Obras Completas de Luis de Camões, Tomo III - 07

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Em vingança da fé que desprezou,
Fez que fosse de si mesmo enganado.
Casualmente hum dia se chegou
A beber n'huma fonte crystallina,
Que de si nova sêde lhe causou.
Vendo a sua figura peregrina
Que a fonte dentro em si representava,
Se perdeo por imagem tão divina.
Como ja, d'enlevado, não cuidava
Nos enganos que a sombra lhe fazia,
Vendo o formoso rosto, suspirava.
Por as avaras ágoas se metia;
E quanto mais molhava os tenros braços,
Então mais vivamente o fogo ardia.
Vendo-se assi prender em duros laços,
Ao sentimento obriga a paciencia,
Dando, fóra de si, ao vento abraços.
Embevecido todo n'apparencia,
Sem saber de cuidado o que sentia,
Não fez ao doce engano resistencia.
Ao ver-se longe mais, mais perto via
O peregrino gesto; e se chegava,
Então para mais longe lhe fugia.
Vendo, emfim, como em tudo o remedava
Cahio no torpe engano que tivera,
A tempo que de si ja preso estava.
A belleza que a tantas morte dera,
De si mesma se abraza e se captiva.
Quão longe então de si ver-se quizera!
Ella se abranda propria; ella se esquiva;
E sendo ella somente a que se amava,
Ella se chama ingrata e fugitiva.
A formosura, pois, que namorava,
Com tal difficuldade era seguida,
Qu'estando dentro em si, mui longe estava.
A solitaria Nympha, qu'escondida
Ja nas cavernas concavas se via,
Dos males que lhe ouvio foi commovida.
Das namoradas mágoas que dizia
O namorado moço, ella somente
Os ultimos accentos repetia.
Elle vendo-se estar alli presente,
As crystallinas ágoas accusava
De que ellas o fazião descontente.
Outras vezes á fonte, quando a olhava,
Ja cego, e sem juizo, agradecia
A figura que dentro lhe mostrava.
Mas vendo qu'ella em nada se dohia
De seu grave tormento, grita e chora.
Quanto erra quem de sombras se confia!
Ja lhe pede que saia para fóra.
Ignorando que sempre fóra esteve
A belleza que nelle proprio mora.
Despois que longo espaço se deteve
Nestes queixumes seus tão lastimosos,
Que com tão longo ser, julgou por breve;
Co'os olhos, bellos si, mas lagrimosos,
Do valle se despede e da espessura,
Dando soluços da alma vagarosos.
Entregue na vontade da ventura,
Ou, por melhor dizer, de seus enganos,
Ao centro se arrojou da fonte pura.
Dest'arte feneceo em tenros anos
Narciso, dando exemplo á formosura
De que tema, se he tal, tambem seus danos.
Sentimento mostrou da sorte dura
O namorado Jupiter, mudando
Ao moço em flor purpurea, qu'inda dura.
Aquellas claras ágoas rodeando,
Onde por seus amores se perdeo,
Está despois da morte acompanhando.
Tanto no seu engano procedeo,
Que não sabe na morte inda apartar-se
Dos erros que na vida commetteo.
Bem póde o coração desenganar-se,
Que o fogo d'hum querer, n'alma inflammado,
Não costuma na morte resfriar-se.
Porque despois do corpo sepultado,
Prisão onde s'encerra o fraco esprito,
Eternamente chora o seu cuidado.
E das escuras ágoas do Cocito
A rapida corrente refreando,
Celebra o lindo gesto n'alma escrito.
Lá se está co'os favores recreando;
E se foi desprezado, lá padece,
As duras esquivanças lamentando.
Nem dos avaros olhos lá s'esquece,
Que de formoso verde a terra esmaltão,
Por não ver os do triste qu'endoudece.
Assi que os desfavores nunca faltão,
Até despois da morte perseguindo
Hum triste coração que desbaratão.
Triste de quem em vão lhe vai fugindo!
[2] Este terceto foi viciado na cópia e depois, ao que parece, corrigido
por mão estranha. A versificação está certa, mas o sentido he absurdo:
e se a verdadeira lição não he:
Porque, cruel menino, o premio partes
De modo que es tyranno, quando o negas,
E injusto e desigual, quando o repartes?
não podemos adivinhar qual seja. _Nota dos Editores._
* * * * *

ELEGIA VII.
Ao pé d'hum'alta faia vi sentado,
N'hum valle deleitoso e bem florido,
A Almeno, pastor triste e namorado.
Outro no mundo póde haver nascido
Mui queixoso de Amor; porém não tanto,
Como este amante, por amar perdido.
Ja Venus hia recolhendo o manto
Escuro com que a terra se mostrava,
Para ajudar d'Almeno o triste pranto.
Apollo sôbre os montes derramava
Seus dourados cabellos, que fazião
Ao triste inda mais triste do qu'estava.
As flores por o prado s'estendião.
E das que finas mais erão as côres,
Brancas, roxas, as Nymphas mais colhião.
Ja guiavão seus gados os pastores,
Que, deixando-os no campo deleitoso,
Com ellas praticavão só d'amores.
Mas era esta alegria hum perigoso
Estado para Almeno entristecido;
E por isso a deixava pressuroso,
Buscando outro lugar: contra Cupido
Claramente exclamava, e o arguia
De contrário, d'astuto e fementido.
De quando em quando a frauta que tangia.
Numeros dava ao ar tão docemente,
Que as aves provocava a melodia.
Cego assi desta dor, deste accidente,
Com os olhos em lagrimas banhados,
Postos no ceo, dizia tristemente:
Se, Amor, eu te offendi com meus cuidados,
Porque mos déste tu para offender-te,
Quando livre vivia nestes prados?
Não vês quanto me negas merecer-te
O bem que me mostravas, se deixasse
Ferir meu coração para soffrer-te?
Qual bem me has dado, Amor, que me durasse?
Ou qual me has promettido, que hajas dado?
Ou qual déste, que muito não custasse?
Mostra-me quem puzeste em tal estado,
Que pudesse viver de ti contente,
Ou quem de ti não fosse lastimado?
Inimigo cruel de toda a gente,
Ja não quero teu bem, só meu mal quero;
Se de ti nem meu mal se me consente.
Inda que de teus bens ja desespéro,
Não desprézo dos males o tormento;
Antes o prezo mais, quando he mais fero.
Arrebatado deste pensamento
Hia o triste pastor com hum contino
Pranto, que lhe avivava o sentimento.
Quando entrou n'hum vergel d'esmalte fino,
Qu'era de Amor plantado; e parecendo
Lhe está menos humano que divino.
Nelle a dor sua esteve suspendendo:
Porém não, como cervo, está ferido,
Reparo ao mal que leva pretendendo.
Apparecia o sítio tão florído,
Que provocava a não vulgar espanto,
Entre huns altos ulmeiros escondido.
D'hum crystallino orvalho tinha o manto,
Quando entrou nelle o misero pastor,
E as tenções explicou neste seu canto.
Ó bellas rosas, vós que sois amor,
He por dita humildade, ou he baixeza,
O ter apar de vós murta, que he dor?
Papoulas conversais, que são tristeza!
Não desprezais o cardo, que he tormento!
Admittis a hortelãa, sendo crueza!
Dos goivos longe vejo o sentimento;
Dos jasmins perto estou vendo o perigo;
Dos malmequeres vejo o soffrimento.
Deste me temerei como inimigo;
Mas traz por armas salva, que he razão:
Com ella acabará tambem comigo.
As minhas vem a ser huma affeição,
Que são os puros cravos misturados
Co'a vontade sujeita, que he limão.
Ai mosquetas, que sois d'amor cuidados!
Ai crespa mangerona, que es prazer!
Vós sós devieis adornar os prados.
Não pódem dous oppostos juntos ser:
Onde se põe giesta, que he lembrança,
Junto do rosmaninho, que he 'squecer?
Bem peza do leve álamo a mudança;
Do roxo goivo anima o pensamento
Do cypreste odorifero a esperança.
O trevo, que he sentido apartamento,
Cérca o mangericão, que se interpreta
Memoria a quem offende o esquecimento.
Mais importuna que o jardim de Creta,
A ameixieira a flor está soltando:
A segurelha vejo, que he discreta.
As hervas que daqui irei tomando,
São a pura cecem, qu'he saudade;
Cravos, medo de ver qual de amor ando.
E, de ter mui perdida a liberdade,
Tomarei madresylva entendimento;
Legação tomarei, porqu'he verdade.
Marmeleiro me dá arrependimento:
Por a salva, que he gôsto, tomarei
Coentro opposto ao meu contentamento.
Conhecimento firme nunca achei,
Que violetas são; e, quando o houvera,
Qual meu damno então fôra, bem o sei.
Oh quem, herva cidreira, oh quem pudera
Ver-vos aqui menor, pois sois victória,
Que de mi alcançou chamma severa!
Mas se quereis que tenha alguma glória,
Por galardão d'amar e ser sujeito,
Perderei de tormentos a memoria.
Porém, pois mo negais, de todo engeito
A palma, qu'he ventura; e na parreira,
Qu'he'sperança perdida, me deleito.
Entretanto co'a flor da laranjeira,
Qu'he desafio duro e arriscado,
Posso arguir da hora derradeira.
Ja não se quer deter o meu cuidado
Com a romãa descanso: a brevidade
Das maravilhas só tẽe desejado.
E vós, ovelhas minhas, sem piedade
Vos apartae de mi, se algum desejo
Tendes de ter do pasto mais vontade.
Se muita de me verdes em vós vejo,
Toda a minha de ver-vos hei perdido
Á força do poder d'amor sobejo.
Lograe do Tejo o placido ruido;
Sós lograe estas veigas florecidas:
Pois se perde o pastor vosso querido,
Não gosteis de com elle ser perdidas.
* * * * *

ELEGIA VIII.
Belisa, unico bem desta alma triste,
Descanso singular de minha vida,
Throno donde o poder d'Amor consiste;
Formosa fera, a quem está rendida
D'Amor a que he mais livre liberdade,
Ganhada mais, se mais por ti perdida;
Quão contrário parece na beldade,
Que os corações captiva com brandura,
Alguma nódoa haver de crueldade!
Quão contrário parece em formosura,
Que deixa muito atraz quanto he humano,
Esquiva condição, ou alma dura!
Quão mal parece em quem só co'hum engano
Póde dar vida ao coração sujeito,
Dar-lhe, em lugar de vida, hum mortal dano!
Quão mal parece que hum amor perfeito
Não seja d'outro igual remunerado,
Inda que seja, acaso, contrafeito!
Quão mal parece estar desesperado
Quem tanto por ti soffre e tẽe soffrido,
Devendo estar de penas alliviado!
Porém peor parece quem rendido
Não for a hum parecer que tudo rende,
Por mais qu'em seu rigor viva offendido.
E inda peor parece quem defende
O ser essa belleza sempre amada,
Por mais qu'em vão se canse o que a pretende.
Se quem te mostra amor te desagrada,
Só pódes pretender o não ser vista,
Mas não despois de vista o ser deixada.
Quão mal sabe o valor de tua vista
Quem cuida que o que della acaso alcança
Póde achar coração que lhe resista!
Quão bem pareceria huma esperança
Ja concedida a meu amor ardente,
Não sempre huma mortal desconfiança!
Se hum padecer por ti constantemente
Pudesse ser reparo a quem mais te ama,
Inda esperar pudera o ser contente.
Mas eu temo que aquella immensa chama
Com que a teu bello imperio me levaste,
Te enfrie tanto a ti, qu'anto m'inflama.
Se a Olympica belleza assi imitaste,
Que brandamente move hum amor puro,
Porque tão dura condição tomaste?
Qual elevado, qual soberbo muro
Este mal, que m'occupa o pensamento,
Contado, não tornára menos duro?
Tu, qu'es a causa só de meu tormento,
Tu, que somente podes gloriar-me,
Queres que as minhas queixas leve o vento?
Tu, que me pagarias com matar-me,
Inda a morte me negas vezes tantas?
Ai, que me deras vida em morte dar-me!
Usa piedade, tu, que o mundo espantas
Co'os bellos olhos, com que o douras tanto,
Se acaso a vê-lo brandos os levantas.
Estende-se na terra o negro manto,
E á noute dá alegria a luz alheia;
Mas nos meus olhos tristes dura o pranto.
Torna a manhãa despois alegre e cheia
Da luz que o chôro enxuga á bella Aurora;
Mas do meu chôro nunca enxuga a veia.
Lagrimas ja não são qu'esta alma chora,
Mas amor he vital que dentro arde,
E por a luz dos olhos salta fóra.
Como inda a morte quer que mais aguarde?
Não tarde ja, mas corra a mal tão fero.
Mas ja por mais que corra virá tarde.
Nem no supremo trance de ti 'spero
Qu'inda com ver o estado em que me has pôsto
Queiras, crua, entender quanto te quero.
Ai! se volveres esse bello rosto
Ao lugar triste em que morrer me vires,
Não por desgôsto teu, mas por teu gôsto,
Não quero de ti, não, que alli suspires,
Nem que de dar-me a morte te arrependas,
Mas que os olhos de ver-me então não tires.
Assi nunca pastor a quem te rendas,
Te faça conhecer o que me fazes,
Para que com teu mal meu mal entendas!
Como ja agora não te satisfazes
Das penas deste amor, que por querer-te,
De teu merecimento são capazes?
Pois quem com outro merito render-te
Presume, (oh raro monstro de belleza!)
Muito mais longe está de merecer-te.
Este si, que merece a grã crueza
Com que tu d'acabar-me a vida tratas,
Pois diante de ti, de si se preza.
Se cuidas que com isto desbaratas
O meu constante amor, porque não viva,
Elle mais vive quando mais me matas.
Se o dar-me morte tens por glória altiva,
Eu m'inclino a que mates; tu t'inclina
A matar mais de branda que d'esquiva.
S'esta alma tua julgas por indina
Daquelle grande bem qu'em ti s'esconde,
Do descoberto mal a faze dina.
Onde (ai!) voz acharei que baste, (ai!) onde,
A poder reduzir-te a ser piedosa?
Ou m'acaba de todo, ou me responde.
Mas por mais que te mostres rigorosa,
Deixar meu pensamento m'he impossivel,
Igualmente que a ti não ser formosa.
E por mais qu'esta dor seja terrivel,
Somente o contemplar a causa della,
Inda que a faz maior, a faz soffrivel
Porém chegando a não poder soffrê-la,
Perdendo a vida; quando a morte chame,
Não perderei o gôsto de perdê-la.
He justo qu'eu por ti mil mortes ame:
Mas vê tu se te illustra, quando offensa
Minha mortal o teu valor se chame.
Bem vês que huma beldade tão immensa
De vencer-me tẽe glória bem pequena,
Pois só render-me tomo por defensa.
Mas ja que amor tão puro me condena,
Contente fico assaz desta victoria;
Que não me dão meus males tanta pena,
Quanto o serem por ti me dá de glória.
* * * * *

ELEGIA IX.
A vida me aborrece, a morte quero:
Será eterno o meu mal, segundo entendo,
Pois na mor esperança desespéro.
Sem viver vivo, por morrer vivendo
Por não verdes, Senhora, como eu vejo,
Quanto de mi por vós me ando esquecendo.
Seja-me agradecido este desejo;
Ingrata não sejais a quem vos ama
Com puro e honestissimo despejo.
A culpa que me pondes, ponde-a á fama,
Que pregôa de vós celeste vida
Que os corações d'amor divino inflama.
Humana, quando não agradecida,
Vos mostrae ao mal meu, que me faz vosso,
Antes que a alma do corpo se despida.
Mas que posso eu fazer, pois ja não posso
Hum tormento domar tão forte e duro,
Homem formado só de carne e de osso?
Em minha fé segura me asseguro;
Porqu'esta, quando he grande, jamais erra,
Se resulta d'amor sincero e puro.
Essa beldade santa me faz guerra;
Por ella hei de morrer, inda que veja
Tornar o brando rio em dura serra.
Que cousa tenho eu ja que minha seja?
Quem não deseja a vossa formosura,
Não póde assegurar que o ceo deseja.
De qu'eu sempre a deseje estae segura:
Neste desejo meu nunca mudança
Hão de ver as mudanças da ventura.
A vida tenho posta na balança
Da glória singular, do damno esquivo;
Que o perdê-la por vós he mor bonança.
Se vos offendo, cuido que não vivo:
Olhae se muito mais que de offender-vos,
Das esperanças do viver me privo.
O que temo somente he só perder-vos;
O que quero somente he só adorar-vos;
O que somente adoro he só querer-vos.
Querer-vos sem deixar de venerar-vos;
Desejar-vos somente por servir-vos;
Por servir a amor vil não desejar-vos:
Somente ver-vos, e somente ouvir-vos
Pretendo; e pois somente isto pretendo,
Deveis a estes sentidos permittir-vos.
Isto somente, (oh cego!) estou dizendo,
Como se fôra pouco isto somente!
Que mais que ouvir-vos ha? qu'estar-vos vendo?
Se o não merece o meu amor decente;
Se morte por amar-vos se merece,
Morra eu, Senhora; e vós ficae contente.
Se vos aggrava quem por vós padece;
Se vos vẽe a offender quem vos quer tanto,
Quem desta sorte errou não desmerece.
Que quando os olhos da razão levanto
Ao ceo d'essa rarissima belleza,
De não morrer por ella só m'espanto.
Deixae-me contentar desta tristeza,
E fazer de meus olhos largo rio;
Se algum póde abrandar vossa dureza.
Correndo sempre as lagrimas em fio,
Farei crescer as hervas por os prados,
Pois ja d'outra alegria desconfio.
No monte darei pasto a meus cuidados;
E serão de mi sempre entre os pastores
Esses divinos olhos celebrados.
Aprenderão de mi os amadores
Aquillo que se chama amor sublime,
Ouvindo o rigor vosso, e minhas dores.
E nenhum havera que a pena estime
Mais soberana por a causa della,
Que a que teve até então não desestime;
E qu'inveja não mostre á minha estrella.
* * * * *

ELEGIA X.
Que tristes novas, ou que novo dano,
Qu'inopinado mal incerto sôa,
Tingindo de temor o vulto humano?
Que vejo? as praias humidas de Goa
Ferver com gente attonita e turbada
Do rumor que de boca em boca vôa!
He morto D. Miguel (ah crua espada!)
E parte da lustrosa companhia
Que alegre s'embarcou na triste Armada:
E d'espingarda ardente e lança fria
Passado por o torpe e iniquo braço,
Que nossas altas famas injuría.
Não lhe valeo escudo, ou peito d'aço,
Não ânimo d'avós claros herdado,
Com que temer se fez por longo espaço.
Não ver-se em de redor todo cercado
D'irados inimigos, qu'exhalavão
A negra alma do corpo traspassado.
Não as fortes palavras que voavão
A animar os incertos companheiros,
Que timidos as costas lhe mostravão.
Mas ja postos, nos termos derradeiros,
(Rotos por partes mil e traspassados
Os membros, no valor somente inteiros)
Os olhos (de furor acompanhados,
Qu'inda na morte as vidas amedrentão
Dos duros inimigos espantados)
Postos no ceo, parece que presentão
A alma pura á suprema Eternidade,
Por quem os ceos e a terra se sustentão.
E pedindo dos erros, que na idade
Immatura e innocente ja fizera,
Perdão á pia e justa Magestade,
As rosas apartou da neve fria;
E, como debil flor, a quem fallece
O radical humor de que vivia,
Nas mãos do Coro Angelico, que dece,
S'entrega; e vai lograr a vida eterna,
Que com morte tão justa se merece.
Vai-te, alma, em paz á gloria sempiterna;
Vai, que quem por a Lei sacra e divina
A sólta, áquelle a dá que o ceo governa.
Mas se de tal valor foi morte dina,
A ausencia que do gôsto nos saltêa,
A perpétua saudade nos inclina.
Deixa pois tu, formosa Cytherêa,
Do gentil filho e neto de Cyniras
O pranto por a morte horrida e fêa.
E tu, dourado Apollo, que suspiras
Por o crespo Jacintho, moço charo,
Por quem a clara luz ao mundo tiras;
Vinde e chorae hum moço em tudo raro,
Não de ferino dente vulnerado,
Nem de risco sujeito a algum reparo:
Mas só de ferro imigo traspassado;
Que sem duvida incerta, ou frio medo,
A vida poz nas mãos de Marte irado.
Tambem tu, moço Idalio, assiste quedo;
Deixa de dar o venenoso mel
A beber por os olhos, triste e ledo.
Pois os formosos olhos de Miguel
Ja cobertos se vem do escuro manto
Da lei geral a todos mais cruel.
E vós, filhas de Thespis, que co'o canto
Podeis bem mitigar a dor immensa
Dos irmãos generosos e alto pranto;
Não consintais que fação larga offensa
Á grande integridade, a que se devem
Ágoas não só, do damno recompensa.
Que ja diante os olhos me descrevem,
Quando as bocas da Fama voadora
Ao patrio e claro Tejo as novas levem,
A profunda tristeza; qu'em hum'hora
Tal posse tomará dos altos peitos,
Que delles o discurso lance fóra.
Alli de dor os corações sujeitos
Hão de lançar de si toda a memoria
D'exemplos claros, solidos respeitos.
Mas, porém se igualais a vida á glória,
Ó claro Dom Philippe, e pretendeis
Deixar-nos de acções vossas larga historia;
Eu não vos persuado a que estreiteis
O coração na Estoica disciplina,
Onde livre d'affectos vos mostreis.
Que mal a natureza determina
Medo, esperanças, dores e alegria,
Como o Cynico velho nos ensina.
Immanidade estupida (dizia
O Sulmonense canto) e vil rudeza,
He não sentir affectos que a alma cria.
Porém se o sentir nada for bruteza,
E se paixão devida se consente,
Tambem o sentir muito he ja fraqueza.
Em vós hum soffrer alto s'exprimente,
Qual nos fortes Varões foi conhecido,
Como em estranha, em Lusitana gente.
Bem conheço que o corpo assi perdido,
Como de illustre tumulo carece,
Será de brutas feras consumido.
Mas consola-me, emfim, que se parece
Ao grande bisavô, que por a vida
Real, a sua á Maura lança offrece.
Em pedaços a gente enfurecida
O corpo alli lhe deixa; e com mão dura
Lhe nega a sepultura merecida.
Facil he a perda aqui da sepultura:
Diogenes prudente, e Theodoro
Pouco sentem do corpo essa jactura.
Assi formoso e inteiro, assi decoro
Adorna quem o tẽe, como o tomou,
Quando se ouvir o extremo som canoro.
Mas ai! qual terror subito occupou
O vosso claro peito, ó Portuguezes?
Qual pavido temor vos congelou?
Que lançadas, que golpes, que revézes
Vos fizerão fazer tamanha injúria
Aos fortes Lusitanicos arnezes?
Ou ja de Capitão sobeja incuria,
Ou fraqueza? Não: qu'elle sustentava
Com seu peito dos barbaros a furia.
Ou ja do ferreo cano a fôrça brava
Com estrondos que atroão mar e terra,
Os corações ardentes congelava?
Ah! quem vos fez que os impetos da guerra
Não sustentasseis com valor ousado,
Desprezando o temor que a vida encerra?
A vida por a Patria e por o Estado
Pondo nossos avós, a nós deixárão,
Em terra e mar, exemplo sublimado.
Elles a desprezar nos ensinárão
Todo temor. Pois como agora os netos
Subitamente assi degenerárão?
Não pódem, certo, não, viver quietos
Com feia infamia peitos generosos,
Ja em publicos lugares, ja em secretos.
Mortos d'Esparta os Héroes valerosos
Da fera multidão, fazendo extremos,
Taes Epitaphios tinhão gloriosos:
_Dirás, Hóspede, tu, que aqui jazemos
Passados do inimigo ferro, em quanto
Ás santas Leis da Patria obedecemos._
Fugindo os Persas vão com frio espanto,
Mas achão as mulheres no caminho,
Mostrando-lhes o ventre, em terror tanto.
Pois do damno fugís, vendo-o visinho,
Fracos! vinde a esconder-vos (lhes dizião)
Outra vez no materno e escuro ninho.
Vêde quaes com mais glória ficarião,
Se aquelles que morrêrão por o Estado,
S'estes a quem mulheres injurião?
Mas tu, claro Miguel, que ja acordado
Deste sonho tão breve, estás naquella
Tôrre do ceo, seguro e repousado;
Onde, com Deos unida a forte e bella
Alma, com teus Maiores reluzindo,
Trocaste cada chaga em clara estrella;
Co'os pés o crystallino ceo medindo,
Nada d'essas altissimas Espheras,
Nem da terreste aos olhos encobrindo;
Agora hum curso e outro consideras,
Agora a vaidade dos mortaes,
Que tu tambem passáras se vivêras,
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
* * * * *

ELEGIA XI.
Se quando contemplamos as secretas
Causas, por que este mundo se sustenta,
E o revolver dos ceos e dos planetas;
E se quando á memoria se presenta
Este curso do sol tão bem medido,
Que hum ponto só não míngua, nem s'augmenta;
Aquelle effeito, tarde conhecido,
Da lua na mudança tão constante,
Que minguar e crescer he seu partido;
Aquella natureza tão possante
Dos ceos, que tão conformes e contrarios
Caminhão, sem parar hum breve instante;
Aquelles movimentos ordinarios,
A que responde o tempo, que não mente,
Co'os effeitos da terra necessarios;
Se quando, emfim, revolve subtilmente
Tantas cousas a leve phantasia,
Sagaz escrutadora e diligente;
Bem vê, se da razão se não desvia,
Aquelle unico Ser, alto e divino,
Que tudo póde, manda, move e cria.
Sem fim e sem princípio, hum Ser contino;
Hum Padre grande, a quem tudo he possibil,
Por mais que o difficulte humano atino:
Hum saber infinito, incomprehensibil;
Huma verdade que nas cousas anda,
Que mora no visibil e invisibil.
Esta potencia, emfim, que tudo manda,
Esta Causa das causas, revestida
Foi desta nossa carne miseranda.
Do amor e da justiça compellida,
Por os erros da gente, em mãos da gente
(Como se Deos não fôsse) deixa a vida.
Oh Christão descuidado e negligente!
Pondera-o com discurso repousado;
E ver-te-has advertido facilmente.
Ólha aquelle Deos alto e increado,
Senhor das cousas todas, que fundou
O ceo, a terra, o fogo, o mar irado;
Não do confuso caos, como cuidou
A falsa Theologia, e povo escuro,
Que nesta só verdade tanto errou;
Não dos atomos leves d'Epicuro;
Não do fundo Oceano, como Thales,
Mas só do pensamento casto e puro.
Ólha, animal humano, quanto vales,
Pois este immenso Deos por ti padece
Novo estylo de morte, novos males.
Ólha que o sol no Olympo s'escurece,
Não por opposição de outro Planeta;
Mas só porque virtude lhe fallece.
Não vês que a grande máchina inquieta
Do mundo se desfaz toda em tristeza,
E não por causa natural secreta?
Não vês como se perde a Natureza?
O ar se turba? o mar batendo geme,
Desfazendo das pedras a dureza?
Não vês que cahe o monte, a terra treme?
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