O Mysterio da Estrada de Cintra. Cartas ao Diário de Noticias - 08

Total number of words is 4451
Total number of unique words is 1669
34.8 of words are in the 2000 most common words
50.2 of words are in the 5000 most common words
58.4 of words are in the 8000 most common words
Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
_squares_ a gaz na floresta sagrada; e, sobre tudo isto, meus senhores,
desthronam antigos reis, mysteriosos, e quasi de marfim, e substituem-n'os
por sujeitos de suissas, crivados de dividas, rubros de _porter_, que
quando não vão ser forçados em _Botany-Bay_, vão ser governadores da
India! E quem faz tudo isto? Uma ilha feita metade de gelo e metade de
rosbeef, habitada por piratas de collarinhos altos, odres de cerveja!
Captain Rytmel ergueu-se risonho, approximou-se de mim, e disse:
--Peço-lhe que no fim do jantar pergunte áquelle engraçado doido o seu
logar, a sua hora e as suas armas.
E foi sentar-se serenamente. Eu, á sobremesa, affastei-me com Perny, e
transmitti-lhe as palavras do meu amigo.
Perny riu, disse que estimava os inglezes, que apreciava os seus serviços
na India, que tinha sido instigado por Carmen a contrariar Rytmel, que o
achava um adoravel _gentleman_, que pedia das suas palavras as mais
humildes desculpas, que o seu logar era por toda a parte, as suas armas
quaesquer...
--Mas, dadas essas explicações, disse eu, nada temos que vêr com as
armas...
--Ah! perdão; disse o francez, ha ainda uma pequena cousa: é que eu acho
que o penteado de Captain Rytmel é profundamente offensivo do meu caracter
e da dignidade da França. Isto é que exige reparação.
Nomearam-se padrinhos n'essa noite. Combinou-se que o duello não fosse em
Malta: Rytmel era official, e os duellos nas praças d'armas têem as mais
severas penalidades. Era difficil, porém, estando n'uma ilha ingleza, não
se baterem em territorio inglez. Resolveu-se então que o duello fosse no
alto mar, a um tiro de canhão da costa ingleza. Lord Grenley emprestou o
seu _yacht_ e partimos de madrugada com um vento fresco e um sol alegre.
As cousas foram rapidas. Puzemo-nos á capa a 5 milhas de Malta, arriámos o
pavilhão inglez, a marinhagem subiu ás vergas, e como havia egualdade de
nivel, um dos adversarios foi collocado á pôpa e outro á prôa. O sol
davanos de estibordo. Éram 7 horas, pequenas nuvens brancas esbatiam-se no
ar. O duello era ao primeiro tiro, havendo ferimento grave. Lord Grenley
deu o signal, os dois adversarios fizeram fogo. Perny deixou cahir a
pistola, e abateu-se sobre os joelhos. Estava gravemente ferido com a
clavicula partida. Foi deitado n'uma _cabine_ preparada. Levantou-se o
pavilhão inglez e navegámos para Malta. Vinha cahindo a tarde.
Eu dirigi-me logo aos quartos de D. Nicazio. Carmen estava só.
--Sabe o que fez? disse-lhe eu. Perny está ferido.
--Isso cura-se, eu mesma o curarei... agora o que é sério, é o que se está
tramando aqui dentro d'este hotel... Eu não sei bem o que é, desconfio
apenas... Diga ao conde que vigie a condessa!
Eu encolhi os hombros, dirigi-me ao quarto da condessa: estava o conde,
Rytmel, e Lord Grenley. O ferimento de Perny fôra declarado sem perigo, o
capitão estava tranquillo. Conversava-se alegremente. Combinava-se uma
visita á ilha de Gozzo, a oito kilometros de Malta. Grenley tinha proposto
a excursão, e offerecia o seu _yacht_. O conde esquivava-se, dizendo que o
mar o incommodava, no estado nervoso em que estava.
--Menino, é aquella maldita Rize! veio-me elle dizer em voz baixa,
tenho-lhe para amanhã promettido um passeio a Bengama.
--Mas, então?
--Acompanha tu a condessa. Vae Grenley e Rytmel. Faze-me isto. Bem vês!
Mademoiselle Rize é exigente, mas pobresinha d'ella, tem o sangue maltez!
Mais tarde, quando eu atravessava para o meu quarto, um vulto veiu a mim
no corredor e tomou-me pela mão.
--Escute, disse-me uma voz subtil como um sopro.
Era Carmen.
--Se é um homem de honra, cautella amanhã com o passeio a Gozzo.
E desappareceu.

VIII

No outro dia ás seis da manhã fui a casa de Rytmel. A condessa havia
estado durante a noite sob o dominio d'uma extrema agitação nervosa, mas
não queria renunciar ao passeio de Gozzo. Encontrei Lord Grenley com
Rytmel, tomando chá.
Pareceu-me pela fadiga das suas physionomias, que se não tinham deitado:
lord Grenley decerto que não, porque estava de casaca, como na vespera, e
tinha ainda na _boutonniêre_ um jasmim do Cabo, murcho e amarellado.
--Bonita madrugada! disse Rytmel.
Tinham aberto a janella, o ar fresco entrava; nas arvores do jardim
cantavam os passaros.
--Adoravel! disse eu. A condessa esteve toda a noite doente, mas não se
transtorna o passeio... Outra cousa: tem um rewolver, Rytmel?
--Para quê?
--Disseram-me que era muito curioso atirar aos passaros que se escondem
nas cavernas, em Gozzo. Ha um echo excentrico. Precisamos de uma arma.
Rytmel deu-me um pequeno rewolver marchetado.
--Leve-o: eu tenho as algibeiras cheias da albuns e de canetas para tirar
desenhos... Ah! Sabe que este Grenley não vae?
--Porque? como assim, mylord?
--Um jantar official com o governador disse Lord Grenley, é horrivel.
Tenho uma pena immensa...
Ás sete horas fomos buscar a condessa. O marido acompanhou-nos até o caes
Marsa-Muscheto.
Notei ao entrar no _yacht_ que a equipagem estava augmentada e havia um
piloto arabe.
Largámos com um vento fresco, ás oito horas da manhã; as gaivotas voavam
em roda das velas, as casas brancas de _La Valette_ tinham uma côr rosada,
ouviam-se as musicas militares, o ceu estava d'uma pureza encantadora.
A condessa, um pouco excitada, olhava com uma alegria avida, para o vasto
mar azul, livre, infinito, coberto de luz.
--O que são as mulheres! pensava eu. Esta, tão altiva e tão discreta, está
encantada por se vêr só, com rapazes, n'um _yacht_, no alto mar. É para
ella quasi uma aventura!
Eu, confesso, estava embaraçado. A minha situação era um pouco pedante.
Representar eu alli o marido, a familia, o dever, diante de duas creaturas
moças, bellas, namoradas, e ser eu, aos vinte e quatro annos, ardente e
apaixonado, o encarregado de fazer a policia d'aquelle romance sympathico!
_Á la grace de Dieu!_ O mar é largo, o ceu profundo, a honra existe, daqui
a duas horas estamos em Gozzo, passeamos, rimos, jantamos, e ao anoitecer,
quando Deus espalhar o seu rebanho de estrellas, voltaremos na viração e
na phosphorescencia, calados, ouvindo o piloto arabe cantar as doces
melopeas da Syria, ao ruido languido da maresia...
Rytmel tinha descido a dar as ordens para o almoço. A condessa ficara de
pé, á prôa, com um vestido curto de xadrez, botinas altas, envolta n'uma
manta escoceza, de largas pregas. Nunca eu a vira tão linda.
Costeavamos Malta com vento oeste.
Approximamo-nos da ilha de Cumino. Rytmel veio-nos dizer que deveriamos
almoçar, e que ao fim de meia hora desembarcavamos em Gozzo, na _Calle
Maggiara_; iriamos vêr as curiosidades da ilha, tornariamos a embarcar
para tornear Gozzo, e vêr as terriveis cavernas, onde o mar se abysma e se
perde, e ao anoitecer tocariamos o caes de La Valette.
O almoço foi muito alegre. Havia Champagne, um Rheno adoravel, um guizado
arabe e um piano na camara. Captain Rytmel, cujo aspecto me parecia ter
uma preoccupação inexplicavel, fez ao piano depois do almoço interminaveis
improvisações. Caminhavamos sempre. Casualmente, tirei o relogio, e tive
um sobresalto! Havia duas horas e meia que tinhamos descido! Ora quando o
almoço começára, faltava-nos meia hora para desembarcar em Maggiara!
Porque seguiamos então? Subi rapidamente á tolda. O piloto arabe estava ao
leme. Não se via quasi a terra: iamos no mar alto, navegando com uma
extraordinaria velocidade sob o vento.
--Onde está Gozzo? gritei ao arabe em inglez, depois em francez, depois em
italiano.
O arabe nem sequer se dignou olhar-me. N'este momento Rytmel e a condessa
subiam.
--Onde está Gozzo? perguntei eu a Rytmel.
--Ha talvez uma bruma, respondeu elle vagamente e voltando o rosto.
O horisonte porém estava limpo, puro, sem mysterio, a perder de vista. Ao
longe via-se uma sombra indefinida que denunciava a terra: e nós
affastavamo-nos d'ella!
Corri á bussola. Navegavamos para Oeste.
--Navegamos para Oeste, Captain Rytmel! affastámo-nos de Malta! Que é
isto? Para onde vamos?
Rytmel olhou longamente a condessa, depois a mim e disse:
--Vamos para Alexandria.
Num relance comprehendi tudo. Rytmel fugia com a Condessa!...
Eu fitei Rytmel, e disse-lhe tremendo todo:
--Isso é uma infamia!
Elle empallideceu terrivelmente; mas a condessa, interpondo-se, com uma
voz vibrante:
--Não! sou eu! Sou eu que vou para Alexandria.
--N'esse caso sou eu o infame, prima.
Houve um silencio. Os olhos da condessa estavam humidos. Correu para mim,
tomou-me uma das mãos, murmurou entre soluços:
--Que quer? Ninguem tem culpa. Amo este homem, fujo com elle.
Rytmel tomara-me a outra mão.
--Agora, dizia, é impossivel voltar. É um passo dado, irreparavel...
Eu estava succumbido: aquella situação imprevista, deixava-me sem
raciocinio, sem voz, sem vontade.
Eu, amigo do conde!... Eu, cumplice d'aquella fuga! Além d'isso, alli, no
meio d'aquelles dois amantes encantadores, que me supplicavam apertando-me
as mãos, eu sentia-me ridiculo--e isto augmentava o meu desespero. A
condessa, no entanto, continuava:
--Primo, disse ella, que importa? Estou deshonrada, bem sei. Mas que
queria? que eu ficasse ao lado de meu marido, amando este, n'uma mentira
perpetua, vivendo alegremente instalada na infamia? Essa situação nunca! É
suja! Ao menos isto é franco. Rompo com o mundo, sou uma aventureira, fico
sendo uma mulher perdida, mas conservo-me para um só e sendo pura para
elle.
--Captain Rytmel, disse eu, então mande deitar uma lancha ao mar.
--Que quer fazer? gritou a condessa.
--Eu? ganhar a terra. Acha que tambem não é uma infamia installar-me
n'este navio?
--Está louco, disse Rytmel, ha só um escaler a bordo. O vento cresce, o
mar incha. O escaler não se aguentará dez minutos.
--Melhor! Um escaler ao mar! gritei eu.
--Ninguem se mecha! bradou Rytmel.
E voltando-se para a condessa:
--Mas diga-lhe que é a morte! Que cumplicidade tem elle? Foi forçado, foi
levado. Não responde por nada.
--Um escaler ao mar! gritava eu.
Mas, de repente, Rytmel tomando um machado correu ao bordo d'onde pendia o
escaler, cortou as correias de suspensão; o barco cahiu na agua com um
ruido surdo, ficou jogando sobre as ondas meio voltado, sobrenadando como
um corpo morto.
Eu bati o pé, desesperado.
--Ah que infamia! capitão Rytmel! Que infamia!
E por uma inspiração absurda, querendo desabafar, fazendo alguma cousa de
violento, gritei para alguns marinheiros que estavam á prôa:
--Ha algum inglez ahi que preze a sua bandeira?
Todos se voltaram admirados, mas sem comprehender.
--Pois bem! gritei eu, declaro que esta bandeira cobre uma torpeza, tem a
cumplicidade da deshonra, e que é sobre toda a face ingleza que eu cuspo,
cuspindo no pavilhão inglez.
E correndo á popa cuspi, ou fiz o gesto de cuspir sobre a larga bandeira
ingleza. Um dos marujos então de certo comprehendeu porque teve um
movimento de ameaça.
--Ninguem se mova! gritou Rytmel. Eu sou o offendido. Meu amigo, disse
elle com a voz suffocada, tem razão: desde que abandonei Malta, deixei de
ser official inglez. Sou um aventureiro. Esta bandeira, com effeito, não
tem que fazer aqui!
Adeantou-se, arreou o pavilhão de tope da popa.
E n'uma exaltação tão insensata como a minha, arremessou o pavilhão ao
mar; as ondas envolveram-n'o, e por um estranho acaso, no encontro das
aguas, a bandeira desdobrou-se, e ficou estendida sem movimento, serena,
immovel, á superficie do mar, até que se afundou.
Rytmel, então, por um impulso romanesco e apaixonado, tomou um lenço das
mãos da condessa, amarrou-o á corda da bandeira, e içando-o rapidamente,
gritou:
--De ora em diante o nosso pavilhão é este!
Eu achava-me no meio de todas aquellas scenas violentas, como entre as
incoherencias d'um sonho.
N'um movimento que fiz, senti no bolso o rewolver: não sei que desvairadas
ideias de honra me hallucinaram, tirei-o, engatilhei-o, brandi-o, gritei:
--Boa viagem!
--Jesus! bradou a condessa.

IX

Rytmel precipitou-se sobre mim e arrancou-me o rewolver.
Eu murmurei simplesmente:
--Bem! Será no primeiro porto a que chegarmos.
A condessa então adiantou-se, livida como a cal e disse (nunca me esqueceu
o som da sua voz):
--Rytmel, voltemos para Malta.
--Voltar para Malta! Voltar para Malta! Para quê, santo Deus!
Eu interpuz-me, disse as cousas mais loucas:
--Rytmel, dê-me esse rewolver, sejamos homens. Que as nossas acções tenham
a altura dos nossos caracteres. Nada mais simples. Nem a paixão póde
retroceder, nem a honra condescender. A solução é a morte. Eu mato-me,
fugi vós para bem longe...
Mas a condessa, que era a unica que parecia ter ainda uma luz de razão
dentro de si, repetiu, com a mesma firmeza, onde se sentia a dôr oculta:
--Rytmel, voltemos para Malta.
Elle olhou-a um momento: a consciencia da nossa odiosa situação pareceu
então invadil-o, subjugal-o; vergou os hombros, obedeceu, foi dizer
algumas palavras ao capitão do _yacht_.
D'ahi a um instante corriamos sobre Malta.
Houve um grande silencio, como o cançasso d'aquella lucta da paixão.
Rytmel passeava rapidamente pelo convez, e sob a serenidade do seu rosto,
sentia-se a tormenta que lhe ia dentro.
--Aqui está! disse elle de repente, parando e cruzando os braços, com um
extranho fogo nos olhos. Acabou tudo! Voltamos para Malta. Que mais
querem? Que nos resta agora? Dizer-nos adeus para sempre, para sempre!
Iamos a Alexandria; estavamos salvos, sós, novos, felizes! E agora?
Felicidade, amor, paixão, esperança, alegria, acabou tudo. Ah, pobre
ingenuo! Fallam-te na honra! Que honra a que me vae matar todos os dias, a
que me arranca do meu paraiso, a que me torna o ultimo desditoso! Honra!
Que me resta a mim? Uma bala na India. Morrer para ali, só, como um cão.
A condessa não dizia nada, com os olhos perdidos no mar.
E Rytmel vindo para mim, tomando-me o braço, com um gesto desesperado:
--Vês tu! Vês isto? Eu soffria tudo por ella; a deshonra, a infamia, o
desprezo; abandonava o mundo, renegava a minha farda, queria a pobreza, o
escarneo, tudo por ella. Diz-se a um homem--amo-te, vae-se fugir com elle,
está-se n'um navio, e de repente, a meia hora da felicidade e do paraiso,
quando já se não vê terra, vem um escrupulo, uma mágoa, uma saudade do
marido talvez, uma lembrança d'um baile, ou d'uma flôr que ficava bem--e
adeus para sempre! e quer-se voltar; e tu, miseravel, soffre, chora,
arrepella-te, e morre para ahi como um cão. Meu amigo, eu não tenho voz,
nem força: previna o piloto: a senhora condessa tem pressa de chegar a
terra!...
--William! William! gritou a condessa, precipitando-se, tomando-lhe as
mãos. Mas tu não percebes nada? Em Malta, como em Alexandria, eu sou tua,
só tua... tua deante de Deus, tua deante dos homens...
N'este momento ouviu-se a voz distante de um sino!
Eram os sinos de Malta. A terra ficava defronte.
A suavidade da hora era extrema; o ar estava ineffavelmente limpido.
Viam-se já as aldeias brancas, o altivo perfil de la Valette. O sol
descia. Os seus ultimos raios obliquos faziam scintilar os _miradouros_.
Distinguiam-se no caes os vendedores de flores. Duas gondolas corriam para
nós. Houve um grande ruido nas velas, assobios de manobras, o navio parou,
e a ancora caiu na agua! Tinhamos chegado. Os sinos de Malta continuavam
repicando.

X

Quando desembarcámos corri ao hotel. O conde ainda não tinha vindo do seu
passeio a Bengama com Mademoiselle Rize. Rytmel foi encerrar-se em casa,
n'um triste estado de exaltação e de paixão.
Carmen veio logo procurar-me ao meu quarto. Entrou rapidamente,
perguntou-me:
--Voltaram? como foi?
--Sabia então alguma cousa? interroguei admirado.
--Tudo. Por um acaso. Sabia que queriam fugir. Durante toda a noite Rytmel
andou fazendo preparativos. Era uma combinação de ha trez dias. Lord
Grenley sabia. E agora?
--Agora, disse eu, tudo terminou. A condessa naturalmente parte no
primeiro paquete.
--Duvido. Mas se não partem, ha uma desgraça. É uma fatalidade, bem o sei,
mas que quer? Amo aquelle homem, amo Rytmel. Demais é uma obrigação,
salvou-me a vida. É sobretudo uma paixão estupida que me roe, que me mata.
E ainda me não mata tão depressa como eu queria. Faço tudo para me matar.
Ponho-me a suar, levanto-me e vou apanhar o orvalho para o terraço. Para
que vivo eu? Vivia d'esta paixão. Cresceu desde que o vi agora. E diga-me
quem o não ha de adorar? Ás vezes lembra-me matal-o!...
Conversámos algum tempo. A pobre creatura tinha nos olhos um fulgor
febril, na face uma pallidez de marmore. Eu procurei calmal-a. Começava a
sympathizar com ella...
A condessa não sahiu do seu quarto dois dias. Eu contei ao conde que ella
tivera em Gozzo um susto terrivel, porque tinhamos estado em perigo, na
visita ás cavernas da costa, onde a navegação é cheia de desastres. Estive
quasi sempre, depois, com Rytmel. Lentamente a esperança renascia no seu
espirito. Accommodava-se, ainda que com certas repugnancias, a uma
situação mais racional, ainda que menos pura. Era um convalescente da
paixão. E, ao fim de cinco dias, senhor redactor (tanto a natureza humana
é cheia de conciliações!) ao fim de cinco dias a condessa appareceu no
theatro, fresca, radiante, e ao lado da brancura dos seus hombros reluziam
as dragonas de ouro de Captain Rytmel!
Entrámos então n'uma vida serena, sem romance e sem lucta. Os corações
tinham calmado, e fallavam baixo. O conde passeava no campo com
mademoiselle Rize; lord Grenley fumava, cheio de tédio, o seu cachimbo de
opio; eu jogava as armas com os officiaes inglezes; D. Nicazio negociava;
Rytmel tinha um ar feliz e mysterioso; a condessa recebia, guiava os seus
poneys, e todas as noites, no theatro, fazia reluzir ao gaz o louro
esplendor dos seus cabellos e a pallidez preciosa das suas perolas. Santa
paz!
O tempo estava adoravel. Malta resplandecia, a bahia reluzia ao sol, os
jardins floresciam, os olhos das maltezas suspiravam. Era o tempo das
flôres da laranjeira. Só Carmen emmagrecia e vivia retirada.
Mr. Perny entrava em convalescença: passava o tempo deitado n'um _sophá_,
de dia compondo uma opera comica, á noite jogando com alguns officiaes, e
salpicando a gravidade britannica de _calembourgs_ bonapartistas.
Uma occasião, ao sair de casa d'elle, onde tinha perdido algumas duzias de
libras, recolhia eu a Clarence-Hotel levemente irritado, e sentindo um
prazer excentrico em cantar o _fado_ pela ruas de Malta, a mil legoas do
Bairro Alto. O pavilhão que nós habitavamos em Clarence-Hotel dava sobre
um jardim todo escuro d'arvores e de moitas de flôres.
Ordinariamente o conde e eu entravamos pelo jardim. Tinhamos uma pequena
chave que abria a portinha verde no muro, todo coberto de musgo e de copas
d'arbustos orientaes. N'essa noite, ao abrir a porta, cantando em voz
alta, senti sumir-se rapidamente na espessura das folhagens um vulto. O ar
estava sereno, accendi um phosphoro, e áquella luz trémula, entrei na
sombra, para descobrir o vulto, entre as ramagens. Mas a pessoa, vendo-se
seguida, e sentindo a impossibilidade de se esquivar rapidamente,
retrocedeu, com uma naturalidade visivelmente artificial, e proferiu o meu
nome. Era Carmen.
--Que faz aqui? disse eu.
--Mato-me. Não lhe disse que sempre que suava de noite, me erguia e vinha
apanhar o orvalho?
Mas ella estava completamente vestida de seda preta, e tinha sobre os
hombros uma larga capa escura, de fórma arabe, com grande capuz!
--Ah! minha cara, disse eu, mata-se mas é d'amores. A esta hora, com essa
_toillette_, n'este jardim, com este aroma de laranjeiras!... Que historia
me vem contar d'orvalhos e de suor?
--Digo-lhe a verdade. Imagina que eu não preferiria aqui n'esta sombra
encontrar alguem?...
--E D. Nicazio? Peça a D. Nicazio que lhe faça a côrte. Que lhe dê uma
serenada, que suba por uma escada de corda, que a seduza n'este jardim...
Emquanto eu fallava, davam horas na Igreja de S. João, e Carmen mostrava
uma agitação impaciente. A todo o momento olhava para a porta do jardim,
torcendo freneticamente uma luva descalçada.
Eu comprehendi que ella esperava _alguem_. Alguem, isto é, _el querido, el
precioso, el saleroso, el niño_ de toda a legitima andaluza. Affastei-me
discretamente, como um confidente, e no momento que pisava a rua areada
que levava ao pavilhão, senti a porta do jardim ranger com uma ternura
plangente.
--É elle, pensei eu. É o _niño_. Pobre Carmen! Bebe vinagre, apanha os
orvalhos por causa de Rytmel, e mal chega a noite, não póde ser superior a
vir receber debaixo das laranjeiras algum cabelleireiro francez com voz de
tenor, ou algum tenor maltez com bigodes de cabelleireiro.
Subi ao meu quarto, mas não tinha somno; a noite era suave e languida,
mordia-me uma aspera curiosidade, e com a astucia d'um ladrão napolitano,
desci as escadas, costeei o muro do jardim, debrucei-me, espreitei, e vi
Carmen. Estava só! Extrema surpreza!
--E _el querido?_ perguntei-lhe eu rindo.
Ella voltou-se em sobresalto e perguntou-me com a voz agitada:
--Qual _querido_?
--O que entrou agora?
--Não entrou ninguem.
--Eu vi.
--Conheceu?
--Não, onde está?
--Abriu as asas, voou! disse ella rindo-se e affastando-se em direcção aos
seus quartos.
--Diabo! pensei eu. É uma segunda edição da Torre de Nesle. Recebe-os,
parte-os aos bocadinhos e enterra-os na areia!
No emtanto, tinha a curiosidade excitada. _Alguem_ tinha entrado
mysteriosamente, com uma chave falsa de certo, porque só o conde e eu
tinhamos a chave d'aquella porta do jardim. Mas onde estava esse _alguem_?
Teria entrado, e saído logo? N'esse caso não era uma entrevista d'amor!
Mas se não era um segredo de coração, para que era o mysterio, a hora
escura, o silencio, a chave falsa?
_Alguem_ teria ficado escondido no jardim? Corri-o todo, arbusto por
arbusto, jasmim por jasmim. Estava deserto.
Deitei-me preoccupado com aquella aventura. No outro dia, ao almoço, um
criado em voz alta declarou que se tinha achado no jardim um pequeno
punhal e que o hospede a quem elle pertencesse o reclamasse em baixo, no
_office_. Era um punhal, de fórma curva como se usa no Hindustão. Tinha
sido encontrado n'uma moita de buxo, de tal sorte que não parecia perdido,
mas voluntariamente arremessado. Ninguem reclamou o punhal.
Tudo isto me causava uma singular curiosidade.
--Diabo! dizia eu commigo, estamos em terra italiana, apesar da policia
ingleza, e é provavel que apesar da muita cerveja que habita Malta, ainda
por ahi haja alguma _agua tufana_. Sejamos prudentes.
Na noite seguinte, pela uma hora, eu, sentado á minha secretaria, escrevia
para Portugal, quando senti no corredor passos rapidos, e a porta abriu-se
violentamente.
Abafei um grito de terror. De pé, á entrada do quarto, livida, com os
cabellos desmanchados, um penteador branco cheio de sangue, estava a
condessa.
--Que foi? bradei.
Ella tinha caido n'um sophá, muda, com os olhos fixos, meio loucos, os
dentes trémulos.
Eu borrifava-a d'agua, tomava-lhe as mãos, fallava-lhe baixo, e
perguntava-lhe, aterrado, dando-lhe os nomes mais doces para a serenar:
--Que foi, minha querida, que foi?
Via-lhe os vestidos cheios de sangue.
--Feriram-n'a?
Ella fez um gesto negativo.
--Então? então? disse eu.
A pobre senhora queria fallar, erguia-se, suffocava, anciava, parecia
n'uma agonia.
De repente atirou-se aos meus braços e desatou a chorar.
--Fale, diga, insistia eu.
--Mataram-n'o, disse ella.
--Mataram quem?
--Rytmel.
--Como? Onde?
--No jardim... Vá!

XI

Corri ao jardim. Os meus passos instinctivamente, apressaram-me para o
lado da pequena porta verde aberta no muro.
Estava aberta. Ao lado, junto de uma moita de baunilhas, estendido no
chão, levemente apoiado no cotovello, vi Rytmel.
--Então? gritei-lhe, abaixando-me anciosamente para elle.
--Só ferido...
--Como? onde?
Não respondeu, os olhos cerraram-se e desfalleceu sobre a relva.
Corri ao tanque, trouxe um lenço ensopado em agua, molhei-lhe as faces e
as mãos: a ferida era na parte superior do peito, do lado direito, por
baixo da clavicula. Vi que não era mortal.
Eu estava n'uma extrema hesitação. Para onde levar aquelle homem?
O mais racional era conduzil-o a um quarto do hotel; mas isso era dar ao
facto uma publicidade ruidosa, fazel-o cair sob o dominio da policia,
arrastar até á acção dos tribunaes inglezes o nome da condessa. Porque eu
tinha comprehendido tudo. Sabia agora, bem, quem na vespera entrára
rapidamente pela porta verde com uma chave falsa. Sabia bem a quem
pertencia o punhal indio achado nas moitas de buxo. Comprehendia a
commoção de Carmen, quando eu a surprehendera ali, no jardim, embuçada
n'um _burnous_, esperando. E comprehendia desgraçadamente a que quarto se
dirigiam os passos de Rytmel dentro do jardim de _Clarence-Hotel_.
Era, pois, necessario encobrir aquella aventura. E Rytmel, apesar dos
obscurecimentos do desmaio e da dôr, tinha-o pensado tambem, porque me
disse com uma voz expirante:
--Escondam-me em qualquer parte!
Sahi logo á rua. Passava um daquelles carros ligeiros, d'um só cavallo,
que percorrem, com extrema velocidade, e com immensa doçura, as ruas
inclinadas de _La Valette_. O _vatturino_ era italiano. Fallei-lhe
vagamente n'um duello, dei-lhe um punhado de _shellings_, ameacei-o com os
_policemen_, e pul-o absolutamente ao serviço do meu segredo.
Collocámos Rytmel no carro; com mantas fizemos-lhe uma especie de ninho,
commodo e molle, e o cavallo trotou rapidamente, pela rua de S. Marcos,
para casa de Rytmel. Ahi grande rumor entre os officiaes inglezes. Eu
contei uma incoherente historia d'assalto ao florete, em que a minha arma
subitamente se tinha desembolado. A historia era inacceitavel; mas era
facil comprehender que havia por traz d'ella um segredo delicado, e isto
era o bastante para a altiva reserva de _gentlemen_.
Rytmel, aos primeiros curativos, serenou e adormeceu.
Tudo tinha sido feito em silencio, desapercebidamente. Fui tranquilizar a
condessa. Eram tres horas da noite. Havia temporal, e eu sentia quebrar o
mar nas rochas da bahia. Tudo dormia em Clarence-Hotel.
--Agora nós! disse eu. E dirigi-me ao quarto de Carmen.
Havia luz. Abri a porta, corri o reposteiro, entrei. A luz era frouxa,
desmaiada. Ao principio não distingui ninguem e ouvi apenas soluçar. Emfim
sobre um sophá, deitada, enroscada, sepultada, vi Carmen, com a cabeça
escondida, o penteado solto, coberta de sangue e abraçada a um crucifixo.
Ao pé, sobre uma mesa, havia uma garrafa de _cognac_ e um pequeno frasco
azul facetado. Quando sentiu os meus passos no tapete, Carmen levantou-se
um pouco no sophá. N'aquelle momento a sua belleza era prodigiosa.
Tinha os cabellos soltos: os olhos reluziam como aço negro, e o penteador,
aberto sobre o peito, deixava vêr a belleza maravilhosa do seio.
Confesso que não foi a idéa da vingança e do castigo que me tomou o
espirito diante d'aquella mulher tão terrivelmente possuida da paixão.
Lembraram-me as figuras tragicas da arte, lady Macbeth e Clithemnestre, e
tanta belleza, tanto esplendor, fizeram-me subir ao cerebro um vapor de
amores pagãos.
Ella tinha-se erguido e, com uma voz secca:
--Que quer?
Eu fiquei calado.
--Bem sei. Vem buscar-me. Fui eu que o matei. Está ahi a policia, não?
Estou prompta. É pôr um chale.
--Ninguem o sabe, disse-lhe eu baixo, e, sem saber por quê, commovido.
--Que me importa? Não o occulto. Matei o meu amante. Fui eu. Ah! pois quê?
nós outras damos a nossa vida, a nossa alma, entregamos todo o nosso ser,
You have read 1 text from Portuguese literature.
Next - O Mysterio da Estrada de Cintra. Cartas ao Diário de Noticias - 09
  • Parts
  • O Mysterio da Estrada de Cintra. Cartas ao Diário de Noticias - 01
    Total number of words is 4594
    Total number of unique words is 1728
    34.3 of words are in the 2000 most common words
    48.9 of words are in the 5000 most common words
    55.6 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • O Mysterio da Estrada de Cintra. Cartas ao Diário de Noticias - 02
    Total number of words is 4394
    Total number of unique words is 1578
    34.6 of words are in the 2000 most common words
    51.6 of words are in the 5000 most common words
    60.3 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • O Mysterio da Estrada de Cintra. Cartas ao Diário de Noticias - 03
    Total number of words is 4528
    Total number of unique words is 1667
    35.5 of words are in the 2000 most common words
    51.2 of words are in the 5000 most common words
    59.2 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • O Mysterio da Estrada de Cintra. Cartas ao Diário de Noticias - 04
    Total number of words is 4663
    Total number of unique words is 1823
    33.9 of words are in the 2000 most common words
    48.8 of words are in the 5000 most common words
    56.7 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • O Mysterio da Estrada de Cintra. Cartas ao Diário de Noticias - 05
    Total number of words is 4550
    Total number of unique words is 1703
    35.6 of words are in the 2000 most common words
    51.9 of words are in the 5000 most common words
    59.5 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • O Mysterio da Estrada de Cintra. Cartas ao Diário de Noticias - 06
    Total number of words is 4466
    Total number of unique words is 1723
    34.7 of words are in the 2000 most common words
    49.6 of words are in the 5000 most common words
    57.6 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • O Mysterio da Estrada de Cintra. Cartas ao Diário de Noticias - 07
    Total number of words is 4358
    Total number of unique words is 1735
    31.9 of words are in the 2000 most common words
    45.8 of words are in the 5000 most common words
    54.1 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • O Mysterio da Estrada de Cintra. Cartas ao Diário de Noticias - 08
    Total number of words is 4451
    Total number of unique words is 1669
    34.8 of words are in the 2000 most common words
    50.2 of words are in the 5000 most common words
    58.4 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • O Mysterio da Estrada de Cintra. Cartas ao Diário de Noticias - 09
    Total number of words is 4539
    Total number of unique words is 1689
    35.3 of words are in the 2000 most common words
    50.4 of words are in the 5000 most common words
    59.2 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • O Mysterio da Estrada de Cintra. Cartas ao Diário de Noticias - 10
    Total number of words is 4560
    Total number of unique words is 1847
    34.5 of words are in the 2000 most common words
    50.6 of words are in the 5000 most common words
    58.3 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • O Mysterio da Estrada de Cintra. Cartas ao Diário de Noticias - 11
    Total number of words is 4620
    Total number of unique words is 1785
    34.9 of words are in the 2000 most common words
    50.2 of words are in the 5000 most common words
    57.9 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • O Mysterio da Estrada de Cintra. Cartas ao Diário de Noticias - 12
    Total number of words is 4610
    Total number of unique words is 1807
    35.7 of words are in the 2000 most common words
    51.5 of words are in the 5000 most common words
    59.4 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • O Mysterio da Estrada de Cintra. Cartas ao Diário de Noticias - 13
    Total number of words is 4539
    Total number of unique words is 1762
    38.2 of words are in the 2000 most common words
    53.2 of words are in the 5000 most common words
    59.4 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • O Mysterio da Estrada de Cintra. Cartas ao Diário de Noticias - 14
    Total number of words is 4502
    Total number of unique words is 1705
    36.2 of words are in the 2000 most common words
    51.2 of words are in the 5000 most common words
    59.3 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • O Mysterio da Estrada de Cintra. Cartas ao Diário de Noticias - 15
    Total number of words is 2425
    Total number of unique words is 1122
    39.3 of words are in the 2000 most common words
    54.8 of words are in the 5000 most common words
    61.9 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.