O Mysterio da Estrada de Cintra. Cartas ao Diário de Noticias - 02

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nossos companheiros. Era um corredor estreito segundo pude deduzir do modo
por que nos encontrámos e démos passagem a alguem que sahia. Quem quer que
era disse:
--Levo o trem?
A voz do que nos guiara respondeu:
--Leva.
Demorámo-nos um momento. A porta por onde haviamos entrado foi fechada á
chave, e o que nos servira de cocheiro passou para diante dizendo:
--Vamos!
Démos alguns passos, subimos dois degraus de pedra, tomámos á direita e
entrámos na escada. Era de madeira, ingreme e velha, coberta com um tapete
estreito. Os degraus estavam desgastados pelos pés, eram ondeados na
superficie e esbatidos e arredondados nas saliencias primitivamente
angulosas. Ao longo da parede, do meu lado, corria uma corda, que servia
de corrimão; era de seda e denotava ao tacto pouco uso. Respirava-se um ar
humido e impregnado das exhalações interiores dos predios deshabitados.
Subimos oito ou dez degraus, tomámos á esquerda n'um patamar, subimos
ainda outros degraus e parámos n'um primeiro andar.
Ninguem tinha proferido uma palavra, e havia o que quer que fosse de
lugubre n'este silencio que nos envolvia como uma nuvem de tristeza.
Ouvi então a nossa carruagem que se affastava, e senti uma suppressão, uma
especie de sobresalto pueril.
Em seguida rangeu uma fechadura e transpozemos o limiar de uma porta, que
foi outra vez fechada á chave depois de havermos entrado.
--Podem tirar os lenços, disse-me um dos nossos companheiros.
Descobri os olhos. Era noite.
Um dos mascarados raspou um phosphoro, accendeu cinco velas n'uma
serpentina de bronze, pegou na serpentina, approximou-se de um movel que
estava coberto com uma manta de viagem, e levantou a manta.
Não pude conter a commoção que senti, e soltei um grito de horror.
O que eu tinha diante de mim era o cadaver de um homem.

IV

Escrevo-lhe hoje fatigado, e nervoso. Todo este obscuro negocio em que me
acho envolvido, o vago perigo que me cerca, a mesma tensão de espírito em
que estou para comprehender a secreta verdade d'esta aventura, os habitos
da minha vida repousada subitamente exaltados,--tudo isto me dá um estado
de irritação morbida que me aniquilla.
Logo que vi o cadaver perguntei violentamente:
--Que quer isto dizer, meus senhores?
Um dos mascarados, o mais alto, respondeu:
--Não ha tempo para explicações. Perdôem ter sido enganados! Pelo amor de
Deus, doutor, veja esse homem. Quem tem? Está morto? Está adormecido com
algum narcotico?
Dizia estas palavras com uma voz tão instante, tão dolorosamente
interrogativa que eu, dominado pelo imprevisto d'aquella situação,
approximei-me do cadaver, e examinei-o.
Estava deitado n'uma _chaise-longue_, com a cabeça pousada n'uma almofada,
as pernas ligeiramente cruzadas, um dos braços curvado descançando no
peito, o outro pendente e a mão inerte assente sobre o chão. Não tinha
golpe, contusão, ferimento, ou extravasamento de sangue; não tinha signaes
de congestão, nem vestigios de estrangulação. A expressão da physionomia
não denotava soffrimento, contracção ou dôr. Os olhos cerrados
frouxamente, eram como n'um somno leve. Estava frio e livido.
Não quero aqui fazer a historia do que encontrei no cadaver. Seria
embaraçar esta narração concisa com explicações scientificas. Mesmo sem
exames detidos, e sem os elementos de apreciação que só podem fornecer a
analyse ou a autopsia, pareceu-me que aquelle homem estava sob a
influencia já mortal de um narcotico, que não era tempo de dominar.
--Que bebeu elle? perguntei, com uma curiosidade exclusivamente medica.
Não pensava então em crime nem na mysteriosa aventura que ali me prendia;
queria só ter uma historia progressiva dos factos que tinham determinado a
narcotisação.
Um dos mascarados mostrou-me um copo que estava ao pé da _chaise-longue_
sobre uma cadeira de estofo.
--Não sei, disse elle, talvez aquillo.
O que havia no copo era evidentemente opio.
--Este homem está morto, disse eu.
--Morto! repetiu um d'elles, tremendo.
Ergui as palpebras do cadaver, os olhos tinham uma dilatação fixa,
horrivel.
Eu fitei-os então um por um e disse-lhes serenamente:
--Ignoro o motivo porque vim aqui; como medico d'um doente sou inutil;
como testemunha posso ser perigoso.
Um dos mascarados veiu para mim e com a voz insinuante, e grave:
--Escute, crê em sua consciencia que esse homem esteja morto?
--De certo.
--E qual pensa que fosse a causa da morte?
--O opio; mas creio que devem sabel-o melhor do que eu os que andam
mascarados surprehendendo gente pela estrada de Cintra.
Eu estava irritado, queria provocar algum desenlace definitivo que
cortasse os embaraços da minha situação.
--Perdão, disse um, e ha que tempo suppõe que esse homem esteja morto?
Não respondi, puz o chapeu na cabeça e comecei a calçar as luvas. F...
junto da janella batia o pé impaciente. Houve um silencio.
Aquelle quarto pesado de estofos, o cadaver estendido com reflexos lividos
na face, os vultos mascarados, o socego lugubre do logar, as luzes claras,
tudo dava áquelle momento um aspecto profundamente sinistro.
--Meus senhores, disse então lentamente um dos mascarados, o mais alto, o
que tinha guiado a carruagem--comprehendem perfeitamente, que se nós
tivessemos morto este homem sabiamos bem que um medico era inutil, e uma
testemunha importuna! Desconfiavamos, é claro, que estava sob a acção de
um narcotico, mas queriamos adquirir a certeza da morte. Por isso os
trouxemos. A respeito do crime estamos tão ignorantes como os senhores. Se
não entregamos este caso á policia, se cercámos de mysterio e de violencia
a sua visita a esta casa, se lhes vendámos os olhos, é porque receavamos
que as indagações que se podessem fazer, conduzissem a descobrir, como
criminoso ou como cumplice, alguem que nós temos em nossa honra salvar; se
lhes damos estas explicações...
--Essas explicações são absurdas! gritou F. Aqui ha um crime; este homem
está morto, os senhores, mascarados; esta casa parece solitaria, nós
achamo-nos aqui violentados, e todas estas circumstancias teem um mysterio
tão revoltante, uma feição tão criminosa, que não queremos nem pelo mais
leve acto, nem pela mais involuntaria assistencia, ser parte n'este
negocio. Não temos aqui nada que fazer; queiram abrir aquella porta.
Com a violencia dos seus gestos, um dos mascarados riu.
--Ah! os senhores escarnecem! gritou F...
E arremessando-se violentamente contra a janella, ia fazer saltar os
fechos. Mas dois dos mascarados arrojaram-se poderosamente sobre elle,
curvaram-n'o, arrastaram-n'o até uma poltrona, e deixaram-n'o cair,
offegante, tremulo de desespero.
Eu tinha ficado sentado e impassivel.
--Meus senhores, observei, notem que emquanto o meu amigo protesta pela
colera, eu protesto pelo tedio.
E accendi um charuto.
--Mas com os diabos! tomam-nos por assassinos! gritou um violentamente.
Não se crê na honra, na palavra de um homem! Se vocês não tiram a mascara,
tiro-a eu! É necessario que nos vejam! Não quero, nem escondido por um
pedaço de cartão, passar por assassino!... Senhores! dou-lhes a minha
palavra que ignoro quem matou este homem!
E fez um gesto furioso. N'este movimento, a mascara desapertou-se,
descahindo. Elle voltou-se rapidamente, levando as mãos abertas ao rosto.
Foi um movimento instinctivo, irreflectido, de desesperação. Os outros
cercaram-n'o, olhando rapidamente para F..., que tinha ficado impassivel.
Um dos mascarados, que não tinha ainda falado, o que na carruagem viera
defronte de mim, a todo o momento observava o meu amigo com receio, com
suspeita. Houve um longo silencio. Os mascarados, a um canto, fallavam
baixo. Eu no emtanto examinava a sala.
Era pequena, forrada de seda em pregas, com um tapete molle, espesso, bom
para correr com os pés nús. O estofo dos moveis era de seda vermelha com
uma barra verde, unica e transversal, como têem na antiga heraldica os
brasões dos bastardos. As cortinas das janellas pendiam em pregas amplas e
suaves. Havia vasos de jaspe, e um aroma tepido e penetrante, onde se
sentia a verbena e o perfume de _marechala_.
O homem que estava morto era moço, de perfil sympathico e fino, de bigode
louro. Tinha o casaco e collete despidos, e o largo peitilho da camisa
reluzia com botões de perolas; a calça era estreita, bem talhada, de uma
côr clara. Tinha apenas calçado um sapato de verniz; as meias eram de seda
em grandes quadrados brancos e cinzentos.
Pella physionomia, pela construcção, pelo corte e côr do cabello, aquelle
homem parecia inglez.
Ao fundo da sala via-se um reposteiro largo, pesado, cuidadosamente
corrido. Parecia-me ser uma alcova. Notei admirado que apesar do extremo
luxo, d'um aroma que andava no ar e uma sensação tépida que dão todos os
logares onde ordinariamente se está, se falla e se vive, aquelle quarto
não parecia habitado; não havia um livro, um casaco sobre uma cadeira,
umas luvas cahidas, alguma d'estas mil pequenas coisas confusas, que
demonstram a vida e os seus incidentes triviaes.
F..., tinha-se approximado de mim.
--Conheceste aquelle a quem caiu a mascara? perguntei.
--Não. Conheceste?
--Tambem não. Ha um que ainda não fallou, que está sempre olhando para ti.
Receia que o conheças, é teu amigo talvez, não o percas de vista.
Um dos mascarados approximou-se, perguntando:
--Quanto tempo póde ficar o corpo assim n'esta _chaise-longue_?
Eu não respondi. O que me interrogou fez um movimento colerico, mas
conteve-se. N'este momento o mascarado mais alto, que tinha saido,
entrara, dizendo para os outros:
--Prompto!...
Houve uma pausa; ouvia-se o bater da pendula e os passos de F..., que
passeiava agitado, com o sobrolho duro, torcendo o bigode.
--Meus senhores, continuou voltando-se para nós o mascarado--damos-lhe a
nossa palavra de honra que somos completamente estranhos a este successo.
Sobre isto não damos explicações. Desde este momento os senhores estão
retidos aqui. Imaginem que somos assassinos, moedeiros falsos ou ladrões,
tudo o que quizerem. Imaginem que estão aqui pela violencia, pela
corrupção, pela astucia, ou pela força da lei... como entenderem! O facto
é que ficam até amanhã. O seu quarto--disse-me--é n'aquella alcova, e o
seu--apontou para F.--lá dentro. Eu fico comsigo, doutor, n'este sofá. Um
dos meus amigos será lá dentro o criado de quarto do seu amigo. Ámanhã
despedimo-nos amigavelmente e podem dar parte á policia ou escrever para
os jornaes.
Calou-se. Estas palavras tinham sido ditas com tranquillidade. Não
respondemos.
Os mascarados, em quem se percebia um certo embaraço, uma evidente falta
de serenidade, conversavam baixo, a um canto do quarto, junto da alcova.
Eu passeava. N'uma das voltas que dava pelo quarto, vi casualmente, perto
d'uma poltrona, uma coisa branca similhante a um lenço. Passei defronte da
poltrona, deixei voluntariamente cair o meu lenço, e no movimento que fiz
para o apanhar, lancei despercebidamente mão do objecto caido. Era
effectivamente um lenço. Guardei-o, apalpei-o no bolso com grande
delicadeza de tacto; era fino, com rendas, um lenço de mulher. Parecia ter
bordadas uma firma e uma corôa.
N'este momento deram nove horas. Um dos mascarados exclamou, dirigindo-se
a F...
--Vou mostrar-lhe o seu quarto. Desculpe-me, mas é necessario vendar-lhe
os olhos.
F. tomou altivamente o lenço das mãos do mascarado, cobriu elle mesmo os
olhos, e sairam.
Fiquei só com o mascarado alto, que tinha a voz sympathica e attrahente.
Perguntou-me se queria jantar. Comquanto lhe respondesse negativamente,
elle abriu uma mesa, trouxe um cabaz em que havia algumas comidas frias.
Bebi apenas um copo d'agua. Elle comeu.
Lentamente, gradualmente, começámos a conversar quasi em amizade. Eu sou
naturalmente expansivo, o silencio pesava-me. Elle era instruido, tinha
viajado e tinha lido.
De repente, pouco depois da uma hora da noite, sentimos na escada um andar
leve e cauteloso, e logo alguem tocar na porta do quarto onde estavamos. O
mascarado tinha ao entrar tirado a chave e havia-a guardado no bolso.
Erguemo-nos sobresaltados. O cadaver achava-se coberto. O mascarado apagou
as luzes.
Eu estava aterrado. O silencio era profundo; ouvia-se apenas o ruido das
chaves que a pessoa que estava fóra ás escuras procurava introduzir na
fechadura.
Nós, immoveis, não respiravamos.
Finalmente a porta abriu-se, alguem entrou, fechou-a, accendeu um
phosphoro, olhou. Então vendo-nos, deu um grito e caiu no chão, immovel,
com os braços estendidos.
Ámanhã, mais socegado e claro de recordações, direi o que se seguiu.
* * * * *
P.S.--Uma circumstancia que póde esclarecer sobre a rua e o sitio da casa:
De noite senti passarem duas pessoas, uma tocando guitarra, outra cantando
o fado. Devia ser meia noite. O que cantava dizia esta quadra:
Escrevi uma carta a Cupido
A mandar-lhe perguntar
Se um coração offendido...
Não me lembra o resto. Se as pessoas que passaram, tocando e cantando,
lerem esta carta, prestarão um notavel esclarecimento dizendo em que rua
passavam, e defronte de que casa, quando cantaram aquellas rymas
populares.

V

Hoje, mais socegado e sereno, posso contar-lhe com precisão e realidade,
reconstruindo-o do modo mais nitido, nos dialogos e nos olhares, o que se
seguiu á entrada imprevista d'aquella pessoa no quarto onde estava o
morto.
O homem tinha ficado estendido no chão, sem sentidos: molhámos-lhe a
testa, demos-lhe a respirar vinagre de _toilette_. Voltou a si, e, ainda
tremulo e pallido, o seu primeiro movimento instinctivo foi correr para a
janella!
O mascarado, porém, tinha-o envolvido fortemente com os braços, e
arremessou-o com violencia para cima de uma cadeira, ao fundo do quarto.
Tirou do seio um punhal, e disse-lhe com voz fria e firme:
--Se faz um gesto, se dá um grito, se tem um movimento, varo- lhe o
coração!
--Vá, vá, disse eu, breve! responda... Que quer? Que veio fazer aqui?
Elle não respondia, e com a cabeça tomada entre as mãos, repetia
machinalmente:
--Está perdido tudo! Está tudo perdido!
--Falle, disse-lhe o mascarado, tomando-lhe rudemente o braço, que veiu
fazer aqui? Que é isto? como soube?...
A sua agitação era extrema: luziam-lhe os olhos entre o setim negro da
mascara.
--Que veiu fazer aqui? repetiu agarrando-o pelos hombros e sacudindo-o
como um vime.
--Escute... disse o homem convulsivamente. Vinha saber... disseram-me...
Não sei. Parece que já cá estava a policia... queria... saber a verdade,
indagar quem o tinha assassinado... vinha tomar informações...
--Sabe tudo! disse o mascarado, aterrado, deixando pender os braços.
Eu estava surprehendido; aquelle homem conhecia o crime, sabia que havia
ali um cadaver! Só elle o sabia, porque deviam ser de certo absolutamente
ignorados aquelles successos lugubres. Por consequencia quem sabia onde
estava o cadaver, quem tinha uma chave da casa, quem vinha alta noite ao
logar do assassinato, quem tinha desmaiado vendo-se surprehendido, estava
positivamente envolvido no crime...
--Quem lhe deu a chave? perguntou o mascarado.
O homem calou-se.
--Quem lhe fallou n'isto?
Calou-se.
--Que vinha fazer, de noite, ás escondidas, a esta casa?
Calou-se.
--Mas como sabia d'este absoluto segredo, de que apenas temos conhecimento
nós?...
E voltando-se para mim, para me advertir com um gesto imperceptivel do
expediente que ia tomar, accrescentou:
-- ... nós e o senhor comissário.
O desconhecido calou-se. O mascarado tomou-lhe o paletot e examinou-lhe os
bolsos. Encontrou um pequeno martello e um masso de pregos.
--Para que era isto?
--Trazia naturalmente isso, queria concertar não sei quê, em casa... um
caixote...
O mascarado tomou a luz, approximou-se do morto, e por um movimento
rapido, tirando a manta de viagem, descobriu o corpo: a luz caiu sobre a
livida face do cadaver.
--Conhece este homem?
O desconhecido estremeceu levemente e pousou sobre o morto um longo olhar,
demorado e attento.
Eu em seguida cravei os meus olhos, com uma insistencia implacavel nos
olhos d'elle, dominei-o, dísse-lhe baixo, apertando-lhe a mão:
--Porque o matou?
--Eu? gritou elle. Está doido!
Era uma resposta clara, franca, natural, innocente.
--Mas porque veiu aqui? observou o mascarado, como soube do crime? Como
tinha a chave? Para que era este martello? Quem é o senhor? Ou dá
explicações claras, ou d'aqui a uma hora está no segredo, e d'aqui a um
mez nas galés. Chame os outros, disse elle para mim.
--Um momento, meus senhores, confesso tudo, digo tudo! gritou o
desconhecido.
Esperámos; mas retraindo a voz, e com uma intonação demorada, como quem
dicta:
--A verdade, prosseguiu, é esta: encontrei hoje de tarde um homem
desconhecido, que me deu uma chave e me disse: sei que é Fulano, que é
destemido, vá a tal rua, n.º tantos...
Eu tive um movimento avido, curioso, interrogador. Ia emfim saber onde
estava!
Mas o mascarado com um movimento impetuoso pôz-lhe a mão aberta sobre a
bocca, comprimindo-lhe as faces, e com uma voz surda e terrível:
--Se diz onde estamos, mato-o.
O homem fitou-nos: comprehendeu evidentemente que eu tambem estava ali,
sem saber onde, por um mysterio, que os motivos da nossa presença eram
tambem suspeitos, e que por consequencia não eramos empregados da policia.
Esteve um momento calado e accrescentou:
--Meus senhores, esse homem fui eu que o matei, que querem mais? Que fazem
aqui?
--Está preso, gritou o mascarado. Vá chamar os outros, doutor. É o
assassino.
--Esperem, esperem, gritou elle, não comprehendo! Quem são os senhores?
Suppuz que eram da policia... São talvez... disfarçam para me
surprehender! Eu não conheço aquelle homem, nunca o vi. Deixem-me sair...
Que desgraça!
--Este miseravel ha de fallar, elle tem o segredo! bradava o mascarado.
Eu tinha-me sentado ao pé do homem. Queria tentar a doçura, a astucia.
Elle tinha serenado, fallava com intelligencia e com facilidade. Disse-me
que se chamava A. M. C., que era estudante de medicina e natural de Vizeu.
O mascarado escutava-nos, silencioso e attento. Eu fallando baixo com o
homem, tinha-lhe pousado a mão sobre o joelho. Elle pedia-me _que o
salvasse_, chamava-me seu _amigo_. Parecia-me um rapaz exaltado, dominado
pela imaginação. Era facil surprehender a verdade dos seus actos. Com um
modo intimo, confidencial, fiz-lhe perguntas apparentemente sinceras e
simples, mas cheias de traição e de analyse. Elle, com uma boa fé
inexperiente, a todo o momento se descobria, se denunciava.
--Ora, disse-lhe eu, uma cousa me admira em tudo isto.
--Qual?
--É que não tivesse deixado signaes o arsenico...
--Foi opio, interrompeu elle, com uma simplicidade infantil.
Ergui-me de salto. Aquelle homem, se não era o assassino, conhecia
profundamente todos os segredos do crime.
--Sabe tudo, disse eu ao mascarado.
--Foi elle, confirmou o mascarado convencido.
Eu tomei-o então de parte, e com uma franqueza simples:
--A comedia acabou, meu amigo, tire a sua mascara, apertemo-nos a mão,
dêmos parte á policia. A pessoa que o meu amigo receava descobrir, não tem
decerto que vêr n'este negócio.
--De certo que não. Este homem é o assassino.
E voltando-se para elle com um olhar terrivel, que flammejava debaixo da
mascara:
--E porque o matou?
--Matei-o... respondeu o homem.
--Matou-o, disse o mascarado com uma lentidão de voz que me aterrou, para
lhe roubar 2:300 libras em _bank-notes_, que aquelle homem tinha no bolso,
dentro de uma bilheteira em que estavam monogramadas duas lettras de
prata, que eram as iniciais do seu nome.
--Eu!... para o roubar! Que infamia! Mente! Eu não conheço esse homem,
nunca o vi, não o matei!
--Que malditas contradicções! gritou o mascarado exaltado.
A.M.C. objectou lentamente:
--O senhor que está mascarado... este homem não era seu amigo, o unico
amigo que elle conhecia em Lisboa?
--Como sabe? gritou repentinamente o mascarado, tomando-lhe o braço.
Falle,diga.
--Por motivos que devo occultar, continuou o homem, sabia que este
sujeito, que é extrangeiro, que não tem relações em Lisboa, que chegou ha
poucas semanas, vinha a esta casa...
--É verdade, atalhou o mascarado.
--Que se encontrava aqui com alguem...
--É verdade, disse o mascarado.
Eu, pasmado, olhava para ambos, sentia a lucidez das idéas perturbada, via
apparecer uma nova causa imprevista, temerosa e inexplicavel.
--Além d'isso, continuou o homem desconhecido, ha de saber tambem que um
grande segredo occupava a vida d'este infeliz...
--É verdade, é verdade, dizia o mascarado absorto.
--Pois bem, hontem uma pessoa, que casualmente não podia sair de casa,
pediu-me que viesse ver se o encontrava...
Nós esperavamos, petrificados, o fim daquellas confissões.
--Encontrei-o morto ao chegar aqui. Na mão tinha este papel.
E tirou do bolso meia folha de papel de carta, dobrada.
--Leia, disse elle ao mascarado.
Este approximou o papel da luz, deu um grito, caiu sobre uma cadeira com
os braços pendentes, os olhos cerrados.
Ergui o papel, li:
_I declare that I have killed myself with opium._
(Declaro que me matei com opio).
Fiquei petrificado.
O mascarado dizia com a voz absorta como n'um sonho:
--Não é possivel. Mas é a lettra dele, é! Ah! que mysterio, que mysterio!
Vinha a amanhecer.
Sinto-me fatigado de escrever. Quero aclarar as minhas recordações. Até
ámanhã.

VI

Peço-lhe agora toda a sua attenção para o que tenho de contar-lhe.
A madrugada vinha. Sentiam-se já os ruidos da povoação que desperta. A rua
não era macadamizada, porque eu sentia o rodar dos carros sobre a calçada.
Tambem não era uma rua larga, porque o echo das carroças era profundo,
cheio e proximo. Ouvia pregões. Não sentia carruagens.
O mascarado tinha ficado n'uma prostração extrema, sentado, immovel, com a
cabeça apoiada nas mãos.
O homem que tinha dito chamar-se A. M. C. estava encostado no sofá, com os
olhos cerrados, como adormecido.
Eu abri as portas da janella: era dia. Os transparentes e as persianas
estavam corridos. Os vidros eram foscos como os dos globos dos candieiros.
Entrava uma luz lugubre, esverdeada.
--Meu amigo, disse eu ao mascarado, é dia. Coragem! é necessario fazer o
exame do quarto, movel por movel.
Elle ergueu-se e correu o reposteiro do fundo. Vi uma alcova, com uma
cama, e á cabeceira uma pequena mesa redonda, coberta com um panno de
velludo verde. A cama não estava desmanchada, cobria-a um _edredon_ de
setim encarnado. Tinha um só travesseiro largo, alto e fôfo, como se não
usam em Portugal; sobre a mesa estava um cofre vasio e uma jarra com
flores murchas. Havia um lavatorio, escovas, sabonetes, esponjas, toalhas
dobradas e dois frascos esguios de violetas de Parma. Ao canto da alcova
estava uma bengala grossa com estoque.
Na disposição dos objectos na sala não havia nenhuma particularidade
significativa. O exame d'ella dava na verdade a persuasão de que se estava
n'uma casa raramente habitada, visitada a espaços apenas, sendo um logar
de entrevistas, e não um interior regular.
A casaca e o collete do morto estavam sobre uma cadeira; um dos sapatos
via-se no chão, ao pé da _chaise-longue_; o chapeu achava-se sobre o
tapete, a um canto, como arremessado. O paletot estava caido ao pé da
cama.
Procuraram-se todos os bolsos dos vestidos do morto: não se encontrou
carteira, nem bilhetes, nem papel algum. Na algibeira do collete estava o
relogio, de ouro encobrado, sem firma, e uma pequena bolsa de malha
d'ouro, com dinheiro miudo. Não se lhe encontrou lenço. Não se pôde
averiguar em que tivesse sido trazido de fóra o opio; não appareceu
frasco, garrafa, nem papel ou caixa em que tivesse estado, em liquido ou
em pó; e foi a primeira difficuldade que no meu espírito se apresentou
contra o suicidio.
Perguntei se não havia na casa outros quartos que communicassem com
aquelle aposento e que devessemos visitar.
--Há, disse o mascarado, mas este predio tem duas entradas e duas escadas.
Ora aquella porta, que communica com os demais quartos, encontrámol-a
fechada pelo outro lado quando chegámos aqui. Logo este homem não saiu
d'esta sala depois que subiu da rua e antes de morrer ou de ser morto.
Como tinha então trazido o opio? Ainda quando o tivesse já no quarto, o
frasco, ou qualquer envolucro que contivesse o narcotico devia apparecer.
Não era natural que tivesse sido aniquilado. O copo em que ficara o resto
da agua opiada, alli estava. Um indicio mais grave parecia destruir a
hypothese do suicidio: não se encontrou a gravata do morto. Não era
natural que elle a tivesse tirado, que a tivesse destruido ou lançado
fóra. Não era tambem racional que tendo vindo áquelle quarto,
esmeradamente vestido como para uma visita cerimoniosa, não trouxesse
gravata. Alguem pois tinha estado n'aquella casa, ou pouco antes da morte
ou ao tempo d'ella. Era essa pessoa que tinha para qualquer fim tomado a
gravata do morto.
Ora a presença de alguem n'aquelle quarto, coincidindo com a estada do
supposto suicidado ali, tirava a possibilidade ao suicidio e dava
presumpções ao crime.
Aproximámo-nos da janella, examinámos detidamente o papel em que estava
escripta a declaração do suicida.
--A lettra é d'ele, parece-me indubitavel que é--disse o mascarado--mas na
verdade, não sei porque, não lhe acho a feição usual da sua escripta!
Observou-se o papel escrupulosamente; era meia folha de escrever cartas.
Notei logo no alto da pagina a impressão muito apagada, muito indistincta,
d'uma firma e de uma corôa, que devia ter estado gravada na outra meia
folha. Era portanto papel marcado. Fiz notar esta circumstancia ao
mascarado: elle ficou surprehendido e confuso. No quarto não havia papel,
nem tinteiro, nem pennas. A declaração pois tinha sido escripta e
preparada fóra.
--Eu conheço o papel de que elle usava em casa, disse o mascarado; não é
d'este; não tinha firma, não tinha corôa. Não podia usar d'outro.
A impressão da marca não era bastante distincta para que se percebesse
qual fosse a firma e qual a corôa. Ficava, porém, claro que a declaração
não tinha sido escripta nem em casa d'elle, onde não havia d'aquelle
papel, nem n'aquelle quarto, onde não havia papel algum, nem tinteiro, nem
um livro, um _buvard_, um lapis.
Teria sido escripta fóra, na rua, ao acaso? Em casa d'alguem? Não, porque
elle não tinha em Lisboa, nem relações intimas, nem conhecimento de
pessoas cujo papel fosse marcado com corôa.
Teria sido feita n'uma loja de papel? Não, porque o papel que se vende
vulgarmente nas lojas não tem corôas.
Seria a declaração escripta n'alguma meia folha branca tirada de uma velha
carta recebida? Não parecia tambem natural, porque o papel estava dobrado
ao meio e não tinha os vincos que dá o _enveloppe_.
Demais a folha tinha um aroma de pós de _marechala_, o mesmo que se
sentia, suavemente embebido no ar do quarto em que estavamos.
Além d'isso, pondo o papel directamente sobre a claridade da luz,
distingui o vestigio de um dedo polegar, que tinha sido assente sobre o
papel no momento de estar suado ou humido, e tinha embaciado a sua
brancura lisa e assetinada, havendo deixado uma impressão exacta. Ora este
dedo parecia delgado, pequeno, feminil. Este indicio era notavelmente
vago, mas o mascarado tinha a esse tempo encontrado um, profundamente
efficaz e seguro.
--Este homem, notou elle, tinha o costume invariavel, mechanico, de
escrever, abreviando-a, a palavra _that_, d'este modo: dois TT separados
por um traço. Esta abreviatura era só d'elle, original, desconhecida.
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