Obras Completas de Luis de Camões, Tomo III - 11

Total number of words is 3700
Total number of unique words is 1341
32.8 of words are in the 2000 most common words
43.0 of words are in the 5000 most common words
49.2 of words are in the 8000 most common words
Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
Chiste não, que he deshonesto,
E não tẽe esses extremos:
Outro canto mais modesto;
Porém não sei que diremos.
PAGEM.
Gaoleão o dirá presto.
PORTEIRO.
Dá licença V. Alteza
Que diga minha tenção?
PRINCIPE.
Dizei: seja em canto-chão.
PORTEIRO.
Pois crede qu'he subtileza.
Qu'os Anjos a comerão.
Digão esta:
_Enforquei minha esperança,
E o Amor foi tão madraço,
Que lhe cortou o baraço._
ALEXANDRE.
Não me parece essa boa.
PORTEIRO.
Haja eu perdão,
Porque não a entenderão.
ALEXANDRE.
Entender!
PORTEIRO.
Bofé qu'he boa:
Não lhe cahis na feição?
ALEXANDRE.
Dizei ora outra melhor,
Com que nos atarraqueis.
PORTEIRO.
Ora esperae, e ouvireis:
Se a esta não dais louvor,
Quero que me degolleis.
Cantiga.
Com vossos olhos Gonçalves,
Senhora, captivo tendes
Este meu coração Mendes.
ALEXANDRE.
Essa parece mui taibo,
Porque mostra bom indicio.
PORTEIRO.
Vós cuidareis qu'eu que raivo.
ALEXANDRE.
Todavia tẽe mao saibo.
Ora mal lhe corre o offício.
PRINCIPE.
Tá, não vá mais por diante
A zombaria, que he má:
Cantae qualquer dellas ja;
Qu'esse Porteiro he galante,
Ninguem o contentará.
_Aqui cántão, e em acabando, diz o_
PAGEM.
Parece que adormeceo.
PORTEIRO.
Pois será bom que nos vamos.
ALEXANDRE.
Senhor, quer que nos vejamos?
PORTEIRO.
Senhor vir-me-ha do ceo:
Releva-me que o façamos.
_Entra a Rainha com huma sua Criada por nome Frolalta, e diz:_
RAINHA.
Frolalta, como ficava
Antiôcho em te tu vindo?
FROLALTA.
Ficava-se despedindo
Da vida qu'então levava,
E assi seus dias cumprindo.
RAINHA.
Oh grave caso d'amor!
Desesperada affeição!
Oh amor sem redempção,
Que alli te fazes maior
Onde tens menos razão!
No mais alto e fundo pégo
Alli tens maior porfia:
Razão de ti não se fia.
Quem a ti te chamou cego,
Mui bem soube o que dizia.
Por ventura hia chorando?
FROLALTA.
Chorando hia e chamando
Ao Amor, Amor cruel;
E em, Senhora, se deitando
Lhe cahio este papel.
RAINHA.
Que papel?
FROLALTA.
Este, Senhora.
RAINHA.
Amostra, que quero lê-lo.
Agora acabo de crê-lo;
Que ao que mostra por fóra,
Aqui lhe lançou o sello.
_Aqui lê o papel e diz:_
RAINHA.
Oh estranha pena fera!
Desditosa vida chara!
Oh quem nunca cá viera,
E com seu Pae não casára,
Ou em casando morrêra!
FROLALTA.
Aindaque eu pêca são,
Senhora, tudo bem vejo.
Attente, que na eleição
O que lhe pede o desejo
Não consente o coração.
RAINHA.
Frolalta, pois qu'es discreta
Nada te posso encobrir;
Porque, se queres sentir,
A huma mulher discreta
Tudo se ha de descobrir.
O dia qu'entrei aqui,
Que a Seleuco recebi,
Logo nesse mesmo dia
No Principe filho vi
Os olhos com que me via.
Este principio soffri-lho,
Para ver se se mudava;
Antes mais se accrescentava:
Eu amava-o como filho,
E elle d'outr'arte me amava.
Agora vejo-o no fim
Por se me não declarar.
E pois ja que a isso vim,
A morte que o levar,
Me leve tambem a mim.
Porque ja que minha sorte
Foi tão crua e desabrida,
Que me não quer dar sahida;
Sejamos juntos na morte,
Pois o não somos na vida.
Oh quem me mandou casar,
Para ver tal crueldade!
Ninguem venda a liberdade,
Pois não póde resgatar
Onde não tẽe a vontade.
Que não ha mor desvario,
Que o forçado casamento
Por alcançar alto assento;
Que, emfim, todo o senhorio
Está no contentamento.
Não sei se o vá ver agora,
Se será tempo conforme,
Ou se imos a deshora.
FROLALTA.
Despois iremos, Senhora,
Que agora dizem que dorme.
_Entra o Physico a tomar-lhe o pulso, e tomando-o diz:_
PHYSICO.
Su madrasta oyó nombrar,
Y el pulso se le alteró:
Esto no entiendo yo,
Porque para le alterar
El corazon le obligó.
Pues que el corazon se altere,
Es porque en un momento
Algun nuevo vencimiento
De aficion terrible le hiere,
Que causa tal movimiento.
Pues que aficion cabe así
Con madrasta? Digo yo,
Dos razones hay aqui:
La una dice, que sí,
La otra dice, que no.
Empero yo determino
De exprimentar la verdad,
Y hacer una habilidad,
Que declare es agua, ó vino
Esta su enfermedad.
Porque toda esta mañana
Tengo estudiado su mal,
Sin ver causa efectual
De su dolencia inhumana,
Ni otra de su metal.
Llamar quiero este asnejon;
Mas aun debe de dormir,
Segun que es dormilon.
Sancho? ó Sancho?
SANCHO.
Ah Señor.
PHYSICO.
Ea, aun estás dormiendo?
SANCHO.
Estoyme, Señor, vestiendo.
PHYSICO.
Pues vellaco y sin sabor,
No me respondes dormiendo?
Vestios presto, ladron.
Oh qué mozo, y qué ventura!
SANCHO.
(Mas qué amo y qué cabron!)
Embíeme acá el ropon,
Que no hallo mi vestidura.
PHYSICO.
Que embie el ropon acá?
Parece que os desmandais.
SANCHO.
Que vaya, Señor? ha, ha.
Que buenos dias hayais.
_Entra o moço embrulhado em huma manta, e diz:_
PHYSICO.
Di como vienes así
Con la manta, y para qué?
SANCHO.
Yo, Señor, se lo diré:
Por venir presto vestí
Lo que mas presto me hallé:
Porque viendo que él me llama,
Dormiendo yo sin afan,
Salté presto de la cama,
Que parezco un gavilan,
Hermoso como una dama.
PHYSICO.
Mas es tu bovedad tanta,
Que vienes desta facion?
SANCHO.
De mi vestido se espanta?
De noche sirve de manta,
Y de dia de ropon.
PHYSICO.
Embióme ElRey á llamar
Otra vez.
SANCHO.
Y á mí?
PHYSICO.
Y á ti!
SANCHO.
Y él qué presta allá sin mí?
PHYSICO.
Qué puedes tu aprovechar?
SANCHO.
Yo se lo diré de aqui:
Si por la ventura quiere
Para que le dé consejo,
Cuando doliente estuviere;
Digo, coma, si pudiere,
Y beba buen vino anejo;
Porque este es el licor
Que dá fuerza, y es sabroso;
Que segun dicen, Señor,
_Vinum lœtificat cor
Hominis_, y le es provechoso.
PHYSICO.
Ya sabes la medicina,
Que Avicena nos refiere.
SANCHO.
Pues, Señor! porque es divina.
Pero ElRey qué le quiere,
Qué manda, ó qué determina?
PHYSICO.
El Principe está doliente.
SANCHO.
Oh mesquino! Y qué mal ha?
PHYSICO.
Y á ti, necio, que te vá?
SANCHO.
O Señor, que es mi pariente!
PHYSICO.
Gracioso el bovo está.
Y pues díme por tu fé:
Llorarás si se muriere?
SANCHO.
No, Señor, no lloraré;
Empero, Señor, haré
La peor cara que pudiere.
PHYSICO.
Ea, bovo, vé corriendo,
Y ensilla la mula ayna.
SANCHO.
Véngala ensillar mejor.
PHYSICO.
Oh velhaco, y sin sabor!
SANCHO.
Yo por cierto no lo entiendo.
Pero una medicina
Le he de pedir, Dios queriendo,
(Porque ando atribulado,
Y no sé parte de mi
Con este nuevo cuidado)
Para un sayo esfarrapado,
Que me dicen hay allí.
PHYSICO.
Ora ensilla; y nunca viva,
Pues sufro tus desatinos.
SANCHO.
Señor, pasion no reciva:
_Ya cavalga Calaínos
A la sombra de una oliva._
_Aqui sahe bolindo com a almofaça, e acorda o Principe e diz:_
PRINCIPE.
Oh bella vista e humana,
Por quem tanto mal sostenho!
Oh Princeza soberana!
Como? nos braços vos tenho,
Ou este sonho m'engana?
Pois como, sonho, tambem
Me queres vir magoar?
E para me atormentar
Mostras-me a sombra do bem
Para assi mais m'enganar?
Assi que, com quanto canso,
Ja não posso achar atalho,
Pois que o somno quieto e manso,
Que os outros tẽe por descanso,
Me vem a mi por trabalho.
Pois ha hi tantos enganos
Que condemnão minha sorte;
Não o tenho ja por forte,
Se á volta de tantos danos
Viesse tambem a morte.
_Aqui entra ElRei com o Physico, e diz:_
REI.
Andae e vêde se achais
O rasto deste segredo,
Que me dizem que alcançais;
Ainda que tenho medo
Que lhe seja por demais.
PHYSICO.
Plega á Dios que aqueste sea
Para salud y remedio
Desta dolencia tan fea.
Yo buscaré todo el medio,
Que presto sano se vea.
_Aqui lhe toma o Physico o pulso, e diz:_
PHYSICO.
Aflojen, Señor, sus ais.
Como se halla en su penar?
PRINCIPE.
Como me acho perguntais?
E como se póde achar
Quem sempre se perde mais?
PHYSICO.
(La respuesta abre el camino.)
Imagina de contino?
PRINCIPE.
Não tenho outro mantimento,
Nem outro contentamento,
Senão o em que imagino.
_Aqui entra a Rainha e diz:_
RAINHA.
Como se sente, Senhor?
Tẽe a febre mais pequena?
PRINCIPE.
Responda-lhe minha pena.
PHYSICO.
(Conocido es su dolor.
Ora sea en hora buena,
Tomada está la tristeza
Á las manos.) Qué sentió?
(Usaré de subtileza.)
_Diz contra ElRei:_
Cúmpleme que solo yo
Platique con Vuestra Alteza.
REI.
Cheguemos-nos para cá.
RAINHA.
Não deve desesperar,
Qu'em fim, se bem attentar,
Para tudo o tempo dá
Tempo para se curar.
PRINCIPE.
Que cura poderá ter
Quem tẽe a cura, Senhora,
No impossivel haver?
RAINHA.
Ficae-vos, Senhor, embora,
Que vos não sei responder.
_Vai-se a Rainha, e diz ElRei:_
REI.
Neste mal, que não comprendo,
Que meio dais de conselho?
PHYSICO.
Señor, nada entiendo dello;
Y supuesto que lo entiendo,
Yo quisiera no entendello.
REI.
Porque?
PHYSICO.
Porque he entendido
Lo mas malo de entender,
Para lo que puede ser,
Porque anda, Señor, perdido
De amores por mi muger.
REI.
Santo Deos! que! tal amor
Lhe dá doença tão fera!
Que remedio achais melhor?
PHYSICO.
Forçado será que muera,
Porque no muera mi honor.
REI.
Pois como! a hum só herdeiro
Deste Reino não dareis
Vossa mulher, pois podeis;
Que tudo faz o dinheiro?
Pois este não o engeiteis;
Dae-lha, porque eu espero
De vos dar dinheiro e honra,
Quanto eu para elle quero.
PHYSICO.
No tira el mucho dinero
La mancha de la deshonra.
REI.
Ora bem pouco defeito!
He pequice conhecida,
Quando deixa de ser feito;
Porque com elle dais vida
A quem vos dara proveito.
PHYSICO.
Cuan facilmente aporfia
Quien en tal nunca se vió!
Del consejo que me dió,
Vuestra Alteza que haria
Si agora fuese yo?
REI.
A mulher que eu tivesse
Dar-lha-hia. Oxalá
Que elle a Rainha quizesse!
PHYSICO.
Pues déla, si le parece,
Que por ella muerto está.
REI.
Que me dizeis?
PHYSICO.
La verdad.
REI.
Sem dúvida, tal sentistes?
PHYSICO.
Sin duda, sin falsedad.
Pues, Señor, ahora tomad
Los consejos que me distes.
REI.
Certamente, qu'eu o via
Em tudo quanto fallava.
Como o vistes? porque via?
PHYSICO.
Nel pulso, que se alterava
Si la via, ó si la oia.
REI.
Que maneira ha de haver?
Qu'eu certo me maravilho,
Possa mais o amor do filho,
Do que póde o da mulher.
Finalmente hei-lha de dar,
Que a ambos conheço o centro.
Quero-o ir alevantar,
E iremos para dentro
Neste caso praticar.
_Diz contra o Principe:_
Levantae-vos, filho, d'hi
O melhor que vós puderdes,
E vindo-vos para aqui;
Porque, emfim, o que quizerdes
Tudo havereis de mi.
PAGEM.
Ah Senhores, oulá, ou?
PORTEIRO.
Viestes em conjunção
A melhor que póde ser:
Haveis aqui de fazer
A tosquia a hum rifão.
PAGEM.
Deixae-me, Senhor, dizer:
Haveis isto de acabar,
Coração, hi bugiar,
No esteis preso en cadenas,
Que pois o amor vos deo penas,
Que vos lanceis a voar.
PORTEIRO.
Por certo que bem comprou.
PAGEM.
Ora sabeis o que vai?
Antiocho que casou
Com a mulher de seu Pai,
E o mesmo Pae o ordenou.
PORTEIRO.
Isso como?
PAGEM.
Não o sei;
Porque dizem que a amava,
E que só por ella andava
Para morrer; e ElRei
Deo-a a quem a desejava.
PORTEIRO.
Se o casa por querer bem
Com a moça, a quem elle ama,
Direi eu que a mim me inflama
O amor mais que a ninguem.
PAGEM.
Pois pedi-lhe a nossa dama.
PORTEIRO.
Por São Gil, que ei-los cá vem,
Elle pela mão com ella.
_Entra ElRei, e Antiocho com a Rainha pela mão, e diz:_
REI.
Que mais ha hi que esperar?
Olhae qu'estranheza vai!
O muito amor ordenar,
Ir-se o filho namorar
D'huma mulher de seu Pai!
Querer bem foi sua dor,
Negar-lha será crueldade;
Assi que ja foi bondade
Usar eu de tal amor,
E de tal humanidade.
Ella deixou de reinar
Como fazia primeiro
Por se com elle casar;
E por amor verdadeiro
Tudo se póde deixar.
Eu que nella tinha pôsto
Todo o bem de meu cuidado,
Deixei mais que ella ha deixado;
Que mais se deixa no gôsto,
Que no poderoso estado.
Mas ja que tudo isto vemos,
Hajão festas de prazer,
As que melhor possão ser;
Porqu'em tão grandes extremos,
Extremos se hão de fazer.
Hajão cantos para ouvir,
Jogos, prazeres sem fundo;
Porque, se quereis sentir,
Deste modo entrou o mundo,
E assi ha de sahir.
_Aqui vem os Musicos e cántão, e depois de cantarem, sahem-se todas as
figuras, e diz_
MARTIM CHINCHORRO.
Ora, Senhor, tomemos tambem nosso pandeiro, e vamos festejar os noivos;
ou vamos consoar com as figuras, porque me parece que esta he a mor
festa que póde ser. Mas espere v. m., ouviremos cantar, e na volta das
figuras nos acolheremos. Moço, accende esse mólho de cavacos, porque faz
escuro, não vamos dar comnosco em algum atoleiro, onde nos fique o ruço
e as canastras.
ESTACIO DA FONSECA.
Não, Senhor, mas o meu Pilarte irá com elles com hum par de tições na
mão; e perdoem o mao gasalhado. Mas daqui em diante sirvão-se desta
pousada; e não tenhão isto por palavras, porque essas e plumas, o vento
as leva.
* * * * *


OS AMPHITRIÕES,
COMEDIA.

INTERLOCUTORES.
AMPHITRIÃO.
ALCMENA, sua mulher.
CALLISTO.
FELISEO.
SOSEA, moço de Amphitrião.
BROMIA, sua criada.
BELFERRÃO, Patrão.
AURELIO, Primo de Alcmena.
HUM MOÇO DE AURELIO.
JUPITER.
MERCURIO.

OS AMPHITRIÕES,
COMEDIA.


ACTO PRIMEIRO.

SCENA I.
_Entra Alcmena, saudosa do marido, que he na guerra, e Bromia._
ALCMENA.
Ah Senhor Amphitrião,
Onde está todo meu bem!
Pois meus olhos vos não vem,
Fallarei co'o coração,
Que dentro n'alma vos tem.
Ausentes duas vontades,
Qual corre mores perigos,
Qual soffre mais crueldades,
Se vós entre os inimigos,
Se eu entre as saudades?
Que a ventura, que vos traz
Tão longe de vossa terra,
Tantos desconcertos faz,
Que se vos levou á guerra,
Não me quiz leixar em paz.
Bromia, quem com vida ter,
Da vida ja desespera,
Que lhe poderás dizer?
BROMIA.
Que nunca se vio prazer,
Senão quando não se espera.
E por tanto não devia
De ter triste a phantasia;
Porque Vossa Mercê creia,
Que o prazer sempre salteia
Quem delle mais desconfia.
Eu tenho no coração,
Do Senhor Amphitrião
Venha hoje alguma nova:
Não receba alteração,
Que a verdadeira affeição
Na longa ausencia se prova.
ALCMENA.
Dizei logo a Feliseo
Que chegue muito apressado
Ao caes, e busque mêo
De saber se algum recado
Do porto Persico vêo:
E mais lhe haveis de dizer,
(Isto vos dou por offício)
D'alguma nova saber,
Em quanto eu vou fazer
Aos Deoses o sacrificio.

SCENA II.
BROMIA.
Saudades de minh'ama,
Chorinhos e devoções,
Sacrificios e orações,
Me hão de lançar n'huma cama,
Certamente.
Nós mulheres de semente
Somos sedenho mui tosco:
Com qualquer vento que vente,
Queremos forçadamente
Que os Deoses vivão comnosco.
Quero Feliseo chamar,
E dizer-lhe aonde ha de ir.
Mas elle como me vir,
Logo ha de querer rinchar,
De travesso.
Eu que de zombar não cesso,
Por ficar com elle em salvo,
Lanço-lhe hum e outro remêsso;
Aos seus furto-lhe o alvo;
E então elle fica avesso.
Porque o melhor destas danças,
Com huns vindiços assi,
He trazê-los por aqui
Ó cheiro das esperanças,
Por viver.
Ha-os homem de trazer
Nos amores assi mornos,
Só para ter que fazer;
E despois ao remetter
Lançar-lhe a capa nos cornos.
Feliseo, se estais á mão,
Chegae cá, vem como hum gamo:
Bem sei que não chamo em vão.

SCENA III.
_Feliseo e Bromia._
FELISEO.
Chamais-me? tambem vos chamo;
Porém eu ouço, e vós não:
Senhora, que me matais,
Se vós ja nunca me ouvis,
Ou me ouvis, e vos callais,
Dizei: porque me chamais
Se me vós a mim fugis?
BROMIA.
Eu vos fujo?
FELISEO.
Fugis, digo,
De dar a meus males cabo.
BROMIA.
Sabei que desse perigo
Não fujo como de imigo,
Fujo como do diabo.
FELISEO.
Dae ao demo essa tenção,
Usae antes de cortês,
Cahi vós nesta razão.
BROMIA.
Do p'rigo fogem os pés,
Do diabo o coração.
FELISEO.
Dizeis-me que nessa briga
Do meu coração fugis.
BROMIA.
Ainda qu'eu isso diga...
FELISEO.
Ah minha doce inimiga!
Bem sinto que me sentis.
Mas para que me chamais?
BROMIA.
Manda-vos minha Senhora
Que chegueis daqui ao cais,
E algumas novas saibais
D' Amphitrião nesta hora.
FELISEO.
Quem as não sabe de si,
D'outrem como as sabera?
BROMIA.
Não as sabeis vós de mi.
FELISEO.
Má trama venha por ti,
Duna feiticeira má!
Porque não me ólhas direito,
Cadella, que assi me cortas?
BROMIA.
Porque vos quero dar portas;
Que s'eu olhar d'outro geito,
Trarei cem mil vidas mortas.
FELISEO.
E pois para que me andais
Enganando ha cem mil annos?
BROMIA.
Dou-vos vida com enganos.
FELISEO.
Nesses enganinhos tais
Acho crueis desenganos.
BROMIA.
Quant'esses vos quero eu dar:
Vós cuidais que estais na sella?
Pois podeis-vos descer della;
Qu'eu nunca vos pude olhar.
FELISEO.
Jogais comigo á panella?
Tendes-me ha tanto captivo,
E desenganais-me agora?
Tudo isto he o que privo.
Assi que he isso, Senhora,
Dochelo morto, dochelo vivo?
Se me vós desenganais
No cabo de tantos annos,
Direi, se licença dais,
Dais-me vida com enganos,
Desenganos, ja chegais.
Mas se isso havia de ser,
Dizei, má desconhecida,
Destêrro de meu viver,
Que vos custava dizer
Amor, vae buscar tua vida?
BROMIA.
Zombais? Fallais-me coprinhas?
FELISEO.
Rir-vos-heis se vem á mão:
Copras não, mas isto são
Ansias y pasiones minhas
Dos bofes e coração.
BROMIA.
Is-vos fazendo d'huns sengos.....
FELISEO.
Perdóneme Dios si peco.
BROMIA.
Nesses dentinhos framengos
Conheço que sois hum pêco
De todos quatro avoengos.
FELISEO.
Tudo vos levo em capelo,
Ja qu'estais tanto em agraço.
Porém, fallando singelo,
A furto desse mao zêlo,
Quereis-me dar hum abraço?
BROMIA.
Ora digo que não posso
Usar comvosco de fero:
Tomae-o.
FELISEO.
Ja o não quero,
Porque esse abraço vosso,
Sabei que he engano mero.
BROMIA.
Oh! vós sois d'huns sensabores...
Abraço pedis assim?
S'eu remango d'hum chapim...
FELISEO.
Tudo isso são favores:
Zombae, vingae-vos de mim.
BROMIA.
Vós de furioso touro
As garrochas não sentis.
FELISEO.
Vedes, com isso sé mouro:
Quando cuido que sois ouro,
Acho-vos toda ceitis.
BROMIA.
Emfim, sanha de villão
Vos fez perder hum bom dia.
FELISEO.
Jagora o eu tomaria;
Quereis-mo dar?
BROMIA.
Ora não.
Cocei-vos eu todavia.
FELISEO.
Pois, Senhora, a quem vos ama
Sois tão desarrazoada,
Quero tomar outra dama;
Que não digão os d'Alfama
Que não tenho namorada.
BROMIA.
Deixae-me.
FELISEO.
Vós me deixais.
BROMIA.
Deixae-me.
FELISEO.
Zombais de mi?
BROMIA.
Deixae-me. Pois m'engeitais,
Eu me ausentarei daqui
Onde me mais não vejais.
FELISEO.
Boa está a zombaria!
BROMIA.
Não são essas minhas manhas.
FELISEO.
Porém is-vos todavia?
BROMIA.
Voyme á las tierras estrañas.
Adó ventura me guia.

SCENA IV.
_Feliseo só._
Phantasias de donzellas,
Não ha quem como eu as quebre;
Porque certo cuidão ellas,
Que com palavrinhas bellas
Nos vendem gato por lebre.
Esta tẽe lá para si
Qu'eu sou por ella finado;
E crê que zomba de mi;
E eu digo-lhe que, si,
Sou por ella esperdiçado.
Preza-se d'humas seguras;
E eu não quero mais Frandes:
Dou-lhe trela ás travessuras,
Porque destas coçaduras
Se fazem as chagas grandes.
Qu'estas, que andão sempre á vela,
Estas vos digo eu que coço;
Porque de firmes na sella,
Crem que falsão a costella,
E ficão pelo pescoço.
Que quando estas damas tais
Me cachão, então recacho.
Mas disto agora nó mais.
Quero-me ir daqui ao cais
Ver se algumas novas acho.

SCENA V.
_Jupiter e Mercurio._
JUPITER.
Oh grande e alto destino!
Oh potencia tão profana!
Que a setta d'hum menino
Faça que meu ser divino
Se perca por cousa humana!
Que m'aproveitão os ceos,
Onde minha essencia mora
Com tanto poder, se agora
A quem me adora por deos,
Sirvo eu como a senhora?
Oh quão estranha affeição!
Quem em baixa cousa vai pôr
A vontade e o coração,
Sabe tão pouco d'Amor,
Quão pouco Amor de razão.
Mas que remedio hei de ter
Contra mulher tão terribil,
Que se não póde vencer?
MERCURIO.
Alto Senhor, teu poder
O difficil faz possibil.
JUPITER.
Tu não vês qu'esta mulher
Se preza de virtuosa?
MERCURIO.
Senhor, tudo póde ser;
Que para quem muito quer,
Sempre a affeição he manhosa.
Seu marido está ausente
Na guerra, longe daqui;
Tu, qu'es Jupiter potente,
Tomarás sua fórma em ti;
Que o farás mui facilmente.
E eu me transformarei
Na de Sósea, criado seu;
E ao arraial me irei,
Onde logo saberei
Como se a batalha deu.
E assi poderás entrar,
Em lugar de seu marido;
E para que sejas crido,
Poderás tambem contar
Quanto eu lá tiver sabido.
JUPITER.
Quem arde em tamanho fogo
Tira-lhe a virtude a côr
De subtil e sabedor;
E quem fóra está do jôgo
Enxérga o lanço melhor.
Mas tu, que dos sabedores
Tanto avante sempre estás,
Se deos es dos mercadores,
Sê-lo-has dos amadores,
Pois tal remedio me dás.
Ponha-se logo em effeito;
Que não soffre dilação
Quem o fogo tẽe no peito;
E tu vae logo direito
Aonde anda Amphitrião.

SCENA VI.
_Feliseo e Callisto._
FELISEO.
Adó bueno por aqui,
Tão longe do acostumado?
CALLISTO.
Mais longe vou eu de mi,
D'ir perto de meu cuidado.
FELISEO.
No andar vos conheci.
CALLISTO.
E vós onde vos lançais,
Com vossa contemplação?
FELISEO.
Eu chego daqui ao cais
A saber de Amphitrião:
Não sei se vou por demais.
CALLISTO.
Porque por demais dizeis?
FELISEO.
Porque nada alli ha certo.
CALLISTO.
Novas lá não as busqueis,
Que aqui as tendes mais perto.
FELISEO.
Pois dae-mas ja, se as sabeis.
CALLISTO.
Hum navio he ja chegado
Á barra, que vem de lá;
Traz de Amphitrião recado,
Diz que o deixa embarcado
Para se vir para cá.
Tẽe vencido aquelle Rei;
E diz, segundo lhe ouvi,
Qu'esta noite será aqui.
FELISEO.
Essas novas levarei
A Alcmena, que torne em si,
Porque ella tẽe maior guerra
Co'os temores de perdello,
Qu'elle co'o Rei dessa terra.
CALLISTO.
Onde amor lançar o sello,
Nenhuma cousa o desterra.
Porqu'inda que o pensamento
Vos fique, Senhor, em calma,
Por morte ou apartamento;
Sempre vos lá ficão n'alma
As pégadas do tormento.
FELISEO.
Isso he hum segredo mero,
A que o amor nos obriga:
Por isso em caso tão fero,
Senhor, nunca ninguem diga,
Ja lho quiz, e não lho quero.
Eu quiz bem a huma mulher,
Que vós conhecestes bem,
You have read 1 text from Portuguese literature.
Next - Obras Completas de Luis de Camões, Tomo III - 12
  • Parts
  • Obras Completas de Luis de Camões, Tomo III - 01
    Total number of words is 3859
    Total number of unique words is 1439
    35.2 of words are in the 2000 most common words
    49.7 of words are in the 5000 most common words
    56.2 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Obras Completas de Luis de Camões, Tomo III - 02
    Total number of words is 3880
    Total number of unique words is 1310
    35.3 of words are in the 2000 most common words
    47.9 of words are in the 5000 most common words
    53.8 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Obras Completas de Luis de Camões, Tomo III - 03
    Total number of words is 3737
    Total number of unique words is 1248
    33.4 of words are in the 2000 most common words
    46.1 of words are in the 5000 most common words
    52.8 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Obras Completas de Luis de Camões, Tomo III - 04
    Total number of words is 3775
    Total number of unique words is 1176
    34.5 of words are in the 2000 most common words
    46.3 of words are in the 5000 most common words
    52.2 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Obras Completas de Luis de Camões, Tomo III - 05
    Total number of words is 3791
    Total number of unique words is 1216
    35.3 of words are in the 2000 most common words
    48.6 of words are in the 5000 most common words
    55.4 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Obras Completas de Luis de Camões, Tomo III - 06
    Total number of words is 3981
    Total number of unique words is 1601
    31.0 of words are in the 2000 most common words
    45.7 of words are in the 5000 most common words
    53.0 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Obras Completas de Luis de Camões, Tomo III - 07
    Total number of words is 4087
    Total number of unique words is 1559
    32.6 of words are in the 2000 most common words
    47.3 of words are in the 5000 most common words
    55.9 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Obras Completas de Luis de Camões, Tomo III - 08
    Total number of words is 4185
    Total number of unique words is 1627
    32.6 of words are in the 2000 most common words
    46.9 of words are in the 5000 most common words
    53.2 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Obras Completas de Luis de Camões, Tomo III - 09
    Total number of words is 4206
    Total number of unique words is 1556
    35.5 of words are in the 2000 most common words
    51.3 of words are in the 5000 most common words
    58.2 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Obras Completas de Luis de Camões, Tomo III - 10
    Total number of words is 4150
    Total number of unique words is 1316
    36.2 of words are in the 2000 most common words
    49.9 of words are in the 5000 most common words
    55.4 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Obras Completas de Luis de Camões, Tomo III - 11
    Total number of words is 3700
    Total number of unique words is 1341
    32.8 of words are in the 2000 most common words
    43.0 of words are in the 5000 most common words
    49.2 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Obras Completas de Luis de Camões, Tomo III - 12
    Total number of words is 3686
    Total number of unique words is 1266
    28.0 of words are in the 2000 most common words
    37.8 of words are in the 5000 most common words
    42.4 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Obras Completas de Luis de Camões, Tomo III - 13
    Total number of words is 3579
    Total number of unique words is 1136
    33.6 of words are in the 2000 most common words
    46.4 of words are in the 5000 most common words
    52.1 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Obras Completas de Luis de Camões, Tomo III - 14
    Total number of words is 4072
    Total number of unique words is 1377
    34.6 of words are in the 2000 most common words
    49.4 of words are in the 5000 most common words
    55.2 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Obras Completas de Luis de Camões, Tomo III - 15
    Total number of words is 3761
    Total number of unique words is 1254
    34.7 of words are in the 2000 most common words
    47.8 of words are in the 5000 most common words
    54.5 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Obras Completas de Luis de Camões, Tomo III - 16
    Total number of words is 3980
    Total number of unique words is 1399
    30.7 of words are in the 2000 most common words
    42.2 of words are in the 5000 most common words
    48.5 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Obras Completas de Luis de Camões, Tomo III - 17
    Total number of words is 4708
    Total number of unique words is 1557
    34.6 of words are in the 2000 most common words
    47.6 of words are in the 5000 most common words
    54.4 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • Obras Completas de Luis de Camões, Tomo III - 18
    Total number of words is 274
    Total number of unique words is 174
    59.7 of words are in the 2000 most common words
    72.2 of words are in the 5000 most common words
    77.2 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.