O Mysterio da Estrada de Cintra. Cartas ao Diário de Noticias - 09

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pomos n'isto toda a nossa existencia, a nossa honra, a nossa salvação na
outra vida, e lá porque vem outra que tem os cabellos mais loiros ou a
cinta mais fina, adeus tu, para sempre! olá creatura! despreso-te, tu
foste para mim o momento, o capricho, a _futilidade_. Ah! sim? Então que
morra. Que quer mais? Vá buscar os _policemen_.
Eu disse-lhe então, em voz baixa:
--Fui encontral-o banhado em sangue.
Ella olhou-me desvairadamente um momento, e de repente, arremessando-se
sobre o sophá, abraçou-se ao crucifixo e com grandes lagrimas, com um
delirio de soluços:
--Ah, meu Deus, perdoae-me! Perdoae-me, Jesus! Perdoae-me! Fui eu que o
matei! Estou doida de certo. Pobre Rytmel! Rytmel da minha alma! Não o
torno a vêr, não lhe torno a fallar! Acabou-se para sempre!... Jesus, o
que eu sinto na cabeça!... Em Calcuttá adorou-me, aquelle homem. Ajoelhava
aos meus pés, eu queria morrer por elle. Diga-me,escute: enterraram-n'o?
Está muito ferido? Eu não o feri no rosto? não, isso não! Vá depressa. Vá
buscar a _policia_!... Mas porque me não prendem? Ah meu pobre Rytmel! eu
morro, eu morro, eu morro! D'aqui a pouco começam a tocar os sinos!..
Ergueu-se com gestos de louca, foi ao espelho, compoz o cabello com ar
desvairado, e de repente voltou a abraçar, apaixonadamente, o crucifixo
negro.
--Escute, disse-lhe eu. Rytmel não morreu.
--Não morreu? gritou ella.
De repente, arrojou-se aos meus braços que a ampararam, tomou-me a cabeça
entre as mãos, e fitando-me com uma grande angustia:
--Dize-me: não morreu? Está salvo?
--Está, disse eu.
--Juras?
--Juro.
--Quero vêl-o, quero vêl-o já! gritou ella. O meu chale, o meu chale!
Procure-me ahi o meu chale. Aposto que não lhe fizeram bem o curativo...
Positivamente não lh'o fizeram! Se não lhe acudo! Que diz elle? Chora?
Pobresinho! Adormeceu? Onde é a ferida? Maldita seja eu! maldita seja eu!
Com uma exaltação delirante procurava abrir as gavetas, derrubava os
moveis, arremessava as roupas, fallando, gesticulando, e ás vezes
cantando.
--Meu Deus, faz-se tarde! Que ando eu a procurar? Que horas são? Elle
falou no meu nome?
Veio tomar-me o braço:
--Vamos.
--Onde?
--Vêl-o. Quero vêl-o. Quero! não me diga que não. Quero pedir-lhe perdão,
amal-o, servil-o, ser a sua criada, a sua enfermeira...
Parou, e desprendendo-se do meu braço:
--E a outra? Não a quero vêr lá! Ella está lá? Não quero que ella o trate.
Mato-a, se a vejo. A outra, não, não, não! Não a deixe chegar ao pé
d'elle. Peço-lhe a si. Não, não a deixe chegar. Eu só, só eu basto.
Subitamente cerrou os olhos, estremeceu, deu um grande suspiro, e caiu no
chão immovel.
Levantei-a, deitei-a no sophá, borrifei-a d'agua; e ella com uma voz
expirante:
--Eu morro! eu morro... chame um padre. Não lhe tinha dito...
Envenenei-me.
--Envenenou-se? gritei aterrado.
--N'aquelle frasco, alli!

XII

O medico, apressadamente chammado, declarou que não havia perigo. Carmen
tinha tomado o veneno n'um preparado fraco, e n'uma porção diminuta. Podia
porém receiar-se que a sua extrema susceptibilidade nervosa, a exaltação
dos seus espiritos, provocassem uma febre cerebral. Mas, ao despontar do
dia, adormeceu, vencida por uma prostração absoluta, em que a vida só se
fazia sentir pelos _ais_ soluçados que se lhe desprendiam do peito.
Fui então vêr a condessa. Não se tinha deitado. Ficára embrulhada n'um
chale, sentada aos pés da cama, n'uma attitude absorta de dôr e de inercia
que me encheu de piedade. Era dia. Mas as janellas conservavam-se
fechadas, e as luzes ardiam melancolicamente. As jarras estavam cheias de
flôres.
Sobre uma pequena mesa havia um serviço de chocolate, de porcelana azul,
para duas pessoas. O chocolate tinha arrefecido, as flôres murchavam.
--Então? disse ella quando me viu.
--Então! elle está curado, e bom n'um mez. A condessa deve partir dentro
de quinze dias.
--Ao menos quero dizer-lhe adeus... um momento, um instante que seja! Não
me póde impedir isto: não m'o impeça, não?
--De modo algum, prima. Eu mesmo lh'o facilito.
--E ella?
--Ella, minha prima? Entrei no quarto d'ella para a arrastar ao primeiro
_policeman_ que passasse. Sahi jurando que em toda a parte aquella mulher
me havia de achar a seu lado para a defender e, se ella o quizesse, para a
amar.
--Tem talvez rasão. É uma verdadeira mulher.
--É mais do que isso, minha prima... Se alguma vez a paixão se encarnou
n'este mundo n'um aspecto divino foi n'aquella mulher. É a deusa da
paixão. De resto tem a grande qualidade:--a logica.
Eu, na realidade, tomara por Carmen uma grande admiração! Eu, que na sua
saude e na sua belleza nunca lhe dissera uma palavra galante, era agora
nas suas horas de dôr e doença, o seu fiel _cavalliere serviente_. Vi-a
convalescer sob os meus cuidados: D. Nicazio tinha ido para Sicilia.
Sustentei os primeiros passos que ella deu no seu quarto, extremamente
magra, com o olhar quebrado, uma transparencia morbida na physionomia, e a
imaginação doente.
Começou logo a entregar-se a longas orações, a leituras piedosas. O seu
intento era entrar n'um convento em Hespanha, e ali, matar o seu corpo na
penitencia e na dôr. Passava agora os dias nas egrejas. Estava mudada nos
seus habitos e nas suas maneiras. A sua belleza mesmo tomava uma expressão
ascetica. Tinha-se verdadeiramente desligado do mundo. Ás vezes olhava-me,
e dizia de repente, lembrando o convento:
--É triste! Aos vinte e oito annos!
Mas a exaltação religiosa retomava-a, e então perdia-se em esperanças,
idéas de uma redempção pela oração, pelo jejum, pelo silencio e pela
contemplação. N'aquelle espirito visitado por todas as paixões, e sempre
n'uma vibração exaltada, entrava por seu turno o sombrio catholicismo
hispanhol, e vendo o logar deserto das outras idéas do mundo, acampava lá
serenamente.
Um dia pediu-me para ir vêr Rytmel antes de partir para Hispanha.
--É como irmã da caridade que o quero vêr!
Levei-a a casa de Rytmel, uma noite. O quarto estava mal alumiado pela
desmaiada luz de velas de stearina. A pallidez de Rytmel era dolorosa
sobre a brancura do seu travesseiro. Carmen entrou, arremessou-se de
joelhos ao pé da cama d'elle, tomou-lhe uma das mãos e ficou ali soluçando
longo tempo. Rytmel chorava tambem.
Eu tinha-me encostado á parede, e sentia invadir-me uma tristeza, profunda
e insondavel como a noite. Um visinho, cuja janella abria para o estreito
pateo, para onde dava tambem uma janella de Rytmel, tocava n'esse momento
na sua rebeca, com uma melancholia plangente, a walsa do _Baile de
mascaras_, que, sendo doce e tenebrosa, desperta não sei que idéas de
festa e de morte, de amor e de claustro.
Rytmel queria levantar Carmen, fallar-lhe. Mas ella estava prostrada, com
o rosto escondido na beira de leito, soluçando; e apenas a espaços dizia:
--Perdôe-me, perdôe-me!
Rytmel por fim, com uma ternura insistente, ergueu-a, tomou-a nos braços,
disse-lhe as coisas mais elevadas e mais doces; e com uma meiguice e um
encanto infinito beijou-a nos olhos.
A pobre creatura córou, eu senti renascerem-se as lagrimas. Querido e
pobre Rytmel! como elle teve n'aquelle momento a ternura ideal, e o divino
encanto do perdão!
Ella com uma simplicidade, em que já se sentia a immensa força interior
que lhe dava a fé, fallou a Rytmel de Deus, do convento em que queria
entrar, da ordem que preferia, com palavras naturaes e tocantes, que nos
enchiam de magoa. Por fim beijou a mão do seu amante.
--Adeus, disse ella. Para sempre! Resarei por si.
E ia sahir, de vagar, succumbida, quando de repente, á porta do quarto,
parou, voltou-se, olhou-o longamente; os olhos encheram-se-lhe de uma luz
sombria e terrivelmente apaixonada; o peito arquejou-lhe; empallideceu, e
com os braços abertos, os labios cheios de beijos, n'um impeto da sua
antiga natureza, correu para se atirar aos braços d'elle com o phrenesi
das velhas paixões. Mas quando tocou no leito, estacou, cahiu de joelhos,
e n'um grande silencio e n'um grande recolhimento beijou-lhe castamente os
dedos! Depois tomou-me o braço, e sahimos.
Ao outro dia chamou as criadas e repartiu por ellas todos os seus
vestidos, rendas e _toilettes_. Deu as suas joias a um padre inglez para
as distribuir pelos pobres. Frascos, bijouterias, essencias, tudo
destruiu. Confessou-se, esteve todo o dia resando na egreja de S. João e
preparou-se para partir. Todos os que a conheciam choravam.
Á noite, quando fazia a sua pequena mala, mandou-me chamar, fechou a porta
do quarto e entregou-me o seu testamento, para eu o deixar depositado em
Malta, de sorte que D. Nicazio o recebesse á sua volta da Sicilia.
Deixava-lhe tudo.
Depois foi silenciosamente ao espelho, tirou uma rede da cabeça e o seu
immenso cabello caíu, quasi até ao chão, em grossos anneis, esplendido,
forte, immenso, e d'uma poesia sensual.
Tomou uma thesoura, e febrilmente, a grandes golpes, abateu aquellas
tranças admiraveis, que teriam sido uma gloria publica no tempo da Grecia.
Eu estava absorto pela belleza, magoado com o desastre. Parecia-me já
aquillo o começo do claustro.
Carmen apanhou o cabello caído, embrulhou-o n'um lenço, e, entregando-m'o,
disse:
--Guarde essa lembrança. É a verdadeira Carmen, a outra que eu lhe deixo
ahi. Agora peço-lhe uma derradeira cousa. Prepare tudo e leve-me a Cadiz.
Ámanhã... é possivel?
--Ámanhã não; mas dentro d'uma semana, juro-lh'o, teremos visto do mar as
montanhas de Valencia.
Ella no entanto passava rapidamente as mãos pelos cabellos, dando-lhes uma
feição masculina. Era encantadora assim. A sua belleza tomava uma
expressão ingenua de um extraordinario mimo. Ella sorria ao espelho, eu
olhava-a, e via, entre as duas luzes, a sua imagem, como n'um leve vapor
azulado e luminoso. Ella, lentamente, esquecida, tinha tomado o pente e
compunha o geito do cabello. Eu por traz d'ella sorria. Ella, no enlevo do
espelho, na surpreza de se achar linda com o cabello cortado, sorria
tambem. Parecia-me ver-lhe as faces tomarem a côr da vida e o seio a
ondulação das paixões. Ia dizer-lhe alguma cousa doce, chamal-a ao
mundo... De repente arremessou o pente, e curvando a cabeça, foi
silenciosamente ajoelhar diante de uma cruz grande, que havia junto do seu
leito, e sobre a qual agonisava um Christo com a cabeça pendente, a testa
gottejante, os braços distendidos, o peito constellado de chagas!

XIII

D'ahi a doze dias, a condessa e o conde voltavam no paquete da India a
Gibraltar. O conde partia triste: Mademoiselle Rize ficava, e o Chiado
esperava-o! De mais, o estar só com a condessa embaraçava-o: as
melancholias d'ella, as suas lagrimas inexplicaveis, a sua pallidez
apaixonada, toda a incoherencia do seu caracter, que aquelle excelente
libertino explicava pelo _nervoso_ e pelo histerismo, davam-lhe uma certa
fadiga enfastiada, e, como elle dizia, embirrava com romantismos. A
condessa, essa, partia resignada: Rytmel depois da sua convalescença iria
para a Italia, para aquecer as forças ao sol de Napoles, e mais tarde em
Paris, e depois em Lisboa, teriam alguns mezes livres, para, como diziam
os antigos poetas, os tecerem d'ouro, seda e beijos.
Foi com saudade que os vi embarcar. Eu ali ficava para cumprir um dever
melancholico: acompanhar a Cadiz aquella infeliz Carmen, ainda ha pouco de
uma belleza tão radiante, e agora vencida pelas amargas penitencias.
Lord Grenley, que ia para Cadiz dentro de quatro dias, tinha-nos
offerecido, a Carmen e a mim, o seu _yacht_. Aceitei com alegria. Era um
transporte commodo e livre, e lord Grenley uma companhia symphatica,
porque me assustava a idéa de ver durante uma longa viagem no mar, a
debilidade de Carmen estiolar-se ao meu lado. Emfim uma tarde partimos.
Era ao escurecer, o ceu estava nublado, quasi chuvoso. Carmen ia
profundamente doente. Magra, transparente, livida, sem poder suster-se,
sem dormir, alimentando-se quasi só de chá, a sua vida parecia estar a
todo o momento a passar os limites humanos. Não erguia os olhos dos seus
livros de orações. Aquella exaltação a que faltava a terra procurava
febrilmente todos os caminhos do ceu.
Foi com uma grande tristeza que vi Malta sumir-se nas brumas da noite.
Nunca mais tornaria a ver aquella branca cidade. Não fôra ali feliz. Mas
amamos todos aquelles logares em que por qualquer sentimento ou por
qualquer idéa a nossa natureza palpitou fortemente. E ali tinham ficado
lagrimas minhas.
Logo no primeiro dia de viagem, Carmen esteve expirante. Havia um forte
balanço. O mar era grosso, e nós receavamos mau tempo quando nos
avisinhassemos das correntes do golpho de Lião.
Carmen quasi sempre queria estar na tolda, ao ar, ao sol, vendo o mar.
Arranjava-se-lhe uma cama, e ali ficava, olhando, scismando, soffrendo, e
conversando com o capellão de lord Grenley, velho cheio d'uncção, que
tinha um encanto singular fallando das cousas do ceu. Aquella scena era
profundamente triste, sobretudo de tarde; o sol cahia, a immensa sombra
começava a cobrir o mar: Carmen fallava baixo: nós, em redor,
escutavamol-a, ou, calados, seguiamos o correr da maresia, olhavamos o fim
da luz. Um marinheiro escossez vinha ás vezes cantar as arias das suas
montanhas, cantos de uma tristeza suave e larga como a vista de um lago.
Ao terceiro dia de viagem, Carmen, subitamente, teve um grande accesso de
febre e quiz confessar-se. O medico disse-nos que ella não chegaria a ver
as montanhas da Hispanha. Que horas dolorosas! Não imagina, senhor
redactor, que intensidade têem, na vasta extensão das aguas, as dôres
humanas! Junta-se-lhes o sentimento da immensidade, e não sei que terrivel
instincto do irreparavel.
A confissão de Carmen foi longa. Quando terminou quiz fallar-me.
--Adeus! disse-me ella, vou morrer.
Disse-lhe que não, quiz dar-lhe esperanças ephemeras.
--Não, não, respondeu ella, nada de enganos. Tenho coragem. Quem a não tem
para ser feliz? Chame lord Grenley.
Começou então diante de nós a fallar da sua vida. Disse-nos qual fôra a
sua mocidade, os desvarios do seu coração, a exigencia das suas paixões, e
fallou-nos da sua ligação com Rytmel, com elevação, como de um sentimento
quasi legitimo. Não teve uma queixa, uma saudade, um desdem. As ultimas
palavras da sua vida eram dignas. Depois tirou um rozario do seio.
--Veiu de Jerusalem, disse-me, dê-lh'o a _ella_.
Eu tinha os olhos humedecidos, Carmen, entretanto, empallidecia
terrivelmente.
--Levem-me para cima, quero vêr o mar, quero vêr a luz.
Era uma manhã nebulosa e triste. O mar estava mais sereno. Collocámos
Carmen cuidadosamente sobre almofadas e mantas, voltada para Malta. Lá
tinha ficado a sua vida. Esteve muito tempo calada, com as mãos cruzadas.
--Que terra é aquella? perguntou mostrando com a mão tremula, uma linha
escura no horisonte.
--A Africa, respondeu lord Grenley.
Ella ficou olhando vagamente:
--Fui uma vez a Tanger, disse com uma voz lenta, era nova então! Era
feliz! Estava um dia lindo... Era em maio...
Calou-se. E voltando-se para mim:
--Faz agora mezes que passámos n'esta altura, lembra-se? E aquelle _punch_
a bordo do _Ceylão_? Quando eu cantei uma habanera! Eu cantava então... O
que é ser alegre! Tudo acabou, nunca mais! nunca mais!
E como fallando comsigo mesma:
--Tanta paixão, tanta inquietação! E aqui está: venho morrer só, no meio
d'este mar. Pobre de mim! E no fim, se eu em nova, em solteira, o tivesse
encontrado, a elle... Eu pedia pouco então: um coração leal. Tive gostos
simples sempre. As loucuras vieram depois... O marinheiro que canta as
arias escocezas, onde está? Chamem-n'o. Não, não o chamem que me vae fazer
chorar.
Nós escutavamol-a; a sua alma fallava como um passaro canta ao morrer. As
nuvens desfaziam-se, o azul aclarava, ia apparecer o sol.
--Vejam isto, continuou ella. Em nova diziam-me _és bonita, amo-te!_ E
agora que morro aqui, quem se lembra de mim? Os que me conheceram onde
estão? Uns mortos, todos esquecidos. Estão agora alegres, amam outras, vão
para os theatros. E eu estou aqui a morrer. E _elle_? lembrar-se-ha de
mim? Tambem não. Choro, choro, quando penso que o não vejo, que não está
aqui, que morro e que elle se não lembra de mim!
E soluçava, com a cabeça escondida no travesseiro.
--Rytmel é uma alma nobre. Estima-a, creia...
--Mas esquece-me! dizia ella suspirando e limpando os olhos. De resto, de
mim ninguem se lembra. Eu não sou uma mulher de quem se seja enfermeiro.
«Estás boa? estás alegre? amo-te». «Estás a morrer? Vae-te fazer enterrar
para outro sitio!» É bem triste este mundo!
Lord Grenley, com os olhos rasos d'agua, mordia convulsamente o seu
cachimbo.
--Guarde bem os meus cabellos, sim? dizia-me ella. Diziam que eram
bonitos. Se eu por acaso não morresse, haviamos de ir todos a Sevilha. Que
lindo que é Sevilha. Á tarde, nas _Delicias_, todo o mundo traz um ramo de
flores.
De repente abriu demasiadamente os olhos como deante d'uma cousa pavorosa;
levou as mãos á face, gritou:
--Meu padre, meu padre, tenho medo. Não é já o castigo, não? Se cáio no
inferno, meu Deus!
--O inferno é uma visão, minha pobre senhora! dizia o capellão. Os
castigos de Deus não são feitos com o fogo.
--Tem razão, tem razão. Sinto-me morrer, venham todos. Lembrem-se de mim,
sim?
Alguns marinheiros tinham-se approximado. O capellão ajoelhou: todos
tiraram os barretes, resavam baixo. Lord Grenley ficara de pé, descoberto,
immovel. Grossas nuvens escuras corriam outra vez no ceu. O vento começava
a assobiar.
--Adeus, disse-me ella. Dê-me a sua mão. Bem. Fui uma boa rapariga, por
fim... Um pouco estroina, talvez... Lord Grenley, obrigada. Que tristeza,
ter morrido alguem no seu _yacht_!... Que é aquillo, além, ao longe? É a
terra? São nuvens. Ah! meu querido Rytmel! ah! meu amor, ouve-me, onde
estás tu?
Duas grandes, tristes lagrimas, correram-lhe na face: teve ainda força
para as enchugar. Depois sorrindo:
--Olhem, não pensem em mim com tristeza. Sómente ás vezes, quando
estiverem juntos, e elle estiver tambem, lembrem-se d'esta pobre rapariga
que para aqui morreu no mar... E digam: pobre Carmen! ahi está uma que
sabia amar devéras!
E dizendo isto, estremeceu, fallou desvairadamente em Malta, em Sevilha,
em Rytmel, e, dando um gemido profundo, morreu.
O sino de bordo começou a tocar lentamente, Lord Grenley curvou-se,
beijou-lhe a testa, e cerrou-lhe os olhos. Eu chorava.
Então um velho marinheiro approximou-se, e sobre aquelle corpo, que fôra
Carmen, estendeu a bandeira ingleza.

XIV

Imagine, senhor redactor, em que lamentavel estado de espirito nós
ficámos. Lord Grenley encerrou-se no seu camarote, eu e o capellão ficámos
velando junto do cadaver. A tarde descia. Uma nevoa extensa cobria o mar.
O rugido do vento era lugubre. Todos estavam profundamente apiedados. A
velhos marinheiros, que tinham naufragado no mar da India e dobrado o
Cabo, eu vi saltarem as lagrimas...
--Pobre creança! diziam elles.
Para aquellas rudes naturezas simples, essa mulher nova, vestida de
branco, pallidamente linda, era a _miss_, a virgem, a creança! Um
arranjou-lhe uma corôa d'algas seccas, e foi piedosamente pôr-lh'a sobre o
peito. Era o ramo de flôres do mar.
Eu pensei algum tempo em conduzir o corpo de Carmen até Hispanha, mas o
piloto observou-me que teriamos ainda 4 ou 5 dias de viagem, e o corpo não
podia esperar na sua pureza durante esta longa demora. Por isso resolvemos
deital-o ao mar, quando viesse a noite. Assim, ficámos o capellão e eu,
durante a tarde, junto do cadaver, lembrando as suas bellezas e as suas
desgraças.
A noite caiu; cobriu as aguas. O capellão desceu. Fiquei só. Havia sobre o
cadaver, pendente d'uma corda, uma lampada. Descobri-lhe o rosto,
afaguei-lhe os cabellos. A sua belleza tinha-se fixado n'uma immobilidade
angelica, como se a morte lhe tivesse restituido a virgindade. A curva
adoravel do seu seio apparecia em relevo na bandeira que a cobria: nunca
tanta força tinha produzido tanta graça! Olhei-a durante muito tempo,
enlevado na sua contemplação. As lagrimas cahiam-lhe dos olhos.
--Pobre creatura! dizia eu na solidão dos meus pensamentos, pobre
creatura! vaes para a mais profunda das covas, para a sepultura errante
das aguas. Uma febre d'amor consumiu-te na vida, uma tempestade eterna te
agitará na morte! Condiz o tumulo com a existencia! Como o mar tu foste
bella, orgulhosa e ruidosa. Como o mar tu tiveste as tuas tormentas, as
tuas calmarias occultas, as tuas grutas, os teus monstros secretos, a tua
elevação religiosa, a tua espuma immunda. Como sobre o mar, sobre o teu
cerebro correram as doces idéas geniaes e puras como vélas de pescadores:
as pesadas ambições modernas, rápidas e incisivas como rodas de paquetes;
as brutaes exigencias do temperamento, estupidas e victoriosas como
_monitores_ armados. Despedaçaste-te de encontro á fria reserva d'um amor
que se extingue, como elle se esmigalha contra a escura insensibilidade
das rochas. Como elle tem o vento que é o seu tyranno, tu tiveste a
paixão. Vae, pobrezinha, repousar em paz, no fundo das algas verde-negras!
Triste destino! Quem mais do que tu, sentiu, amou, estremeceu, córou,
quiz, venceu? Quantas lagrimas causaste! Quantas loucas palpitações!
Quantos desejos para ti voaram como bandos de pombas! Quantas vozes
perdidas te chamaram! Quanta fé fizeste renegar! Quanta altivez fizeste
succumbir! E tanta vida, tanta acção, tanta vontade, um tão grande centro
vital como tu foste, um grumete amarra-lhe duas balas aos pés e atira com
elle ao mar! E aqui jaz o ruido do vento, e aqui jaz a espuma da onda!
De que te serviu o ser, o que fizeste ao sangue, á vontade, aos nervos, ao
pensamento, que trouxeste do seio da materia? Que idéa deixaste, que
memoria, que piedade? Que foste tu mais do que um corpo bello, desejado e
photographado? Fizeste parte, durante a vida, d'aquellas insensiveis
bellezas naturaes, que o homem usa e arremessa. Foste como uma camelia, ou
como a penna d'um pavão. Foste um adorno, não foste um caracter. Nunca
tiveste um logar definido na vida, como não terás um tumulo certo na
morte! Adeus pois para sempre, oh doce ephemera! o teu destino é a
dispersão!
Por isso aqui estás só! Os que te amaram onde estão? onde estão os que tu
amaste? Aqui estás só, vestida com o teu penteador branco, na tua manta de
xadrez, sobre o convez d'um navio, só, sempre no meio de homens, como na
vida! Não ha uma flôr aqui que se te deite em cima, nem uma renda em que
se te envolva a face morta. Morres entre cordagens, no meio de rudes
marinheiros, que veem agora da sua ração d'aguardente. Nem um padre
catholico tens que te falle dos anjos, doces camaradas da tua mocidade.
Nem um parente, sequer, te comporá a dobra do teu lençol! Não se cantará
nenhum responso em volta do teu caixão. Não farás scismar as noivas que te
vissem passar no teu enterro. As mãos alcatroadas de velhos marinheiros te
arremessarão ao mar!
Pois bem, minha pobre amiga! que importa? Estás na logica do teu destino,
que é a revolta. Viveste longe das estreitas conveniencias humanas, morres
em plena liberdade da natureza.
Não verás o teu leito cercado de parentes avidos, de criados
indifferentes, de padres que te dêem os santos oleos bocejando, n'um
quarto escuro e abafado, entre o cheiro dos remedios: morres diante do
ceu, aos emballos do mar, ao cheiro da maresia, entre velhos marinheiros
da India, que te choram, sob o sublime ceu, na plena liberdade dos
elementos!
Não serás vestida com velhas sedas, não levarás na cabeça antigas corôas
funebres, não te cobrirão com galões de ouro falso; irás com o teu
penteador branco, como para uma alegria nupcial!
Não te pregarão n'um caixão estreito, nem te apertarão como um fardo;
terás o contacto das cousas vivas; as lagrimas do mar correrão sobre os
teus cabellos; poderás toucar-te d'algas; os raios do sol poderão ir
procurar-te como antigos amantes dos teus olhos, e a tampa do teu esquife
será o infinito azul.
Não sentirás em volta de ti no teu enterro cantos em mau latim, o som das
campainhas, a voz aguda dos meninos do côro, os commentarios estupidos da
multidão, as grosseiras enchadadas do coveiro. Serás lançada á tua cova do
mar no meio de um silencio militar, levando por mortalha a bandeira
ingleza, ao cantochão infinito dos ventos e das aguas.
Não ficarás para sempre apertada em cinco palmos de terra, sentindo a bôca
das raizes pastar o teu seio e a multidão dos vermes entrar no teu corpo
como n'uma cidadella vencida. Não! a tua morte será uma perpetua viagem:
viverás nas grutas transparentes de luz, guardarás os thesouros
mysteriosos, visitarás as cidades de coral que luzem no fundo do mar,
amarás o corpo encantado d'algum louro principe, outr'ora pirata normando!
Andarás dispersa no elemento, sombra infinita, alma da agua!
Sobre o teu tumulo não virão sentar-se os burguezes, benzer-se os
sachristães, cacarejar as gallinhas; sobre a tua azul sepultura errará o
vento, melancolico velho que visita os seus mortos.
Não terás um epitaphio metrificado por um poeta elegiaco, e approvado pela
camara municipal; serão os reflexos ineffaveis das estrellas que se
encruzarão para formar sobre a tua sepultura as lettras do teu nome...
Um marinheiro bateu-me no hombro.
--São 11 horas, disse elle.
Ergui-me em sobresalto, e pensando nas vãs chimeras que se tinham estado
formando no meu cerebro n'aquelle triste scismar, disse commigo:
--Pobre de mim! Tinham-me esquecido os tubarões.
Eram 11 da noite. Não havia estrellas. Todos estavam reunidos na tolda.
Tinham-se posto lanternas nas cordagens, e accendido archotes.
Dois marinheiros tomaram o cadaver nos braços. O padre abençoou-o.
Ligou-se-lhe ao corpo com uma corda a bandeira ingleza. Os grumetes
trouxeram duas balas. Uma foi amarrada aos pés, outra ao pescoço. As
botinhas d'ella, de seda preta, appareciam fóra da orla do vestido e da
bandeira que a envolvia. As luzes dos archotes faziam tremer sobre o mar
vagas claridades. No silencio sentia-se o estalar da rezina.
O sino de bordo começou a tocar. Os marinheiros elevaram o corpo á altura
proxima da amurada. Então ergueu-se um canto grave, melancolico, de uma
infinita tristeza. O padre resava com as mãos impostas sobre o cadaver. E
affastando-se, disse:
--_In eternum sit!_
Todos responderam:
--_Amen!_
O vento gemia. Lord Grenley adiantou-se e disse em voz alta:
--N'este dia, a bordo do _Romantic_, navio inglez, morreu Carmen Puebla,
de nação hispanhola, e para eterna protecção do seu corpo, como sendo
sepultada em territorio britannico, foi amortalhada na bandeira ingleza.
_In pace_.
--_Amen!_ responderam os marinheiros.
--Em nome do Padre, disse o capellão, do Filho e do Espirito, santa seja a
sepultura a que ella é deitada, e que fique como em terra sagrada n'estas
aguas do mar!
--_Amen!_ murmuraram os marinheiros.
--Ao mar! disse lord Grenley com voz forte.
Os dois marinheiros suspenderam o cadaver sobre o mar; todos se
approximaram, fazendo circulo com os archotes; o cadaver, arremessado,
mergulhou com um som lugubre, desappareceu, e a espuma das vagas
correu-lhe por cima.
Os archotes foram apagados n'um triste silencio. O navio affastava-se. Eu,
encostado á amurada, tinha os olhos fitos no ponto vago onde o corpo
desapparecera. Ella alli ficava morta. Encheu-me o peito uma longa
saudade. Lembrava-me d'ella, dançando no convez do _Ceylão_, rindo á mesa
de _Clarence-Hotel_. Tudo tinha acabado. Nunca mais! nunca mais! Alli
ficava com uma bala aos pés!
O vento refrescou.
--Vento d'Eeste! disse o marinheiro de quarto.
--Vem de Malta... pensei eu.
E as minhas ultimas lagrimas cairam sobre o mar...

XV

Cheguei ao fim das minhas confidencias.
Quando desembarquei em Lisboa a condessa tinha ido para Cintra. Vi-a, ao
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