Obras Completas de Luis de Camões, Tomo III - 14

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Con rayos, y con visiones!
Y destas encantaciones,
Si nuestra casa arde en fuego,
Han se de arder mis colchones.
AURELIO.
Vamos a Amphitrião
Contar-lhe cousas tamanhas.
AMPHITRIÃO.
Que vai lá? que cousas vão?
AURELIO.
Maravilhas tão estranhas,
Que me treme o coração.
Porque aquelle homem, que assi
Tantos enganos teceo,
Como era cousa do Ceo,
Tanto qu'eu appareci,
Logo desappareceo.
E em desapparecendo
Com ruido grande e horrendo,
Toda a casa allumiou;
E de arte nos inflammou,
Que nos vimos acolhendo
Do raio que nos cegou.
Estes acontecimentos
Não são de humana pessoa.
Vós ouvis a voz que soa?
Escutae, estae attentos;
Vejamos o que pregôa.
JUPITER, _de dentro_.
Amphitrião, qu'em teus dias
Vês tamanhas estranhezas,
Não t'espantem phantasias,
Que ás vezes grandes tristezas
Parem grandes alegrias.
Jupiter sou manifesto
Nas obras de admiração,
Que por mi causadas são:
Quiz-me vestir em teu gesto,
Por honrar tua geração.
Tua mulher parirá
Hum filho de mi gerado,
Que Hercules se chamará,
O mais valente e esforçado,
Que no mundo se achará.
Com este, teus successores
Se honrarão de serem teus;
E dar-lhe-hão os escriptores,
Por doze trabalhos seus,
Doze milhões de louvores.
E dessa illustre fadiga
Colherás mui rico fruito:
Enfim, a razão me obriga
Que tão pouco delle diga,
Porque o tempo dirá muito.
* * * * *


FILODEMO,
COMEDIA.

INTERLOCUTORES.
FILODEMO.
VILARDO, seu moço.
DIONYSA.
SOLINA, sua moça.
VENADORO.
MONTEIRO.
DORIANO, amigo de Filodemo.
HUM PASTOR.
HUM BOBO, filho do pastor.
FLORIMENA, pastora.
DOM LUSIDARDO, pae de Venadoro.
DOLOROSO, amigo de Vilardo.
TRES PASTORES.

ARGUMENTO.
Hum Fidalgo Portuguez, que acaso andava nos Reinos de Dinamarca, como
por largos amores e maiores serviços, tivesse alcançado o amor de huma
filha d'el Rei, foi-lhe necessario fugir com ella em huma galé, por
quanto havia dias que a tinha prenhe. E de feito, sendo chegados á costa
de Hespanha, onde elle era senhor de grande patrimonio, armou-se-lhe
grande tormenta, que sem nenhum remedio, dando a galé á costa, se
perdêrão todos miseravelmente, senão a Princeza, que em huma taboa foi á
praia: a qual, como chegasse o tempo de seu parto, junto de huma fonte
pario duas crianças, macho e femia; e não tardou muito que hum pastor
Castelhano, que naquellas partes morava, ouvindo os tenros gritos dos
meninos, lhe acudio a tempo que a mãe ja tinha espirado. Crescidas,
emfim, as crianças debaixo da humanidade e criação daquelle pastor, o
macho que Filodemo se chamou á vontade de quem os baptizára, levado da
natural inclinação, deixando o campo, se foi para a cidade, aonde por
musico e discreto, valeo muito em casa de D. Lusidardo, irmão de seu
Pae, a quem muitos annos servio sem saber o parentesco que entre ambos
havia. E como de seu Pae não tivesse herdado nada mais que os altos
espiritos, namorou-se de Dionysa, filha de seu Senhor e Tio, que
incitada ao que por suas obras e boas partes merecia, ou porque ellas
nada engeitão, lhe não queria mal. Aconteceo mais, que Venadoro, filho
de D. Lusidardo, mancebo fragueiro, e muito dado ao exercicio da caça,
andando hum dia no campo apos hum cervo, se perdeo dos seus; e indo dar
em huma fonte, onde estava Florimena, irmãa de Filodemo (que assim lhe
pozerão o nome) enchendo huma talha de ágoa, se perdeo de amores por
ella, que se não soube dar a conselho, nem partir-se donde ella estava,
até que seu Pae o não foi buscar. O qual informado pelo pastor que a
criára (que era homem sabio na Arte Magica) de como a achára e como a
criára, não teve por mal de casar a Filodemo com Dionysa sua filha, e
prima de Filodemo; e a Venadoro seu filho, com Florimena sua sobrinha,
irmãa de Filodemo pastor; e tambem pela muita renda que tinha e de seu
Pae ficára, de que elles erão verdadeiros herdeiros. Das mais
particularidades da Comedia, fara menção o Auto, que he o seguinte.


FILODEMO,
COMEDIA.


ACTO PRIMEIRO.

SCENA I.
_Filodemo e Vilardo._
FILODEMO.
Moço Vilardo?
VILARDO.
Ei-lo vae.
FILODEMO.
Fallae era má, fallae,
E sahi cá para a sala.
O villão como se cala!
VILARDO.
Pois, Senhor, sahi a meu pae,
Que quando dorme não fala.
FILODEMO.
Trazei cá huma cadeira:
Ouvis, villão?
VILARDO.
Senhor, sim.
(Se m'ella não traz a mim.
Vejo-lh'eu ruim maneira.)
FILODEMO.
Acabae, villão ruim.
Que moço para servir
Quem tẽe as tristezas minhas!
Quem pudesse assi dormir!
VILARDO.
Senhor, nestas manhãzinhas
Não ha hi senão cahir:
Por demais he trabalhar
Qu'este somno se me ausente.
FILODEMO.
Porque?
VILARDO.
Porque ha d'assentar
Que se não for com pão quente,
Não ha de desaferrar.
FILODEMO.
Ora hi pelo que vos mando,
Villão feito de fermento. _Sahe Vilardo._
Triste do que vive amando
Sem ter outro mantimento,
Qu'estar só phantasiando!
Só hũa cousa me desculpa
Deste cuidado que sigo,
Ser de tamanho perigo,
Que cuido que a mesma culpa
Me fica sendo castigo.
_Vem o moço, e assenta-se na cadeira Filodemo e diz avante_
FILODEMO.
Ora quero praticar
Só comigo hum pouco aqui;
Que despois que me perdi,
Desejo de me tomar
Estreita conta de mi.
Vae para fóra, Vilardo.
Torna cá: vae-me saber
Se se quer ja lá erguer
O Senhor Dom Lusidardo,
E vem-mo logo dizer. _Vai-se o moço._
Ora bem, minha ousadia,
Sem azas, pouco segura,
Quem vos deo tanta valia,
Que subais a phantasia
Onde não sobe a ventura?
Por ventura eu não nasci
No mato, sem mais valer,
Que o gado ao pasto trazer?
Pois donde me veio a mi
Saber-me tão bem perder?
Eu, nascido entre pastores,
Fui trazido dos currais,
E d'entre meus naturais
Para casa dos Senhores,
Donde vim a valer mais.
E agora logo tão cedo
Quiz mostrar a condição
De rustico e de villão!
Dando-me ventura o dedo,
Lhe quero tomar a mão!
Mas oh! qu'isto não he assi,
Nem são villãos meus cuidados,
Como eu delles entendi;
Mas antes, de sublimados,
Os não posso crer de mi.
Porque como hei eu de crer
Que me faça minha estrella
Tão alta pena soffrer,
Que somente pola ter
Mereço a gloria della?
Senão se amor, d'attentado,
Porque me não queixe delle,
Tẽe por ventura ordenado
Que mereça o meu cuidado,
Só por ter cuidado nelle.

SCENA II.
_Vilardo e Filodemo._
VILARDO.
O Senhor Dom Lusidardo
Dorme com todo o convento;
E elle com o pensamento
Quer estar fazendo alardo
De castellinhos de vento!
Pois tão cedo se vestio,
Com seu damno se conforme,
Pezar de quem me pario;
Que ainda o sol não sahio:
Se vem á mão, tambem dorme.
Elle quer-se levantar
Assi pela manhãzinha!
Pois quero-o desenganar:
Nem por muito madrugar
Amanhece mais asinha.
_Filodemo._
Traze-me a viola cá.
VILARDO.
(Voto a tal que me vou rindo.)
Senhor, tambem dormirá.
FILODEMO.
Traze-a, moço.
VILARDO.
Si, virá,
Se não estiver dormindo.
FILODEMO.
Ora hi polo que vos mando:
Não gracejeis.
VILARDO.
Eis-me vou:
Pois, pezar de São Fernando!
Por ventura sou eu grou?
Sempre hei d'estar vigiando? _Sahe._
FILODEMO.
Ah Senhora, que podeis
Ser remedio do que peno,
Quão mal ora cuidareis
Que viveis e que cabeis
N'hum coração tão pequeno!
Se vos fosse apresentado
Este tormento em que vivo,
Crerieis que foi ousado
Este vosso, de criado
Tornar-se vosso captivo?

SCENA III.
_Filodemo e Vilardo._
VILARDO.
Ora eu creio, se he verdade
Qu'estou de todo acordado,
Que meu amo he namorado;
E a mi dá-me na vontade
Que anda hum pouco abalado.
E se tal he, eu daria
Por conhecer a donzella
A ração d'hoje este dia;
Porque a desenganaria,
Somente por ter dó della.
Havia-lhe perguntar:
Senhora, de que comeis?
Se comeis d'ouvir cantar,
De fallar bem, de trovar,
Em boa hora casareis.
Porém se vós comeis pão,
Tende, Senhora, resguardo;
Qu'eis-aqui está Vilardo,
Qu'he como hum camaleão,
Por isso, bus, fazei fardo.
E se vós sois das gamenhas,
E houverdes d'attentar
Por mais que por manducar,
Mi cama son duras peñas,
Mi dormir siempre es velar.
A viola, Senhor, vem
Sem primas, nem derradeiras:
Mas sabe o que lhe convem?
Se quer, Senhor, tanger bem,
Ha de haver mister terceiras.
E se estas cantigas vossas
Não forem para escutar,
E quizerdes espirar;
Ha mister cordas mais grossas,
Porque não possão quebrar.
FILODEMO.
Vae para fóra.
VILARDO.
Ja venho.
FILODEMO.
Qu'eu só desta phantasia
Me sostenho e me mantenho.
VILARDO.
Quamanha vista que tenho,
Que vejo a estrella do dia! _Sahe._

SCENA IV.
FILODEMO, _cantando_.
Adó sube el pensamiento,
Seria una gloria inmensa
Si allá fuese quien lo piensa.
_Falla._
Qual espirito divino
Me fará a mi sabedor
Deste meu mal, se he amor,
Se por dita desatino?
Se he amor, diga-me qual
Póde ser seu fundamento,
Ou qual he seu natural,
Ou porque empregou tão mal
Hum tão alto pensamento.
Se he doudice, como em tudo
A vida me abraza e queima,
Ou quem vio n'hum peito rudo
Desatino tão sisudo,
Que toma tão doce teima?
Ah Senhora Dionysa,
Onde a natureza humana
Se mostrou tão soberana!
O que vós valeis me avisa,
Mas o qu'eu peno m' engana.

SCENA V.
_Solina e Filodemo._
SOLINA.
Tomado estais vós agora,
Senhor, co'o furto nas mãos.
FILODEMO.
Solina, minha Senhora,
Quantos pensamentos vãos
Me ouvirieis lançar fóra?
SOLINA.
Oh Senhor, quão bem que sôa
O tanger de quando em quando!
Bem sei eu huma pessoa,
Que haja huma hora, e boa,
Que vos está escutando.
FILODEMO.
Por vida vossa, zombais?
Quem he? quereis-mo dizer?
SOLINA.
Não o haveis vós de saber,
Bofé se me não peitais.
FILODEMO.
Dar-vos-hei quanto tiver,
Para taes tempos como estes.
Quem tivera voz dos Ceos,
Pois escutar me quizestes!
SOLINA.
Assi pareça eu a Deos,
Como lhe vós parecestes.
FILODEMO.
A Senhora Dionysa
Quer-se ja alevantar?
SOLINA.
Assi me veja eu casar,
Como despida em camisa
Se ergueo por vos escutar.
FILODEMO.
Em camisa levantada!
Tão ditosa he minha estrella?
Ou mo dizeis refalsada?
SOLINA.
Pois bem me defendeo ella
Que vos não dissesse nada.
FILODEMO.
Se pena de tantos annos
Merecer algum favor,
Para cura de meus dannos
Fartae-me desses engannos,
Que não quero mais de Amor.
SOLINA.
Agora quero eu fallar
Neste caso com mais tento;
Quero agora perguntar:
E de siso his vós tomar
Hum tão alto pensamento?
Certo he minha maravilha,
Se vós isto não sentis
Bem: vós como não cahis
Que Dionysa qu'he filha
Do Senhor a quem servis?
Como? Vós não attentais
Os Grandes, de qu'he pedida?
Peço-vos que me digais
Qual he o fim que esperais
Neste caso, em vossa vida.
Que razão boa, ou que côr
Podeis dar a esta affeição?
Dizei-me vossa tenção.
FILODEMO.
Onde vistes vós amor
Que se guie por razão?
Se quereis saber de mi
Que fim, ou de que theor
O pretendo em minha dor;
S'eu neste amor quero fim,
Sem fim me atormente Amor.
Mas vós com gloria fingida
Pretendeis de m'enganar,
Por assi mal me tratar:
Assi que me dais a vida
Somente por me matar.
SOLINA.
Eu digo-vos a verdade.
FILODEMO.
Da verdade fujo eu,
Porque se o Amor me deu
Pena de tal qualidade,
Assaz me custa do meu.
SOLINA.
Fólgo muito de saber
Que sois amante tão fino.
FILODEMO.
Pois mais vos quero dizer,
Que ás vezes no imaginar
Não ouso de m' estender.
Na hora que imaginei
Na causa de meu tormento,
Tamanha gloria levei,
Que por onças desejei
De lograr o pensamento.
SOLINA.
Se me vós a mi jurardes
De me terdes em segredo
Huma cousa... mas hei medo
De logo tudo contardes.
FILODEMO.
A quem?
SOLINA.
Áquelle enxovedo.
FILODEMO.
Qual?
SOLINA.
Aquelle mao pezar,
Que ant'hontem comvosco hia.
Quem se fosse em vós fiar!
O que vos disse o outro dia,
Tudo lhe fostes contar.
FILODEMO.
Que lhe contei?
SOLINA.
Ja lh'esquece?
FILODEMO.
Por certo qu'estou remoto.
SOLINA.
Hi, que sois hum cesto roto.
FILODEMO.
Esse homem tudo merece.
SOLINA.
Vós sois muito seu devoto.
FILODEMO.
Senhora, não hajais medo:
Contae-m'isso, e far-me-hei mudo.
SOLINA.
Senhor, o homem sisudo,
Se em taes cousas tẽe segredo,
Saiba que alcançará tudo.
A Senhora Dionysa
Crede que mal vos não quer:
Não vos posso mais dizer.
Isto tende por balisa
Com que vos saibais reger.
Qu'em mulheres, se attentais,
O querer está visibil;
E se bem vos governais,
Não desespereis do mais,
Porque, emfim, tudo he possibil.
FILODEMO.
Senhora, póde isso ser?
SOLINA.
Si, que tudo o mundo tem:
Olhae não o saiba alguem.
FILODEMO.
E que maneira hei de ter
Para crer tamanho bem?
SOLINA.
Vós, Senhor, o sabereis;
E ja que vos descobri
Tamanho sogredo aqui,
Huma mercê me fareis
Em que me vai muito a mi.
FILODEMO.
Senhora, a tudo me obrigo
Quanto for em minha mão.
SOLINA.
Pois dizei a vosso amigo
Que não gaste tempo em vão,
Nem queira amores comigo.
Porque eu tenho parentes,
Que me podem bem casar;
E mais que não quero andar
Agora em boca de gentes
A quem s'elle vai gabar.
FILODEMO.
Senhora, mal conheceis
O que vos quer Duriano:
Sabei-o, se o não sabeis,
Qu'em sua alma sente o dano
Do pouco que lhe quereis;
E que outra cousa não quer,
Que ter-vos sempre servida.
SOLINA.
Pola sua negra vida,
Isso havia eu bem mister.
FILODEMO.
Vós sois desagradecida!
SOLINA.
Si, que tudo são enganos
Em tudo quanto fallais.
FILODEMO.
Não quero que me creais:
Crede o tempo; que ha dous anos
Que vos serve, e inda mais.
SOLINA.
Senhor, bem sei que m'engano;
Mas a vós, como a irmão,
Descubro este coração:
Sabei que a Duriano
Tenho sobeja affeição.
Olhae que lhe não digais
Isto que vos aqui digo.
FILODEMO.
Senhora, mal me tratais:
Inda que sou seu amigo,
Sabei que vosso sou mais.
SOLINA.
E ja que vos confessei
Aquestas fraquezas minhas,
Que ha tanto que de mi sei;
Fazei vós nas cousas minhas
O qu'eu nas vossas farei.
FILODEMO.
Vós enxergareis, Senhora,
O qu'eu por vós sei fazer.
SOLINA.
Como me deixo esquecer!
Aqui estivera agora
Fallando té anoitecer.
Vou-me; e olhae quanto val
O que passou entre nós.
FILODEMO.
E porque vos ides vós?
SOLINA.
Porque parece ja mal
Estar aqui ambos sós.
E mais vou vestir agora
A quem vos dá tão má vida.
Ficae-vos, Senhor, embora.
FILODEMO.
Nessa ide vós, Senhora,
Que ja vos tenho entendida.

SCENA VI.
FILODEMO _só_.
Ora se póde isto ser
Do qu'esta moça me avisa,
Que a Senhora Dionysa,
Por me ouvir, se fosse erguer
Da sua cama em camisa!
E diz que mal me não quer.
Não queria maior gloria;
Mas o que mais posso crer,
Que nem para lhe esquecer
Lhe passo pela memoria.
Mas ter Solina tambem
Em Duriano o intento,
He levar-me a lenha o vento;
Porque s'ella lhe quer bem,
Para bem vai meu tormento.
Mas foi-se este homem perder
Neste tempo, de maneira,
Por huma mulher solteira,
Que não me atrevo a fazer
Que hum pequeno bem lhe queira.
Porém far-lhe-hei hum partido,
Porqu'ella não se querelle:
Que se mostre seu perdido,
Inda que seja fingido,
Como lh'outrem faz a elle.
E ja que me satisfaz,
E tanto nisto se alcança,
Dê-lhe fingida esperança:
Do mal que lhe outrem faz,
Tomará nella vingança.

SCENA VII.
VILARDO _só_.
Ora boa está a cilada
De meu amo com sua ama,
Que se levantou da cama
Por ouvi-lo! Está tomada:
Assi a tome má trama.
E mais crede que quem canta,
Ainda descantará;
E quem do leito, onde está,
Por ouvi-lo se levanta,
Mor desatino fará.
Quem havia de cuidar,
Que dama formosa e bella
Saltasse o demonio nella,
Para a fazer namorar
De quem não he igual della?
Que me dizeis a Solina?
Como se faz Celestina,
Que por não lhe haver inveja
Tambem para si deseja
O que o desejo lh'ensina!
Crede que se me alvoróço,
Que a hei de tomar por dama;
E não será grão destrôço,
Pois o amo quer a ama,
Que a moça queira o moço.
Vou-me; que vejo lá vir
Venadoro, apercebido
Para a caça se partir:
E voto a tal, que he partido
Para ver e para ouvir.
Que he razão justa e rasa
Que seu folgar se desconte
Em quem arde como brasa;
Que se vai caçar ao monte,
Fique outrem caçando em casa.

SCENA VIII.
VENADORO _só_.
Aprovada antiguamente
Foi, e muito de louvar
A occupação do caçar,
E da mais antigua gente
Havida por singular.
He o mais contrário officio
Que tẽe a ociosidade,
Mãe de todo o bruto vício:
Por este limpo exercicio
Se reserva a castidade.
Este dos grandes Senhores
Foi sempre muito estimado;
E he grande parte do estado
Ter monteiros, caçadores,
Como officio qu'he prezado.
Pois logo porque razão
A meu pae ha de pezar
De me ver ir a caçar?
E tão boa occupação
Que mal me póde causar?

SCENA IX.
_Venadoro e o Monteiro._
MONTEIRO.
Senhor, venho alvoroçado,
E mais com muita razão.
VENADORO.
Como assi?
MONTEIRO.
Que me he chegado
O mais extremado cão,
Que nunca caçou veado.
Vejamos que me ha de dar.
VENADORO.
Dar-vos-hei quanto tiver;
Mas ha-se d'exprimentar,
Para se poder julgar
As manhas que póde ter.
MONTEIRO.
Póde assentar qu'este cão,
Que tẽe das manhas a chave.
Bem feito? Em admiração.
Pois em ligeiro? He huma ave.
Em commetter? Hum leão.
Com porcos? Maravilhoso.
Com veados? Extremado.
Sobeja-lhe o ser manhoso.
VENADORO.
Pois eu ando desejoso
D'irmos matar hum veado.
MONTEIRO.
Pois, Senhor, como não vae?
VENADORO.
Vamos, e vós mui ligeiro
O necessario ordenae;
Qu'eu quero chegar primeiro
Pedir licença a meu pae.


ACTO SEGUNDO.

SCENA I.
DURIANO.
Pois não creio eu em S. Pisco de pao, se hei de pôr pé em ramo verde, té
lhe dar trezentos açoutes. Despois de ter gastado perto de trezentos
cruzados com ella, porque logo lhe não mandei o setim para as mangas,
fez de mim mangas ao demo. Não desejo eu de saber, senão qual he o
galante que me succedeo; que se vo-lo eu colho a balravento, eu lhe
farei botar ao mar quantas esperanças lhe a fortuna tẽe cortado á
minha. Ora tenho assentado, que amor destas anda com o dinheiro, como a
maré com a lũa: bolsa cheia, amor em ágoas vivas; mas se vasa, vereis
espraiar este engano, e deixar em sêcco quantos gostos andavão como o
peixe na ágoa.

SCENA II.
_Filodemo e Duriano._
FILODEMO.
Ó lá! cá sois vós? Pois agora hia eu bater essas moutas, para ver se me
sahieis de alguma; porque quem vos quizer achar, he necessario que vos
tire como huma alma.
DURIANO.
Oh maravilhosa pessoa! Vós he certo que vos prezais de mais certo em
casa, que pinheiro em porta de taverna; e trazeis, se vem á mão, os
pensamentos com os focinhos quebrados, de cahirem onde vós sabeis. Pois
sabeis, Senhor Filodemo, quaes são os que me mátão? Huns muito bem
almofaçados, que com dois ceitis fendem a anca pelo meio, e se prezão de
brandos na conversação, e de fallarem pouco e sempre comsigo, dizendo
que não darão meia hora de triste pelo thesouro de Veneza; e gábão mais
Garcilasso que Boscão; e ambos lhe sahem das mãos virgens; e tudo isto
por vos meterem em consciencia que se não achou para mais o grão Capitão
Gonçalo Fernandes. Ora pois desengano-vos, que a mor rapazia do mundo
farão altos espiritos: e eu não trocarei duas pescoçadas da minha etc.,
depois de ter feito a tosquia a hum frasco, e fallar-me por tu e
fingir-se-me bebada, porque o não pareça, por quantos Sonetos estão
escriptos polos troncos dos árvores do vale Luso, nem por quantas
Madamas Lauras vós idolatrais.
FILODEMO.
Tá, tá, não vades avante, que vos perdeis.
DURIANO.
Aposto que adivinho o que quereis dizer?
FILODEMO.
Que?
DURIANO.
Que se me não acudieis com o batel, que me hia meus passos contados a
herege de amor.
FILODEMO.
Oh que certeza tamanha, o muito peccador não se conhecer por esse!
DURIANO.
Mas oh que certeza maior, de muito enganado, esperar em sua opinião! Mas
tornando a nosso proposito, que he o para que me buscais? que se he
cousa de vossa saude, tudo farei.
FILODEMO.
Como templará el destemplado? Quem poderá dar o que não tẽe, Senhor
Duriano? Eu quero-vos deixar comer tudo: não póde ser que a natureza não
faça em vós o que a razão não póde: o caso he este, dir-vo-lo-hei; porém
he necessario que primeiro vos alimpeis como marmelo, e que ajunteis
para hum canto da casa todos esses maos pensamentos; porque segundo
andais mal avinhado, damnareis tudo aquillo que agora lançarem em vós.
Ja vos dei conta da pouca que tenho com toda a outra cousa que não he
servir a Senhora Dionysa; e postoque a desigualdade dos estados o não
consinta, eu não pretendo della mais que o não pretender della nada,
porque o que lhe quero, comsigo mesmo se paga; que este meu amor he como
a ave Phenix, que de si só nasce, e não de outro nenhum interesse.
DURIANO.
Bem praticado está isso; mas dias ha que eu não creio em sonhos.
FILODEMO.
Porque?
DURIANO.
Eu vo-lo direi: porque todos vós-outros os que amais pela passiva,
dizeis que o amor fino como melão, não ha de querer mais de sua dama que
amá-la; e virá logo o vosso Petrarca, e o vosso Pietro Bembo, atoado a
trezentos Platões, mais çafado que as luvas de hum pagem d'arte,
mostrando razões verisimeis e apparentes, para não quererdes mais de
vossa dama que vê-la; e ao mais até fallar com ella. Pois inda achareis
outros esquadrinhadores d'amor, mais especulativos, que defenderão a
justa por não emprenhar o desejo; e eu (faço-vos voto solemne) se a
qualquer destes lhe entregassem sua dama tosada e apparelhada entre dous
pratos, eu fico que não ficasse pedra sôbre pedra: e eu ja de mi vos sei
confessar que os meus amores hão de ser pela activa, e que ella ha de
ser a paciente, e eu agente, porque esta he a verdade. Mas, com tu de,
vá v. m. co'a historia por diante.
FILODEMO.
Vou, porque vos confesso que neste caso ha muita dúvida entre os
Doctores: assi que vos conto, que estando esta noite com a viola na mão,
bem trinta ou quarenta legoas pelo sertão dentro de hum pensamento,
senão quando me tomou á traição Solina; e entre muitas palavras que
tivemos, me descobrio que a Senhora Dionysa se levantára da cama por me
ouvir, e que estivera pela greta da porta espreitando quasi hora e meia.
DURIANO.
Cobras e tostões, sinal de terra: pois ainda vos não fazia tanto avante.
FILODEMO.
Finalmente, veio-me a descobrir, que me não queria mal, que foi para mi
o maior bem do mundo; que eu estava ja concertado com minha pena a
soffrer por sua causa, e não tenho agora sogeito para tamanho bem.
DURIANO.
Grande parte da saude he para o doente trabalhar por ser são. Se vos
deixardes manquecer na estrebaria com essas finezas de namorado, nunca
chegareis onde chegou Rui de Sande. Por isso boas esperanças ao leme;
que eu vos faço bom que ás duas enxadadas acheis ágoa. E que mais
passastes?
FILODEMO.
A maior graça do mundo: veio-me a descobrir que era perdida por vós; e
me quiz dar a entender que faria por mi tudo o que lhe vós merecesseis.
DURIANO.
Santa Maria! Quantos dias ha que nos olhos lhe vejo marejar esse amor?
porque o fechar de janellas que essa mulher me faz, e outros enojos que
dizer poderia, no son sino corredores del amor, e a cilada em que ella
quer que eu caia.
FILODEMO.
Nem eu não quero que lho queirais, mas que lhe façais crer que lho quereis.
DURIANO.
Não... quanté dessa maneira me offereço a romper meia duzia de serviços
alinhavados ás panderetas, que bastem assentar-me em soldo pelo mais
fiel amante que nunca calçou esporas; e se isto não bastar, salgan las
palabras mas sangrientas del corazon, entoadas de feição, que digão que
sou hum Mancias, e peor ainda.
FILODEMO.
Ora dais-me a vida. Vamos ver se por ventura apparece, porque Venadoro,
irmão da Senhora Dionysa, he fóra á caça; e sem elle fica a casa
despejada; e o Senhor Dom Lusidardo anda no pomar; que todo o seu
passatempo he enxertar e dispôr, e outros exercicios d'agricultura,
naturaes a velhos: e pois o tempo nos vem á medida do desejo, vamo-nos
lá; e se puderdes fallar, fazei de vós mil manjares, porque lhe façais
crer que sois mais esperdiçado d'amor que hum Braz Quadrado.
DURIANO.
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