O Mysterio da Estrada de Cintra. Cartas ao Diário de Noticias - 14

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rangeria, a um canto, sobre o papel. Ó perfumados paraizos da vida! como
eu me affasto de vós!
Assim pensava, quando cheguei a casa. No meio do meu quarto estavam
fechadas, affiveladas, sobrepostas as minhas malas. Ao pé uma grande
pelle, apertada na sua correia. Tudo estava prompto, deviamos partir na
manhã seguinte. As minhas idéas simples debandaram.
Senti um extremo desejo de liberdade, de mares abertos, de paizes extensos
e distantes, que se atravessam ao galope da _posta_ ou na velocidade d'um
_wagon_. Era noite. Não pedi luz. O luar entrava no quarto atravez das
arvores do jardim. Sentei-me á janella.
A minha situação appareceu-me então com o prestigio de um bello romance.
Mil imaginações e phantasias cantavam no meu cerebro. Sentia-me á entrada
de uma vida de perigos, de extasis, de glorias. Via-me na tolda de um
paquete entre os perigos de um naufragio: ou n'uma serra espessa, por um
grande luar, n'uma companhia de contrabandistas que cantam á Virgem; ou no
silencio de uma caravana escoltada de _beduinos_, acampando no monte das
Oliveiras, defronte de Jerusalem. Percorreria a Italia; entraria nas
cidades ao galope dos cavallos, ao accender o gaz, quando a multidão enche
os _corsos_ entre fileiras de altivos palacios da Renascença. Via-me em
Napoles, na bahia, por um luar calmo: dormindo sob as vinhas em Ischia; ou
na frescura das grutas do Pausilippo, onde ainda choram as nayades... A
porta abriu-se de repente, um criado entrou com uma carta. Não vi a letra
do _enveloppe_, não olhei sequer, mas sentia-a! Veiu luz. Era verdade, era
de Rytmel! Tive-a longo tempo na mão, incerta, trémula. Pul-a em cima da
pedra d'uma _console_, fui olhar-me ao espelho, vi-me pallida. No emtanto
a carta attrahia-me, parecia-me que luzia sobre o marmore branco. Tomei-a,
pesei-a, senti-lhe o aroma, e de vagar, cançada, suspirando, com os braços
vergados ao peso d'ella, fui-a lentamente abrindo.

VIII

Transcrevo textualmente essa carta terrivel:
«Querida:--Tenho aqui no meu quarto, diante de mim, as minhas malas
fechadas e afiveladas: Tenho o meu passaporte... É verdade! não te
esqueças de tirar o teu. Escrevi a minha mãe. Escrevi a um amigo querido,
que vive na intimidade da minha vida. Por isso bem vês que te escrevo, na
austera firmeza da tua resolução. Sou só. O meu destino tenho-o aqui preso
na minha mão, como um passaro, ou como uma luva: posso pousal-o sobre a
tolda d'um paquete, pol-o n'uma mesa de jogo em cima d'uma carta,
collocal-o na ponta d'uma espada, ou fechar-t'o na mão e dar-t'o. Mas tu
pelas condições da tua vida tens um logar definido no mundo, limitado e
circumscripto. Estás presa, por um annel de casamento, a uma ordem de
cousas, a um certo numero de leis, e és na vida como um navio ancorado no
mar. Por isso é justo que antes de te separares violentamente do teu
centro legitimo, eu, que tenho a experiencia das desgraças, das viagens, e
do espectaculo do mundo, te diga algumas palavras, que, se não me tornarem
mais amado ao teu coração, tornar-me-hão mais estimado ao teu caracter.
Fias-te de mais no amor, minha doce amiga! Abstrae n'este momento de mim,
da minha honra e da minha fidelidade. Fallo do amor, lei ou mysterio ou
symbolo, força natural ou invenção litteraria. Fias-te de mais no amor!
Aquelle amparo superior, aquelle apoio solido e protector, que todo o
espirito procura no mundo, e que uns acham na familia, outros na sciencia,
outros na arte, tu parece quereres encontral-o sómente na paixão, e não
sei se isso é justo, se isso é realisavel!
Creio que te fias de mais no amor! Elle não construe nada, não resolve
nada, compromette tudo e não responde por cousa alguma. É um desequilibrio
das faculdades; é o predominio momentaneo e ephemero da sensação; isto
basta para que não possa repousar sobre elle nenhum destino humano. É uma
limitação da liberdade, é uma diminuição do caracter; especialisa,
circumscreve o individuo é uma tyrannia natural, é o inimigo astuto do
criterio e do arbitrio. E queres que tenha esta base a tua situação na
vida? E crês na estabilidade do amor, tu?... Sim, é possivel, emquanto
elle viver do imprevisto, do romance e do obstaculo; emquanto necessitar
do _coupé_ de _stores_ cerrados; mas logo que entre n'um estado regular,
que se estabeleça definidamente para durar, que se organise, que se
economise, extingue-se trivialmente; e quando quer conservar-se, tem a
miseria de se assimilhar ás chammas pintadas d'um inferno de theatro. E
então, desde o momento que o amor desapparecesse, que rasão de ser tinha a
tua vida, e que justificação tinha que dar de si o teu incoherente
destino? Ficavas sem uma situação definida: tudo te era vedado, ou pela
força das leis sociaes, ou pela altivez da tua honra. Recuar para as
cousas legitimas, arrepender-te, era impossivel: o arrependimento é um
facto catholico, não é um facto social. Continuar e persistir em viver
pelo amor era um equivoco hypocrita, e poderias um dia encontrar-te a
viver na libertinagem.
Imaginas hoje que o amor é a unica tendencia, a unica preoccupação da tua
vida... Não: é apenas idéa dominante na tua natureza. Ha outras
exigencias, que hoje não sentes chamarem dentro de ti, porque teem sido
plenamente satisfeitas no meio legitimo em que tens vivido; mas quando,
mais tarde, estiveres retirada de tudo, fechada no amor como n'uma concha,
sentirás então amargamente que te falta o _quer que seja_ que é a
sociedade, a opinião, o centro d'amisades, o _rang_, as consolações
incomparaveis que dá a estima dos que nos saudam. E o não encontrar então
no mundo o teu logar, elegante, avelludado, agaloado, emplumado e coroado,
dar-te-ha a sensação do abandono; e as consolações que então te quizer
ministrar o amor pela sociedade que te falta, encontrarão aos teus olhos o
mesmo tedio que encontrariam agora as consolações da sociedade pelo amor
que te fugisse. Uma mulher que foge com o seu amante, só pode ter um logar
no _Demi-Monde_; ou então um logar equivoco nas salas, quando é celebre
por um talento ou por uma arte. Ora tu não quererás ir para a Italia
frequentar, em Napoles, Madame de Salmé, nem quererás cantar n'um theatro,
nem commetter a inconveniencia de escrever um livro. A viver modesta, tens
de viver triste; a viver radiante, tens de viver humilhada. E pensas que
pódes, por um anno sequer, viver na intimidade absoluta e no segredo?
O segredo, o refugio, um _ninho_ perfumado n'um quinto andar, são cousas
extremamente doces, no meio da sociedade e das relações do mundo; a
publicidade official da vida dá então um encanto extranho áqueles momentos
de mysterio. Mas a perpetuidade do mysterio deve ser egual áquella
legendaria tortura da beatitude eterna! Quando dois entes se encontram
pelas fataes condições do seu procedimento, obrigados a viverem um do
outro, um para o outro, um eternamente no segredo do outro, quando isto se
não passa na ilha de Robinson, nem entre dois discipulos de Sedwinborg,
nem entre dois desgraçados cheios de fome--mas n'uma cidade ruidosa e
viva, entre duas pessoas positivas e educadas pelo segundo imperio, e que
têem as complacencias do luxo, crê que deve ser amargo.
E depois, pensa! A nossa vida arrastar-se-ha tristemente, de paiz em paiz,
sem um centro amado, sem uma familia, sem um fim. Não teremos, nem durante
a existencia, nem no grave momento da morte, a serenidade de quem é justo.
A nossa vida será como a das sombras romanticas de Paulo e Francesca de
Rimini, levadas pelo vento contradictorio. Morreremos emfim como dois
seres estereis, que nada crearam, e que não têem quem fique na terra com a
herança do seu caracter; e quando todos pelos seus filhos ganham a unica
justa immortalidade, nós sómente seremos mortaes, e para nós mais que para
ninguem será terrivel a lembrança do fim! Perdôa que te escreva estas
cousas. Mas fiz o meu dever. E agora posso livremente, insuspeitamente,
dizer-te que me sinto feliz, e que o momento d'amanhã, quando virmos
desapparecer a terra e nos acharmos sós, no infinito mar,--será para mim
tão bello, que só por elle julgarei justificada a minha vida.»
Quando acabei de lêr esta carta, sentei-me machinalmente deante das malas,
com os olhos fixos, como idiota. Abri uma gaveta, tirei não me recordo que
pequeno objecto de renda, e tornei a fechar, com um movimento automatico,
lugubre, e a ausencia absoluta da consciencia e da vida. Chamei Betty:
--Betty, que horas são?
--Onze, minha senhora.
--Dá-me agua, tenho sede. Dá-me agua com limão...
Quando ella sahiu fui encostar a cabeça á vidraça, a olhar o movimento
ondeado e lento das ramagens escuras. A lua pareceu-me regelada. Betty
entrou.
--Betty, disse-lhe eu n'uma voz sumida, sabes? Tenho medo de morrer
doida...
Ella olhou-me, e viu no meu rosto uma tal expressão d'angustia, que me
disse:
--Que tem, meu Deus, que tem? Chore, minha rica menina, chore...
--Não posso, não posso. Eu morro... Vem para o pé de mim, Betty!...
--Meu Deus, quer-se deitar? diga...
E erguendo os olhos e as mãos, n'uma imploração cheia de dôr, de
desespero:
--Deus me leve para si! Ai! nada d'isto era se a mamã fosse viva, minha
senhora!
Começou a chorar. Eu olhei-a com uma grande afflicção, senti os olhos
humidos, os soluços suffocaram-me, e arremessando-me aos seus braços,
chorei, chorei, chorei amargamente, chorei cruelmente, chorei pela
saudade, chorei pela traição, chorei pelo meu passado legitimo, chorei
pelo encanto dos meus peccados, chorei por me sentir chorar...

IX

Soceguei. Vencida, fiquei n'uma _chaise longue_, muda e como morta. Olhava
machinalmente o tremer da luz.
--Betty, disse eu, deita-te. Eu estou bem. Vae...
Ella saiu, chorando. O quarto estava mal allumiado. Eu via, fóra, as
ramagens do jardim, recortando-se n'um relevo negro sobre o pallido ceu,
cheio da lua. Estive muito tempo assim, olhando, sem consciencia e sem
vontade. Lentamente, creio, comecei pensando em cousas alheias aos
interesses da minha dôr: lembrava-me a fórma d'um vestido que eu tinha
desenhado para a Aline.
Por fim ergui-me, passeei muito tempo no quarto, o movimento chamou-me á
consciencia e á verdade das minhas afflicções. Arranquei a folha d'uma
carteira, e escrevi a lapis tumultuosamente: «Tem rasão, tem rasão.
Espero-o ámanhã ás 10 horas da noite na casa... Até lá não lhe direi que o
amo; só lá lhe direi o que soffro.»
Eu mesma saí ao corredor, e do alto da escadaria, silenciosa, allumiada
por um grande globo fosco, chamei um criado, André, imbecil e indiscreto,
e atirei-lhe o bilhete lacrado, dizendo-lhe:
--Leve esse bilhete já... Vá n'uma carruagem.
E indiquei-lhe a casa de meu primo. Rytmel estava hospedado lá.
Vim sentar-me á janella do meu quarto: vinha um aroma suave do jardim; o
luar, as grandes sombras, tinham um repouso romantico e triste.
Lentamente, a minha desgraça começou apparecendo-me inteira, nitida, em
pormenores, n'uma grande synthese, como se fosse um mappa.
Eu era trahida! Aos vinte e tres annos, com todas as intelligencias da
paixão, com todos os delicados prestigios do luxo, era trahida, era
trahida! Senti então pela primeira vez a presença do ciume, esse
personagem tão temido, tão cantado nas epopéas, tão arrastado pela rampa
do theatro, tão conhecido da policia correccional, tão cruel, tão
ridiculo, tão real! Vi-o! Conheci-o! Senti o seu contacto irritante e
mordente como um corrosivo; a sua argumentação miuda, jesuitica,
implacavel, sanguinaria: todo o seu processo d'acção, que torna de repente
o coração mais puro tão immundo como a toca d'uma fera.
Senti o mais cruel dos ciumes todos; aquelle que se define, que diz um
nome, que desenha um perfil, que nol-o mostra, o nosso inimigo, que nos
enche as mãos d'armas, que nos obriga a avançar para elle. Eu sentia no
meu ciume um ponto fixo--_ella_. Era _ella_, a _outra_! Lembrava-me
confusamente: tinha cabellos louros, finos, espalhados, uma nuvem de ouro
esfiado. Eu tinha-a visto em Paris vestida de roxo na revista de
_Longchamps_. O seu olhar era franco: os homens deviam encontrar n'elle o
quer que fosse, que promettia um destino pacifico. Que secreto encanto se
irradiaria da esbelta fraqueza do seu corpo? Era a simplicidade? Era a
intelligencia? Era a sciencia das cousas do amor?... Como eu ardia por a
conhecer! E não sabia nada d'ella senão que era irlandeza, e que se
chamava Miss Shorn!
Ah sim, sabia outra cousa--que elle a amava!
Conhecel-a! conhecel-a! Mas como? Podia ser, pelas suas cartas! De certo!
Ella devia pôr n'ellas toda a sua intima personalidade. Era loira, era
ingleza, por isso raciocinadora: devia escrever pacificamente, sem
sobresaltos, e sem inspirações da paixão; nas suas cartas provavelmente
desfiava o seu coração. Eu conhecel-a-hia bem, se as lesse! Eu saberia o
estado de espirito de Rytmel, a marcha da sua paixão, pelas cartas d'ella.
Devia lel-as! Era necessario pedil-as, roubal-as, compral-as, eu sei! Mas
era necessario lel-as!
Para pensar assim eu nenhuma _prova_ tinha de que elle recebia cartas
d'ella, mas tinha a _certeza_ que ellas existiam e que o seu coração
estava cheio d'ellas...
Quiz serenar, pacificar-me, dormir.
Deitei-me. O meu pobre cerebro estava n'uma vibração tempestuosa; era como
n'uma tormenta em que veem á superficie da mesma vaga os destroços d'um
naufragio e as flores da alga; no meu espirito revolto, surgiam no mesmo
redemoinho, as cousas graves, e as recordações futeis, as minhas dôres e
as minhas phantasias, os desastres do meu amor, e ditos de operas comicas!
Sentia a chegada da febre. Chamei Betty.
--Betty! não posso dormir, não sei que tenho. Quero dormir por força.
Quero ámanhã todas as minhas faculdades em equilibrio. Se não durmo estou
perdida, endoideço... Dá-me alguma cousa.
--Mas o quê, minha senhora?
--Olha, dá-me aquella bebida que davam á mamã nas insomnias, a que tu
tomas quando tens dôres... Tens?
--Quer opio?
--Não sei! agua opiada, vinho opiado, o quer que seja. Foi o doutor que me
disse...
--Minha querida menina, eu tenho opio. Uma gota, n'um copo de agua. Eu
sei? Talvez lhe faça mal!
--Dá-m'a, o doutor disse-m'o hontem. Dá, depressa.
Bebi. Era agua opiada, creio eu. Não sei. Parece-me que adormeci logo, e
lembro-me que durante o somno sentia-me encaminhar incessantemente, n'um
movimento perpetuo que affectava todas as fórmas; ora lento e pacifico,
como um passeio sob uma alameda; ora rapido, volteado, e era a _walsa_ de
_Gounod_ que eu dançava; ora solemne e melancholico, e era um enterro que
eu acompanhava; ora cortante, escorregadio, veloz, e era em Paris, e era
no inverno, e eu patinava sobre a neve.
Acordei de manhã, serena, e decidida. Mandei pôr um _coupé_. Saí. Fiz
parar á porta de meu primo. Eram duas horas da tarde. Eu sabia, desde essa
manhã, que Rytmel estava com elle em Bellas. Subi. Appareceu um criado
portuguez, Luis, que eu conhecia, um imbecil, atrevido para o ganho,
discreto pelo medo.
--Mr. Rytmel!
--Saiu, senhora condessa.
--Jacques?
--Foi com elle, senhora condessa.
Jacques era um criado antigo de Rytmel.
--Luis, leva-me ao quarto de mr. Rytmel.
Ao abrir a porta do quarto estremeci. Sentia-me humilhada. Fui rapidamente
a uma secretária, revolvi as gavetas, as pequenas papeleiras. Nenhumas
cartas, apenas cartas indifferentes. Irritada, abri as commodas, espalhei
as roupas, procurei nos bahus, nas malas, nos bolsos, ergui o travesseiro.
Tremia, arquejava. Era uma busca inquisitorial, frenetica, desesperada,
infame!
--Luis, disse eu baixo, Luis, tens vinte libras. Tens cincoenta.
--Mas, minha senhora...
--Este senhor onde tem as suas cartas? Tens cem libras. Dou-te tudo,
estupido... Onde tem elle as cartas, elle?
--Oh minha senhora! disse o creado, com uma voz lamentavel, eu não sei.
--Não tens visto? Não tem uma secretária, uma papeleira, uma carteira?...
--Tem. Tem uma carteira de marroquim. Tral-a comsigo. Anda cheia de
cartas...Levou-a decerto. Nunca a deixa.
Sahi, desci a escada, correndo, fugindo d'aquelle desastre, d'aquella
vergonha, d'aquellas confidencias. Atirei-me para o fundo da carruagem.
--A casa! gritei.
Tinha fechado os _stores_; soluçava, sem soluçar[2].
--Betty! Betty! clamei logo no corredor.
Ella appareceu, correndo.
--Betty, disse eu, vivamente, fechando a porta do quarto. Dize-me: aquella
agua com opio não faz mal?
--Porque? sente-se doente?
--Não. Estou bem. Não faz mal?
--Nenhum.
--Juras?
--Juro. Mas...
--Jura sobre estes santos Evangelhos.
--Oh, senhora! Mas porque? Juro. Mas porque?
--Tens opio? Dá-m'o.
--Quer dormir?
--Não.
Ella então olhou-me, fez-se extremamente pallida:
--Mas, senhora condessa, que quer isto dizer?
--Dá-m'o. Dá-m'o, Betty. Pensas que me quero matar?
Ella calou-se.
--Oh, doida! disse eu, rindo. Se me quizesse matar não t'o pedia. Mas sou
feliz... Passaram-se outras cousas, vês tu? Não t'as digo, mas sou feliz.
Sabes o que é? É que me vou logo encontrar com elle.
E com a voz mais baixa, como envergonhada:
--É ás dez horas, e vês tu? Queria dormir para não esperar.
--Oh, minha senhora, não lhe vá fazer mal! De resto, eu lh'o dou. O frasco
d'opio está aqui n'esta gaveta do lavatorio. Não lhe faça isto mal, meu
Deus!
--Não, não, minha Betty! Ah! está na gaveta? Bem. São duas gotas, sim? Não
me faz mal. Estou tão contente! Olha, até nem quero dormir. Fica aqui a
conversar commigo. São cinco horas. Para as dez pouco falta. Não custa
esperar. Está então n'aquella gaveta o frasco... Bom. Sabes, Betty? sou
feliz. Não quero dormir. Conta-me uma historia.
A pobre creatura, vendo-me alegre, sorria. Eu, entretanto, tinha os olhos
fitos na gaveta do lavatorio. Betty fallava, fallava! Eu ouvia as suas
palavras sem comprehender, como se ouve um murmurio d'agua.

X

A tarde descia no emtanto, e eu sentia uma inquietação, uma angustia
crescente.
Meu primo, não sei se poderei contar-lhe miudamente todos os transes
d'aquella noite. Não o exigirá de certo. Nada seria mais terrivel do que
ter de redigir e colorir o meu crime. Perdôe-me a confusão afflicta das
minhas palavras e os arabescos tremulos da minha lettra.
Eram dez horas da noite: fui á casa n.^o... Rytmel estava lá. Achei-o
pallido, e instinctivamente estremeci. Conversámos. Enquanto elle fallava,
eu olhava-o ávidamente, examinava a sua casaca, espreitava o volume que
devia fazer a carteira onde estavam as cartas. E revolvia com a mão humida
o bolso do meu vestido: tinha n'elle o frasco d'opio. Era um frasco de
crystal verde, facetado, com tampa de metal fixa. As palavras de Rytmel
n'essa noite eram muito doces e muito amantes. Procuravam explicar-me a
sua carta, e palpitavam ainda de paixão... Vinham realmente da verdade do
seu coração? Era uma rhetorica artificial á flor dos labios, enganadora,
como um panno de theatro? Não o sabia: só as cartas d'ella m'o poderiam
revelar, e elle tinha-as ali no bolso! Eu via o volume que fazia a
carteira no peito da casaca! Estava ali a sentença da minha vida, a minha
infelicidade insondavel, ou a immensa pacificação do meu futuro! Podia
porventura hesitar?--Elle fallava no emtanto. Eu tremia toda. Olhava
fixamente para um copo que estava sobre a mesa ao pé d'uma garrafa de
crystal da Bohemia. O reposteiro da alcova achava-se corrido; dentro
estava escuro.
Betty tinha ido commigo, e ficára n'um quarto distante, que dava para uns
terrenos vagos...
--E se houvesse um desastre! pensei eu de repente. Não ha pessoas que
succumbiram completamente, cujo adormecimento foi acabar de arrefecer no
tumulo?
Mas eu via sempre a saliencia da carteira, que me tentava como uma cousa
resplandecente e viva. Podia approximar-me d'elle de repente,
enfraquecel-o ao calor das minhas palavras, ir levemente, astuciosamente,
arrebatar-lhe a carteira, saltar, correr, atirar-me para o fundo do meu
_coupé_, e fugir. Mas se elle resistisse? Se perdesse a consciencia da sua
dignidade e da humilde debilidade do meu ser? Se me sujeitasse
violentamente, se me arrancasse outra vez as cartas?
Não podia ser. Era necessario que dormisse tranquillamente! Se as cartas
fossem innocentes, simples, inexpressivas como eu ajoelharia depois, ao pé
do seu corpo adormecido, como esperaria com uma ancia feliz que elle
acordasse! que aurora sublime acharia elle nos meus olhos quando os seus
se abrissem! Mas se houvesse nas cartas a culpa, a traição, o abandono?!
Levantei-me. Rytmel tinha ao pé de si um copo com agua. Bebia aos pequenos
golos quando fumava. Eu deixava-o fumar. Mas eu não sabia como havia de
achar um momento meu, bastante para deitar duas gotas de opio no copo.
Tive um expediente trivial, estupido.
--Rytmel, disse eu, como n'um theatro, como nas comedias de Scribe, com
uma voz imbecilmente risonha,--vá dizer a Betty, que póde ir, se quizer. A
pobre creatura dormiu pouco, está doente.
Elle saiu; ergui-me. Mas ao approximar-me da mesa, defronte do copo,
fiquei hirta, suspensa. Estive assim um tempo infinito, segundos, com a
mão convulsa apertando o frasco no bolso. Mas era necessario, eu tinha-o
ouvido fallar, voltava, sentia-lhe os passos, ia entrar... Tirei o frasco,
e louca, precipitada, mordendo os beiços para não gritar, esvasiei-o no
copo.
Elle entrou. Eu deixei-me abater sobre uma cadeira, trémula em suor frio,
e, não sei por quê, sentindo uma infinita ternura, disse-lhe sorrindo, e
quasi chorando:
--Ah, como eu sou sua amiga! Sente-se ao pé de mim.
Elle sorriu. E--meu Deus!--approximou-se, creio que sorriu, e tomou o
copo! E com o copo na mão:
--E sabe, disse elle, que ninguem o crê mais do que eu!... Se não fosse o
teu amor como poderia eu viver?
E conservava o copo erguido. Eu estava como fascinada. Via o reflexo da
agua, parecia-me vagamente esverdeada. Via as scintilações do crystal
facetado.
Finalmente bebeu!
... Desde esse momento fiquei n'um terror. Se elle morresse? Meu Deus, por
que? Não se dá opio ás creanças, aos doentes? não é elle a clemente
pacificação das dôres? Não havia perigo. Quando acordasse eu seria tão sua
amiga, tão terna com elle, para me absolver d'aquella aventura imprudente!
Ainda que seja culpado, amal-o-hei! pensava eu. Pobre d'elle! Não lhe
bastava ter de dormir assim forçadamente n'um somno pesado e cruel?
Amal-o-hia, culpado. Trahida, amal-o-hia ainda!
Elle entretanto estava calado, no sophá, com a cabeça encostada. De
repente pareceu-me vel-o empallidecer, ter uma ancia, sorrir. Não sei o
que houve então. Não me lembra se fallámos, se elle adormeceu brandamente,
se alguma convulsão o tomou. De nada me lembro.
Achei-me ajoelhada ao pé d'elle. Devia ser meia noite. Estava immovel,
deitado no sophá. Tinham passado duas horas. Senti-o frio, via-o livido,
não me attrevia a chamar Betty. Dei alguns passos pelo quarto em uma
distracção idiota. Cobri-o com uma manta.
--Vae accordar dizia eu machinalmente.
Compuz-lhe os cabellos ligeiramente desmanchados. De repente a idéa da
morte appareceu-me nitida, e pavorosa. Estava morto! Senti como o fim de
todas as cousas. Mas chamei-o, chamei-o brandamente, e com doçura...
--Rytmel! Rytmel!
E andava nos bicos dos pés para o não acordar! Subitamente estaquei,
olhei-o ávidamente, precipitei-me sobre o corpo d'elle, envolvi-o,
gritando suffocada:
--Rytmel! Rytmel!
Ergui-o: a hallucinação dava-me uma força cruel. A cabeça pendeu-lhe
inanimada. Desapertei-lhe a gravata. Amparei-o nos braços, e n'esse
momento senti o volume, a saliencia que na sua casaca fazia a carteira.
Veiu-me a idéa das cartas. Tudo tinha sido pelo desejo de as lêr.
Tirei-lhe a casaca; era difficil; os seus musculos estavam hirtos. Junto
com a carteira havia outros papeis e um masso de notas de banco. Ao
tomal-os, os papeis e as cartas espalharam-se no chão. Apanhei-as,
apertei-as na gravata branca e metti tudo no bolso.
Isto tinha sido feito convulsivamente, inconscientemente. Dei com os olhos
em Rytmel. Pela primeira vez via contracção mortal do seu rosto. Chamei-o,
fallei-lhe! Estava frenetica! Porque não queria elle acordar? Empurrei-o,
irritei-me com elle. Porque estava assim, porque me fazia chorar? Tinha
vontade de lhe bater, de lhe fazer mal.
--Acorda! acorda!
Insensivel! Insensivel! Morto! Ouvi passar na rua um carro. Havia pois
alguem vivo!
De repente, não sei por que, lembrei-me que tinha esvasiado o frasco!
Deviam ser só duas gotas! Estava morto!
Gritei:
--Betty! Betty!
Ella appareceu, arremessei-me aos seus braços. Chorei. Voltei para junto
d'elle. Ajoelhei. Chamei-o. Quiz dar-lhe um beijo: toquei-lhe com os
labios na testa. Estava gelada. Dei um grito. Tive horror d'elle. Tive
medo do seu rosto livido, das suas mãos geladas!
--Betty, Betty, fujamos!
Consciencia, vontade, raciocinio, pudor, perdi tudo aos pedaços. Tinha
medo, sómente medo, um medo trivial, vil!
--Fujamos! Fujamos!
Não sei como saí.
Fóra da porta vi ao longe, no começo da rua, uma luz caminhar! caminhava,
crescia! Havia alguem, vestido de vermelho, que a trazia! Parecia-me ser
sangue! A luz crescia. Esperei, a tremer. Aquillo caminhava para mim.
Approximava-se! Eu estava encostada á porta, na sombra, fria de pedra. A
luz chegou: vi-a. Era um padre, era outro homem com uma opa vermelha e uma
lanterna. Iam levar a alguem a extrema uncção...
Amparei-me no braço de Betty, e principiei a andar,
sem saber para onde, como louca.[*]

[*] Seguiam-se as linhas em que se contava o encontro que teve commigo, as
quaes linhas elimino por se referirem a successos que eu mesmo narrei e
que v. sr. redactor, já conhece.--A. M. C.


CONCLUEM AS REVELAÇÕES DE A. M. C.

I

Convidada a expor o que sabia, a condessa disse de viva voz, com humildade
e com firmeza, a causa e o modo como involuntariamente matara Rytmel.
--Eis as cartas e as notas que elle trazia comsigo--concluiu ella,
collocando sobre a mesa um masso de papeis atados n'uma gravata branca. As
minhas derradeiras disposições, accrescentou, estão feitas. Dêem-me o
destino que quizerem. Inflijam-me o castigo que mereço.
Estavamos todos calados. F... adiantou-se para o centro da sala e ergueu a
voz:
--Castigar é usurpar um poder providencial. A justiça humana que se
apodera dos criminosos não tem por fim vingar a sociedade, mas sim
protegel-a do contagio e da infecção da culpa. Todo o crime é uma
enfermidade. A acção dos tribunaes sobre os criminosos, posto que nem
sempre cesse de facto, cessa effectivamente de direito no momento em que
termina a cura. Sequestrar aquelles em que o mal deixou de ser uma
suspeita physiologica, e por conseguinte uma verdade scientifica, é fazer
á sociedade uma extorsão, que, por ser muitas vezes irremediavel não deixa
de ser monstruosa e horrivel. Todo aquelle que não é pernicioso, é
necessario, é indispensavel ao conjuncto dos sentimentos, ao destino das
idéas, á arithmetica dos factos no problema da humanidade. A natureza do
acto que estamos ponderando, as rasões que o determinaram, as
circumstancias que o revestiram, a intenção que lhe deu origem, tudo isto
nos convence de que a liberdade d'esta senhora não póde constituir um
perigo. Encarcerada e entregue á acção dos tribunaes, seria uma
causa-crime, interessante, escandalosa, prejudicial. Restituida a si
mesma, será um exemplo, uma lição.
E approximando-se da porta, correu a chave que a fechava por dentro,
abriu-a de par em par, e dirigindo-se á condessa, com voz respeitosa e
grave, accrescentou:
--Vá, minha senhora: tem a mais plena liberdade. Poderia disputar-lh'a a
justiça official, não póde empecer-lh'a a rectidão dos homens de bem a
quem foi entregue a decisão da sua causa. O seu futuro, violentamente
assignalado pela desgraça, não pertence aos criminosos, pertence aos
desgraçados. Leve-lhes a melancolica lição d'estes desenganos, e permitta
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