Obras Completas de Luis de Camões, Tomo III - 06

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Ou veja aquelle dia desejado
Em que a Fortuna faça o que costuma;
Se nella ha hi mudar-se hum triste estado.
* * * * *

ELEGIA II.
Aquella que d'amor descomedido
Por o formoso moço se perdeo,
Que só por si d'amores foi perdido;
Despois que a deosa em pedra a converteo
De seu humano gesto verdadeiro,
A última voz só lhe concedeo.
Assi meu mal do proprio ser primeiro
Outra cousa nenhũa me consente,
Qu'este canto qu'escrevo derradeiro.
E se huma pouca vida, estando ausente,
Me deixa Amor, he porque o pensamento
Sinta a perda do bem d'estar presente.
Senhor, se vos espanta o soffrimento
Que tenho em tanto mal para escrevê-lo,
Furto este breve espaço a meu tormento.
Porque quem tẽe poder para soffrê-lo,
Sem se acabar a vida co'o cuidado,
Tambem terá poder para dizê-lo.
Nem eu escrevo hum mal ja acostumado;
Mas n'alma minha triste e saudosa
A saudade escreve, e eu traslado.
Ando gastando a vida trabalhosa,
E esparzindo a contínua soidade
Ao longo d'huma praia soidosa.
Vejo do mar a instabilidade,
Como com seu ruido impetuoso
Retumba na maior concavidade.
De furibundas ondas poderoso,
Na terra, a seu pezar, está tomando
Lugar, em que s'estenda, cavernoso.
Ella, como mais fraca, lh'está dando
As concavas entranhas, onde esteja
Sempre com som profundo suspirando.
A todas estas cousas tenho inveja
Tamanha, que não sei determinar-me,
Por mais determinado que me veja.
Se quero em tanto mal desesperar-me,
Não posso, porque Amor e saudade
Nem licença me dão para matar-me.
Ás vezes cuido em mi, se a novidade
E estranheza das cousas, co'a mudança,
Poderião mudar huma vontade.
E com isto figuro na lembrança
A nova terra, o novo trato humano,
A estrangeira progenie, a estranha usança.
Subo-me ao monte que Hercules Thebano
Do altissimo Calpe dividio,
Dando caminho ao mar Mediterrano;
D'alli'stou tenteando adonde vio
O pomar das Hesperidas, matando
A serpe que a seu passo resistio.
Estou-me em outra parte figurando
O poderoso Anteo, que derribado
Mais fôrça se lhe vinha accrescentando;
Porém do Herculeo braço sobjugado,
No ar deixando a vida, não podendo
Dos soccorros da mãe ser ajudado.
Mas nem com isto, emfim, qu'estou dizendo,
Nem com as armas tão continuadas,
D'amorosas lembranças me defendo.
Todas as cousas vejo demudadas,
Porque o tempo ligeiro não consente
Qu'estejão de firmeza acompanhadas.
Vi ja que a Primavera, de contente,
Em variadas côres revestia
O monte, o campo, o valle, alegremente.
Vi ja das altas aves a harmonia,
Que até duros penedos convidava
A algum suave modo d'alegria.
Vi ja que tudo, emfim, me contentava,
E que, de muito cheio de firmeza,
Hum mal por mil prazeres não trocava.
Tal me tẽe a mudança e estranheza,
Que se vou por os prados, a verdura
Parece que se sécca de tristeza.
Mas isto he ja costume da ventura;
Porque aos olhos que vivem descontentes,
Descontente o prazer se lhes figura.
Oh graves e insoffriveis accidentes
De Fortuna e d'Amor! que penitencia
Tão grave dais aos peitos innocentes!
Não basta examinar-me a paciencia
Com temores e falsas esperanças,
Sem que tambem me tente o mal de ausencia?
Trazeis hum brando espirito em mudanças,
Para que nunca possa ser mudado
De lagrimas, suspiros e lembranças.
E s'estiver ao mal acostumado,
Tambem no mal não consentis firmeza,
Para que nunca viva descansado.
Ja quieto m'achava co'a tristeza;
E alli não me faltava hum brando engano.
Que tirasse desejos da fraqueza.
Mas vendo-me enganado estar ufano,
Deo á roda a Fortuna; e deo comigo
Onde de novo chóro o novo dano.
Ja deve de bastar o que aqui digo,
Para dar a entender o mais que calo
A quem ja vio tão aspero perigo.
E se nos brandos peitos faz abalo
Hum peito magoado e descontente,
Que obriga a quem o ouve a consolá-lo;
Não quero mais senão que largamente,
Senhor, me mandeis novas dessa terra;
Que alguma dellas me fara contente.
Porque se o duro Fado me desterra
Tanto tempo do bem, que o fraco esprito
Desampare a prisão onde s'encerra;
Ao som das negras ágoas do Cocito,
Ao pé dos carregados arvoredos
Cantarei o que n'alma tenho escrito.
E por entre estes horridos penedos
A quem negou Natura o claro dia,
Entre tormentos asperos e medos,
Com a trémula voz, cansada e fria,
Celebrarei o gesto claro e puro,
Que nunca perderei da phantasia.
O Musico de Thracia, ja seguro
De perder sua Eurydice, tangendo
Me ajudará ferindo o ar escuro.
As namoradas sombras, revolvendo
Memorias do passado, me ouvirão;
E com seu chôro o rio irá crescendo.
Em Salmonêo as penas faltarão,
E das filhas de Belo juntamente
De lagrimas os vasos s'encherão.
Que se amor não se perde em vida ausente,
Menos se perderá por morte escura:
Porque, emfim, a alma vive eternamente,
E amor he effeito d'alma, e sempre dura.
* * * * *

ELEGIA III.
O poeta Simonides fallando
Co'o Capitão Themistocles hum dia,
Em cousas de sciencia praticando;
Hum'arte singular lhe promettia,
Qu'então compunha, com que lh'ensinasse
A lembrar-se de tudo o que fazia;
Onde tão subtis regras lhe mostrasse,
Que nunca lhe passassem da memoria
Em nenhum tempo as cousas que passasse.
Bem merecia, certo, fama e gloria
Quem dava regra contra o esquecimento,
Que sepulta qualquer antigua historia.
Mas o Capitão claro, cujo intento
Bem differente estava, porque havia
Do passado as lembranças por tormento;
Oh illustre Simonides! (dizia)
Pois tanto em teu engenho te confias,
Que mostras á memoria nova via;
Se me désses hum'arte, qu'em meus dias
Me não lembrasse nada do passado,
Oh quanto melhor obra me farias!
S'este excellente dito ponderado
Fosse por quem se visse estar ausente,
Em longas esperanças degradado;
Oh como bradaria justamente,
Simonides, inventa novas artes;
Não midas o passado co'o presente!
Que se he forçado andar por várias partes
Buscando á vida algum descanço honesto,
Que tu, Fortuna injusta, mal repartes;
E se o duro trabalho, he manifesto
Que por grave que seja, ha de passar-se
Com animoso esprito e ledo gesto;
De que serve ás pessoas o lembrar-se
Do que se passou ja, pois tudo passa,
Senão d'entristecer-se e magoar-se?
S'em outro corpo hum'alma se traspassa,
Não como quiz Pythagoras na morte,
Mas como quer Amor na vida escassa;
E s'este Amor no mundo está de sorte,
Que na virtude só d'hum lindo objecto
Tẽe hum corpo, sem alma, vivo e forte;
Onde este objecto falta, qu'he defecto
Tamanho para a vida, que ja nella
M'está chamando á pena a dura Alecto;
Porque me não criára a minha Estrella
Selvatico no mundo, e habitante
Na dura Scythia, e no mais duro della?
Ou no Caucaso horrendo, fraco infante
Criado ao peito d'huma tigre Hircana,
Homem fôra formado de diamante;
Porque a cerviz ferina e inhumana
Não submettêra ao jugo e dura lei
Daquelle que dá vida quando engana.
Ou em pago das ágoas qu'estilei,
As que passei do mar, forão do Lete,
Para que m'esquecêra o que passei.
Porque o bem que a esperança vãa promette,
Ou a morte o estorva, ou a mudança,
Que he mal que hum'alma em lagrimas derrete.
Ja, Senhor, cahirá como a lembrança,
No mal, do bem passado he triste e dura,
Pois nasce aonde morre a esperança.
E se quizer saber como se apura
Em almas saudosas, não s'enfade
De ler tão longa e misera escriptura.
Soltava Eolo a redea e liberdade
Ao manso Favonio brandamente,
E eu a tinha ja sôlta á saudade.
Neptuno tinha pôsto o seu tridente;
A proa a branca escuma dividia,
Com a gente maritima contente.
O côro das Nereidas nos seguia;
Os ventos, namorada Galatêa
Comsigo socegados os movia.
Das argenteas conchinhas Panopêa
Andava por o mar fazendo mólhos,
Melanto, Dinamene, com Ligea.
Eu, trazendo lembranças por antolhos,
Trazia os olhos n'ágoa socegada,
E a ágoa sem socêgo nos meus olhos.
A bem-aventurança ja passada
Diante de mi tinha tão presente,
Como se não mudasse o tempo nada.
E com o gesto immoto e descontente,
Co'hum suspiro profundo e mal ouvido,
Por não mostrar meu mal a toda a gente,
Dizia: Oh claras Nymphas! se o sentido
Em puro amor tivestes, e inda agora
Da memoria o não tendes esquecido;
Se por ventura fordes algum'hora
Adonde entra o grão Tejo a dar tributo
A Tethys, que vós tendes por Senhora;
Ou ja por ver o verde prado enxuto,
Ou ja por colher ouro rutilante,
Das Tagicas areias rico fruto;
Nellas em verso erotico e elegante
Escrevei co'huma concha o qu'em mi vistes;
Póde ser que algum peito se quebrante.
E contando de mi memorias tristes,
Os pastores do Tejo, que me ouvião,
Oução de vós as mágoas que me ouvistes.
Ellas, que ja no gesto m'entendião,
Nos meneios das ondas me mostravão
Qu'em quanto lhes pedia consentião.
Estas lembranças, que me acompanhavão
Por a tranquillidade da bonança,
Nem na tormenta triste me deixavão.
Porque chegando ao Cabo da Esperança,
Comêço da saudade que renova,
Lembrando a longa e aspera mudança;
Debaixo estando ja da estrella nova
Que no novo Hemispherio resplandece,
Dando do segundo axe certa prova;
Eis a noite com nuvens s'escurece;
Do ar subitamente foge o dia;
E todo o largo Oceano s'embravece.
A máchina do mundo parecia
Qu'em tormentas se vinha desfazendo;
Em serras todo o mar se convertia.
Lutando Boreas fero e Noto horrendo.
Sonoras tempestades levantavão,
Das naos as velas concavas rompendo.
As cordas co'o ruido assoviavão;
Os marinheiros, ja desesperados,
Com gritos para o ceo o ar coalhavão.
Os raios por Vulcano fabricados
Vibrava o fero e aspero Tonante,
Tremendo os Polos ambos de assombrados.
Amor alli, mostrando-se possante,
E que por algum medo não fugia,
Mas quanto mais trabalho, mais constante;
Vendo a morte presente, em mi dizia:
Se algum'hora, Senhora, vos lembrasse,
Nada do que passei me lembraria.
Emfim, nunca houve cousa que mudasse
O firme amor intrinseco daquelle
Em quem alguma vez de siso entrasse.
Huma cousa, Senhor, por certa asselle,
Que nunca amor se affina, nem se apura,
Em quanto está presente a causa delle.
Dest'arte me chegou minha ventura
A esta desejada e longa terra,
De todo pobre honrado sepultura.
Vi quanta vaidade em nós s'encerra,
E nos proprios quão pouca; contra quem
Foi logo necessario termos guerra.
Huma Ilha que o Rei de Porcá tem,
E que o Rei da Pimenta lhe tomára,
Fomos tomar-lha, e succedeo-nos bem.
Com huma grossa armada, que juntára
O Viso-Rei, de Goa nos partimos
Com toda a gente d'armas que se achára.
E com pouco trabalho destruimos
A gente no curvo arco exercitada:
Com morte, com incendios os punimos.
Era a Ilha com ágoas alagada,
De modo que se andava em almadias:
Emfim, outra Veneza trasladada.
Nella nos detivemos sós dous dias,
Que forão para alguns os derradeiros,
Pois passárão da Estyge as ondas frias.
Qu'estes são os remedios verdadeiros
Que para a vida estão apparelhados
Aos que a querem ter por cavalleiros.
Oh Lavradores bem-aventurados!
Se conhecessem seu contentamento,
Como vivem no campo socegados!
Dá-lhes a justa terra o mantimento;
Dá-lhes a fonte clara d'ágoa pura;
Mungem suas ovelhas cento a cento.
Não vem o mar irado, a noite escura,
Por ir buscar a pedra do Oriente;
Não temem o furor da guerra dura.
Vive hum com suas árvores contente,
Sem lhe quebrar o somno repousado
A grã cobiça d'ouro reluzente.
Se lhe falta o vestido perfumado,
E da formosa côr de Assyria tinto,
E das torçaes Attalicos lavrado;
Se não tẽe as delicias de Corinto,
E se de Pario os marmores lhe faltão,
O pyropo, a esmeralda e o jacinto;
Se suas casas de ouro não s'esmaltão,
Esmalta-se-lhe o campo de mil flores,
Onde os cabritos seus comendo sáltão.
Alli lhe mostra o campo várias côres;
Vem-se os ramos pender co'o fructo ameno;
Alli se affina o canto dos pastores.
Alli cantára Tityro e Sileno.
Emfim, por estas partes caminhou
A sãa Justiça para o ceo sereno.
Ditoso seja aquelle que alcançou
Poder viver na doce companhia
Das mansas ovelhinhas que criou!
Este bem facilmente alcançaria
As causas naturaes de toda cousa;
Como se gera a chuva e neve fria:
Os trabalhos do sol, que não repousa;
E porque nos dá lũa a luz alhêa,
Se tolher-nos de Phebo os raios ousa:
E como tão depressa o ceo rodêa;
E como hum só os outros traz comsigo;
E se he benigna ou dura Cytherêa.
Bem mal póde entender isto que digo,
Quem ha de andar seguindo o fero Marte;
Que sempre os olhos traz em seu perigo.
Porém seja, Senhor, de qualquer arte,
Pois postoque a Fortuna possa tanto,
Que tão longe de todo o bem me aparte;
Não poderá apartar meu duro canto
Desta obrigação sua, em quanto a morte
Me não entrega ao duro Radamanto;
Se para tristes ha tão leda sorte.
* * * * *

ELEGIA IV.
Despois que Magalhães teve tecida
A breve historia sua, que illustrasse
A Terra Santa Cruz, pouco sabida;
Imaginando a quem a dedicasse,
Ou com cujo favor defenderia
Seu livro d'algum zoilo que ladrasse;
Tendo nisto occupada a phantasia,
Lhe sobreveio hum somno repousado,
Antes que o sol abrisse o claro dia.
Em sonhos lhe apparece todo armado
Marte, brandindo a lança furiosa,
Com que fez quem o vio todo enfiado;
Dizendo em voz pezada e temerosa:
Não he justo que a outrem se offereça
Obra alguma que possa ser famosa,
Senão a quem por armas resplandeça
No largo inundo com tal nome e fama,
Que louvor immortal sempre mereça.
Disse assi: quando Apollo, que da flama
Celeste guia os carros, de outra parte
Se lhe presenta, e por seu nome o chama,
Dizendo: Magalhães, postoque Marte
Com seu terror t'espante, todavia
Comigo deves só de aconselhar-te.
Hum Varão sapiente, em quem Thalia
Poz seus thesouros, e eu minha sciencia,
Defender tuas obras poderia.
He justo que a escriptura na prudencia
Ache só defensão; porque a dureza
Das armas he contrária da eloquencia.
Assi disse: e tocando com destreza
A cithara dourada, começou
A mitigar de Marte a fortaleza.
Mas Mercurio, que sempre costumou
Pacificar porfias duvidosas,
Co'o Caducêo na mão, que sempre usou,
Determina compor as perigosas
Opiniões dos deoses inimigos
Com suaves razões e ponderosas.
E disse: Bem sabemos dos antigos
Heroes, e dos modernos, que provárão
De Belona os gravissimos perigos,
Como tão bem mil vezes concordárão
As armas com as letras; porque as Musas
A muitos na milicia acompanhárão.
Nunca Alexandre, ou Cesar, nas confusas
Guerras o estudo deixão grande espaço;
Que as armas jamais delle são escusas.
N'huma mão livros, n'outra ferro e aço;
Aquella rege e ensina; est'outra fere:
Mais co'o saber se vence, que co'o braço.
Pois, logo, hum Varão grande se requere,
Que com teus dões (Apollo) illustre seja,
E de ti (Marte) palma e glória espere.
Este vos darei eu, em quem se veja
Saber e esfôrço no sereno peito,
Que he hum Leoniz que faz ao mundo inveja.
Deste as Irmãas em vendo o bom sogeito,
Todas nove nos braços o tomárão,
Criando-o co'o seu leite no seu leito:
As Artes e as Sciencias lh'ensinárão;
Inclinação divina lh'influírão
Ás virtudes moraes, que logo o ornárão.
Daqui nos exercidos o seguírão
Das armas no Oriente, onde primeiro
Hum soldado gentil instituírão.
Alli taes provas fez de Cavalleiro,
Que, de Christão magnanimo e seguro,
A si mesmo venceo por derradeiro.
Despois, ja Capitão forte e maduro,
Governando toda a Aurea Chersoneso,
Lhe defendeo co'o braço o debil muro.
Porque vindo a cercá-la todo o pêso
Do poder dos Achens, que se sustenta
De alheio sangue, em furia todo acceso;
Este só que a ti, Marte, representa,
O castigou de sorte, que vencido
De ter quem vivo fique se contenta.
E logo qu'este Reino defendido
Deixou, segunda vez com maior glória
Para o ir governar foi elegido.
Mas não perdendo ainda da memoria
Os amigos o seu govêrno brando,
Os imigos o damno da victoria;
Huns com amor intrinseco esperando
Estão por elle, e os outros congelados
O estão com frio medo receando.
Vêde pois se serião debellados
Por seu claro valor, se lá tornasse,
E dos Indicos mares degradados.
Porqu'he justo que nunca lhe negasse
O conselho do Olympo alto e subido
Favor e ajuda com que pelejasse.
Aqui só póde ser bem dirigido
De Magalhães o estudo: este só deve
Ser de vós, claros deoses, escolhido.
Assi Mercurio disse; e em termo breve
Conformados se vem Apollo e Marte;
E voou juntamente o somno leve.
Acorda Magalhães, e ja se parte
A offrecer-vos, Senhor claro e famoso,
Tudo o que nelle poz sciencia e arte.
Tẽe claro estylo, e engenho curioso,
Para poder de vós ser recebido,
Com mão benigna, de ânimo amoroso.
Pois se só de não ser favorecido
Hum alto esprito fica baixo e escuro;
Este seja comvosco defendido,
Como o foi de Malaca o debil muro.
* * * * *

ELEGIA V.
Aquelle mover de olhos excellente,
Aquelle vivo espirito inflammado
Do crystallino rosto transparente;
Aquelle gesto immoto e repousado,
Qu'estando n'alma propriamente escrito,
Não póde ser em verso trasladado;
Aquelle parecer, que he infinito
Para se comprender d'engenho humano;
O qual offendo em quanto tenho dito;
Tanto a inflamar-me vem d'hum doce engano,
E tanto a engrandecer-me a phantasia,
Que não vi maior glória que meu dano.
Oh bem-aventurado seja o dia
Em que tomei tão doce pensamento,
Que de todos os outros me desvia!
E bem-aventurado o soffrimento
Que soube ser capaz de tanta pena,
Vendo que o foi da causa o entendimento!
Faça-me quem me mata, o mal que ordena,
Trate-me com enganos, desamores;
Qu'então me salva, quando me condena.
E se de tão suaves desfavores
Penando vive hum'alma consumida,
Oh que doce penar! que doces dores!
E se huma condição endurecida
Tambem me nega a morte por meu dano,
Oh que doce morrer! que doce vida!
E se me mostra hum gesto lindo humano,
Como que de meu mal culpada se acha,
Oh que doce mentir! que doce engano!
E s'em querer-lhe tanto ponho tacha,
Mostrando refrear o pensamento,
Oh que doce fingir! que doce cacha!
Assi que ponho ja no soffrimento
A parte principal de minha glória,
Tomando por melhor todo tormento.
Se sinto tanto bem só co'a memoria
De ver-vos, linda Dama, vencedora;
Que quero eu mais que ser vossa victoria?
Se tanto a vossa vista mais namora,
Quanto eu sou menos para merecer-vos;
Que quero eu mais que ter-vos por senhora?
Se procede este bem de conhecer-vos,
E consiste o vencer em ser vencido,
Que quero eu mais, Senhora, que querer-vos?
S'em meu proveito faz qualquer partido,
Só na vista d'huns olhos tão serenos,
Que quero eu mais ganhar que ser perdido?
Se, emfim, os meus espritos, de pequenos,
A merecer não chegão seu tormento,
Que quero eu mais, que o mais não seja menos?
A causa, pois, m'esforça o soffrimento;
Porque, a pezar do mal que me resiste,
De todos os trabalhos me contento;
Que a razão faz a pena alegre, ou triste.
* * * * *

ELEGIA VI.
Entre rusticas serras e fragosas,
Compostas d'asperissimos rochedos,
De salitradas lapas cavernosas;
Onde gretando os humidos penedos
Orvalhados de neve branca e fria,
Brotando estão de si mil arvoredos;
Huma floresta fez verde e sombria
A natureza experta, que rodeia,
Como elevado muro, a serrania.
Neste formoso sítio se recreia
O lascivo Cupido entre as boninas,
Que sempre hum brando Zephyro meneia.
Da candida cecem, das clavellinas,
Da salva, mangerona e das mosquetas,
Das rubicundas flores hyacinthinas,
Muitas capellas tece, que de setas
Lhe servem contra peitos de donzellas,
A quem d'inveja traz sempre inquietas.
Não são d'huma só côr as flores bellas;
Que humas esmalta verde, outras rosado,
Entre as azues crescendo as amarellas.
Dos agrestes loureiros rodeado,
Faz o valle huma sombra deleitosa,
Quando apparece o sol mais levantado.
E por cima da relva bem graciosa
As gottas de crystal quasi imitando
Estão do aljofar puro a luz formosa.
As crystallinas fontes, que brotando
Por entre alvos seixinhos se derivão,
Das árvores os troncos vão banhando.
Entre as limpidas ágoas, qu'inda esquivão
O formoso pastor que se perdeo,
Preso das falsas mostras que o captivão,
Cresce a por cuja causa s'esqueceo
A linda Cytherêa de Vulcano,
Quando presa d'Amor se lhe rendeo.
Na brancura do rosto soberano,
Inda as crueis feridas apparecem
Do javali cerdoso e deshumano.
As rosas que de sangue resplandecem,
As candidas boninas marchetadas,
Qual roxo esmalte á vista bem se offrecem.
Do matutino orvalho rociadas,
As flores rutilantes e cheirosas
Estão como por cima prateadas.
Os humidos botões abrindo as rosas,
Que os agudos espinhos vão cercando,
No prado se vem rindo deliciosas.
A mellifera abelha, susurrando
Por cima das boninas que rodeia,
Está co'o som das ágoas concertando.
Do trémulo regato a branda areia
De jacinthos se cobre e de vieiras,
Qu'encrespão da corrente a branca veia.
Os álamos s'abração co'as videiras
De sorte, que s'enxérga escassamente
Se são os cachos seus, se das parreiras;
E pendendo por cima da corrente,
Outro formoso bosque debuxando
Estão no fundo della brandamente.
Ouve-se o rouxinol aqui, lembrando
Do perfido cunhado a crueldade,
Mágoas em melodias transformando.
A solitaria rôla com soidade
Desfaz o rouco peito, ja cansada
De que não move a morte a piedade.
A domestica Progne anda banhada
No sangue de seus filhos, em vingança
Da triste Philomela profanada.
De competir co'o merlo não descança
O garrulo calhandro, qu'enrouquece
Por não perder callado a confiança.
Em quanto o pobre ninho ajunta e tece
O sonoro canario, modulando
Engana a grave pena que padece.
Alguns versos s'escuta derramando
O vário pintasirgo, tão saudaveis,
Que produzem memorias d'amor brando.
Por os direitos troncos ha notaveis
Epigrammas; alguns d'antigua historia,
Que contra o duro tempo são duraveis.
Huns de cruel tormento, outros de glória,
Conforme a liberdade do qu'escreve,
Estranhos casos mostrão á memoria.
O que neste lugar contente esteve,
Contente declarou seu pensamento,
E os prazeres tambem que nelle teve.
Mas outros, declarando o sentimento
Que dos olhos destila tristes ágoas,
Deixárão mil lembranças de tormento.
Abrazando-se alguns em vivas frágoas,
Escrevêrão do bosque em muitas partes
Gostos d'Amor agora, agora mágoas.
Porque, cruel menino, o premio partes
A quem serás[2] tyranno se lho negas,
E injusto e desigual, se lho repartes?
Porqu'enganas as almas que tão cegas
Arrastas apos ti, de error captivas?
Porque a crueis rigores as entregas?
Para que contra hum peito assi t'esquivas,
Que humilde se sujeita a teu cuidado,
Com enganos de sombras fugitivas?
Levas, como a menino, hum pobre a nado,
N'huma apparencia falsa embevecido,
Quando co'os braços corta o mar inchado.
Querendo-se tornar, vê-se perdido;
Ja grita que se affoga; e tu zombando,
Da praia entre os penedos escondido!
O triste, que conhece ir-se affogando,
No meio da arriscada zombaria
Por divino soccorro está clamando.
Mas eu de que m'espanto, se dizia
Hum sabio que d'enganos se temesse
O que tomasse a hum cego tal por guia?
Nunca nelle a firmeza permanece;
Se nos dá gôsto algum, muda-se logo;
Ja chora, ja se ri, ja s'enfurece.
Anda co'os corações sempre em hum jôgo;
Humas vezes os faz de pedra fria,
Outras os faz de neve, outras de fogo.
Tornando ao bosque meu que descrevia,
Despois de ter contado da frescura
Que nelle tão pomposa apparecia,
Referir quero agora huma aventura
Que nelle ao vão Narciso aconteceo,
Digna de se chorar com mágoa pura.
Castigo foi que o moço mereceo
Por se mostrar esquivo com aquella,
Qu'em viva pedra Juno converteo.
Ardia em fogo d'alma a vãa donzella,
Soffrendo hum duro peito; que a Narciso,
Quando ella mais se abraza, mais congela.
E quando a fraca Nympha mais de siso
Mostrava hum signal certo de firmeza,
Então se provocava o moço a riso.
Ja d'huma profundissima tristeza
A descora o rigor que a consumia.
Como diz desfavor mal com belleza!
O gelado pastor folgava e ria;
Mas vendo-a de seu gôsto andar contente,
Por não a contentar s'entristecia.
He tal o seu rigor, que não consente
Que seja o gôsto proprio festejado;
Antes disso se mostra descontente.
Mas o cego Cupido, d'affrontado,
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