O Mysterio da Estrada de Cintra. Cartas ao Diário de Noticias - 12

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Sorbonne, firmava um periodo em lingua hindustanica; Abd-el-Kader tinha
deixado simplesmente o seu nome arabe; a princesa Dora Distria assignava
de Turim um pequeno texto albanez. Nomes portuguezes, apenas dois.
A leitura dos textos não me adiantava mais do que a simples inspecção da
variedade dos nomes e da differença de linguas.
Ao chegar a casa, vi que o numero que a condessa me indicara era o de um
predio de um só andar, pobre de apparencia, quasi fronteiro á casa que eu
habitava, perto de uma esquina, collocado ao lado de um predio mais
saliente, e tendo a porta n'um angulo reintrante que a escondia da parte
principal da rua. Para o lado opposto até á esquina proxima havia uns
armazens deshabitados. Defronte corria um velho muro, ao alto do qual
sobresaiam as ramas seccas de um canavial. A situação topographica da casa
onde estava o morto permittia-me pois entrar e sair d'ella sem ser visto.
Ali dentro haveria talvez um papel, uma carta, uma nota, que me revelasse
o nome que desejava conhecer.
Dei a volta á chave e entrei. No alto da escada, junto de uma porta
cerrada, estava caida uma luva e dois bocados de papel. Um era meia folha
pequena, lisa, em branco. O outro era um pedaço de _enveloppe_; tinha no
alto um carimbo do correio de Lisboa com a data do dia anterior; a um
canto havia inutilizada uma estampilha franceza; no subscripto lia-se:
_Mr. W. Rytmel_.
Este nome achava-se no album da condessa por baixo de dois versos
inglezes.
A luva, que levantei do chão, era de mão de homem, e de pellica branca com
cordões pretos. Por dentro tinha em letras azues a marca de um luveiro de
Londres. Era evidente que tinha achado o que procurava. Rytmel era o nome
do morto.
Abri em seguida a porta que tinha em frente de mim e estremeci de horror.
Estendido n'um sophá estava o cadaver. A expressão do seu rosto inculcava
um socego feliz. Parecia dormir. Apalpei-o; estava frio como marmore.
Collocado perto d'elle estava um copo com um pouco de liquido. Era opio.
Percorri o aposento com um relance d'olhos. No forro de setim preto do
chapeu, que estava caído no chão, vi bordadas em vermelho uma corôa de
barão e duas grandes lettras--um W. e um R.
Não podia perder tempo. Fui para casa, sentei-me pacientemente á minha
banca e abri o album defronte de mim na pagina em que estavam os versos
assignados por W. Rytmel.
É de saber que tenho aquella especie de habilidade que Alexandre Dumas
considera aviltante e vilipendiosa para a intelligencia: sou, como terá
visto pela letra d'estas cartas, um excellente calligrapho. Copiei
escrupulosamente, desenhando letra a letra, por trinta ou quarenta vezes
consecutivas, os dois versos que tinha patentes. Depois principiei a
construir, com letras da mesma fórma das que tinha copiado, outras
palavras differentes. Finalmente, depois de muito estudo e de muitos
ensaios, peguei na meia folha de papel que tinha encontrado na casa em que
se dera a catastrophe, e fiz em inglez com escripta que ninguem no mundo
duvidaria ser a da pessoa que escreveu no album os versos assignados pelo
nome de Rytmel, uma declaração pessoal do suicidio por meio do opio.
D'este modo, quer mais tarde me occorresse, quer não, o meio mais
conveniente de sepultar o cadaver, as suspeitas de homicidio
desappareciam.
A condessa estava salva desde que, antes de mais ninguem, eu entrasse na
casa e collocasse junto do corpo o bilhete que escrevera.
Mas eu ficava sendo um _falsario_. Repeti a mim mesmo esta palavra
sinistra e estremeci de horror. Era preciso achar outro meio, que eu
procurava debalde. E no entanto o tempo corria. Veio a noite. Lembrei-me
que o primo da condessa poderia vir de Cascaes prevenido por ella, e
cheguei a sahir de casa com pregos e um martello para encravar a fechadura
da porta e retardar a entrada no predio onde se achava o morto.
Occorreram-me mil idéas phantasticas, cada qual mais absurda. Passeei por
muito longe, a pé, meditando, inquieto, nervoso, congestionado, estafado,
devorado de febre, palpando no fundo do bolso o bilhete terrivel com que
poderia desviar a responsabilidade da cabeça de um criminoso, tomando
todavia para mim uma parte egual no seu remorso.
Finalmente, por volta da meia noite, sem bem saber porquê, nem para quê,
levado por uma attracção terrivel, atraz de uma suprema inspiração,
cingi-me com o muro, abri a porta, penetrei na casa. Então me encontrei
inesperadamente com o doutor e com a pessoa conhecida no decurso d'esta
historia pelo nome de _mascarado alto_.
O primo da condessa, tendo chegado de Cascaes ao meio dia, acompanhado de
dois amigos intimos, inquieto pelo desapparecimento de Rytmel, que era seu
hospede e vivia como homiziado em casa d'elle em Lisboa, foi ao predio
mysterioso de que possuia uma chave e que sabia ser frequentado
regularmente pelo inglez, e encontrou ahi o cadaver. Conhecendo as
relações de Rytmel com a condessa, ponderando quanto havia de delicado na
necessidade de manter o maior sigillo em volta d'aquella catastrophe, e
julgando por outro lado indispensavel que o testemunho de um medico
constatasse a morte, que poderia ser apenas apparente, planeou e realisou
a emboscada em que surprehendeu o doutor ***, que elle sabia casualmente
que passaria n'essa tarde pela estrada de Cintra.
Sabem o que se passou n'essa noite.

VI

No dia seguinte ás onze horas da manhã, todos nós, os que haviamos ficado
n'essa casa fatal, nos achavamos reunidos, de rosto descoberto, em torno
do cadaver.
O doutor havia sido conduzido ao ponto da estrada de Cintra, em que fôra
tomado na vespera.
F..., encarcerado durante a noite em um quarto interior da casa, havia
communicado com um allemão que habitava o predio contiguo, e passára-lhe
de manhã por um buraco feito no tabique, a carta ao doutor, publicada mais
tarde no _Diario de Noticias_. Em seguida arrombou a porta do quarto que
lhe servia de carcere, e depois de uma altercação violenta, arrancou a
mascara ao primo da viscondessa. Os outros dois mascarados, vendo o seu
companheiro descoberto, tiraram egualmente as mascaras. Um d'elles era
intimo amigo de F...
--Que é isto?... Como póde isto ser?... gritou F... exaltado.
E apontando em seguida para o cadaver, continuou:
--Aquelle homem está morto, e foi roubado. Depressa expliquem-se! como
póde isto ser?
--Meus senhores,--exclamou o _mascarado alto_--o segredo que eu tenho tido
em meu dever guardar dentro dos muros d'esta casa, e que espero fique para
sempre sepultado n'ella, pertence a uma senhora. Uma parte d'este segredo,
aquella que mais particularmente nos interessa, a que explica a presença
d'aquelle cadaver diante de nós, conhece-a este senhor.
E voltando-se para mim ao dizer estas palavras, accrescentou:
--Em nome da nossa dignidade, emprazo-o pela sua honra a que declare o que
sabe.
--Jurei não o dizer--respondi eu--não o direi nunca. Ao entrar aqui, em
presença de um perigo que julguei imminente sobre a cabeça das pessoas
mais particularmente envolvidas n'este mysterio, perdi os sentidos,
desmaiei mulheril e miseravelmente. Falta-me diante do perigo a energia
physica, que é a feição visivel do valor. Não imaginem por isso que tambem
careço de força moral precisa para guardar um segredo, á custa que seja da
minha propria vida! Interrogado por gente mascarada, que não conhecia,
era-me licito mentir, pôr tambem na resposta uma mascara. Diante de gente
de bem, que me interroga invocando a sua honra, o meu dever é calar-me.
Previno-os de que são absolutamente inuteis todas as tentativas que
fizerem para me obrigarem a outra coisa.
--Não é difficil de cumprir o seu dever! observou com ironia o mascarado
alto. O corpo d'aquelle desgraçado não póde ficar ali por mais tempo. É
urgente que tomemos uma deliberação decisiva e que salvemos a
responsabilidade que pesa sobre nós, de modo tal que fique para sempre
tranquilla a consciencia que nos dictar o conselho que houvermos de
seguir. Visto que este senhor se recusa a principiar, começarei eu.
E traçou sobre uma folha de papel as seguintes linhas, que ia pronunciando
ao mesmo tempo que as escrevia:
«_Minha prima._
«Na rua de... n.^o... acham-se n'este momento reunidos diante de um
cadaver os seguintes homens: (seguiam-se os nossos nomes). É um tribunal
supremo constituido pelo acaso e que vae julgar em derradeira e unica
instancia o crime sujeito pela fatalidade á nossa jurisdicção. Se em
presença d'este tribunal a minha prima tiver que depôr, peço-lhe que o
faça.»
--Perdão...--observei eu.--Peço licença para accrescentar uma linha:
«A. M. C. não devolve a chave.»
* * * * *
Elle escreveu o que dictei, assignou, dobrou o papel, e disse a um dos
seus amigos:
--Vae já entregar este escripto á condessa de W...
Meia hora depois uma carruagem que percorrera a rua a galope parou á porta
do predio em que estavamos. Rolámos para dentro da alcova o sofá em que se
achava o cadaver, e cerrámos o reposteiro da sala. Abriu-se a porta, e a
condessa entrou.
Seguira o alvitre que lhe propus. As vinte e quatro horas decorridas desde
que eu a deixára até ao momento de partir para ali, tinha-as empregado em
escrever com uma eloquencia apaixonada e febril a historia da sua
desgraça. O caderno que lhe remetto encerra, senhor redactor, a copia da
longa carta dirigida por ella a seu primo. Cedo o logar que estava
occupando nas columnas do seu periodico á publicação d'este documento, que
verdadeiramente se poderia chamar _O auto de autópsia de um adultério_.
Depois direi o destino que démos ao cadaver, e o fim que teve a condessa.


+A Confissão d'ella+

I

Parece-me ás vezes que tudo isto se passou n'uma vida distante como um
romance escripto, que me causa saudades e dôr, ou uma velha confidencia de
que a minha alma se lembra. Mas de repente a realidade cae arrebatadamente
sobre mim, e creio que soffro mais então, por ter a consciencia de que não
devia nunca ter deixado de soffrer. Foi bom que me determinasse a esta
confissão. Contar uma dôr é consolal-a. Desde que me determinei a escrever
estas confidencias, ha no meu peito um alivio e como um movimento de dôres
crueis que desamparem os seus recantos.
O principio das minhas desgraças foi em Paris. Lá comecei a morrer.
Lembra-me o dia, a hora, a côr da relva, a côr do meu vestido. Foi no fim
do penultimo inverno, em maio. _Elle_ estava tambem em Paris. Viamo-nos
sempre. Ás vezes saíamos da cidade, iamos passar o dia a Fontainebleu,
Vincennes, Bougival, para o campo. A primavera era serena e tepida. Já
estavam floridos os lilazes. Levavamos um cabazinho da India com fructa,
n'um leito de folhas de alface. Riamos como noivos...
Havia tres mezes que estavamos em Paris: o conde--creio que o
disse--estava na Escossia com lord Grenley caçando a raposa nas tapadas do
principe de Beaufort.
Houve então um baile no _Hotel de Ville_, um d'esses bailes officiaes em
que uma multidão de praça publica se acotovella sob os lustres,
brutalmente. Tinha eu acabado de dançar uma walsa com um coronel
austriaco, quando a viscondessa de L..., que vivia então em Paris, veiu a
mim, toda risonha:
--Conheces este nome: _miss Shorn?_
--Não. Uma americana?
--Uma irlandeza. Uma maravilha, O prefeito dançou com ella; a condessa
Waleuska beijou-a na testa, Gustavo Doré prometteu-lhe um desenho. Vae ser
apresentada nas Tulherias. No fim, queres que te diga? Acho-a
insignificante. Bonitos cabellos, sim. Não se falla n'outra cousa! Mas tu
deves conhecel-a...
--Porque?
--Tem dançado com Captain Rytmel, parecem intimos. Tu ris?
--Eu?
--Não... tu riste!
--Nunca rio, senão quando quero chorar, minha querida!
--_Tiens, tiens!_--murmurou ella, olhando muito para mim.
E affastou-se. O meu pobre coração ficou em desordem. Ás vezes, na nossa
alma, toca-se de repente a rebate, e as desconfianças adormecidas,
acordam, tomam as suas armas, e fazem sobre nós um fogo cruel.
--Captain Rytmel approximara-se.
--Vem radiante, disse-lhe eu. Quem é miss Shorn?
Elle respondeu gravemente:
--É a amiga intima de minha irmã.
Fomos dançar. Era uma quadrilha. Pareceu-me triste.
Os movimentos da dança lembravam-me as cerimonias d'um culto. O meu ramo
ficou espalhado pelo chão. N'esse instante, sem saber porquê, detestei
Paris, o ruido, o imperio; desejei as sombras de Cintra, os retiros
melancolicos de Bellas, cheios dos murmurios da agua.
Quiz sair. N'uma das ultimas salas uma mulher alta, loira, tomava das mãos
d'um velho extremamente magro e distincto a sua _sortie de bal_.
Captain Rytmel, que me dava o braço, inclinou-se ao passar junto d'ella, e
fallando baixo para mim:
--Miss Shorn! disse elle.
Era realmente linda. Grandes cabellos loiros, fortes, luminosos; os olhos
largos, intelligentes, serios; um corpo perfeito.
N'essa noite chorei. No meu quarto as luzes e o fogão estavam accesos.
Entrei, fui ao espelho precipitadamente. Deixei cair dos hombros o
_burnous_. Ergui a cabeça, olhei a medo. A minha imagem apparecia ao fundo
do quadro n'um vapor luminoso. Achei-me feia. Olhei mais. Tinha os braços
nús, a cabeça erguida em plena luz. Lentamente a consciencia de que eu
estava linda assim, penetrou-me, encheu-me de alegria. É tão bom ser
linda!
D'ali a dois dias houve uma revista militar no campo de Longchamps.
Captain Rytmel acompanhou-me. Eu tinha um logar na tribuna do _Jockey_.
Havia uma enorme multidão. Estava a imperatriz, a córte, a diplomacia;--a
tribuna resplandecia de fardas, de joias, de plumas, de reflexos de seda.
As musicas, os clarins, o rufar altivo dos tambores, o surdo ruído dos
batalhões em marcha, o luzir das bayonetas, as vozes de commando, o
galopar dos cavallos, o brilho dos capacetes, o ceu resplandecente, como
um largo pavilhão azul, tudo fazia palpitar, dava extranhos sentimentos de
guerra e de gloria. E todo o corpo estremecia quando aquellas poderosas
massas passavam gritando:
--Viva o imperador!
Sou uma pobre mulher, mas estremecia tambem!
A infanteria tinha passado. Rytmel fôra fallar com miss Shorn, que estava
em companhia de lady Lyons. O barão Werther, embaixador da Prussia, ficara
collocado junto d'ella.
Ia passar a artilheria e a cavallaria. O imperador, com o seu estado
maior, tinha vindo collocar-se ao pé da tribuna do _Jockey_. Nós todos nos
inclinavamos para ver os generaes que o cercavam: Montauban, o que tomára
Pekim; Canrobert com os seus longos cabellos brancos; a espessa figura de
Besaine; o altivo perfil trigueiro de Mac-Mahon, que viera da Algeria...
Miss Shorn era tambem muito olhada na tribuna do _Jockey_. Dizia-se que a
imperatriz lhe tinha sorrido e que madame de Talouet lhe mandara, sem a
conhecer, um ramo de violetas do polo.
Mas os olhos começavam a voltar-se para o fundo da planicie, d'onde a
cavallaria devia partir, e corria um arrepio d'enthusiasmo perante um tão
grande poder militar. N'essa manhã fallava-se em certas reservas entre o
gabinete de Berlim e as Tulherias. Lembrava-se Sadowa, mil cousas que eu
não sei; e olhava-se muito para o barão Werther, que sorria com o seu
tumido sorriso prussiano.
No entanto, a cavallaria formara em linha. Os clarins tocavam, as
bandeiras desdobravam-se: e de repente aquella enorme massa despediu á
carga cerrada do fundo do campo, para a tribuna do _Jockey_.
Os capacetes, as couraças, as espadas, faiscavam ao sol. O chão tremia sob
o compasso do galope. Sentia-se já o tinir dos ferros. Distinguiam-se já
os coroneis, esbeltos moços condecorados. Ouvia-se o respirar offegante
dos cavallos. O imperador tinha-se descoberto, todos na tribuna estavam de
pé... De repente, por um movimento unico, toda aquella enorme columna
estacou firme, vibrante, immovel, reluzente, agitando as espadas, e
gritando:
--Hurrah! Viva o imperador!
A tribuna, de pé, respondeu:
--Hurrah!
Então, vendo uma tão admiravel cavallaria, uma tão grande força, tanto
prestigio imperial, e tomados do indomavel orgulho das tradições ou
possuidos da febre do sangue militar, muitos officiaes, que estavam nas
outras alas, adiantaram-se, e elevando as espadas, gritaram:
--A Berlim! a Berlim!
Por todo o campo se ouviam agora gritos exaltados:
--A Berlim! a Berlim!
E na tribuna algumas vozes clamavam tambem:
--Sim, sim, a Berlim!
O imperador então, erguendo-se nos estribos, estendeu a mão aberta como
impondo silencio, ou como dizendo: _Esperae!_
Áquele grito inesperado todo o estado maior se tinha apertado em torno do
imperador, e eu que estava nos primeiros bancos da tribuna, vi o marechal
Mac-Mahon deter subitamente o cavallo, voltar meio corpo rapidamente, e
com a mão apoiada no xairel escarlate bordado a ouro, que cobria a anca do
animal, erguer os olhos meio risonhos para o lado da tribuna em que estava
o embaixador da Prussia. Eu segui o olhar do marechal, olhei tambem, e
vi... como hei de dizel-o? Vi Rytmel. Vi-o junto de miss Shorn, curvado,
fallando-lhe, sorrindo-lhe, absorto, afogado na luz dos seus olhos. Ella
olhava-o, extremamente séria, com um longo olhar demorado e convencido, em
que eu vi todo o fim da minha vida!

II

D'hai a dez dias o conde chegou; partimos para Portugal. Durante esse
tempo que ainda estive com Rytmel em Paris, nem eu trahi as minhas
duvidas, nem elle mostrou preoccupações alheias aos interesses do nosso
amor.
Vim para Lisboa; recebia regularmente cartas d'elle. Estudava-as,
decompunha as phrases palavra por palavra para encontrar a occulta verdade
do sentimento que as creára. E terminava sempre--meu Deus!--por descobrir
uma serenidade gradual no seu modo de sentir. Rytmel escrevia-me com muito
espirito e com muita logica para poder pôr o coração no que escrevia.
Evidentemente o seu amor passava da paixão para o raciocinio. Criticava-o:
prova de que não estava dominado por elle. Tinha até já palavras
engenhosas e litterarias. Valia-se da rethorica! Ao mesmo tempo a sua
lettra tornava-se mais firme; já não eram aquellas linhas tortas,
convulsivas e arrebatadas que palpitavam, que me envolviam... Era um
infame cursivo inglez, pausado e correcto. Já me não escrevia como d'antes
em papel d'acaso, em folhas de carteira, em pedaços de cartas velhas, que
denotavam as inspirações do amor, os sobresaltos repentinos da paixão:
escrevia-me em papel Maquet, perfumado! Pobre querido, o que o seu coração
tinha de menos em amor tinha de mais o seu papel em _marechala!_
E eu? É talvez occasião de fallar aqui do meu sentimento. Duvidei fazel-o.
Não queria collocar o meu coração sobre esta pagina como n'uma banca de
anatomia. Mas pensei melhor. Eu já não sou _alguem_. Não existo, não tenho
individualidade. Não sou uma mulher viva, com nervos, com defeitos, com
pudor. Sou um _caso_, um _acontecimento_, uma especie de _exemplo_. Não
vivo da minha respiração, nem da circulação do meu sangue: vivo
abstractamente, da publicidade, dos commentarios de quem lê este jornal,
das discussões que as minhas maguas provocam. Não sou uma mulher, sou um
_romance_.

III

Não pense que digo isto com amargura. A maior alegria que eu posso ter é a
anniquilação da minha individualidade.
Por isso não tenho escrupulos. As almas extremamente desgraçadas são como
as creancinhas: devem mostrar-se nuas.
Além de tudo supponho que estas paginas podem ser uma revelação proveitosa
para aquellas que estejam nas illusões da paixão. Que me escutem pois!
São 11 horas da noite. N'este momento quantas sei eu que soffrem, que
esperam, que mentem, possuidas de um sentimento, que pouco mais lhes dá do
que a felicidade de serem desgraçadas! Tu, minha pobre J..., mulher de
discretos martyrios, a quem tantas vezes vi os olhos pisados das lagrimas!
tu pobre Th..., que tens passado a tua vida a tremer, a receiar, a
humilhar-te, a espreitar, e a fugir..., vós todas que estaes envolvidas
pelo elemento cruel da paixão, quasi fóra da vida, e em lucta com a
verdade humana, vós todas escutae-me!
Desde que amei, a minha vida foi um desequilibrio perpetuo. Não era
voluntariamente que eu cedia á attracção, era com uma repugnancia altiva.
Mil cousas choravam dentro em mim, soffria sobretudo o orgulho. Era
impossivel fazer com elle uma conciliação. Reagiu sempre, protesta ainda.
Parece vencido, resignado, mas de repente ergue-se dentro de mim,
esbofetea-me o coração.
O que eu soffri! o que eu córei! Córei diante da minha pobre Joanna, da
minha velha ama, um anjo cheio de rugas, que sabe sobretudo amar quando
tem de perdoar! Córava diante das minhas criadas. Julgava-me feliz quando
ellas me sorriam, tremia quando lhes via o aspecto serio. Dava-lhes
vestidos, ensinava-lhes penteados. Saíam ás vezes de tarde, recolhiam alta
noite; eu córava profundamente no meu coração, e sorria-lhes.
O olhar dos homens era-me insupportavel: parecia-me envolver uma affronta.
Imaginava que era publica a aventura do meu coração, que era julgada como
uma creatura de paixões faceis, o que dava a todos o direito de me fazerem
córar. Quantas vezes sahi do theatro afogada em lagrimas! Analysava os
gestos, os olhares, os movimentos dos labios. «Fulana olhou-me com desdem!
Aquelle riu-se insolentemente, quando eu passei! Aquell'outra affectou não
me ver.» Se n'uma modista, ao escolher um vestido, me diziam: «Esta côr é
alegre, é bonita!» eu pensava commigo: «Bem sei, aconselham-me as côres
vivas, ruidosas, as côres do escandalo, o género _artiste!_» E saía,
fechava os _stores_ do meu _coupé_, chorava desafogadamente.
Não me atrevia a beijar uma creança; olhava-a com uma ternura ineffavel,
ia a tomal-a nos braços, mas dizia commigo: «Deixa esse pobre anjinho, não
és bastante pura para lhe tocar!»
Devo dizer tudo. Córava diante do meu cocheiro! Sorria-lhe com o maior
carinho: temia a todo o momento uma má resposta, uma audacia, uma palavra
accusadora. Quando eu entrava para a carruagem, e elle se erguia
respeitosamente, eu ficava tão satisfeita d'aquella prova de attenção, que
tinha vontade de o abraçar...
Acha odioso, não?
Defino o meu estado por uma palavra precisa e terrivel: quando meu marido
me apertava expansivamente a mão, eu soffria tanto como se o outro me
atraiçoasse!
Ai de mim! Quantas vezes quiz eu consolar o meu orgulho, pensando nas
glorias dramaticas do soffrimento e do martyrio! Quantas vezes me comparei
ás figuras lyricas da paixão, que contam as legendas da sua dôr ao ruido
das orchestras, á luz das rampas, e que são _Traviata, Lucia, Elvira,
Amelia, Margarida, Julietta, Desdemona!_ Ai de mim! mas onde estavam os
meus castellos, os meus pagens, e o ruido das minhas cavalgadas? Uma pobre
creatura que vive da existencia do Chiado, que veste na _Aline_, que
glorificações pode dar á sua paixão?
E depois é cruel, e é forçoso dizel-o: ha sempre um momento em que uma
mulher pergunta a si mesma se realmente são as grandes qualidades moraes
do seu amante que a dominaram. Porque então haveria justificações. E ha
uma profunda humilhação em nossa consciencia quando nos chegamos a
convencer de que, se amamos um homem, não foi só a nobreza das suas idéas
e o ideal dos seus sentimentos que nos dominaram, mas um _não sei quê_, em
que entra talvez a côr do seu cabello e o nó da sua gravata. Sejamos
francas; para que havemos de disfarçar a pequenez estreita das nossas
inclinações? Para que havemos de colorir de ideal a origem vulgar das
nossas preferencias? Não quero dizer que as elevações moraes não sejam um
auxiliar poderoso á sympathia instinctiva; mas o que na realidade nos
domina é o exterior de um homem. Que todas as que lerem estas confidencias
dolorosas se consultem no silencio do seu coração e digam o que determinou
n'ellas a sensação: se foi o caracter ou se foi a physionomia. E as que
forem francas dirão que na sua vida influiu talvez mais a côr de um
_frack_, do que a elevação de um espirito.
Sim, digo-o, francamente, d'aqui d'este canto do mundo, em que o ruido das
cousas tem o som ôco da tampa de um esquife: os desvarios do coração em
nós outras, nada os absolve, quasi nada os explica.
Fui nova; tive, como todas, as minhas horas de tedio assaltadas de
chimeras; tive os meus romances intimos, que nasciam, soffriam, morriam
entre duas flores do meu bordado. Creei aventuras, dramas apaixonados e
fugas dramaticas, aconchegadamente encolhida na minha poltrona, ao canto
do fogão.
Conheci mais tarde muitos caracteres femininos e a historia de muitas
sensibilidades. Experimentei eu tambem os sobresaltos da paixão--e nunca
vi, nunca soube que estas imaginações, que estas _attracções_ nascessem de
uma verdade da natureza, da logica das circumstancias, da irreparavel
acção do coração. Vi sempre que saíam de um pequeno mundo ephemero,
romantico, litterario, ficticio, que habita no cerebro de todas as
mulheres.
Vejo-o d'aqui a sorrir... Não se admire de me ver fallar assim. Lembra-se
d'aquellas conversações tão intimas e tão sérias na rua de...? Lembra-se
do terraço de _Clarence-Hotel_, em Malta, quando a lua silenciosa cobria o
mar? Não se recorda das minhas idéas então e d'aquellas imaginações que eu
denominava gloriosamente os meus _systemas_? Não se lembra que me chammava
então _philosopho loiro_? O _philosopho_ sentiu, chorou, soffreu, teve por
isso o melhor estudo. Que maior ensino que as lagrimas? A dôr é uma
verdade eterna, que fica, emquanto as theorias passam. Não imagina o que
tenho aprendido da vida desde que sou desgraçada! Não imagina quantas
idéas rectas e precisas saem das incoherencias do pranto!
Por isso hoje não creio em certas fatalidades, com que as mulheres
pretendem esquivar-se á responsabilidade. Não creio no que se chama
theatralmente _as fatalidades da paixão_. A vontade é tudo; é um tão
grande principio vital como o sol. Contra ella _as fatalidades_, as
febres, o ideal, quebram-se como bolas de sabão.
Respondem-me chorando: _a fatalidade!_ Mas, meu Deus! tomemos um
exemplo,--a aventura trivial, a commum, o que se poderia chammar a
_aventura typo_, o que se vê todos os dias, em qualquer rua, no primeiro
numero par ou impar... a aventura que nós acotovellamos no passeio, que
toma comnosco neve na confeitaria Italiana, e que se enterra ao pé de nós
no Alto de S. João.
A scena é simples, de tres personagens. Eu, por exemplo, sou a mulher. Meu
marido é um homem honesto e trabalhador. Cança-se, lucta, prodigaliza-se:
logo de manhã sae para o seu escriptorio, ou para o seu jornal, ou para o
seu officio, ou para o seu ministerio; cercea o seu somno, almoça á
pressa, quebra o seu descanço. Todo elle é attenção, vigilia, trabalho,
sacrificio. Para quê?
Para que os nossos filhos tenham uns _bibes_ brancos, e uma ama aceada;
para que as minhas cadeiras sejam de estofo e não de páu; para que os meus
vestidos sejam de seda e talhados na _Marie_, e não de chita e cosidos
pelas minhas mãos, de noite, a um candieiro amortecido.
Meu marido é um homem honesto, sympathico, serio, affavel. Não usa pós de
arroz, nem _brilhantine_, não tem gravatas de apparato, não tem a extrema
elegancia de ser moço de forcado, não escreve folhetins; trabalha,
trabalha, trabalha! Ganha com o seu cançasso, com os seus tedios, em horas
pesadas e longas, o jantar de todos os dias, o vestuario de todas as
estações. A sua consolação sou eu, o centro da sua vida sou eu, o seu
ideal e o seu absoluto sou eu! Não faz poemas romanticos, porque eu sou o
seu poema intimo, a musa dos seus sacrificios; não tem aventuras porque eu
sou a sua esposa; não tem viagens gloriosas pelos desertos nem o prestigio
das distancias, porque o seu mundo não é maior do que o espaço que enche o
som da minha voz; não ganhou a batalha de Sadowa mas ganha todos os dias a
terrivel e obscura batalha do pão dos seus filhos...
É justo, é bom, é dedicado. Dorme profundamente porque o seu cançasso é
legitimo e puro; gosta da sua _robe de chambre_ porque trabalhou todo o
dia. Julga-se dispensado de trazer uma flôr na _boutonniére_ porque traz
sempre no coração a presença da minha imagem.
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