Obras Completas de Luis de Camões, Tomo III - 08

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E que lá na remota e grande Athenas
O docto Areopagita exclama e teme?
Oh summo Deos! tu mesmo te condenas,
Por o mal em qu'eu só sou o culpado,
A tamanhas affrontas, tantas penas?
Por mi, Senhor, no mundo reputado
Por falso, e violador da sacra Lei?
A fama a ti se põe do meu peccado?
Eu, Senhor, sou ladrão, tu justo Rei.
Pois como entre ladrões eu não padeço?
A pena a ti se dá do qu'eu errei?
Eu servo sem valor, tu immenso preço,
Em preço vil te pões, por me tirares
Do captiveiro eterno que mereço?
Eu por perder-te, e tu por me ganhares
Te dás aos soltos homens, que te vendem,
Só para os homens presos resgatares?
A ti, que as almas sóltas, a ti prendem?
A ti summo Juiz, ante Juizes
Te accusão por o error dos que te offendem?
Chamão-te malfeitor; não contradizes:
Sendo tu dos Prophetas a certeza,
Dizem que quem te fere prophetizes.
Rim-se de ti; tu choras a crueza
Que sôbre elles virá: a gente dura,
Por quem tu vens ao mundo, te despreza.
O teu rosto, de cuja formosura
Se veste o ceo e o sol resplandecente,
Diante quem pasmada está a Natura,
Com cruas bofetadas da vil gente,
De precioso sangue está banhado,
Cuspido, atropellado cruelmente.
Aquelle corpo tenro e delicado,
Sôbre todos os Santos sacrosanto,
A açoutes rigorosos desangrado;
Despois coberto mal d'hum pobre manto,
Que se pegava ás carnes magoadas
Para dobrar-lhe as dores outro tanto.
Magoavão-no as chagas não curadas,
Hum tormento causando-lhe excessivo
Ao despir por as mãos crueis e iradas.
As venerandas barbas de Deos vivo
De resplandor ornadas, s'arrancavão
Para desempenhar a Adão captivo.
Com cordas por as ruas o levavão,
Levando sôbre os hombros o trophéo
Da victoria qu'as almas alcançavão.
Ó tu, que passas, homem Cyrenêo,
Ajuda hum pouco a est'Homem verdadeiro,
Que agora, como humano, enfraqueceo.
Ólha que o corpo afflicto do marteiro,
E dos longos jejuns debilitado,
Não póde ja co'o pêso do madeiro.
Oh não enfraqueçais, Deos incarnado!
Essas quédas, que tanto vos magôão,
Supportae Cavalleiro sublimado.
Aquellas altas vozes, que lá sôão,
Dos Padres são, que o Limbo tẽe escuro,
E ja de louro e palma vos corôão.
Todos vos bradão que subais o muro
Da cidade infernal, e que arvoreis
Em cima essa bandeira mui seguro.
Oh Santos Padres! não vos apresseis;
Pois muito mais a Deos, que a vós, custárão
Essas duras prisões em que jazeis.
Aquellas mãos que o mundo edificárão,
Aquelles pés que pízão as estrellas,
Com durissimos pregos s'encravárão.
Mas qual será o humano qu'as querellas
Da angustiada Virgem contemplasse,
Sem se mover a dor e mágoa dellas?
E que dos olhos seus não destillasse
Tanta cópia de lagrimas ardentes,
Que carreiras no rosto sinalasse?
Oh quem lhe víra os olhos refulgentes
Convertendo-se em fontes, e regando
Aquellas faces bellas e excellentes!
Quem a ouvíra com vozes ir tocando
As estrellas, a quem responde o ceo,
Co'os accentos dos Anjos retumbando!
Quem víra quando o puro rosto ergueo
A ver o Filho, que na Cruz pendia,
Donde a nossa saude descendeo!
Que mágoas tão chorosas que diria!
Que palavras tão miseras e tristes
Para o ceo, para a gente espalharia!
Pois que sería, Virgem, quando vistes
Com fel nojoso, e com vinagre amaro
Matar a sêde ao Filho que paristes?
Não era este o licor suave e claro,
Que para o confortar então darieis
A quem vos era, mais que a vida, charo.
Como, Virgem Senhora, não corrieis
A dar as puras tetas ao Cordeiro,
Que padecer na Cruz com sêde vieis?
Não era só, não, esse o verdadeiro
Poto, que vosso Filho desejava,
Morrendo por o mundo em hum madeiro;
Mas era a salvação que alli ganhava
Para o misero Adão, que alli bebia
Na fonte que do peito lhe manava.
Pois, ó pura e Santissima Maria,
Que, emfim, sentistes esta mágoa, quanto
A grave causa della o requeria;
D'essa Fonte sagrada e peito santo
M'alcançae huma gotta, com que lave
A culpa que me aggrava e pesa tanto.
Do licor salutifero e suave
M'abrangei, com que mate a sêde dura
Deste mundo tão cego, torpe e grave.
Assi, Senhora, toda criatura
Que vive e vivirá, e não conhece
A Lei de vosso Filho, a abrace pura;
O falsissimo herege, que carece
Da graça, e com damnado e falso esprito
Perturba a Santa Igreja, que florece;
O povo pertinaz no antiguo rito,
Que só o destêrro seu, que tanto dura,
Lhe diz qu'he pena igual ao seu delito;
O torpe Ismaelita, que mistura
As Leis, e com preceitos tão viciosos
Na terra estende a seita falsa e impura;
Os idolatras maos, supersticiosos,
Varios de opiniões e de costumes,
Levados de conceitos fabulosos;
As mais remotas gentes, onde o lume
Da nossa Fé não chega, nem que tenhão
Religião alguma se presume;
Assi todos, emfim, Senhora, venhão
A confessar hum Deos crucificado,
E por nenhum respeito se detenhão.
E d'hum e d'outro o vício ja deixado,
O seu Nome, co'o vosso nesse dia,
Seja por todo o mundo celebrado;
E respóndão os ceos: JESUS, MARIA.
* * * * *

ELEGIA XII. ACROSTICA.
Juizo extremo, horrifico e tremendo,
E Juiz sempiterno, alto e celeste,
Significará a terra, humedecendo.
Ver-se-ha nella hum suor que manifeste
Como em carne vem Deos, para que o veja
Homem toda esta máchina terreste;
Rei justo, que dos corpos e almas seja
Juiz; e quando o mundo cego e inculto
Sôbre espinhos crueis deitado seja,
Todo vão simulacro e gentil culto
Ousará engeitar a gente; e guerra
Fará co'o mar o fogo, e cru tumulto.
Immensa luz, que as carnes desenterra,
Lançará fóra as portas vãas do Averno,
Hum Justo e outro alçando á santa terra.
Outros, que são os maos, no fogo eterno
Deitará, descobrindo-se os segredos,
E sendo claro todo feito interno.
Desfeitos serão montes e penedos,
E será tudo pranto e estridor duro;
Obras de grande dor e tristes medos.
Será tornado o sol de todo escuro,
E destruida a máchina do mundo,
Sem luz as luzes todas do Orbe puro;
Altos serão os valles, e em profundo
Lugar se abaterão os altos montes;
Vibrará mares vento furibundo:
Haverá só de chammas vivas fontes:
De trombeta tremenda som terribil,
Ouvido, fara pallidas as frontes.
Responderá dos maos gemido horribil.
* * * * *


EPISTOLAS.

EPISTOLA I.
Quem póde ser no mundo tão quieto,
Ou quem terá tão livre o pensamento,
Quem tão exprimentado, ou tão discreto,
Tão fóra, emfim, de humano entendimento,
Que ou com público effeito, ou com secreto,
Lhe não revolva e espante o sentimento,
Deixando-lhe o juizo quasi incerto,
Ver e notar do mundo o desconcêrto?
Quem ha que veja aquelle que vivia
De latrocinios, mortes e adulterios,
Que ao juizo das gentes merecia
Perpétua pena, immensos vituperios,
Se a Fortuna em contrário o leva e guia,
Mostrando, emfim, que tudo são mysterios,
Em alteza d'estados triumphante,
Que por livre que seja não s'espante?
Quem ha que veja aquelle, que tão clara
Teve a vida, qu'em tudo por perfeito
O proprio Momo ás gentes o julgára,
Inda quando lhe visse aberto o peito,
Se a má Fortuna, ao bom somente avara,
O reprime, e lhe nega seu direito,
Que lhe não fique o peito congelado,
Por mais e mais que seja exprimentado?
Democrito dos deoses proferia
Que erão sós dous; a Pena, e o Beneficio.
Segredo algum será da phantasia,
De qu'eu achar não posso claro indicio.
Que se ambos vem por não cuidada via
A quem os não merece, he grande vício
Em deoses sem-justiça e sem-razão.
Mas Democrito o disse, e Paulo não.
Dir-me-heis, que s'este estranho desconcêrto
Novamente no mundo se mostrasse,
Que por livre que fosse e mui experto,
Não era d'espantar se m'espantasse.
Mas que se ja de Socrates foi certo
Que nenhum grande caso lhe mudasse
O vulto, ou de prudente, ou de constante,
Exemplo tome delle, e não m'espante.
Parece a razão boa; mas eu digo
Deste uso da Fortuna tão damnado
Que quanto he mais usado e mais antigo,
Tanto he mais estranhado e blasphemado.
Porque, se o Ceo, das gentes tão amigo
Não dá á Fortuna tempo limitado,
Não he para causar mui grande espanto,
Que mal tão mal olhado dure tanto?
Outro espanto maior aqui m'enleia,
Que com quanto Fortuna tão profana
Com estes desconcertos senhoreia,
A nenhuma pessoa desengana.
Não ha ninguem, que assente, nem que creia
Este discurso vão da vida humana,
Por mais que philosophe, nem qu'entenda,
Que algum pouco do mundo não pretenda.
Diogenes pisava de Platão
Com seus sordidos pés o rico estrado,
Mostrando outra mais alta presumpção
Em desprezar o fausto tão prezado.
Diogenes, não vês que extremos são
Esses que segues, de mais alto estado?
Pois se de desprezar te prezas muito,
Ja pretendes do mundo fama e fruito.
Deixo agora Reis grandes, cujo estudo
He fartar esta sêde cubiçosa
De querer dominar e mandar tudo,
Com fama larga e pompa sumptuosa.
Deixo aquelles que tomão por escudo
De seus vicios e vida vergonhosa
A nobreza de seus antecessores,
E não cuidão de si que são peores.
Aquelle deixo, a quem do somno esperta
O grão favor do Rei que serve e adora,
E se mantẽe dest'aura falsa e incerta,
Que de corações tantos he senhora.
Deixo aquelles qu'estão co'a boca aberta
Por s'encher de thesouros de hora em hora,
Doentes desta falsa hydropesia,
Que quanto mais alcança, mais queria.
Deixo outras obras vãas do vulgo errado,
A quem não ha ninguem que contradiga,
Nem de outra cousa alguma he governado,
Que d'huma opinião e usança antiga.
Mas pergunto ora a Cesar esforçado,
Ora a Platão divino, que me diga,
Este das muitas terras em que andou,
Aquelle de vencê-las, que alcançou?
Cesar dirá: Sou digno de memoria:
Vencendo povos varios e esforçados,
Fui Monarca do mundo; e larga historia
Ficará de meus feitos sublimados.
He verdade: mas esse mando e glória,
Lograste-o muito tempo? Os conjurados
Bruto e Cassio dirão que, se venceste,
Emfim, emfim, ás mãos dos teus morreste.
Dirá Platão: Por ver o Etna e o Nilo
Fui a Sicilia, Egypto e outras partes,
Só por ver e escrever em alto estilo
Da natural sciencia e muitas artes.
O tempo he breve, e queres consumi-lo,
Platão, todo em trabalhos? e repartes
Tão mal de teu estudo as breves horas,
Que, emfim, do falso Phebo o filho adoras?
Pois quanto des que vive ja apartada
A alma desta prisão terreste e escura;
Está em tamanhas cousas occupada,
Que da fama, que fica, nada cura.
E se o corpo terreno sinta nada,
O Cynico dirá se por ventura
No campo, onde lançado morto estava,
De si os cães, ou as aves enxotava.
Quem tão baixa tivesse a phantasia,
Que nunca em mores cousas a metesse,
Qu'em só levar seu gado á fonte fria,
E mungir-lhe do leite que bebesse,
Quão bem-aventurado que sería!
Que por mais que a Fortuna revolvesse,
Nunca em si sentiria maior pena,
Que pezar-lhe de a vida ser pequena.
Veria erguer do sol a roxa face,
Veria correr sempre a clara fonte,
Sem imaginar a ágoa donde nace,
Nem quem a luz occulta no Horizonte.
Tangendo a frauta donde o gado pace,
Conheceria as hervas do alto monte,
Em Deos creria simples e quieto,
Sem mais especular algum secreto.
D'hum certo Trasilao se lê e escreve
Entre as cousas da velha antiguidade,
Que perdido grão tempo o siso teve
Por causa d'huma grave enfermidade;
E em quanto, de si fóra, doudo esteve,
Tinha por teima, e cria por verdade,
Qu'erão suas, das naos que navegavão,
Quantas no porto Píreo ancoravão.
Por hum Senhor mui grande se teria,
(Além da vida alegre que passava)
Pois nas que se perdião não perdia,
E das que vinhão salvas se alegrava.
Não tardou muito tempo, quando hum dia
Huncrito, seu irmão, que ausente estava,
Á terra chega; e vendo o irmão perdido,
Do fraternal amor foi commovido.
Aos Medicos o entrega, e com aviso
O faz estar á cura refusada.
Triste! que por tornar-lhe o antigo siso
Lhe tira a doce vida descansada.
As hervas Apollineas d'improviso
O tornão á saude ja passada.
Sisudo Trasilao, ao charo irmão
Agradece a vontade, a obra não.
Porque despois de ver-se no perigo
Do trabalho a que o siso o obrigava,
E despois de não ver o estado antigo,
Que a louca presumpção lhe apresentava:
Oh inimigo irmão, com côr de amigo!
Para que me tiraste (suspirava)
Da mais quieta vida e livre em tudo,
Que nunca pôde ter nenhum sisudo?
Por qual Senhor algum eu me trocára,
Ou por qual algum Rei de mais grandeza?
Que me dava que o mundo se acabára,
Ou que a ordem mudasse a natureza?
Agora me he penosa a vida chara;
Sei que cousa he trabalho, e qu'he tristeza.
Torna-me a meu estado; qu'eu te aviso
Que na doudice só consiste o siso.
Vêdes aqui, Senhor, bem claramente
Como a Fortuna em todos tẽe poder,
Senão só no que menos sabe e sente;
Em quem nenhum desejo póde haver.
Este se póde rir da cega gente;
Neste não póde nada acontecer;
Nem estara suspenso na balança
Do temor mao, da perfida esperança.
Mas se o sereno Ceo me concedêra
Qualquer quieto, humilde e doce estado,
Onde com minhas Musas só vivêra,
Sem ver-me em terra alheia degradado;
E alli outrem ninguem me conhecêra,
Nem eu conhecêra outro mais honrado,
Senão a vós, tambem como eu contente;
Que bem sei que o serieis facilmente:
E ao longo d'huma clara e pura fonte,
Qu'em borbulhas nascendo, convidasse
Ao doce passarinho, que nos conte
Quem da chara consorte o apartasse;
Despois, cobrindo a neve o verde monte,
Ao gasalhado o frio nos levasse,
Avivando o juizo ao doce estudo,
Mais certo manjar d'alma, emfim, que tudo.
Cantára-nos aquelle, que tão claro
O fez o fogo da árvore Phebêa,
A qual elle em estylo grande e raro
Louvando, o crystallino Sorga enfrêa;
Tangêra-nos na frauta Sanazaro,
Ora nos montes, ora por a arêa;
Passára celebrando o Tejo ufano
O brando e doce Lasso Castelhano.
E comnosco tambem se achára aquella,
Cuja lembrança, e cujo claro gesto
N'alma somente vejo, porque nella
Está em essencia puro e manifesto;
Por alta influição de minha estrella
Mitigando o rigor do peito honesto,
Entretecendo rosas nos cabellos,
De que tomasse a luz o sol em vellos;
E em quanto por Verão flores colhesse,
Ou por Inverno ao fogo accommodado,
O que de mi sentíra nos dissesse,
De puro amor o peito salteado;
Não pedíra então eu, que Amor me désse
Do insano Trasilao o doudo estado;
Mas que alli me dobrasse o entendimento,
Por ter de tanto bem conhecimento.
Mas por onde me leva a phantasia?
Porqu'imagino em bem-aventuranças,
Se tão longe a Fortuna me desvia,
Qu'inda me não consente as esperanças?
Se hum novo pensamento Amor me cria
Onde o lugar, o tempo, as esquivanças
Do bem me fazem tão desamparado,
Que não póde ser mais qui'maginado?
Fortuna, emfim, co'o Amor se conjurou
Contra mi, porque mais me magoasse:
Amor a hum vão desejo me obrigou,
Só para que a Fortuna mo negasse.
O tempo a tal estado me chegou;
E nelle quiz que a vida se acabasse;
Se ha em mi acabar-se, o qu'eu não creio;
Que até da muita vida me receio.
* * * * *

EPISTOLA II.
Como nos vossos hombros tão constantes
(Principe illustre e raro) sustenteis
Tantos negocios arduos e importantes,
Dignos do largo Imperio, que regeis;
Como sempre nas armas rutilantes
Vestido, o mar e a terra segureis
Do pirata insolente, e do tyrano
Jugo do potentissimo Othomano;
E como com virtude necessaria,
Mal entendida do juizo alheio,
Á desordem do vulgo temeraria
Na santa paz ponhais o duro freio;
Se com minha escriptura longa e vária
Vos occupasse o tempo, certo creio
Que com vagante e ociosa phantasia
Contra o commum proveito peccaria.
E não menos sería reputado
Por doce adulador, sagaz e agudo,
Que contra meu tão baixo e triste estado
Busco favor em vós que podeis tudo,
Se contra a opinião do vulgo errado
Vos celebrasse em verso humilde e rudo.
Dirão, que com lisonja ajuda peço
Contra a miseria injusta que padeço.
Porém, porque a verdade póde tanto
No livre arbitrio, (como disse bem
Ao Rei Dario o moço sabio e santo,
Que foi reedificar Hierusalem)
Esta m'obriga a qu'em humilde canto,
Contra a tenção que a plebe ignara tem,
Vos faça claro a quem vos não alcança;
E não de premio algum vil esperança.
Romulo, Baccho e outros que alcançárão
Nomes de semideoses soberanos,
Em quanto por o mundo exercitárão
Altos feitos, e quasi mais que humanos,
Com justissima causa se queixárão
Que não lhes respondêrão os mundanos
Favores do rumor justos e iguaes
A seus merecimentos immortaes.
Aquelle, que nos braços poderosos
Tirou a vida ao Tingitano Anteo,
E a quem os seus trabalhos tão famosos
Fizerão Cidadão do claro ceo;
Achou que a má tenção dos invejosos
Não se doma, senão despois que o véo
Se rompe corporal: porque na vida
Ninguem alcança a glória merecida.
Pois logo, se Barões tão excellentes
Forão do baixo vulgo molestados,
O vituperio vil das rudas gentes,
He louvor dos Reaes, e sublimados.
Quem no lume dos vossos Ascendentes
Poderá pôr os olhos, que abalados
Lhes não fiquem da luz, vendo os maiores
Vossos passados, Reis e Imperadores?
Quem verá aquelle Pae da Patria sua,
Açoute do soberbo Castelhano,
Que o duro jugo só, co'a espada nua,
Removeo do pescoço Lusitano,
Que não diga: Ó grão Nuno, a eterna tua
Memoria causará, se não m'engano,
Que qualquer teu menor tanto s'estime,
Que nunca possa ser senão sublime?
Nisto não fallo mais, porque conheço
Que da materia se me baixa o engenho.
Mas, pois a dizer tudo m'offereço,
E dias ha que no desejo o tenho,
Sendo vós de tão alto e illustre preço,
A vida fostes pôr n'hum fraco lenho,
Por largo mar e undosa tempestade,
Só por servir á Regia Magestade.
E despois de tomar a redea dura
Na mão, do povo indomito qu'estava
Costumado a larguezas, e á soltura
Do pezado govêrno que acabava;
Quem não terá por santa e justa cura,
Qual do vosso conceito s'esperava,
A tão desenfreada enfermidade
Applicar-lhe contrária qualidade?
Não he muito, Senhor, se o moderado
Govêrno se blasphema e se desama;
Porque o povo á largueza costumado,
Á lei serena e justa, dura chama.
Pois o zelo em virtude só fundado
De salvar almas da Tartarea flama
Com a ágoa salutifera de Christo,
Poderá por ventura ser malquisto?
Quem quizesse negar tão grã verdade,
Qual he o seu effeito santo e pio;
Negue tambem ao sol a claridade,
E certifique mais que o fogo he frio.
Se o successo he contrário da vontade
Nas obras que são boas, e ha desvio;
Está nas mãos dos homens comettellas,
E nas de Deos está o successo dellas.
Sei eu, e sabem todos que os futuros
Verão por vós o Estado accrescentado,
Serão memoria vossa os fortes muros
Do Cambaico Damão bem sustendado:
Da ruina mortal serão seguros,
Tendo todo o alicerce seu fundado
Sôbre orfãas amparadas com maridos,
E pagos os serviços bem devidos.
Quãmanha infamia ao Principe he perder-se
Pouco do Estado seu, que inteiro herdou,
Tanto por glória grande deve ter-se
Se accrescentado e próspero o deixou.
Nunca consentio Roma ennobrecer-se
Com triumphos alguem, se não ganhou
Provincia com que o Imperio s'augmentasse,
Por maiores victorias qu'alcançasse.
Póde tomar o vosso nome dino
Damão, por honra sua clara e pura,
Como ja do primeiro Constantino
Tomou Byzancio aquelle qu'inda dura.
E tu, Rei, que no Reino Neptunino,
Lá no seio Gangetico a Natura
Te aposentou, de ser tão inimigo
Deste Estado não ficas sem castigo.
Bem viste contra ti nadantes aves
Cortar a espumosa ágoa navegando;
Ouviste o som das tubas, não suaves,
Mas com temor horrifero soando;
Sentiste os golpes asperos e graves
Do Lusitano braço nunca brando.
Não soffreste o grão brado penetrante,
Que os trovões imitava do Tonante.
Mas antes dando as costas e a victoria
Á Bragancez ventura não corrido,
Déste bem a entender quão grande glória
He de tal vencedor o ser vencido.
Quem faz obras tão dignas de memoria
Sempre será famoso e conhecido,
Onde os altos juizos o estimarem,
Qu'estes sós tẽe poder de fama darem.
Não vos temais, Senhor, do povo ignaro,
Tão ingrato a quem tanto faz por elle;
Mas sabei qu'he signal de serdes claro
O ser agora tão malquisto delle.
Themistocles, da patria sua amparo,
O forte e liberal Cimon, e aquelle
Que Leis ao povo deo d'Esparta antigo,
Testimunhas serão de quanto digo.
Pois ao justo Aristídes hum robusto,
Votando no ostracismo costumado,
Lhe disse claro assi: Porque era justo
Desejava que fosse desterrado.
Pachitas por fugir do povo injusto
Calumnioso, dando no Senado
Conta de Lesbos, qu'elle ja mandára,
Se tirou co'o seu ferro a vida chara.
Demosthenes, lançado das tormentas
Populares, Ó Pallas! foi dizendo,
Que de tres monstros grandes te contentas,
Do drago e moucho, e do vil povo horrendo!
Que glórias immortaes houve, qu'isentas
Do veneno vulgar fossem, vivendo?
Pois mil exemplos deixo de Romanos,
E vós tambem sois hum dos Lusitanos.
* * * * *

EPISTOLA III.
Mui alto Rei, a quem os Ceos em sorte
Derão o nome augusto e sublimado
Daquelle Cavalleiro que na morte,
Por Christo, foi de settas mil passado;
Pois delle o fiel peito, casto e forte,
Co'o nome Imperial tendes tomado,
Tomae tambem a setta veneranda
Que a vós o Successor de Pedro manda.
Ja por ordem do Ceo, que o consentio,
Tendes o braço seu, reliquia chara,
Defensor contra o gladio que ferio
O povo que David contar mandára.
No qual, pois tudo em vós se permittio,
Presagio temos, e esperança clara,
Que sereis braço forte e soberano
Contra o soberbo gladio Mauritano.
E o que hum presagio tal agora encerra,
Nos faz ter por mais certo e verdadeiro
A setta, que vos dá quem he na terra
Dos celestes thesouros Dispenseiro:
Que as vossas settas são na justa guerra
Agudas, e entrarão por derradeiro
(Cahindo a vossos pés povo sem lei)
Nos peitos que inimigos são do Rei.
Quando vossas bandeiras despregava
Albuquerque fortissimo com glória
Por as praias de Persia, e alcançava
De Nações tão remotas a victoria;
As settas embebidas, que tirava
O arco Armusiano (he larga historia)
Nos ares, Deos querendo, se viravão,
Pregando-se nos peitos que as tiravão.
O querido de Deos, por quem peleja,
O ar tambem e o vento conjurado
Ao atambor lhe acodem, porque veja
Que o que a Deos ama, he de Deos amado:
Os contrarios revéis á Madre Igreja
Atroarão co'o tom do Ceo irado.
Que assi deo ja favor maior que humano
A Josué Hebreo, Teodosio Hispano.
Pois se as settas tiradas da inimiga
Corda, contra si só nocivas são,
Que farão, Rei, as vossas que tẽe liga
Com a que ja tocou Sebastião?
Tinta vem do seu sangue, com que obriga
A levantar a Deos o coração,
Crendo bem que as que vós despedireis,
No sangue Sarraceno as tingireis.
Ascanio, (se trazer me he concedido
Entre santos exemplos hum profano)
Rei do Imperio, despois tão conhecido,
De Roma, e só reliquia do Troiano,
Vingou com setta e ânimo atrevido
As soberbas palavras de Numano;
E logo foi dalli remunerado
Com louvores de Apollo, e celebrado.
Assi vós, Rei, que fostes segurança
De nossa liberdade, e que nos dais
De grandes bens certissima esperança;
Nos costumes, e aspecto que mostrais,
Concebemos segura confiança
Que Deos, a quem servis e venerais,
Vos fara vingador dos seus revéis,
E os premios vos dará que mereceis.
Estes humildes versos, que pregão
São destes vossos Reinos com verdade,
Recebei com benigna e Real mão,
Pois he devida a Reis benignidade.
Tenhão (se não merecem galardão)
Favor sequer da Regia Magestade:
Assi tenhais de quem ja tendes tanto,
Com o nome e reliquia, favor santo.
* * * * *

EPISTOLA IV.
Senhora, s'encobrir por algum'arte
Pudera esta occasião de meu tormento,
Não creias que chegára a declarar-te
Este meu perigoso pensamento.
Mas por mais que te offenda, não sou parte
No crime de tamanho atrevimento:
Elle he d'amor; e delle fui forçado
A que te declarasse o meu cuidado.
Se merece castigo a confiança
Com que descubro agora o que padeço,
Aqui prompto me tens; toma a vingança
Que por tão grave culpa te mereço.
Bem me podes negar toda esperança,
Mas eu não desistir deste comêço;
Porque tempo e Fortuna não são parte
Para deixar hum'hora só de amar-te.
Ja que ver-te os meus olhos alcançárão,
Descansem neste bem com alegria,
Pois ja com ver os teus tanto ganhárão,
Quanto, estando sem vê-los, se perdia.
Que glória querem mais, se a ver chegárão
Aquella pura luz que vence ao dia?
Qual mor bem ha no mundo que querer-te,
Se não ha mais que ver despois de ver-te?
Minhas dores mortaes, bella Senhora,
Tirárão a virtude ao soffrimento;
E fazendo-se mais em qualquer hora,
Levando vão traz ti meu pensamento:
Porém soberbos vejo desde agora,
Por a causa gentil de seu tormento,
Minha alma, meu desejo, meu sentido,
Porque á tua belleza se hão rendido.
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