O Mysterio da Estrada de Cintra. Cartas ao Diário de Noticias - 13

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Pois bem! que faço eu?
Aborreço-me.
Logo que elle sae, bocejo, abro um romance, ralho com as criadas, penteio
os filhos, torno a bocejar, abro a janella, olho.
Passa um rapaz, airoso ou forte, louro ou trigueiro, imbecil ou mediocre.
Olhamo-nos. Traz um cravo ao peito, uma gravata complicada. Temo o cabello
mais bonito do que o do meu marido, o talhe das suas calças é perfeito,
usa botas inglezas, pateia as dançarinas!
Estou encantada! sorrio-lhe. Recebo uma carta sem espirito e sem
grammatica. Enlouqueço, escondo-a, beijo-a, releio-a, e desprezo a vida.
Manda-me uns versos--uns versos, meu Deus! e eu então esqueço meu marido,
os seus sacrificios, a sua bondade, o seu trabalho, a sua doçura; não me
importam as lagrimas nem as desesperações do futuro; abandono probidade,
pudor, dever, familia, conceitos sociaes, relações e os filhos, os meus
filhos! tudo--vencida, arrastada, fascinada por um soneto errado, copiado
da _Grinalda_!
Realmente! É a isto, minhas pobres amigas, que vós chamaes--_fatalidade da
paixão!_
E no emtanto como corresponde elle a este sacrificio terrivel?
Como tem uma aventura, não póde occultar a sua alegria, toma ares
mysteriosos, provoca as perguntas; compromette-me; deixa-me para ir
esperar os touros em intimidades ignobeis; mostra as minhas cartas em cima
da mesa de um café, ao pé de uma garrafa de cognac; jura aos seus amigos
que me não _ama_, e que é--_para se entreter_; e se meu marido o chicotear
no meio do Chiado, como é vil, cobarde, vulgar e imbecil, irá queixar-se á
Boa Hora!
_Et voilá D. Juan!..._
Não! é necessario demolir pelo ridiculo, pela caricatura, pelo chicote e
pela policia correccional, esse typo indigno que se chama o
_conquistador_. O _conquistador_ não tem attracção, nem belleza, nem
elevação, nem grandeza como typo,--e como homem não tem educação, nem
honestidade, nem maneiras, nem espirito, nem _toilette_, nem habilidade,
nem coragem, nem dignidade, nem limpeza, nem orthographia...
Perdôe-me, meu primo, estas exaltações. Sou impressionavel, vou como se
costuma dizer--_atraz da phrase_. Esqueço ás vezes as minhas dôres
modernas, para me lembrar das minhas velhas indignações.
E pensa que, por condemnar estes amores triviais, eu me absolvo a mim?
Não. Apesar de ter amado um homem de todo o ponto excellente, cuja
superioridade d'espirito o meu primo conhecia e amava, d'uma distincção
tão perfeita e tão completa; posto que a nossa affeição tivesse vivido
n'um meio tão elevado, tão nobre, tão altivo,--apezar de tudo, eu tenho-me
por tão condemnavel como aquellas de quem fallei,--e julgando-me sem
justiça e fóra da graça, faço penitencia diante do mundo.

IV

E quanto, quanto soffri então, na modestia da minha vida, no apartamento
do meu segredo! Quanto desejei ser uma pobre costureira que leva o seu
filho pela mão!
Dentro do meu _coupé_, puxado a largo trote á saida do theatro, envolvida
n'um cachemire, com uma pelle de martha nos pés, e um aroma doce na seda
das almofadas, quantas vezes invejei as pequenas burguezas que saíam das
torrinhas, embrulhadas em disformes mantas de agazalho, pisando a lama!
No dia em que recebia cartas d'elle, saía de Lisboa, fugia, ia para o
campo! Levava-as, amarrotadas e beijadas, ia para a quinta de...,
penetrava nas sombras espessas, ali ficava, longo tempo, envolta no calor
tépido do sol, entorpecida pelo rumor sereno das ramagens, e pelo
murmuroso correr da agua nas bacias de pedra!
Oh doce vida das arvores e das plantas! passividade da relva,
irresponsabilidade da agua, pacifico somno dos musgos, suave pousar da
sombra! quantas vezes me consolastes, e me ensinastes a soffrer calada!
quantas vezes invejei a immobilidade do vosso ser!
Era ali, só, relendo essas cartas crueis, que eu sentia o amor d'aquelle
homem fugir-me como a agua de um regato que se quer tomar entre os dedos.
Que me restaria então?
Voltar outra vez á serenidade legitima da vida? Não podia, ai de mim!
estava para sempre expulsa do paraizo pacifico da familia, da casta sombra
do dever. Lançar-me nas aventuras e na revolta? Meu Deus! isso repugnava
tanto ao meu caracter como o contacto d'um animal viscoso á pelle do meu
peito.
Ficava pois sem situação na vida. Não tinha n'ella um logar definido.
Entrava n'essa legião dolorosa e tristemente miseravel--_das mulheres
abandonadas_.
A minha unica honestidade agora devia ser conservar-me captiva d'aquelle
sentimento. A minha unica absolvição estava na verdade da minha paixão.
Quanto mais me separasse do mundo e me désse ao meu amor; mais me
approximava da dignidade. Nas situações definidas e corajosas ha sempre um
lado honesto; o que repugna ao instincto casto são as conciliações
hypocritas. A posição que me restava, era ser de Rytmel, só d'elle e para
sempre: e eu sentia que elle se ia lentamente affastando de mim como eu me
affastava de meu marido.
Era a minha entrada na expiação.
N'estes amores, o castigo não vem só do mundo: elles mesmo conteem os
elementos da justiça cruel. O coração é o primeiro castigado pela mesma
paixão. A punição da falta contra a honra vem mais tarde pelos juizos dos
homens.
Eu estava então diante da maior miseria moral em que se póde encontrar uma
mulher n'estas condições lamentaveis.
Eu amava Rytmel, Rytmel queria casar.
Que faria, meu Deus? Iria em nome da minha paixão desviar aquella
existencia de homem, da linha natural, simples, humana, que leva ao
casamento, á familia, ao dever?
Devia eu impedir que elle casasse? Mas não era isto impedir, abafar a
legitima expansão da sua vida? Não era proscrevel-o das fecundas e serenas
alegrias da familia, para o ter preso nos asperos, nos estereis
sobresaltos de uma paixão romantica?
Tinha eu o direito de sequestrar aquelle homem para uso exclusivo do meu
coração, encarceral-o dentro d'uma ligação illegitima e secreta, onde elle
se esterilisaria, onde os seus talentos e as suas qualidades se
enferrujariam como armas inuteis, e toda a sua acção social se limitaria a
seguir o _frou-frou_ dos meus vestidos? Não dava isto ao meu sentimento um
aspecto de egoismo animal? Não tirava isto ao meu amor a melhor qualidade:
a virtude do sacrificio?
Poderia eu prival-o de ter um dia os filhos, que fossem a continuação do
seu ser e a sua immortalidade? Podia eu prival-o em nome do meu ideal de
ter na velhice aquella doce e branca companheira, sob cujo olhar pacifico,
o homem justo espera, socegado, o nobre momento da morte?
E era só isto?... Póde um espirito sincero acreditar na duração d'estes
amores exaltados, feitos de sensibilidades e de martyrios, que não têem o
dever por base, e têem a traição por origem? E por dois ou tres annos mais
que esta aventura continuaria, tinha eu o direito de ir quebrar o destino
da _outra, d'ella_, pobre rapariga, que o amava, que edificava a sua vida
sobre o coração d'elle, que se preparava para ser no lar, e para sempre, a
presença da graça e a consciencia viva? Não: isto não podia ser.
Mas por outro lado, era justo que eu, tendo sacrificado por elle tudo,
desde o pudor intimo até á honra social, fosse agora arremessada como uma
luva velha?
Eu que tinha sido tudo quando se tratava da sua imaginação, não seria nada
agora porque se tratava do seu interesse? Não me exilara eu por elle, do
paraizo domestico? Por elle não renunciara as alegrias pacificas da vida,
e a sublime esperança d'uma morte digna? Como eu tinha sacrificado por
elle a honra d'um homem, não podia elle sacrificar por mim as esperanças
romanescas d'uma creança? Era justo ter-me trazido enganada, envolvida,
como n'um arminho, nas apparencias do amor, ter-me conduzido com os olhos
vendados, attrahida, suspensa do rythmo dos seus passos, a um logar
perigoso, a uma situação intoleravel, e chegando ahi dizer-me: «Adeus
agora! eu vou para a felicidade. Tu fica; mas cuidado, que para traz não
pódes voltar; e se deres um passo para diante, vaes abysmar-te na
infamia!».
Não, isto não deve ser: o amor não é uma creação litteraria, é um facto da
natureza: como tal produz direitos, origina deveres. E os direitos do amor
não os abdico.
Pois quê! Por causa da _outra_! Hei de dar tamanha consideração ás
lagrimas que choram dois olhos alheios, que nunca vi, que estão a duzentas
leguas de distancia e não hei de apiedar-me das minhas lagrimas, que
escorrem aqui na minha face, e que eu aparo na tremura das minhas mãos!
«És casada» dizem-me. O que! Porque perdi mais, devo ser attendida menos!
Eu, que vivo quasi fóra do mundo, sem estar ligada a nenhuma d'estas
cousas superiores que amparam a vida, suspensa sobre a morte por um leve
fio, por este amor unico, é por isso que devo ir com as minhas mãos
quebrar esse fio, quebrar esse amor!
Ha algum direito humano que exija isto de mim? Ha alguma piedade que o
veja friamente? Ha alguma consciencia que o justifique? Se ha, essa
consciencia poderia ensinar a serem duros os rochedos do mar!
Mas, meu primo, tudo isto é aqui, n'este papel em que lhe escrevo. Porque
na realidade eu não podia luctar com _ella_! _Ella_ era a _miss_, a que
havia de ser esposa e mãe,--vencia tudo! Elevava-se sobre as velhas
affeições, sobre os velhos erros, como a imagem da virgem sobre o globo
feito de barro e de lama, onde se enrosca a serpente.
Nem tentei luctar!
E foi por esse tempo que recebi uma carta em que elle me dizia: _Parto
para Portugal._
Que vinha fazer? O que era? Vinha despedir-se de mim? Vinha ver as minhas
agonias? Vinha consolar-me? Vinha convencer-me? Vinha de novo dar-se
captivo ao meu amor? Vinha. Nem elle mesmo sabia mais nada!

V

Rytmel chegou. A primeira vez que o vi foi em minha casa.
O conde estava então em Bruxellas. Era noite e na minha sala de musica
achavam-se reunidas algumas pessoas: a marqueza de... velha legitimista,
que fôra a graça da córte toureira de D. Miguel; o visconde de... moço
insignificante e vagamente loiro, que eu acolhia bem, porque sua irmã, que
morrera, fôra a minha intima, a minha confidente de collegio.
Viera tambem a viscondessa de... pequenita creatura petulante e mediocre,
que tinha a graça de ter vinte annos, junta com a desgraça de os não saber
ter e cuja especialidade era o querer parecer profundamente perversa,
quando era apenas perfeitamente incaracteristica. Mas ao pé de mim,
sentado n'um sophá com um abandono asiatico, estava um homem
verdadeiramente original e superior, um nome conhecido--Carlos Fradique
Mendes. Passava por ser apenas um excentrico, mas era realmente um grande
espirito. Eu estimava-o, pelo seu caracter impeccavel, e pela feição
violenta, quasi cruel, do seu talento. Fôra amigo de Carlos Beaudelaire e
tinha como elle o olhar frio, felino, magnetico, inquisitorial. Como
Beaudelaire, usava a cara toda rapada: e a sua maneira de vestir, de uma
frescura e de uma graça singular, era como a do poeta seu amigo, quasi uma
obra d'arte, ao mesmo tempo exotica e correcta. Havia em todo o seu
exterior o que quer que fosse da feição romantica que tem o _Satan_ de Ary
Sheffer, e ao mesmo tempo a fria exactidão de um _gentleman_. Tocava
admiravelmente violoncello, era um terrivel jogador d'armas, tinha viajado
no Oriente, estivera em Meca, e contava que fôra corsario grego. O seu
espirito tinha um imprevisto profundo e que fazia scismar: fôra elle que
dissera da pallida duquesa de Morny: _elle a la bêtise melancolique d'un
ange._ O imperador citava muitas vezes este dito, como sendo
conjunctamente a critica profunda de uma physionomia e de um caracter.
Carlos Fradique tinha por mim uma amisade elevada e sincera. Chamava-me
_seu querido irmão_. Conhecia-me desde pequena, andara commigo ao colo. Em
Paris tornou-se celebre; era o que se poderia chamar um _philosopho do
boulevard_. Tinha sido _l'ami de coeur_ de Rigolboche, e quando ella
rompeu por se ter apaixonado por _Capoul_, Carlos Fradique deixou-lhe no
album uns versos quasi sublimes, de um desdem cruel, de um comico lugubre,
uma especie de _Dies irae_ do dandysmo... Promettia á Rigolboche que
quando ella morresse elle velaria para que ainda além do tumulo ella
vivesse no _chic_, sentindo Paris na sepultura. Algumas das estrophes que
elle traduziu para mim, e que depois se publicaram, fizeram sensação e
escola...
E eu qu'inda te amo, ó pallida canalha,
Que sou gentil e bom,
Far-te-hei enterrar n'uma mortalha
Talhada á _Benoiton_!
Irei á noite com Marie Larife,
Venus do macadam,
Fazer sentir ao pó do teu esquife
Os gostos do cancan...
E no tempo das _courses_, p'lo verão
--Assim t'o juro eu--
Irei dar parte á tua podridão
Se o _Gladiador_ venceu...
Eram dez horas. Carlos Fradique, com uma voz impassivel, quasi languida,
contava as situações monstruosas de uma paixão mystica que tivera por uma
negra antropophaga. A sua veia, n'aquelle dia, era toda grotesca.
--A pobre creatura, dizia elle, untava os cabellos com um oleo ascoroso.
Eu seguia-a pelo cheiro. Um dia, exaltado d'amor, approximei-me d'ella,
arregacei a manga e apresentei-lhe o braço nú. Queria fazer-lhe aquelle
mimo! Ella cheirou, deu uma dentada, levou um pedaço longo de carne,
mastigou, lambeu os beiços e pediu mais. Eu tremia de amor, fascinado,
feliz em soffrer por ella. Suffoquei a dôr, e estendi-lhe outra vez o
braço...
--Oh! sr. Fradique! gritaram todos, escandalisados com a invenção
monstruosa.
--Comeu mais, continuou elle gravemente, gostou e pediu outra vez.
Fallava com um sorriso fino, quasi beatifico. Nós iamos revoltar-nos
contra a cruel excentricidade d'aquella historia.
N'este momento vi á porta da sala, trémula, com um grande espanto nos
olhos, chamando-me baixo, a minha criada Betty. Fui: ella tomou-me pela
mão, foi-me levando, e no corredor, olhando com receio, abrindo n'um
grande pasmo os braços, disse-me ao ouvido:
--É elle!
Encostei-me desfallecidamente á parede, sentindo parar o coração.
Betty, com passos discretos foi abrir a porta do meu _toillette_. Entrei.
De pé junto d'uma mesa, extremamente pallido, estava elle. Apertei as mãos
sobre o peito, fiquei immovel, suspensa. Elle caminhou para mim com os
braços abertos, para me envolver; eu deixei-me cahir aos seus pés, e
calada beijei-lhe os dedos. Elle tinha ajoelhado commigo, e com as mãos
enlaçadas, os olhos confundidos, choravamos ambos. Eu só dizia n'um
murmurio de lagrimas:
--Ha tanto tempo!...
--Minha senhora, minha querida menina, dizia Betty da porta, e aquella
gente, santo Deus, que ha de dizer?
Eu não a escutava. Foi elle que disse sorrindo:
--Tem razão, Betty, tem razão! É necessario voltar á sala.
E deu-me o braço. Entrámos: elle grave, eu meio desfallecida, abstracta,
com os olhos marejados de lagrimas e um sorriso vago nas feições.
Disse o nome de captain Rytmel, e a sua antiga amisade com o conde. Vi a
marqueza sorrir levemente.
E voltando-me para Rytmel:
--O sr. Carlos Fradique, disse eu, antigo pirata.
Os dois homens apertaram a mão.
--A senhora condessa lisongeia-me extremamente. Eu fui apenas corsario,
disse Carlos.
Sentei-me ao piano acordando, a fugir, o teclado. Assim via bem Rytmel. A
luz envolvia-o. Estava mais pallido, o seu rosto apresentava linhas mais
graves. A testa tinha perdido a sua pureza: havia uma ruga estreita e
funda que a dominava.
Fradique continuava fallando. Agora fazia a critica das mulheres do Norte.
--A irlandeza, dizia elle, tem mais que nenhuma mulher, a graça... Sobre
tudo a que vive junto dos lagos! A melhor religião, a melhor moral, a
melhor sciencia para um espirito feminino--é um lago. Aquella agua
immovel, azul, pallida, fria, pacifica, dá um extremo repouso á alma, uma
necessidade de cousas justas, um habito de recolhimento e de pensamento,
um amor da modestia e das cousas intimas, o segredo de ser infinito, sendo
monotono, e a sciencia de perdoar... Exijo na mulher com quem casar, que
tenha as unhas rosadas e polidas, e um anno de convivencia com um lago!
Eu vi Rytmel córar de leve e torcer nervosamente o bigode.
Pelo lucido instincto da paixão, comprehendi que entre aquella
glorificação dos lagos, e os occultos pensamentos de Rytmel, havia uma
affinidade. Lembrou-me a revista de Longchamps, os louros cabellos
irlandezes de miss Shorn, e voltando-me para Carlos Fradique:
--Meu caro amigo, um pouco do seu violoncello, sim?
A sala abria sobre os jardins. A placida respiração do vento fazia arfar
as cortinas. Carlos Fradique começou a tocar uma ballada das margens do
mar do norte, de um encanto singularmente triste. Sentia-se o chorar das
aguas, o feerico correr das ondas, o compassado bater dos remos de um
pirata norvegio, a fria lua. Eu tinha ido com Rytmel para junto da
varanda, e emquanto a pequena melodia soava nas cordas do violoncello,
lembravam-me as antigas cousas do meu amor, o _Ceylão_, as noites
silenciosas em que elle me jurava a verdade da sua paixão e a voz do mar
parecia uma affirmação infinita; lembravam-me os terraços de Malta batidos
da lua, as moitas de rosas de _Clarence-Hotel_, os prados suaves de Ville
d'Avray; via-o ferido, pallido sobre as suas almofadas; via-o a bordo do
_Romantic_, commandando as manobras da fuga, chorando os desastres do
amor... E estas memorias emballavam-se no meu cerebro, confundidas com as
melodias do violoncello.

VI

Ao outro dia eu devia encontrar-me com elle n'essa fatal casa n.^o... Fui,
como sempre, toda vestida de preto, envolta n'um grande veu. Estava
extremamente pallida, palpitava-me o coração de susto. Era aquelle um
momento de transe. Eu decidira ter com Rytmel uma explicação clara,
definitiva, sem equivocos... Uma palavra que elle dissesse, sêcca ou
indifferente, um gesto impaciente, e eu considerar-me-hia como abandonada,
exilada da vida; retirava-me para um _chalet_ da Suissa, ou para
Jerusalem, ou para a melancolia d'um claustro no sul da França. Tinha
determinado assim a solução do meu destino.
Quando cheguei á casa n.^o... elle não estava ainda. Fiquei alli muito
tempo, immovel n'uma cadeira. Os ruidos da rua chegavam-me como no fundo
d'um sonho. A sala tinha uma luz esbatida, atravez dos vidros foscos como
os globos dos candieiros. Eu sentia aquella impressão indefinida, que nos
vem quando estamos durante muito tempo n'um logar socegado e triste,
olhando o silencioso caír da chuva.
De repente a porta gemeu docemente, elle entrou.
Vinha do campo. Tinha colhido para mim um pequenino ramo de flôres miudas
das sebes. Veio apoiar-se nas costas da minha cadeira, e deixou-m'as cahir
no regaço...
Depois, fallando-me baixo, junto da face:
--Andei todo o dia a pensar em si, _á travers champs_.
Não respondi, e com os olhos errantes nas côres do tapete, desfolhei
cruelmente as pequeninas flôres dos prados. Tinha um contentamento amargo
em torturar aquelles delicados seres, que vinham d'elle, e que me parecia
terem d'elle aprendido a mentir.
--Pensei constantemente em si, e o passeio foi encantador, repetiu com uma
voz docemente insistente.
Eu ergui os olhos para elle.
--Responda-me: sabe mentir?
--Mas, meu Deus, disse elle, affastando-se, parece que me quer hoje mal,
minha querida filha!
Não respondi; mas o meu regaço estava coberto de flôres mutiladas.
Elle então ajoelhou ao meu lado, e tomando-me as mãos, espreitando os meus
olhos impassiveis, ficou esperando, n'uma contemplação amante e paciente,
que eu quebrasse aquella imobilidade. Eu sentia todo o meu ser pender para
elle, n'uma attracção insensivel; mas dominava-me. Até que por fim elle
ergueu-se lentamente, arremessou o corpo para um sofá, e ali ficou, como
refugiado, folheando um volume de Musset, que estava sobre a mesa...
Levantei-me, tirei-lhe arrebatadamente o livro das mãos:
--Sabe o que é? Não o comprehendo, e é necessario que me diga, mas
francamente, claramente, syllaba por syllaba, o que tem! Não me ama, é
claro. Escusa de protestar. Vi-o logo pelo tom das primeiras cartas que me
escreveu de Londres. E agora vejo-o pelo seu olhar, as suas menores
palavras, o seu silencio, até. Ha uma cousa qualquer, não sei qual, mas
ha. A verdade é que me abandona, que me não ama. É necessario que se
explique. Isto não póde ser assim. Soffro. Se soubesse! chorei toda a
noite...
E recomecei a chorar deante d'elle, com soluços que me quebravam. Elle
tinha-me tomado as mãos e dizia-me baixo as cousas mais tocantes, em que
havia as ternuras do amante e as consolações do amigo. Affastei-o de mim,
e comprimindo o pranto:
--Não, não, é necessario que me diga claramente tudo. Eu não sei o que te
quero perguntar ou não me atrevo talvez... Mas tu sabes o que me deves
responder... Dize-me a verdade...
Elle, cruzando os braços, respondeu-me, com uma extrema placidez:
--Mas, minha querida amiga, a verdade é que as illusões do seu espirito
são a nossa desgraça. Não é culpa sua, sei: é uma fatalidade do caracter
feminino. É-lhes insupportavel a serenidade. Na vida pacifica procuram o
romance, no romance procuram a dôr. É necessario que esses pequeninos e
graciosos craneos tenham sempre a honra de cobrir uma tempestade. Que quer
então que lhe diga? Não vim a Portugal espontaneamente? Não tem encontrado
sempre ao seu lado o meu amor, fiel como um cão?--Que mais quer? Acha-me
reservado, diz. E se eu tivesse as violencias d'Othelo, achava-me de certo
ridiculo! De resto, sabe-o bem, amo-a! Digo-lh'o aqui, sentado n'um sofá,
de sobrecasaca, em uma casa que tem numero para a rua, e vou d'aqui a
pouco; n'um _coupé_, jantar, jogar talvez o xadrez, vestir--quem
sabe?--uma _robe de chambre!_ É lamentavel tudo isto, bem sei. E é por
isto que não tem confiança em mim? E diga-me francamente: se eu estivesse
aqui nos paroxismos d'Antony, ou tivesse uma _toilette_ veneziana, ou se
isto fosse uma abbadia feudal, ou se eu partisse d'aqui para conquistar
Jerusalem, diga-me--tinha mais confiança?
--Tudo isso não quer dizer nada.
--Oh minha querida amiga...
--A sua querida amiga, interrompi, nada mais pede que um coração franco e
recto. São tudo pois imaginações minhas? Não ha nada que nos separe? Pois
bem, vou dizer-lhe uma cousa e juro-lhe que é irremissivel, juro que o
digo em toda a frieza do meu juizo, sem exaltação e sem paixão, com o
discernimento mais livre, o calculo mais positivo...
--Mas, meu Deus! Diga...
--E esta resolução, acceita-a?
--Uma resolução... E o que envolve ella?
--Envolve a unica cousa possivel, a unica que me fará crer em si, com a
mesma fé com que creio em mim. Acceita-a?
--Mas como não hei de acceitar?...
--Pois bem, comecei eu.
E tomando-lhe as mãos, disse-lhe junto da face n'uma voz ardente como um
beijo:
--Fujamos ámanhã.
Rytmel empallideceu levemente e retirando de vagar as suas mãos d'entre a
pressão das minhas:
--E sabe que é uma cousa irreparavel?
--Sei.
Elle sentara-se, com os olhos sobre o tapete, e eu no emtanto, de pé junto
d'elle, com a minha mão pousada sobre o seu hombro, dizia-lhe como no
murmurio de um sonho:
--Pensava n'isto ha um mez. Vamos para Napoles. Vamos para onde quizer.
Adoro-te... É como uma pessoa que se deixa adormecer. Adoro-te, e quero
viver comtigo...
Pousei-lhe a mão sobre a testa, ergui-lhe a cabeça, para ver a resposta
dos seus olhos; estavam cerrados de lagrimas.
--Meu Deus! Rytmel, tu choras...
--Não, não, minha querida! estava pensando em minha mãe, que não torno
talvez mais a ver... Acabou-se... Amo-te, amo-te... e... Avante!
E tomou-me nos seus braços, ardentemente, como sellando um pacto eterno.

VII

Fui logo para casa, chamei precipitadamente Betty.
--Betty, disse eu fechando a porta do quarto, Betty, depressa, quero
dizer-te uma coisa. Não me digas que não...
--Santo Deus! Socegue, descance, minha querida menina! Jesus, como vem
pallida!
--Betty, é uma cousa irreparavel... devia ser. Foi pensada a sangue frio.
Vês como estou tranquilla, sem exaltação, sem nervos. É uma resolução
digna. Betty, não me digas que não!...
--Mas, minha rica senhora...
--Não se podia voltar atraz. Demais, sou feliz assim, tão feliz, tão
feliz!
--Bem feliz, ao menos?
--Doidamente. E se não fosse assim, morria...
--Mas então...
--Fugimos ámanhã.
Ella estremeceu toda, deitou-me um grande olhar em que appareciam
lagrimas, e suffocada, com as mãos juntas:
--E eu?
Atirei-me aos seus braços:
--Pois havias de ficar, Betty? Tu vens comnosco, Betty.
E correndo pelo quarto, abria os guarda-vestidos, tirando roupas, batendo
as palmas, e gritando:
--Arranja, Betty, arranja tudo. Depressa! Arranja, arranja!
Mandei pôr a caleche. Eram quatro horas. Desci o Chiado. Ia alegre,
triumphava: a minha vida apparecia-me, larga, cheia, explendida, coberta
de luz. Entrei nas modistas, olhei, escolhi, comprei, com impaciencias de
noiva, e recatos de conspirador. Apertei a mão a algumas amigas.
--Partes? perguntavam-me.
--Para França.
--Com a guerra?
--Não ha guerra. E havendo, não é interessante ver matar prussianos?
Á porta do _Sassetti_, encontrei Carlos Fradique.
--Sabe que parto ámanhã? disse-lhe eu.
--Sabe que parto hoje? respondeu-me. Ia lá, apertar-lhe a mão.
--Mas é inesperado isso! Vae para França? Para quê?
--Ver os campos de batalha ao luar, ou aos archotes. Deve haver attitudes
de mortos muito curiosas.
--Mas vae debalde. Não ha guerra. É positivo. Por isso eu vou para Italia.
--Vae para Italia?... Mas, então... Ah! Vae para Italia? Minha pobre
amiga, quem sabe se isso devia ser! Em todo o caso, em qualquer parte, ou
feliz, ou triste, para a consolar, ou para fazer um _trio_ com o meu
violoncello, sou seu, _adesso e sempre_.
Apertou-me a mão. Não sei porque, aquellas palavras deram-me uma sensação
triste.
Quiz ir ao Aterro. A tarde caía. A agua tinha uma immobilidade luminosa.
Do outro lado os montes estavam esbatidos n'um vapor azulado e suave.
Sobre o mar havia nuvens inflammadas, d'uma côr fulva, como no fundo d'uma
gloria. Algumas velas passavam rosadas, tocadas da luz.
Sentia-me vagamente melancolica. O rio, aquellas casas triviaes, todos
aquelles aspectos que eu conhecia, que eram para mim até ahi quasi
inexpressivos, appareciam-me pela ultima vez que os via, com uma feição
sympathica. Tive uma saudade piegas daquelles logares: quiz sorrir,
escarnecer; mas a verdade era que aquella paisagem, o pesado hotel
Central, o terraço de Braganza-hotel, a grosseira e escura rua do Arsenal,
todas essas cousas alheias a mim, me despertavam inesperadamente o desejo
instinctivo de tranquillidade, de familia, de situações pacificas, fazendo
destacar no fundo da minha vida, n'um relevo negro, a aventura que eu ia
intentar; e apparecendo-me como um ajuntamento de velhos rostos amigos que
se despedem, faziam-me pensar nas cousas irreparaveis, no exilio e na
morte!
A minha carruagem subia a passo a rua do Alecrim. As luzes accendiam-se. O
ceu estava ainda pallido.
Uma senhora passou, só, a pé, levando uma creança pela mão: era uma mulher
nova e distincta; parecia feliz. O pequenino, loiro, gordo, ria, palrava
n'aquella linguagem mysteriosa e doce, que é o que ficou ainda na voz
humana do _a b c_ do ceu.
Como seria bom ser assim uma mulher pacifica, com um equilíbrio suave no
coração, uma _toilette_ fresca, o amor das cousas justas, e um filho pela
mão! Se eu fosse assim seria alegre, amavel, passearia, daria _bonbons_ ao
meu pequerrucho, tral-o-hia vestido de côres leves, com uma flôr no cinto;
conversaria com elle, e á volta, depois do cansaço do meu passeio, amaria
a tranquillidade da minha vida. Elle adormeceria sobre o sofá. A janella
estaria aberta. Grandes borboletas brancas voariam em volta do candeeiro;
eu, ajoelhada, procuraria despil-o, sem o acordar, cantando, baixo, em
segredo, uma melodia dormente de Mozart, e no entretanto a penna do pae
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