O Mysterio da Estrada de Cintra. Cartas ao Diário de Noticias - 11

Total number of words is 4620
Total number of unique words is 1785
34.9 of words are in the 2000 most common words
50.2 of words are in the 5000 most common words
57.9 of words are in the 8000 most common words
Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
a liberdade de lhe fallar. Disponha de mim, minha senhora, como se dispõe
de um amigo ou de um escravo para a vida e para a morte.
Ella parecia escutar sem me comprehender, n'uma grande inquietação. Á
ultima palavra que proferi:
--Para a morte!--repetiu ella n'um grito de delirio. Quem lh'o disse? Como
o soube?
E apoiando-se no braço da senhora que a acompanhava, segurou-se n'ella com
um movimento convulso de pavor, ergueu o rosto para mim e fitou-me,
trémula, supplicante, com os olhos hallucinados e lacrimosos.
--Que quer? Diga!--accrescentou ella. Vem prender-me? aqui me tem.
Leve-me.
E tendo dito isto, voltou-se successivamente para todos os lados, olhando
a rua com a mais exaltada expressão da confusão, da vergonha e do medo.
Era a angustia personificada pela maneira mais viva e mais lancinante. Eu
sentia o coração cheio de lastima e de piedade.
--Perdão,--disse-lhe,--socegue, por quem é! Eu nada sei. Não venho
prendel-a, nem venho interrogal-a. Não sou um juiz, nem um espião, nem um
carrasco. É esta a terceira vez que a vejo em minha vida. A primeira foi
n'esta mesma rua ha cerca de um mez, no momento em que um cocheiro lhe
pedia o aluguer de um trem. A segunda vez foi de passagem no Rocio ha
quinze dias. Sou um amigo seu desconhecido, obscuro, anonymo. Suppunha-a
no apogeu da fortuna e da felicidade. Tive-lhe inveja e odio. Encontro-a,
ao que parece, á beira de um abysmo e não acho na minha alma doente e
magoada senão enternecimento e dedicação! é, então, desgraçada como os
outros... coitadinha! coitadinha!
E a minha dôr era profunda e sincera, a minha compaixão illimitada.
--Não sei, tornou ella, estou tão perturbada que não o comprehendo bem;
estou tão afflicta que não o reconheço bem, entrelembro-me apenas... Mas
parece-me generoso e compadecido... Ah! eu não posso ter-me em pé!
Dei-lhe o braço, que ella acceitou, e ficou um momento amparada em mim e
na pessoa que a acompanhava, immovel, com a cabeça reclinada para traz e a
bocca aberta, bebendo ar a longos sorvos.
--Vamos! disse ella depois de uma pausa. Não posso ficar, não posso morrer
aqui; tenho que escrever, preciso de chegar a casa quanto antes.
E fazendo um grande esforço continuou a caminhar apoiada como estava, com
passo vacilante e vagaroso, anciada, arquejante, parando a todo o momento
para receber nos pulmões o ar que lhe faltava.
Eu ia absorvido pelo aspecto de tamanha dôr. Acudia-me de longe a longe
uma palavra, que não me atrevia a pronunciar, receiando que ella podesse
imaginar que eu tentava perscrutar a causa do seu infortunio com uma
indiscrição grosseira.
A rua em que iamos andava-se concertando e estava coberta de uma camada de
seixos britados e soltos, por cima de cujos angulos percucientes e
cortantes eramos obrigados a caminhar. Chegavamos á esquina da rua quando
ella, voltando-se para a pessoa que a acompanhava, e que então vi ser uma
criada, lhe disse:
--Betty, calça-me o sapato. Saiu-me do pé.
A criada ajoelhou-se, e exclamou:
--O setim está espedaçado! O pé deita sangue!
A condessa pareceu não ouvir, e continuou a caminhar resolutamente.
Maravilhava-me e compungia-me o valor d'alma d'aquella debil natureza, e
sentia-me arrebatado a levantar do chão e a transportar nos meus braços
aquelle formoso corpo tão corajosamente subjugado. Felizmente, de uma
travessa proxima desembocou pouco depois um trem de praça, vasio. A
condessa, que tinha visivelmente a maior pressa de chegar, entrou, com a
criada que a acompanhava, na carruagem que eu mandei approximar. Fechei a
portinhola e disse á condessa baixo, quasi ao ouvido, dando-lhe o meu
bilhete:
--Minha senhora, quaesquer que sejam as causas, quaesquer que sejam as
consequencias da extranha aventura que acaba de approximar-se de v. Ex.^a,
vá na firme certeza de que ninguem no mundo saberá do encontro que
acabamos de ter. Se nunca precisar de mim, continuarei como até hoje sendo
na sua existencia um homem inteiramente desconhecido, o qual de ora ávante
considerará as suas relações com v. ex.^a exactamente no estado em que
estavam antes de a ter visto pela primeira vez.
Ella respondeu-me enternecidamente:
--Bem haja por essas palavras de bondade, que são talvez as ultimas
benevolas que eu tenho de ouvir n'este mundo. Quando souber--porque tem de
se saber isto, meu Deus!--o que, desde esta horrorosa noite eu fico sendo
perante a justiça e perante a sociedade, diga á sua mãe, á sua irmã, á sua
amante, se tem amante, que me não odeiem ellas, ao menos! que eu sou menos
criminosa do que lhes hei de parecer, que lhe confessei isto, ao
despedir-me de si, entre a vida e a morte. Adeus!... Não lhe dou a mão...
Sou indigna da amisade das pessoas de bem. O mais que eu posso pedir, eu,
é piedade... Tenha piedade de mim... Adeus!
A carruagem tinha rodado a distancia de alguns passos quando parou outra
vez a um gesto da condessa; ella mesma abriu a portinhola, desceu e
dirigiu-se a mim. Fui ao seu encontro.
--Quero fallar-lhe ainda, disse ella.
E depois de uma pequena pausa, em que parecia coordenar idéas dispersas,
accrescentou:
--Foi talvez providencial o nosso encontro aqui, a esta hora, n'esta
rua... É talvez a unica pessoa que Deus quer permittir que me proteja, que
seja por mim. Tenho um parente a quem vou escrever immediatamente
entregando-lhe este segredo. Receio que elle se não ache em Lisboa. Sendo
assim, não sei de quem me confie. Se tiver no seu coração tanta
misericordia e tanta bondade que queira valer-me, procure-me em minha
casa, ámanhã, ás 11 horas.
E dando-me a sua morada em Lisboa, entrou outra vez no trem que partiu.
Singular commoção a que produziu em mim essa mulher de quem acabava de
saber que tinha commetido um crime; sentia-me inclinado a ajoelhar-me aos
seus pés dilacerados e adoral-a!

IV

No dia seguinte á hora assignada apresentei-me em casa da condessa.
Era um predio de um só andar, simples, branco, todo fechado. Abriu-se-me a
porta da rua, appareceu-me um criado vestido de casaca azul com botões
brancos, collete encarnado, calção curto. Era um homem velho, de cabellos
brancos, polido e nedio como um embaixador, serio como uma estatua,
penteado como um gentleman. Fallou-me em francez e conduziu-me.
As escadas eram pintadas e envernizadas de branco, luzidias como o peito
engommado de uma camisa. Ao meio dos degraus corria um tapete de veludo
passado em varetas de cobre reluzente. No patamar projectava-se da parede
uma concha de alabastro, cheia de plantas de longas folhas, em cima das
quaes gotejava a agua de uma pequena fonte. No alto da escada a mobilia
era branca, as paredes forradas de verde, cobertas de molduras doiradas
encerrando quadros a oleo. A luz, suave e alta, vinha atravez de vidros
baços. Havia o ar sereno e o perfumado silencio de uma tranquillidade
elegante e feliz. Não me parecia o palacio de um fidalgo, nem o palacete
de um burguez, mas sim o ninho domestico de um poeta ou de um artista.
Levantou-se um reposteiro e entrei em uma sala forrada de coiro,
circumdada de sophás e de poltronas com estofos de marroquim cravejado de
aço, grandes vasos de porcelana e alguns bronzes, um dos quaes
representava o busto da condessa, assignado e datado de Milão. Um dos
espessos reposteiros que cobriam as portas estava corrido e deixava ver,
no meio da casa proxima, que era um salão antigo, um piano de ebano
volumoso e longo em cujo flanco se lia em grandes caracteres de prata o
nome de Erard. Junto do piano, inclinado sobre um _fauteuil_, achava-se um
violoncello defronte de uma estante de marfim. Sobre as chaminés de
marmore havia alguns livros e vasos com flores. Os moveis estavam
dispostos de maneira que parecia conversarem baixinho em coisas delicadas
e intimas. Sentia-se que estava ali, domiciliada n'um aconchego feliz, uma
existencia espirituosa e contente: percebia-se no ar e no aspecto das
coisas, o vago prestigio do perfume, da harmonia, do calor, que as pessoas
que ahi tivessem estado haviam derramado em volta de si, conversando,
lendo, fazendo musica. Eu tinha levantado os olhos de um livro sobre a
mesa do centro da sala, quando vi defronte de mim, ao fundo de um grande
espelho, uma figura immovel, tectrica, espectral. Voltei-me rapidamente, e
não pude reprimir um grito de pasmo e de terror. Era a condessa.
Horrivel transformação por que ella passára! Durante as poucas horas que
haviam mediado entre esse momento e a ultima vez que a vira, a condessa de
W... tinha envelhecido dez annos. Os olhos profundamente encovados haviam
tomado uma expressão apagada e immovel; a carne tinha uma côr terrea e
opaca; os musculos faciaes, contrahidos na mais violenta oppressão,
davam-lhe ao rosto, transversalmente vincado por dois sulcos escuros, o
aspecto de uma magreza extrema; os cabellos apanhados todos para traz,
alizados e seguros n'um rolo sobre a nuca, avultavam-lhe o nariz afilado e
despegavam-lhe do craneo as orelhas lividas, de uma saliencia rija e
cadaverica.
Fez-me signal que a acompanhasse. Segui-a com a sensação enregelada de
quem entra nos dominios da morte. Atravessámos uma sala e entrámos em um
dos quartos d'ella. Apontou para um sophá e sentou-se ao meu lado, olhando
para mim, impassivel.
Ficou assim por um momento na mudez de uma dôr intraduzivel, pausa
terrivel em que a alma emerge de um abysmo de lagrimas e se debate
violentamente antes de apparecer na voz. Tinha os labios entre-abertos
como os de quem vae soltar um grito, e o queixo tremulo oscillava-lhe como
o das creanças subjugadas pelo terror no instante de lhes rebentar o
pranto. Por fim disse-me lentamente, com palavras pesadas, firmes,
entrecortadas, como se estivesse retalhando o coração e dando-m'o em
bocados!
--Peço-lhe que não me condemne pelas primeiras palavras que vae ouvir.
E, em voz baixa, depois de um breve silencio, accrescentou:
--Eu matei um homem.
--Que diz?! gritei eu estupefacto. Está louca! enlouquceu!
--Não. Não estou louca, tornou ella grave e serenamente. Não enlouqueci
ainda. E admiro isto. Como têem decorrido estas horas, minuto por minuto,
segundo por segundo, sem que a minha razão succumbisse n'esta desgraça
infinita, sem remedio, sem termo, sem remissão! Matei um homem...
Involuntariamente, sim, mas matei-o. Quero entregar-me aos tribunaes,
estou prompta, estou deliberada. Estendendo os olhos ao meu futuro, não
vejo senão uma esperança, senão um lenitivo unico no prazer de morrer em
tormentos, que eu abençoarei como os maiores beneficios do ceu, de morrer
de fome, de desprezo, de miseria, prostrada no fundo de uma enxovia, no
porão de um navio, ou abandonada em uma praia da Africa, abrazada pelo
sol, sobre as areias ardentes, roida pelo cancro, devorada pela sede e
pela febre. Por mim uma só cousa temo: a loucura que um momento em minha
vida me consinta a alegria horrivel de cuidar que ainda sou amada e feliz;
ou a morte repentina que me arrebate a consolação unica que Deus concede
aos grandes culpados: a liberdade de soffrer. Mas elle... O seu nome
descoberto! o seu cadaver profanado! o seu segredo trahido!...
E fallando, como n'um sonho, abstractamente:
--Desventurado homem! que fatal destino o encaminhou para mim
arremessando-o, de encontro ao meu coração, em que estava a sua morte?
Porque não amou outras mulheres que o mereciam mais do que eu? Porque não
se deixou amar por Carmen Puebla, que o adorava e que morreu por elle? Que
cego, que imprudente, que desgraçado que foi!...
E escondendo a face nas mãos, desatou a chorar n'um pranto convulso e
desfeito, em que a vida parecia despedaçar-lhe o seio e jorrar para fóra
em borbotões de lagrimas e de soluços.
--Vamos,--disse-lhe eu quando esta crise abrandou,--serenemos um momento,
e pensemos no que importa fazer. É então positivo que o conde está morto?
--O conde?... interrogou ella, erguendo-se de subito e enxugando os olhos.
Sim, tem rasão, eu ainda lhe não disse tudo... O homem que eu matei não é
meu marido.
E, postando-se defronte de mim, fitou-me com um olhar hallucinado, e
accrescentou com voz demudada e profunda:
--É o meu amante.
Em seguida ficou immovel, esperando as minhas palavras na postura de um
reu que vae escutar a sentença da bôca de um juiz.
A sensação que experimentei ao ouvir essa confissão breve, sêcca,
inesperada, foi a da surpreza primeiro, de uma instinctiva repulsão
depois. Ergui-me machinalmente e dei alguns passos na casa. A condessa
permanecia na mesma posição, n'uma insensibilidade que tanto podia ser a
prostração do arrependimento como o cynismo da culpa. Eu estava
surprehendido e revoltado. Aquella mimosa e pura estatua, á qual eu
levantára quasi um altar no meu coração, assim repentinamente baqueada
n'um lamaçal, causava-me horror. Poderia supportal-a criminosa; não podia
consideral-a prostituida. Medi-a com um olhar em que senti dardejar o
despreso que ella n'esse momento me inspirava, e depois de um silencio
repassado de magoa:
--É horrivel isso!
Ella estremeceu, cerrou desfallecidamente os olhos e amparou-se vacillante
ao espaldar de uma cadeira.
--Extranha talvez a lastima e o horror que me causa? insisti eu. É
natural. Tendo ouvido que em Lisboa, a sociedade vê benevolamente essas
quedas como incidentes triviaes da existencia domestica. Eu porém que sou
um selvagem, eu que me criei no principio de que a fidelidade é no
caracter de uma mulher um dever tão sagrado como a honra no caracter de um
homem, eu protesto, em nome das unicas mulheres que a minha inexperiencia
me tem permittido conhecer no mundo--em nome d'aquella que me gerou e em
nome d'aquella que eu amo--contra similhante interpretação da liberdade de
amar. Não comprehendo que cáia em tal erro uma pessoa limpa. O adulterio é
uma indecencia e uma porcaria. Matar um homem em taes circumstancias, é
mais do que faltar ferozmente ao respeito devido á inviolabilidade da vida
humana; é faltar egualmente ao respeito da morte... É atirar um cadaver a
um cano de esgoto... É tragico--e coisa ainda mais horrivel--é sujo...
Ella escutava-me em silencio, extatica, como hypnotisada pela minha
instinctiva mas cruel grosseria.
De repente, sem uma exclamação, sem um grito, sem um gesto, caiu
desamparadamente no chão, fulminada, inerte, como se estivesse morta.
Quiz chamar alguem, ia a tocar no botão de uma campainha quando me
occorreu a inopportunidade de qualquer intervenção n'esta scena. Fui para
ella, que ficára estirada de costas sobre o tapete. Levantei-lhe a cabeça.
Não lhe senti o pulso. Ergui-a em peso, tomei-a nos meus braços. A fronte
d'ella pendeu sobre o meu hombro, ficando perto dos meus labios a sua face
desmaiada.
Approximei-me de um sophá. Depois, por um sentimento supersticioso de
respeito, colloquei-a n'uma cadeira de braços, e corri aos aposentos
contiguos áquelle em que estavamos. O quarto proximo era um gabinete de
vestir. Trouxe um frasco de agua de Colonia que estava n'um lavatorio.
Humedeci-lhe as fontes e os pulsos, fiz-lhe respirar o alcool.
Auscultei-a. O coração começava a bater. O pulso reapparecia.
Eu tinha-me ajoelhado junto da poltrona em que ella jazia e contemplava
melancholicamente a sua figura exanime.
Os olhos cerrados, a bocca entre-aberta deixando vêr os dentes miudos e
côr de perola, a cabeça reclinada ao espaldar, davam ao seu rosto, assim
em escorso, a expressão de uma figura d'anjo, ascendendo de um tumulo. Os
pés estreitos e finos, calçados em meias de seda e sapatos de setim preto
sobresaíam da orla do vestido n'uma immobilidade sepulchral. Uma das mãos,
atravez de cuja lividez se via a rede tenue e azul das veias, tendo no
dedo annular um circulo de grossos brilhantes entremeiados de rubis,
repousava-lhe no regaço, e do seu roupão de rendas pretas exhalava-se o
mesmo perfume, o perfume d'ella, que ficára na minha mão a primeira vez
que a vi.
Lembrei-me então da sua figura entrevista de noite, ao gaz de um candeeiro
da rua, tornada a vêr depois, á luz do dia, no Rocio, passando em
carruagem descoberta. E estas coisas, tão vivas na minha lembrança,
faziam-me todavia, a impressão de haverem passado ha muitos annos.
Ella estava velha!
Muitos dos seus cabellos, seccos, baços, como mortos, tinham embranquecido
nas fontes e no alto da cabeça.
A contracção violenta de todos os musculos da dôr transformara n'uma só
noite as suas feições e desfigurára a sua physionomia. Os cantos da bocca
tinham descaído ao peso das lagrimas como ao peso dos annos, e dois vincos
profundos sulcavam-lhe as faces flaccidas na mesma direcção obliqua que
tinham tomado os sobr'olhos, riscando-lhe a testa em rugas curvilineas e
transversaes.
Que medonha, que tenebrosa, que incomparavel angustia devia ter passado em
algumas horas por este desgraçado corpo para o devastar assim!
Na rua, a pequena distancia, um realejo tocava um _pot-pourri_ de varias
operas, e, ao som d'esse corrido martellar idiota da musica mecanica,
pareceu-me ver desfilar em louca debandada no ar, entre mim e a pobre
senhora, como n'uma especie de evocação ao mesmo tempo tragica e grotesca,
todos os grandes symbolos das educações sentimentaes, ladainha viva das
paixões elegantes, girando sob a manivella do seu realejo, n'um redemoinho
funebre, de dança dos mortos, em torno d'esse corpo desfallecido, como as
visões da vida passada, figuradas nos velhos retabulos, em torno do leito
das monjas moribundas.
Era como se, no decorrer d'essa musica, automatica como um andar de
somnambulo, eu visse perpassar no espaço a grande ronda das tentações que
na vida levaram comsigo o destino d'esta creatura: os pallidos Manriques e
os febris Manfredos, trazendo sob a capa das poeticas aventuras a bravura
cavalleirosa de campeador Ruy de Bivar ou do paladino Rolando, a
melancolia de Hamlet, a exaltação sentimental de Werther, a revolta do
Fausto, a sociedade de D. Juan, o tedio de Childe Harold; e toda a legião
dramatica das bellas mulheres amadas: Francesca, Margarida, Julietta,
Ophelia, Virginia e Manon.
E, em grinalda de beijos seccos, de beijos de pau, matraqueados no
instrumento da rua, todas essas figuras d'amorosas legendas bailavam
mysteriosamente ao som da _Traviata_, da _Lucia_, do _Balle in maschera_.
--_Amor! amor! amor!_--tal foi de certo a letra da grande aria que
constantemente lhe cantaram atravez de toda a sua existencia de mulher
bella, instruida e rica.
Foi n'esse mundo moral que a sua imaginação habitou e que se fez o seu
pobre espirito de linda creatura ociosa e desejada.
Como poderia ella adivinhar a honesta serenidade dos destinos simples no
meio de uma existencia tão complicadamente artificial como a sua?
Fóra dos interesses da elegancia, da moda, talvez da arte, que conhecia
ella de serio e de grave na vida senão a religião e o amor? Tinha um
missal e um marido. É pouco para o equilibrio de uma alma, principalmente
desde que o missal cessa de convencer e o marido cessa d'amar.
As que tem um salão, uma carroagem, um camarote na opera, um cofre cheio
de joias, um quarto cheio de vestidos, não pódem ser as singelas mulheres
que passam a vida a dar de mamar aos filhos e a vender cerveja, como diz o
Iago, de Shakespeare; nem podem resumir o seu destino facil em ter filhos,
chorar e fiar na roca, como diz Sancho Pansa. Esta não vendia cerveja, não
a ensinaram a fiar... Chorou apenas.
Quem sabe se na sua dourada existencia a amargura das lagrimas a não
compensou hoje de tudo quanto ignora da amargura da vida!
E tive uma paixão sincera com um remorso profundo das palavras crueis que
lhe dissera.
Que poderia eu fazer para a salvar? Não o sabia. Achava-me porém resolvido
a tudo, a sacrificar-me inteiramente, para lhe valer.
Devo dizer tambem que, vendo-a, ouvindo-a, eu não suppuz nem por um
momento que no homicidio de que ella se accusava podesse haver o que se
chama verdadeiramente um crime, isto é, uma intenção infame ou perversa.
Um criminoso, um cobarde, um assassino, nem chora assim, nem falla assim,
nem se denuncia, nem se inculpa, nem se entrega por esta fórma a uma
pessoa quasi extranha, quasi desconhecida. Ella tinha-m'o dito com a mesma
simplicidade com que o gritaria da janella para a rua, sem a minima
preoccupação de se salvar. Cheguei a pensar por um momento que não tinha
deante de mim senão uma extranha nevrose, um caso de hallucinação, de
delirio raciocinado. Mas o delirio não faz padecer tanto. Tenho visto
muitos loucos no hospital. A expressão d'elles, ainda a mais dolorida, não
apresenta nunca a profundidade d'esta. É preciso ter toda a integridade da
sensibilidade e da rasão para soffrer assim. No padeccimento dos loucos ha
um não sei quê, sem nome talvez na symptomatologia do soffrimento, mas a
que poderiamos chammar--a isolação da alma.
Ao voltar a si, a condessa parecia um pouco mais calma. Para evitar um
recrudescimento de excitação proveniente de uma longa narrativa de
episodios que me pareceu discreto evitar, um pouco como estudante de
medicina, principalmente como homem honrado, disse-lhe:
--Sabe mais alguem d'este caso?
--Sabe-o a minha creada de quarto, a que me acompanhava hontem quando nos
viu, e sabel-o-ha dentro em pouco meu primo H... a quem hoje escrevi. Meu
primo porém está em Cascaes. O morto é um extrangeiro. Ninguem, a não ser
meu primo, o conhece em Lisboa. Ignorava-se mesmo que elle existisse aqui.
Entregal-o aos tramites policiaes, ter de revelar o seu nome, descobrir a
sua naturalidade, a sua familia, eis o que principalmente eu queria
evitar. Conseguido isto, entrego-me aos tribunaes, mato-me, fujo,
enterro-me viva... como quiserem!
--E sabe seu primo como elle morreu?
--Não. Vai saber apenas que está morto...
--Póde contar com o silencio da sua creada, por alguns dias ao menos?
--Posso. Por toda a vida.
--Evite, se póde, que seu primo receba hoje a sua carta. E... _elle_, onde
está?
--Na mesma rua em que nos encontrámos hontem, no predio n.^o...
--Para entrar na casa...
--Ha uma chave--respondeu ella.
E tendo meditado um momento:
--Hontem--prosseguiu--quando lhe disse que viesse hoje a minha casa,
estava louca de desesperação e de horror. Parecia-me que tudo quanto se
approximava de mim me trazia a punição, o castigo, e que tudo quanto se
affastava fugia para longe com o meu ultimo amparo, com o derradeiro
soccorro que eu ainda poderia ter n'este mundo!... Foi n'este delirio que
lhe pedi a V..., um extranho, um desconhecido, que viesse vêr-me... Para
quê?.. nem eu sabia para quê... Para contar isto a alguem, para me
decidir, para ter uma solução, para apressar um desenlace qualquer, para
fugir de mim mesma... Ir á policia era entregar esse infeliz á mais
horrorosa das profanações. Dirigir-me a alguma das senhoras que conheço,
ir bater á porta de uma familia tranquilla, que me receberia na casa de
jantar ao levantar da mesa, que me apertaria as mãos, que me traria os
seus filhos para eu beijar, e depois dizer-lhes de repente: Eu, que aqui
estou, tinha um amante, e matei-o; venho convidal-os para esta festa de
vergonha e de ignominia!... Não. Era melhor fugir para o desconhecido,
entregar-me ao acaso... Em tudo isto pensei confusamente, não sei como,
sem continuidade, sem nexo, aos pedaços, depois que o vi, durante esta
noite medonha. Não tenho hoje mais lucidez de espirito do que tinha
hontem... Não sei o que hei de fazer... Sinto apenas que estou perdida,
que é preciso que alguem venha, que é preciso que me levem... O senhor
parece-me um homem generoso, leal, compadecido e bom... Sabe já o que me
succedeu, sabe onde _elle_ está. Disse-lhe qual era a casa, disse-lhe o
numero da porta. Aqui tem a chave.
E tirando do seio uma corrente de ferro, de elos angulosos como de um
cilicio, que trazia suspensa do pescoço por dentro do roupão, abriu uma
argola que lhe servia de remate, soltou uma pequena chave, e entregou-m'a.
Deixou-se cahir n'um _fauteuil_, inclinou a cabeça para traz e ficou
prostrada, silenciosa, no abatimento, no abandono, no entorpecimento
profundo que d'ordinario se succede ás grandes crises nevralgicas.
Sem saber o que fizesse, pensando todavia que uma ideia qualquer me
occorreria mais tarde como desfecho possivel para esta situação tão
imprevista, tão extraordinaria, guardei a chave. Senti que me era preciso,
primeiro que tudo, sahir d'alli, retomar o ar livre, achar-me a sós
commigo mesmo, reflectir, raciocinar.
--Minha senhora--disse-lhe então--se amanhã, até ao meio dia, eu lhe não
tiver reenviado esta chave, será signal que me prenderam, que está tudo
perdido. Se não souber mais de mim, quero dizer, se lhe não fôr restituida
esta chave, fuja, esconda-se, faça como quizer. Interrogada, negue tudo.
Eu preferirei mil vezes acceitar a responsabilidade d'esta morte a
imputar-lh'a, e, por caso algum do mundo, será jámais o seu nome proferido
por mim. D'aqui até lá, para coordenar as suas ideias, para equilibrar a
sua razão, para não enlouquecer, se quer um conselho de physiologista,
violente-se um pouco, abra uma janella, sente-se deante de um caderno de
papel e escreva o que se passou. Depois queime o que escrever. O unico
meio de dominar uma situação como a sua, o unico meio de verdadeiramente a
comprehender, é analysal-a. Houve um philosofo que deixou aos infelizes
esta maxima: «Se a tua dôr te afflige, faze d'ella um poema.» Vá escrever.
Faça as suas memorias ou faça o seu testamento, mas escreva, e queime
depois. Agora, adeus. Adeus até amanhã, ou quando não, adeus para sempre.
Ella conservava sempre a attitude extatica em que cahira na cadeira de
braços. Tinha a bocca entre-aberta, o labio inferior tremia-lhe, com esse
tocante gesto infantil que toma a desolação no rosto das mulheres, e
grossas lagrimas silenciosas, corriam-lhe em fio pelas faces e gotejavam
lentamente nas rendas do vestido. Fez um movimento para se erguer,
procurando articular uma palavra d'agradecimento. Profundamente
enternecido, dei um passo para traz, inclinei-me com respeito, e sahi.

V

Tendo fechado a porta do aposento em que ella ficára, ao passar na sala em
que primeiro estivera, occorreu-me de repente uma ideia. Sobre uma das
mezas achavam-se dois grandes albuns. Folheei-os rapidamente. Um d'elles
encerrava apenas uma serie de apontamentos de viagem tomados por uma só
pessoa, segundo se via da uniformidade da letra a lapis e em portuguez.
Entre os apontamentos escriptos estavam collados ou pregados nas paginas
alguns especimens de plantas e de flôres, e viam-se delineados varios
esboços de construcções e de fragmentos architectonicos. Era um album de
estudos. O outro continha uma collecção de pensamentos, de maximas, de
versos, de desenhos, de aquarellas, firmados por muitos nomes diversos. Eu
devorava com os olhos o conteúdo de cada lauda.
Não ousára perguntar á condessa o nome do seu amante. Comprehendia que a
bocca d'ella nunca mais poderia pronuncial-o, e não obstante, eu precisava
de sabel-o, de ver letra d'elle. Estava certo de que esse nome
desconhecido figuraria indubitavelmente entre os que eu estava lendo, que
a letra desejada se encontraria no meio dos escriptos que me estavam
passando pelos olhos. Como poderia porém adivinhal-o, sem tempo, sem
vagar, sem o socego de espirito necessario para meditar a intenção de cada
uma das phrases que ia lendo?... Era-me forçoso abandonar este recurso, e
o album que tinha nas mãos era todavia, talvez, o unico meio que me
restava de poder descobrir o que desejava! Hesitei um momento, e sahi por
fim, levando o livro comigo.
Apenas me achei na rua tomei um trem, que dirigi para minha casa,
acantoei-me na carroagem e puz-me a ler successivamente cada um dos
trechos em verso e em prosa, de que se compunha a collecção.
Sabia pela condessa que o morto era estrangeiro. Esta informação era
insufficiente para que eu o distinguisse n'aquella torre de Babel. De
pagina para pagina ia-me surprehendendo uma nova lingua. Havia francez,
italiano, allemão, inglez, hispanhol... O nome de Ernesto Renan apparecia
sobposto a duas palavras chaldaicas; Garcin de Tassy, orientalista na
You have read 1 text from Portuguese literature.
Next - O Mysterio da Estrada de Cintra. Cartas ao Diário de Noticias - 12
  • Parts
  • O Mysterio da Estrada de Cintra. Cartas ao Diário de Noticias - 01
    Total number of words is 4594
    Total number of unique words is 1728
    34.3 of words are in the 2000 most common words
    48.9 of words are in the 5000 most common words
    55.6 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • O Mysterio da Estrada de Cintra. Cartas ao Diário de Noticias - 02
    Total number of words is 4394
    Total number of unique words is 1578
    34.6 of words are in the 2000 most common words
    51.6 of words are in the 5000 most common words
    60.3 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • O Mysterio da Estrada de Cintra. Cartas ao Diário de Noticias - 03
    Total number of words is 4528
    Total number of unique words is 1667
    35.5 of words are in the 2000 most common words
    51.2 of words are in the 5000 most common words
    59.2 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • O Mysterio da Estrada de Cintra. Cartas ao Diário de Noticias - 04
    Total number of words is 4663
    Total number of unique words is 1823
    33.9 of words are in the 2000 most common words
    48.8 of words are in the 5000 most common words
    56.7 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • O Mysterio da Estrada de Cintra. Cartas ao Diário de Noticias - 05
    Total number of words is 4550
    Total number of unique words is 1703
    35.6 of words are in the 2000 most common words
    51.9 of words are in the 5000 most common words
    59.5 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • O Mysterio da Estrada de Cintra. Cartas ao Diário de Noticias - 06
    Total number of words is 4466
    Total number of unique words is 1723
    34.7 of words are in the 2000 most common words
    49.6 of words are in the 5000 most common words
    57.6 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • O Mysterio da Estrada de Cintra. Cartas ao Diário de Noticias - 07
    Total number of words is 4358
    Total number of unique words is 1735
    31.9 of words are in the 2000 most common words
    45.8 of words are in the 5000 most common words
    54.1 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • O Mysterio da Estrada de Cintra. Cartas ao Diário de Noticias - 08
    Total number of words is 4451
    Total number of unique words is 1669
    34.8 of words are in the 2000 most common words
    50.2 of words are in the 5000 most common words
    58.4 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • O Mysterio da Estrada de Cintra. Cartas ao Diário de Noticias - 09
    Total number of words is 4539
    Total number of unique words is 1689
    35.3 of words are in the 2000 most common words
    50.4 of words are in the 5000 most common words
    59.2 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • O Mysterio da Estrada de Cintra. Cartas ao Diário de Noticias - 10
    Total number of words is 4560
    Total number of unique words is 1847
    34.5 of words are in the 2000 most common words
    50.6 of words are in the 5000 most common words
    58.3 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • O Mysterio da Estrada de Cintra. Cartas ao Diário de Noticias - 11
    Total number of words is 4620
    Total number of unique words is 1785
    34.9 of words are in the 2000 most common words
    50.2 of words are in the 5000 most common words
    57.9 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • O Mysterio da Estrada de Cintra. Cartas ao Diário de Noticias - 12
    Total number of words is 4610
    Total number of unique words is 1807
    35.7 of words are in the 2000 most common words
    51.5 of words are in the 5000 most common words
    59.4 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • O Mysterio da Estrada de Cintra. Cartas ao Diário de Noticias - 13
    Total number of words is 4539
    Total number of unique words is 1762
    38.2 of words are in the 2000 most common words
    53.2 of words are in the 5000 most common words
    59.4 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • O Mysterio da Estrada de Cintra. Cartas ao Diário de Noticias - 14
    Total number of words is 4502
    Total number of unique words is 1705
    36.2 of words are in the 2000 most common words
    51.2 of words are in the 5000 most common words
    59.3 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • O Mysterio da Estrada de Cintra. Cartas ao Diário de Noticias - 15
    Total number of words is 2425
    Total number of unique words is 1122
    39.3 of words are in the 2000 most common words
    54.8 of words are in the 5000 most common words
    61.9 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.