O Mysterio da Estrada de Cintra. Cartas ao Diário de Noticias - 01

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O Mysterio da Estrada de Cintra

COLLECÇÃO ANTONIO MARIA PEREIRA

EÇA DE QUEIROZ E RAMALHO ORTIGÃO


O Mysterio da Estrada de Cintra

Cartas ao _Diario de Noticias_

Terceira Edição emendada e precedida d'um Prefacio

LISBOA
Livraria de Antonio Maria Pereira, Editor
50--RUA AUGUSTA--54
MDCCCXCIV

LISBOA
TYPOGRAPHIA E STEREOTYPIA MODERNA
11--Apostolos--1.^o


+PREFACIO DA 2^a EDIÇÃO+

CARTA AO EDITOR D'O _Mysterio da Estrada de Cintra_

Ha quatorze annos, n'uma noite de verão no Passeio Publico, em frente de
duas chavenas de café, penetrados pela tristeza da grande cidade que em
torno de nós cabeceava de somno ao som de um soluçante _pot-pourri_ dos
_Dois Foscaris_, deliberámos reagir sobre nós mesmos e acordar tudo aquilo
a berros, n'um romance tremendo, businado á baixa das alturas do _Diario
de Noticias_.
Para esse fim, sem plano, sem methodo, sem escola, sem documentos, sem
estylo, recolhidos á simples «torre de crystal da Imaginação», desfechámos
a improvisar este livro, um em Leiria, outro em Lisboa, cada um de nós com
com uma resma de papel, a sua alegria e a sua audacia.
Parece que Lisboa effectivamente despertou, pella sympathia ou pela
curiosidade, pois que tendo lido na larga tiragem do _Diario de Noticias_
o _Mysterio da Estrada de Cintra_, o comprou ainda n'uma edição em livro;
e hoje manda-nos V. as provas de uma terceira edição, perguntando-nos o
que pensamos da obra escripta n'esses velhos tempos, que recordamos com
saudade...
Havia já então terminado o feliz reinado do senhor D. João VI. Fallecera o
sympathico Garção, Tolentino o jocundo, e o sempre chorado Quita. Além do
Passeio Publico, já n'essa epoca evacuado como o resto do paiz pelas
tropas de Junot, encarregava-se tambem de fallar ás imaginações o sr.
Octave Feuillet. O nome de Flaubert não era familiar aos folhetinistas.
Ponson du Terrail trovejava no Sinai dos pequenos jornaes e das
bibliothecas economicas. O sr. Jules Claretie publicava um livro
intitulado... (ninguem hoje se lembra do titulo) do qual diziam
commovidamente os criticos:--_Eis ahi uma obra que ha de ficar!_... Nós,
emfim, eramos novos.
O que pensamos hoje do romance que escrevemos ha quatorze annos?...
Pensamos simplesmente--louvores a Deus!--que elle é execravel; e nenhum de
nós, quer como romancista, quer como critico, deseja, nem ao seu peor
inimigo, um livro egual. Porque n'elle ha um pouco de tudo quanto um
romancista lhe não deveria pôr e quasi tudo quanto um critico lhe deveria
tirar.
Poupemol-o--para o não aggravar fazendo-o em tres volumes--á enumeração de
todas as suas deformidades! Corramos um veu discreto sobre os seus
mascarados de diversas alturas, sobre os seus medicos mysteriosos, sobre
os seus louros capitães inglezes, sobre as suas condessas fataes, sobre os
seus tigres, sobre os seus elephantes, sobre os seus hiates em que se
arvoram, como pavilhões do ideal, lenços brancos de cambraia e renda,
sobre os seus sinistros copos d'opio, sobre os seus cadaveres elegantes,
sobre as suas _toilettes_ romanticas, sobre os seus cavallos esporeados
por cavalleiros de capas alvadias desapparecendo envoltos no pó das
phantasticas aventuras pella Porcalhota fóra!...
Todas estas cousas, aliás sympathicas, commoventes por vezes, sempre
sinceras, desgostam todavia velhos escriptores, que ha muito desviaram os
seus olhos das perspectivas enevoadas da sentimentalidade, para estudarem
pacientemente e humildemente as claras realidades da sua rua.
Como permittimos pois que se republique um livro que sendo todo
d'imaginação, scismando e não observado, desmente toda a campanha que
temos feito pella arte de analyse e de certeza objectiva?
Consentimol-o porque entendemos que nenhum trabalhador deve parecer
envergonhar-se do ser trabalho.
Conta-se que Murat, sendo rei de Napoles, mandara pendurar na sala do
throno o seu antigo chicote de postilhão, e muitas vezes, apontando para o
sceptro mostrava depois o açoite, gostando de repetir: _Comecei por ali_.
Esta gloriosa historia confirma o nosso parecer, sem com isto querermos
dizer que ella se applique ás nossa pessoas. Como throno temos ainda a
mesma velha cadeira em que escreviamos ha quinze annos; não temos docel
que nos cubra; e as nossas cabeças, que embranquecem, não se cingem por
emquanto de corôa alguma, nem de louros, nem de Napoles.
Para nossa modesta satisfação basta-nos não ter cessado de trabalhar um só
dia desde aquelle em que datámos este livro até o instante em que elle nos
reapparece inesperadamente na sua terceira edição, com um petulante
arzinho de triumpho que, á fé de Deus, não lhe vae mal!
Então, como agora, escreviamos honestamente, isto é, o melhor que
podiamos: d'esse amor da perfeição, que é a honradez dos artistas, veio
talvez a sympathia do publico ao livro da nossa mocidade.
Ha mais duas razões, para auctorizar esta reedição.
A primeira é que a publicação d'este livro, fóra de todos os moldes até o
seu tempo consagrados, pode conter, para uma geração que precisa de a
receber, uma util lição de independencia.
A mocidade que nos succedeu, em vez de ser inventiva, audaz,
revolucionaria, destruidosa d'idolos, parece-nos servil, imitadora,
copista curvada de mais deante dos mestres. Os novos escriptores não
avançam um pé que não pousem na pégada que deixaram outros. Esta
pusilanimidade torna todas as obras tropegas, dá-lhes uma expressão
estafada; e a nós, que partimos, a geração que chega faz-nos o effeito de
sahir velha do berço e de entrar na arte de muletas.
Os documentos das nossas primeiras loucuras de coração queimámol-os ha
muito, os das nossas extravagancias de espirito desejamos que fiquem. Aos
vinte annos é preciso que alguem seja estroina, nem sempre talvez para que
o mundo progrida, mas ao menos para que o mundo se agite, Para ser
ponderado, correcto e immovel ha tempo de sobra na velhice.
Na arte, a indisciplina dos novos, a sua rebelde força de resistencia ás
correntes da tradição, é indispensavel para a revivescencia da invenção e
do poder criativo, e para a originalidade artistica. Ai das litteraturas
em que não ha mocidade! Como os velhos que atravessaram a vida sem o
sobressalto de uma aventura, não haverá n'ellas que lembrar. Além de que,
para os que na edade madura foram arrancados pelo dever ás facilidades da
improvisação e encontram n'esta região dura das coisas exactas,
entristecedora e mesquinha, onde, em logar do esplendor dos heroismos e da
belleza das paixões, só ha a pequenez dos caracteres e a miseria dos
sentimenos, seria dôce e reconfortante ouvir de longe a longe, nas manhãs
de sol, ao voltar da primavera, zumbir no azul, como nos bons tempos, a
doirada abelha da phantasia.
A ultima razão que nos leva a não repudiar este livro, é que elle é ainda
o testemunho da intima confraternidade de dois antigos homens de lettras,
resistindo a vinte annos de provação nos contactos de uma sociedade que
por todos os lados se dissolve. E, se isto não é um triumpho para o nosso
espírito, é para o nosso coração uma suave alegria.
Lisboa, 14 de dezembro de 1881
De V.
Antigos amigos
Eça de Queiroz
Ramalho Ortigão

+O MYSTERIO DA ESTRADA DE CINTRA+


+EXPOSIÇÃO DO DOUTOR*** +

I

Sr. redactor do _Diario de Noticias_
Venho pôr nas suas mãos a narração de um caso verdadeiramente
extraordinario em que intervim como facultativo, pedindo-lhe que, pelo
modo que entender mais adequado, publique na sua folha a substancia, pelo
menos, do que vou expôr.
Os successos a que me refiro são tão graves, cerca-os um tal mysterio,
envolve-os uma tal apparencia de crime que a publicidade do que se passou
por mim torna-se importantissima como chave unica para a desencerração de
um drama que supponho terrivel com quanto não conheça d'elle senão um só
acto e ignore inteiramente quaes foram as scenas precedentes e quaes
tenham de ser as ultimas.
Ha tres dias que eu vinha dos suburbios de Cintra em companhia de F..., um
amigo meu, em cuja casa tinha ido passar algum tempo.
Montavamos dois cavallos que F... tem na sua quinta e que deviam ser
reconduzidos a Cintra por um criado que viera na vespera para Lisboa.
Era ao fim da tarde quando atravessámos a charneca. A mellancolia do logar
e da hora tinha-se-nos communicado, e vinhamos silenciosos, abstrahidos na
paizagem, caminhando a passo.
A cerca de talvez de meia distancia do caminho entre S. Pedro e o Cacem,
n'um ponto a que não sei o nome, porque tenho transitado pouco n'aquella
estrada, sitio deserto como todo o caminho através da charneca, estava
parada uma carruagem.
Era um _coupé_ pintado de escuro, verde e preto, e tirado por uma parelha
côr de castanha.
O cocheiro, sem libré, estava em pé, de costas para nós, diante dos
cavallos.
Dois sujeitos achavam-se curvados ao pé das rodas que ficavam para a parte
da estrada por onde tinhamos de passar, e pareciam occupados em examinar
attentamente o jogo da carruagem.
Um quarto individuo, egualmente de costas para nós, estava perto do
vallado do outro lado do caminho, procurando alguma cousa, talvez uma
pedra para calçar o trem.
É o resultado das sobrodas que tem a estrada, observou o meu amigo.
Provavelmente o eixo partido ou alguma roda desembuxada.
Passavamos a este tempo pelo meio dos tres vultos a que me referi, e F...
tinha tido apenas tempo de concluir a phrase que proferira, quando o
cavallo que eu montava deu repentinamente meia volta rapida, violenta, e
caiu de chapa.
O homem que estava junto do vallado, ao qual eu não dava attenção porque
ia voltado a examinar o trem, determinara essa queda, colhendo
repentinamente e com a maxima força as redeas que ficavam para o lado
d'elle e impellindo ao mesmo tempo com um pontapé o flanco do animal para
o lado oposto.
O cavallo, que era um poldro de pouca força e mal manejado, escorregou das
pernas e tombou ao dar a volta rapida e precipitada a que o tinham
constrangido.
O desconhecido fez levantar o cavallo segurando-lhe as redeas, e,
ajudando-me a erguer, indagava com interesse se eu teria molestado a perna
que ficára debaixo do cavallo.
Este individuo tinha na voz a entoação especial dos homens bem educados. A
mão que me offereceu era delicada. O rosto tinha-o coberto com uma mascara
de setim preto. Entrelembro-me de que trazia um pequeno fumo no chapeu.
Era um homem agil e extremamente forte, segundo denota o modo como fez
cair o cavallo.
Ergui-me alvoroçadamente e, antes de ter tido ocasião de dizer uma
palavra, vi que, ao tempo da minha queda, se travara lucta entre o meu
companheiro e os outros dois individuos que fingiam examinar o trem e que
tinham a cara coberta como aquelle de que já fallei.
Puro Ponson du Terrail! dirá o sr. redactor. Evidentemente. Parece que a
vida, mesmo no caminho de Cintra, pode às vezes ter o capricho de ser mais
romanesca do que pede a verosimilhança artistica. Mas eu não faço arte,
narro factos unicamente.
F..., vendo o seu cavallo subitamente seguro pellas cambas do freio, tinha
obrigado a largal-o um dos desconhecidos, em cuja cabeça descarregára uma
pancada com o cabo do chicote, o qual o outro mascarado conseguira logo
depois arrancar-lhe da mão.
Nenhum de nós trazia armas. O meu amigo tinha no entanto tirado da
algibeira a chave de uma porta da casa de Cintra, e esporeava o cavallo
estirando-se-lhe no pescoço e procurando alcançar a cabeça d'aquelle que o
tinha seguro.
O mascarado, porém, que continuava a segurar em uma das mãos o freio do
cavallo empinado, apontou com a outra um rewolver á cabeça do meu amigo e
disse-lhe com serenidade:
--Menos furia! menos furia!
O que levára com o chicote na cabeça e ficára por um momento encostado á
portinhola do trem, visivelmente atordoado mas não ferido, porque o cabo
era de baleia e tinha por castão uma simples guarnição feita com uma
trança de clina, havia já a este tempo levantado do chão e posto na cabeça
o chapeu que lhe caira.
A este tempo o que me derribara o cavallo e me ajudara a levantar tinha-me
deixado ver um par de pequeninas pistolas de coronhas de prata, d'aquellas
a que chamam em França _coups de poing_ e que varam uma porta a trinta
passos de distancia. Depois do que, me offereceu delicadamente o braço,
dizendo-me com afabilidade:
--Parece-me mais commodo acceitar um logar que lhe offereço na carruagem
do que montar outra vez no cavallo ou ter de arrastar a pé d'aqui á
pharmacia da Porcalhota a sua perna magoada.
Não sou dos que se amedrontam mais promptamente com a ameaça feita com
armas. Sei que ha um abysmo entre prometter um tiro e desfechal-o. Eu
movia bem a perna trilhada, o meu amigo estava montado em um cavallo
possante; somos ambos robustos; poderiamos talvez resistir por dez
minutos, ou por um quarto de hora, e durante esse tempo nada mais
provavel, em estrada tão frequentada como a de Cintra n'esta quadra, do
que apparecerem passageiros que nos prestassem auxílio.
Todavia confesso que me sentia attrahido para o imprevisto de uma tão
extranha aventura.
Nenhum caso anterior, nenhuma circumstancia da nossa vida nos permittia
suspeitar que alguem podesse ter interesse em exercer comnosco pressão ou
violencia alguma.
Sem eu bem poder a esse tempo explicar porquê, não me parecia tambem que
as pessoas que nos rodeavam projectassem um roubo, menos ainda um
homicidio. Não tendo tido tempo de observar miudamente a cada um, e
tendo-lhes ouvido apenas algumas palavras fugitivas, figuravam-se-me
pessoas de bom mundo. Agora que de espírito socegado penso no acontecido,
vejo que a minha conjectura se baseava em varias circumstancias dispersas,
nas quaes, ainda que de relance, eu attentara, mesmo sem proposito de
analyse. Lembro-me, por exemplo, que era de setim alvadio o forro do
chapeu do que levara a pancada na cabeça. O que apontára o rewolver a F...
trazia calçada uma luva côr de chumbo apertada com dois botões. O que me
ajudára a levantar tinha os pés finos e botas envernizadas; as calças, de
casimira côr de avelã, eram muito justas e de presilhas. Tinha esporas.
Não obstante a disposição em que me achava de ceder da lucta e de entrar
no trem, perguntei em allemão ao meu amigo se elle era de opinião que
resistissemos ou que nos rendessemos.
--Rendam-se, rendam-se para nos poupar algum tempo que nos é precioso!
disse gravemente um dos desconhecidos. Por quem são, acompanhem-nos! Um
dia saberão por que motivo lhes sahimos ao caminho mascarados. Damos-lhes
a nossa palavra que ámanhã estarão nas suas casas, em Lisboa. Os cavallos
ficarão em Cintra d'aqui a duas horas.
Depois de uma breve reluctancia, que eu contribuí para desvanecer, o meu
companheiro apeou-se e entrou no _coupé_. Eu segui-o.
Cederam-nos os melhores logares. O homem que se achava em frente da
parelha segurou os nossos cavallos; o que fizera cair o poldro subiu para
a almofada e pegou nas guias; ou outros dois entraram comnosco e
sentaram-se nos logares fronteiros aos nossos. Fecharam-se em seguida os
stores de madeira dos postigos e correu-se uma cortina de seda verde que
cobria por dentro os vidros fronteiros da carruagem.
No momento de partirmos, o que ia guiar bateu na vidraça e pediu um
charuto. Passaram-lhe para fóra uma charuteira de palha de Java. Pella
fresta por onde recebeu os charutos lançou para dentro do trem a mascara
que tinha no rosto, e partimos a galope.
Quando entrei para a carruagem pareceu-me avistar ao longe, vindo de
Lisboa, um omnibus, talvez uma sege. Se me não illudi, a pessoa ou pessoas
que vinham no trem a que me refiro terão visto os nossos cavallos, um dos
quaes é russo e o outro castanho, e poderão talvez dar noticia da
carruagem em que íamos e da pessoa que nos servia de cocheiro. O coupé
era, como já disse, verde e preto. Os stores, de mogno polido, tinham no
alto quatro fendas estreitas e oblongas, dispostas em cruz.
Falta-me tempo para escrever o que ainda me resta por contar a horas de
expedir ainda hoje esta carta pela posta interna.
Continuarei. Direi então, se o não suspeitou já, o motivo porque lhe
occulto o meu nome e o nome do meu amigo.

II

Julho, 24 de 1870--Acabo de ver a carta que lhe dirigi publicada
integralmente por v. no logar destinado ao folhetim do seu periodico. Em
vista da collocação dada ao meu escripto procurarei nas cartas que houver
de lhe dirigir não ultrapassar os limites demarcados a esta secção do
jornal.
Por esquecimento não datei a carta antecedente, ficando assim duvidoso
qual o dia em que fomos surprehendidos na estrada de Cintra. Foi quarta
feira, 20 do corrente mez de julho.
Passo de prompto a contar-lhe o que se passou no trem, especificando
minuciosamente todos os pormenores e tentando reconstruir o dialogo que
travámos, tanto quanto me seja possivel com as mesmas palavras que n'elle
se empregaram.
A carruagem partiu na direcção de Cintra. Presumo porém que deu na estrada
algumas voltas, muito largas e bem dadas porque se não presentiram pela
intercadencia da velocidade no passo dos cavallos. Levaram-me a suppol-o,
em primeiro logar as differenças de declive no nivel do terreno, com
quanto estivessemos rodando sempre em uma estrada macadamisada e lisa; em
segundo logar umas leves alterações na quantidade de luz que havia dentro
do _coupé_ coada pela cortina de seda verde, o que me indicava que o trem
passava por encontradas exposições com rellação ao sol que se escondia no
horisonte.
Havia evidentemente o designio de nos desorientar no rumo definitivo que
tomassemos.
É certo que, dois minutos depois de termos principiado a andar, me seria
absolutamente impossivel decidir se ia de Lisboa para Cintra ou se vinha
de Cintra para Lisboa.
Na carruagem havia uma claridade bassa e tenue, que todavia nos permittia
distinguir os objectos. Pude ver as horas no meu relogio. Eram sete e um
quarto.
O desconhecido que ia defronte de mim examinou tambem as horas. O relogio
que elle não introduziu bem na algibeira do collete e que um momento
depois lhe caiu, ficando por algum tempo patente e pendido da corrente,
era um relogio singular que se não confunde facilmente e que não deixará
de ser reconhecido, depois da noticia que dou d'elle, pellas pessoas que
alguma vez o houvessem visto. A caixa do lado opposto ao mostrador era de
esmalte preto, liso, tendo no centro, por baixo de um capacete, um escudo
de armas de ouro encobrado e polido.
Havia poucos momentos que caminhavamos quando o individuo sentado defronte
de F..., o mesmo que na estrada nos instara mais vivamente para que o
acompanhassemos, nos disse:
--Eu julgo inutil asseverar-lhes que devem tranquilisar-se inteiramente em
quanto á segurança das suas pessoas...
--Está visto que sim, respondeu o meu amigo; nós estamos perfeitamente
socegados a todos os respeitos. Espero que nos façam a justiça de
acreditar que nos não têem coactos pelo medo. Nenhum de nós é tão creança
que se apavore com o aspecto das suas mascaras negras ou das suas armas de
fogo. Os senhores acabam de ter a bondade de nos certificar de que não
querem fazer-nos mal: nós devemos pela nossa parte annunciar-lhes que
desde o momento em que a sua companhia principiasse a tornar-se-nos
desagradavel, nada nos seria mais facil do que arrancar-lhes as mascaras,
arrombar os stores, convidal-os perante o primeiro trem que passasse por
nós a que nos entregassem as suas pistolas, e relaxal-os em seguida aos
cuidados policiaes do regedor da primeira parochia que atravessassemos.
Parece-me portanto justo que principiemos por prestar o devido culto aos
sentimentos da amabilidade, pura e simples, que nos tem aqui reunidos.
D'outro modo ficariamos todos grotescos: os senhores terriveis e nós
assustados.
Com quanto estas cousas fossem ditas por F... com um ar de bondade
risonha, o nosso interlocutor parecia irritar-se progressivamente ao
ouvil-o. Movia convulsivamente uma perna, firmando o cotovello n'um
joelho, pousando a barba nos dedos, fitando de perto o meu amigo. Depois,
reclinando-se para traz e como se mudasse de resolução:
--No fim de contas, a verdade é que tem razão e talvez eu fizesse e
dissesse o mesmo no seu logar.
E, tendo meditado um momento, continuou:
--Que diriam porém os senhores se eu lhes provasse que esta mascara em que
querem ver apenas um symptoma burlesco é em vez d'isso a confirmação da
seriedade do caso que nos trouxe aqui?... Queiram imaginar por um momento
um d'esses romances como ha muitos: Uma senhora casada, por exemplo, cujo
marido viaja ha um anno. Esta senhora, conhecida na sociedade de Lisboa,
está gravida. Que deliberação ha de tomar?
Houve um silencio.
Eu aproveitei a pequena pausa que se seguiu ao enunciado um tanto rude
d'aquelle problema e respondi:
--Enviar ao marido uma escriptura de separação em regra. Depois, se é
rica, ir com o amante para a America ou para a Suissa; se é porbre,
comprar uma machina de costura e trabalhar para fóra n'uma agua furtada. É
o destino para as pobres e para as ricas. De resto, em toda a parte se
morre depressa n'essas condições, n'um _cottage_ á beira do lago Genebra
ou n'um quarto de oito tostões ao mez na rua dos Vinagres. Morre-se
egualmente, de tisica ou de tedio, no esfalfamento do trabalho ou no enjôo
do idyllio.
--E o filho?
--O filho, desde que está fóra da familia e fóra da lei, é um desgraçado
cujo infortunio provém em grande parte da sociedade que ainda não soube
definir a responsabilidade do pae clandestino. Se os paes fazem como a
legislação, e mandam buscar gente á estrada de Cintra para perguntar o que
se ha de fazer, o melhor para o filho é deital-o á roda.
--O doutor discorre muito bem como philosopho distincto. Como puro medico,
esquece-lhe talvez que na conjunctura de que se trata, antes de deitar o
filho á roda ha uma pequena formalidade a cumprir, que é deital-o ao
mundo.
--Isso é com os especialistas. Creio que não é n'essa qualidade que estou
aqui.
--Engana-se. É precisamente como medico, é n'essa qualidade que aqui está
e é por esse titulo que viemos busca-lo de surpresa á estrada de Cintra e
o levamos a occultas a prestar auxílio a uma pessoa que precisa d'elle.
--Mas eu não faço clinica.
--É o mesmo. Não exerce essa profissão; tanto melhor para o nosso caso:
não prejudica os seus doentes abandonando-os por algumas horas para nos
seguir n'esta aventura. Mas é formado em Paris e publicou mesmo uma these
de cirurgia que despertou a attenção e mereceu o elogio da faculdade.
Queira fazer de conta que vae assistir a um parto.
O meu amigo F... poz-se a rir e observou:
--Mas eu que não tenho curso medico nem these alguma de que me accuse na
minha vida, não quererão dizer-me o que vou fazer?
--Quer saber o motivo porque se encontra aqui?... Eu lh'o digo.
N'este momento porém a carruagem parou repentinamente e os nossos
companheiros sobresaltados ergueram-se.

III

Percebi que saltava da almofada o nosso cocheiro. Ouvi abrir
successivamente as duas lanternas e raspar um phosphoro na roda. Senti
depois estalir a mola que comprime a portinha que se fecha depois de
accender as velas, e rangerem nos anneis dos cachimbos os pés das
lanternas como se as estivessem endireitando.
Não comprehendí logo a razão porque nos tivessemos detido para similhante
fim, quando não tinha caído a noite e íamos por bom caminho.
Isto porém explica-se por um requinte de precaução. A pessoa que nos
servia de cocheiro não quereria parar em logar onde houvesse gente. Se
tivessemos de atravessar uma povoação, as luzes que principiassem a
accender-se e que nós veriamos atravez da cortina ou das fendas dos
stores, poderiam dar-nos alguma idéa do sitio em que nos achassemos. Por
esta fórma esse meio de investigação desapparecia. Ao passarmos entre
predios ou muros mais altos, a projecção da luz forte das lanternas sobre
as paredes e a reflexão d'essa claridade para dentro do trem
impossibilitava-nos de distinguir se atravessavamos uma aldeia ou uma rua
illuminada.
Logo que a carruagem começou a rodar depois de accezas as lanternas,
aquelle dos nossos companheiros que promettera explicar a F... a razão
porque elle nos acompanhava, prosseguiu:
--O amante da senhora a quem me refiro, imagine que sou eu. Sabem-no
unicamente n'este mundo tres amigos meus, amigos intimos, companheiros de
infancia, camaradas de estudo, tendo vivido sempre juntos, estando cada um
constantemente prompto a prestar aos outros os derradeiros sacrificios que
póde impôr a amizade. Entre os nossos companheiros não havia um medico.
Era mister obtel-o e era ao mesmo tempo indispensavel que não passasse a
outrem, quem quer que fosse, o meu segredo, em que estão envoltos o amor
de um homem e a honra de uma senhora. O meu filho nascerá provavelmente
esta noite ou ámanhã pela manhã; não devendo saber ninguem quem é sua mãe,
não devendo sequer por algum indicio vir a suspeitar um dia quem ella
seja, é preciso que o doutor ignore quem são as pessoas com quem falla, e
qual é a casa em que vae entrar. Eis o motivo por que nós temos no rosto
uma mascara; eis o motivo porque os senhores nos hão de permittir que
continuemos a ter cerrada esta carruagem, e que lhes vendemos os olhos
antes de os apearmos defronte do predio a que vão subir. Agora
comprehende, continuou elle dirigindo-se a F..., a razão por que nos
acompanha. Era-nos impossivel evitar que o senhor viesse hoje de Cintra
com o seu amigo, era-nos impossivel adiar esta visita, e era-nos
impossivel tambem deixal-o no ponto da estrada em que tomámos o doutor. O
senhor acharia facilmente meio de nos seguir e de descobrir quem somos.
--A lembrança, notei eu, é engenhosa mas não lisongeira para a minha
discrição.
--A confiança na discrição alheia é uma traição ao segredo que nos não
pertence.
F... achava-se inteiramente d'accordo com esta maneira de ver, e disse-o
elogiando o espírito da aventura romanesca dos mascarados.
As palavras de F... accentuadas com sinceridade e com affecto, pareceu-me
que perturbaram algum tanto o desconhecido. Figurou-se-me que esperava
discutir mais tempo para conseguir persuadir-nos e que o desnorteava e
surprehendia desagradavelmente esse córte imprevisto. Elle, que tinha a
replica prompta e a palavra facil, não achou que retorquir á confiança com
que o tratavam, e guardou, desde esse momento até que chegámos, um
silencio que devia pezar ás suas tendencias expansivas e discursadoras.
É verdade que pouco depois d'este dialogo o trem deixou a estrada de
macadam em que até ahi rodara e entrou n'um caminho vicinal ou n'um
atalho. O solo era pedregoso e esburacado; os solavancos da carruagem, que
seguia sempre a galope governada por mão de mestre, e o estrepito dos
stores embatendo nos caixilhos mal permittiriam conversar.
Tornámos por fim a entrar n'uma estrada lisa. A carruagem parou ainda uma
segunda vez, o cocheiro apeou rapidamente, dizendo:
--Lá vou!
Voltou pouco depois, e eu ouvi alguem que dizia:
--Vão com raparigas para Lisboa.
O trem prosseguiu.
Seria uma barreira da cidade? Inventaria o que nos guiava um pretexto
plausível para que os guardas nos não abrissem a portinhola?
Entender-se-hia com os meus companheiros a phrase que eu ouvira?
Não posso dizel-o com certeza.
A carruagem entrou logo depois n'um pavimento lageado e d'ahi a dois ou
tres minutos parou. O cocheiro bateu no vidro, e disse:
--Chegámos.
O mascardo que não tornara a pronunciar uma palavra desde o momento que
acima indiquei, tirou um lenço da algibeira e disse-nos com alguma
commoção:
--Tenham paciencia! perdôem-m'o... Assim é preciso!
F... approximou o rosto, e elle vendou-lhe os olhos. Eu fui egualmente
vendado pelo que estava em frente de mim.
Apeámo-nos em seguida e entrámos n'um corredor conduzidos pela mão dos
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