e os Clerigos sempre chamão aos filhos sobrinhos; e
daqui me ficou a mi ser filho de meu tio.
MARTIM.
Ora te digo que es gracioso. Senhor, donde houvestes este?
MORDOMO.
Aqui me veio ás mãos sem piós nem nada; e eu por gracioso o tomei; e
mais tẽe outra cousa, que huma trova fa-la tão bem como vós, ou como
eu, ou como o Chiado.
AMBROSIO.
Não! quanté disso nós havemos-lhe de ver fazer alguma cousa, em quanto
se vestem as figuras. Aindaque, para que he mais Auto, que vermos a este?
MORDOMO.
Vem cá, moço: dize aquella trova que fizeste á moça Briolanja, por amor
de mi!
MOÇO.
Senhor, si, direi; mas aquella trova não he senão para quem a entender.
MARTIM.
Como! Tão escura he ella?
MOÇO.
Senhor, assi a fiz e a escrevi na memoria, porque eu não sei escrever
senão com carvão; e porém diz assi:
Por amor de vós, Briolanja,
Ando eu morto,
Pezar de meu avô torto.
MARTIM.
Oh como he galante! Que descuido tão gracioso! Mas vem cá: que culpa te
tẽe teu avô nos desfavores que te tua dama dá?
MOÇO.
Pois, Senhor, se eu houve de pezar de alguem, não pezarei eu antes dos
meus parentes, que dos alheios?
MORDOMO.
Pois oução vossas mercês a volta; que he mais cheia de gavetas, que
trombeta de Serenissimo de la Valla.
MOÇO.
A volta, Senhores, he mui funda; e parece-me, Senhores, que nem de
mergulho a entenderão. E por isso mandem assoar os engenhos, e metão
mais huma sardinha no entendimento; e póde ser que com esta servilha lhe
calçará melhor: e todavia palra assi:
Vossos olhos tão daninhos
Me tratárão de feição,
Que não ha em meu coração
Em que atem dous reis de cominhos.
Meu bem anda sem focinhos
Por vós morto,
Pezar de meu avô torto.
MARTIM.
Ora bem: que tẽe de ver os cominhos com o teu coração?
MOÇO.
Pois, Senhores, coração, bofes, baço e toda a outra mais cabedella, não
se podem comer senão com cominhos: e mais, Senhores, minha dama era
tendeira; e este he o verdadeiro entendimento.
MARTIM.
E aquella regra que diz, _Meu bem anda sem focinhos_, me dá tu a
entender; que ella não dá nada de si.
MOÇO.
Nunca vossas mercês ouvirão dizer: _Meu bem e meu mal lutárão hum dia;
meu bem era tal, que meu mal o vencia?_ Pois desta luta foi tamanha a
quéda que meu bem deo entre humas pedras, que quebrou os focinhos; e por
ficarem tão esfarrapados, que lhe não podião botar pedaço; por conselho
dos Physicos lhos cortárão por lhe nelles não saltarem erpes; e daqui
ficou: _Meu bem anda sem focinhos_, como diz o texto.
AMBROSIO.
Tu fazes ja melhores argumentos, que moços de estudo por dia de S. Nicolao.
MARTIM.
Senhor, aquillo tudo he bom engenho: este moço he natural para Logico.
MOÇO.
Que, Senhor? Natural para loja! Si, mas não tão fria como vossas mercês.
MORDOMO.
Parece-me, Senhor, que entra a primeira figura. Moço, mete-te aqui por
baixo desta mesa, e ouçamos este Representador, que vem mais amarrotado
dos encontros, que hum capuz roxo de piloto que sahe em terra, e o tira
da arca de cedro.
MARTIM.
Senhor, elle parece que aprende a cirurgião.
AMBROSIO.
Mais parece ourinol capado, que anda de amores com a menina dos olhos
verdes.
MORDOMO.
Emfim, parece figura de Auto em verdade.
_Entra o Representador._
He lei de direito, assaz verdadeira,
Julgar por si mesmos aquillo que vem;
Peloque, se cuidão que zombo de alguem,
Eu cuido que zombão da mesma maneira.
E assi a qualquer parece que está mais dobrado, sem nenhum conhecer seu
proprio engano, por grande que seja. Ora, Senhores, a mim me esquece o
dito todo de ponto em claro: mas não sou de culpar, porque não ha mais
que tres dias que mo derão. Mas em breves palavras direi a vossas mercês
a summa da obra: ella he toda de rir, do cabo até á ponta. Entrarão logo
primeiramente quinze donzellas que vão fugidas de casa de seus paes, e
vão com cabazes apanhar azeitona; e traz ellas vem logo oito mundanos,
metidos em hum covão, cantando: _Quem os amores tẽe em Cintra_; e
despois de cantarem farão huma dança de espadas; cousa muito para ver:
entra mais ElRei Dom Sancho bailando os machatins, e entra logo
Catharina Real com huns poucos de parvos n'huma joeira; e semeá-los-ha
pela casa, de que nascerá muito mantimento ao riso. E nisto fenecerá o
Auto, com musica de chocalho e buzinas, que Cupido vem dar a huma
alfeloeira a quem quer bem; e ir-se-hão vossas mercês cada hum para suas
pousadas, ou consoarão cá comnosco disso que ahi houver. Parece-me que
nenhum diz que não. Ora pois ficareis _in vanum laboraverunt_, porque
atégora zombei de vós, por me forrar do êrro da representação, como quem
diz, _digo-to, antes que mo digas._
AMBROSIO.
Ora vos digo, Senhores, que se as figuras são todas taes, que acertarião
em errar os ditos; aindaque me parece que este o não fez, senão a ser
mais galante. Mas se assi he, ella he a melhor invenção que eu vi;
porque jagora representações, todas he darem por praguentos; e são tão
certas, que he melhor errá-las, que acertá-las.
MORDOMO.
Parece-me que entrão as figuras de siso: vejamos se são tão galantes na
prática, como nos vestidos.

* * * * *

_Entra El Rei Seleuco, com a Rainha Estratonica._
REI.
Senhora, desque a ventura
Me quiz dar-vos por mulher,
Me sinto emmeninecer;
Porqu'em vossa formosura
Perde a velhice seu ser.
Hum homem velho, cansado,
Não tẽe fôrça, nem vigor,
Para em si sentir amor:
Se não he qu'estou mudado
Com ser vosso n'outra côr.
Muito grande dita tem
A mulher que he formosa.
RAINHA.
Senhor, grande: mas porém
Se a tal he virtuosa,
Quer-lhe a ventura mor bem.
REI.
Si, mas porém nunca vemos
A natureza esmerar
Adonde haja que taxar;
Que quando ella faz extremos,
Em tudo quer-se extremar.
Eu fallo como quem sente
Em vós está calidade,
Pelo que vejo presente;
E se me esta mostra mente,
Mente-me a mesma verdade.
Huma só tristeza tenho
Que não tẽe a meninice,
Que no mor contentamento
O trabalho da velhice
Me embaraça o sentimento.
RAINHA.
Senhor, novidades tais
Far-me-hão crer de verdade...
REI.
Novidades lhe chamais!
Folgo, Senhora, que achais
Na velhice novidades.
RAINHA.
Senhor, dias ha que sento
Em o Principe Antiôcho
Certo descontentamento:
Dera alguma cousa a trôco
Por saber seu sentimento.
Vejo-lhe amarello o rosto,
Ou de triste, ou de doente:
Ou elle anda mal disposto,
Ou lá tẽe certo desgôsto
Que o não deixa ser contente.
Mande, Senhor, vossa Alteza
A chamá-lo por alguem,
Saberemos que mal tem,
Se he doença de tristeza,
De que nasce, ou de que vem.
REI.
Certo qu'eu me maravilho
Do que vos ouço dizer.
Que mal póde nelle haver?
Ide dizer a meu filho
Que me venha logo ver.
RAINHA.
Se curar não se procura
Huma cousa destas tais,
Vem despois a crescer mais.
Quando ja não se acha cura,
Toda a cura he por demais.
_Entra o Principe Antiocho com seu Pagem por nome Leocadio._
PRINCIPE.
Leocadio, se es avisado,
E não te falta saber,
Saber-me-has dar a entender,
Quem ama desesperado,
Que fim espera de haver?
PAGEM.
Senhor, não.
Mas porém porque razão
Lhe avem sabê-lo, ou de que?
PRINCIPE.
Pergunto-te a conclusão;
Não me perguntes porque.
Porque he minha pena tal,
E de tão estranho ser,
Que me hei de deixar morrer;
E por não cuidar no mal
O não ouso de dizer.
Que maneira de tormento
Tão estranho e evidente,
Que nem cuidar se consente!
Porque o mesmo pensamento
Ha medo do mal que sente.
PAGEM.
Não entendo a Vossa Alteza.
PRINCIPE.
Assi importa á minha dor.
PAGEM.
E porque razão, Senhor?
PRINCIPE.
Para que seja a tristeza
Castigo do meu temor.
Porque ordena
O Amor, que me condena,
Que se haja de sentir,
E sem dizer nem ouvir.
Bem-aventurada a pena
Que se póde descobrir!
Oh caso grande e medonho!
Oh duro tormento fero!
Verdade he isto, qu'eu quero?
Não he verdade, mas sonho
De que acordar não espero.
Quero-me chegar a ElRei
Meu pae, que ja m'está vendo.
Mas onde vou? Não m'entendo.
Com que olhos eu olharei
Hum pae, a quem tanto offendo?
Que novo modo de antolhos!
Porque neste atrevimento
Devêra meu sentimento
Para elle não ter olhos,
Nem para ella pensamento.
_Chega aonde está ElRei, e diz:_
REI.
Filho, como andais assi?
Que tanto desgôsto tomo
De vos ver como vos vi!
PRINCIPE.
Não sei eu tanto de mi,
Que possa saber o como.
Dias ha ja, Senhor, que ando
Mal disposto, sem saber
Este mal que possa ser;
Que se nelle estou cuidando,
Quasi me vejo morrer.
REI.
Pois, filho, será razão
Que meus Physicos vos vejão.
PRINCIPE.
Os Physicos, Senhor, não;
Que os males qu'em mi estão,
São curas que me sobejão.
RAINHA.
Deite-se; que na verdade
Hum corpo, deitado e manso,
Descansa á sua vontade.
PRINCIPE.
Senhora, esta enfermidade
Não se cura com descanso.
RAINHA.
Todavia, bom será
Que lhe fação huma cama.
PRINCIPE.
(Hum coxim abastará,
Que assi não descansará
O repouso de quem ama.)
REI.
Vamos, filho, para dentro,
Em quanto a cama se faz:
Repousae como capaz;
Que a mi me dá cá no centro
A pena que assi vos traz.
_Vão-se, e vem huma moça a fazer a cama e diz:_
MOÇA.
Mimos de grandes Senhores,
E suas extremidades,
Me hão de matar de amores,
Porque de meros dulçores
Adoecem.
Então logo lhes parecem
Aos outros, que são mamados;
E os que são mais privados,
Sôbre elles estremecem.
Certo (e assi Deos me ajude!)
Que são muito graciosos,
Porque de meros viçosos,
Não podem com a saude.
Mas deixallos,
Porque elles darão nos vallos,
Donde mais não se erguerão,
Inda que lhe dem a mão
Os seus privados vassallos.
_Entra hum Porteiro da Cana, e bate primeiro e diz:_
PORTEIRO.
Traz, traz.
MOÇA.
Jesu! Quem'stá ahi?
PORTEIRO.
Ja vós, mana, ereis mamada:
Para vos levar furtada
Nunca tal ensejo vi.
E vós estais descuidada!
MOÇA.
E meus descuidos que fazem?
PORTEIRO.
Vossos descuidos? cadella!
Ah minh'alma! Sois tão bella,
Qu'esses descuidos me trazem
Dous mil cuidados á vela.
Pois sou vosso ha tantos annos,
Mana, tirae os antolhos,
E vereis meus tristes dannos.
MOÇA.
Não tenhais esses enganos.
PORTEIRO.
Nem vós tenhais esses olhos;
Que de vossos olhos vem
Esta minha pena fera.
MOÇA.
De meus olhos? Assim era.
PORTEIRO.
Moça, que taes olhos tem,
Nenhuns olhos ver devêra.
MOÇA.
E porque?
PORTEIRO.
Porque cegais
A quantos olhos olhais,
Postoque por vós padecem.
Olhos, que tão bem parecem,
Porque não os castigais?
MOÇA.
Deos dê siso, pois de vós
Tirou o que aos outros deu.
PORTEIRO.
Desatae-me lá esses nós.
Que mais siso quero eu,
Que não ter siso por vós?
MOÇA.
Fallais d'arte; eu vos prometo
Que a resposta vem á vela.
Isso he ôlho de panella.
Quanto ha ja que sois discreto?
PORTEIRO.
Quanto ha ja que vós sois bella?
MOÇA.
Dais-me logo a entender
Que eu sou feia, a meu ver.
PORTEIRO.
E isso porque o entendeis?
MOÇA.
Porque? Porque me dizeis
Que só de meu parecer
Vos procede o que sabeis.
PORTEIRO.
He verdade.
MOÇA.
Pois bem sento
Que o vosso saber he vento.
Fica a cousa declarada,
Meu parecer não ser nada.
PORTEIRO.
Olhae aquelle argumento:
Além de bella, avisada!
Oh nem tanto, nem tão pouco!
Vêde vós o que fallais.
MOÇA.
Cego no saber andais.
PORTEIRO.
No siso, mas não tão louco
Como vós, mana, cuidais.
Ora dizei, duna má:
Que não amais, quem vos ama?
MOÇA.
Ouvistes vós cantar ja,
_Velho malo, em minha cama?_
Ja m'entendereis.
PORTEIRO.
Ha, ha.
Senhora, estais enganada;
Que com huma capa e espada,
E com este capuz fóra...
MOÇA.
Ora bem: tirae-o ora,
E fazei huma levada.
PORTEIRO.
Não: se m'eu hoje alvoróço,
Achar-me-heis d'outra feição.
_Aqui tira o capuz e diz:_
PORTEIRO.
Tenho má disposição?
Estas obras são de moço,
Se as mostras de velho são.
MOÇA.
Tendes mui gentis meneios.
PORTEIRO.
Não, Senhora; faço extremos.
MOÇA.
Passeae ora, veremos
Se tendes tão bons passeios.
PORTEIRO.
Tudo, Senhora, faremos.
MOÇA.
Virae ora a essoutra mão.
PORTEIRO.
Esta disposição vêde-a;
Que tenho gentil feição.
MOÇA.
Tendes vós mui boa redea.
Soffreis ancas?
PORTEIRO.
Isso não.
MOÇA.
Por certo que tendes graça
Em tudo quanto fizerdes.
Fazei mais o que souberdes.
PORTEIRO.
Não sei cousa que não faça,
Senhora, por me quererdes.
MOÇA.
Tendes vós muito bom ar.
PORTEIRO.
Mais qu'isto faz quem quer bem.
MOÇA.
I-vos asinha, que vem
O Principe a se deitar.
PORTEIRO.
Nunca huma pessoa tem
Hum'hora para fallar!
_Entra o Principe com o seu Pagem Leocadio e diz:_
PRINCIPE.
Seja a morte apercebida,
Porque ja o Amor ordena
A dar a meu mal sahida;
Porque o fim da minha vida
O seja da minha pena.
Não tarde, para tomar
Vingança de meu querer,
Pois não se póde dizer
Que não tẽe ja que esperar,
Nem com que satisfazer?
Os Physicos vem e vão,
Sem saberem minhas mágoas,
Nem o pulso me acharão;
E se o querem ver nas ágoas,
As dos olhos lho dirão.
Se com sangrias tambem
Procurão ver-me curado;
O temor de meu cuidado
O mais do sangue me tem
Nas veias todo coalhado.
Quero-me aqui encostar,
Que ja o esprito me cae.
Leocadio, vae-me chamar
Os Musicos de meu Pae;
Folgarei de ouvir cantar.
_Aqui se deita, como que repousa e falla dizendo assi:_
PRINCIPE.
Senhora, qual desatino
Me trouxe a tanta tristura?
Foi, Senhora, por ventura
A fôrça do meu destino,
Como vossa formosura?
Bem conheço que não posso
Ter tão alto pensamento;
Mas disto só me contento,
Que se paga com ser vosso
O mor mal de meu tormento.
_Entrão os Musicos, e diz Alexandre da Fonseca, hum delles:_
ALEXANDRE.
Senhor, de que se acha mal
O Principe, ou que mal sente?
PAGEM.
Senhor, sei que está doente;
Mas sua doença he tal,
Qu'entender se não consente.
Os Physicos vem e vão,
Huns e outros a meude,
Sem o poderem dar são.
Quanto mais cura lhe dão,
Então tẽe menos saude.
O Pae anda em sacrificios
Aos deoses, que lhe dem
A saude que convem;
Dizendo que por seus vicios
O mal a seu filho vem.
Eu suspeito qu'isto são
Alguns novos amorinhos,
Que tera no coração.
ALEXANDRE.
Amores! com quem serão,
Que lhe não dem de focinhos?
PORTEIRO.
Senhores, que lhe parece
Da doença de Antiôcho?
ALEXANDRE.
Diga-lha quem lha conhece.
PAGEM.
Que toma morrer a trôco
De callar o que padece.
PORTEIRO.
Isso he estar emperrado
Na doença; que he peor.
Tẽe-no os Physicos curado?
ALEXANDRE.
Oh! que de mal del amor
No ha, Señor, sanador.
PORTEIRO.
Fallais como exprimentado;
Qu'eu cuido que esta fadiga,
Que o faz com que desespere;
Y por mas tormento quiere
Que se sienta, y no se diga.
ALEXANDRE.
Pois, Senhor meu, isso asselle,
Porque a pena, que sabeis,
Que eu cuido que está nelle,
Dar-lhe-ha penas crueis,
Pues no hay quien la consuele.
PORTEIRO.
Folgo, porque m'entendeis.
PAGEM.
Hemo-nos, Senhores, de ir,
Porque nos está 'sperando.
PORTEIRO.
Pois eu tambem hei de ir;
Que não me posso espedir
Donde vejo estar cantando.
PRINCIPE.
Cantae, por amor de mi,
Alguma cantiga triste;
Que todo meu mal consiste
Na tristeza em que me vi.
PORTEIRO.
Mande-lhe cantar hum chiste.
ALEXANDRE.
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