O Mysterio da Estrada de Cintra. Cartas ao Diário de Noticias - 10

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fim d'esse verão, em Cascaes. Ella mostrava-se alegre, o que era talvez
uma maneira de estar triste! Cascaes estava imbecilmente jovial: _batia-se
o fado!_ No inverno seguinte a condessa encontrou-se, em Paris e em
Londres, com Rytmel. Voltou d'essa viagem mais triste e mais pallida.
Lentamente, pareceu-me que a confiança do seu coração se affastava de mim.
Apartei-me, n'uma reserva discreta. Nunca mais nos nossos dialogos, todos
exteriores e ephemeros, se alludiu á viagem de Malta.
Eu, no entanto, continuava recebendo de Rytmel as cartas mais expansivas e
mais intimas. A nossa amisade, que a exaltação e o acaso das paixões
formara, affirmava-se agora n'uma communhão serena de sentimentos e de
idéas. N'uma d'essas cartas Rytinel fallava-me de miss Shorn, uma rapariga
irlandeza...
«É uma neta dos bardos, uma sombra ossianica, a alma da verde Erin!»
dizia-me elle.
No começo d'esta primavera recebi uma carta de Rytmel que continha estas
palavras:
«Parto para ahi: um quarto livre e solitario em tua casa; bons charutos;
uma casa affastada e livre n'um bairro pobre; um _coupé_ escuro com bons
_stores_; reserva e amisade.--_Frater, Rytmel_.»
Executei escrupulosamente as suas determinações.
Ha sessenta dias, talvez, Rytmel chegou, no paquete de Southampton.
Pareceu-me mais triste, mais concentrado.
Havia certamente um segredo, uma preoccupação, um cuidado qualquer, que
habitava no seu peito. Esperei que elle se abrisse expansivamente commigo
n'alguma das longas horas intimas, em que, no jardim de minha casa,
fallavamos na essencia dos sentimentos. Nunca dos labios d'elle saiu uma
confidencia: apenas duas ou tres vezes o nome de miss Shorn, que segundo
elle me disse, era uma relação recente de sua irmã, appareceu vagamente no
indefinido da conversação.
A sua vida em minha casa, era de um extremo recolhimento.
Parecia mais um refugiado politico do que um amante amado. Não tinha
relações nem convivencias. Ás vezes de manhã saía n'um _coupé_
cuidadosamente fechado, que perpetuamente estacionava á porta.
De tarde, ás oito horas, saía tambem, e só o via no outro dia ao almoço,
em que elle apparecia sempre levemente contrariado pelas cartas que lhe
vinham de Londres e de Paris. Notei por esse tempo umas certas tendencias
mysticas no seu espirito, de ordinario tão positivo e tão rectilineo.
Surprehendi-o mesmo uma vez lendo a _Imitação_.
N'um caracter logico e frio como o de Rytmel, aquelle estado de espirito
era de certo o symptoma de uma grave perturbação do coração.
Fallava ás vezes em Carmen, sempre com saudade. Gostava de conversar das
cousas de religião e das legendas do ceu. Fallava na _Trapa_, no socego
immortal dos claustros, e nas chimeras da vida. Eu extranhava-o.
Desde que elle viera para Lisboa eu não voltara a casa da condessa, por um
certo sentimento altivo de reserva e de orgulho. N'esse tempo estava ella
absolutamente livre. O conde achava-se em Bruxellas, onde Mademoiselle
Rise o tinha captivo dos nervosos e ageis bicos dos seus pés, que então
escreviam pequeninos poemas no tablado do _Theâtre du Prince Royal_.
Um dia, inesperadamente, recebi da condessa um bilhete que dizia:
«Meu primo: Se um gelado tomado n'um terraço com uma velha amiga não
sobreexcita excessivamente os seus nervos, espero-o esta tarde em... (era
uma quinta ao pé de Lisboa que ella habitava algumas vezes no verão).
Traga o seu amigo Rytmel.»
Mostrei o bilhete a Rytmel, e pelas seis horas da tarde rodavamos na
estrada de... n'um _coupé_ com os _stores_ corridos.
A condessa tinha acabado de jantar. Passeámos nas sombrias ruas da quinta,
apanhámos flôres, e voltaram aquellas boas horas intimas d'outr'ora,
cheias de abandono e de espirito. A condessa estava radiante.
Ás onze horas da noite fomos tomar chá para o terraço. Havia um admiravel
luar. O terraço tem na sua base um grande tanque, cheio de plantas da
agua, de largas folhas, e de nenufares, e onde poderia navegar um escaler.
A agua escorre alli com um murmurio doce. A hora era adoravel. As redondas
massas de verdura do jardim, os arvoredos, appareciam como grandes sombras
pesadas e cheias de mysterio. Ao longe os campos e os prados esbatiam-se
n'um vapor docemente luminoso e pallido. Havia um silencio suspenso. As
cousas pareciam contemplar e sonhar.
Sobre uma mesa no terraço estava um bule do Japão e tres pequeninas
chavenas de Sévres, uma das quaes, de um gosto original e feliz, era a da
condessa. Tinhamos tomado chá, e eu notava a excentrica fórma, o delicado
desenho, a pura perfeição d'aquella maravilhosa e pequena chavena, que a
condessa chamava a _sua taça_.
--O rei Arthur só podia beber pelo seu copo de estanho... disse Rytmel,
sorrindo.
--E eu só posso tomar chá por esta taça, disse a condessa. Não sei porque,
representa para mim o socego, a felicidade. Quando estou triste e bebo por
ella parece-me que se dissipa a nuvem. Uma flôr que eu queira conservar
ponho-a dentro d'essa chavena, e a flôr não murcha. Demais o chá bebido
por ella tem um gosto especial: ora veja, captain Rytmel! beba!
Toda aquella glorificação da chavena tinha tido por fim o poder Rytmel, na
minha presença, sem isso ser menos discreto, beber pela chavena da
condessa,--encanto supersticioso e romantico, que pertence de grande
antiguidade á tradição do amor!
Rytmel agradeceu, deitou uma gota de chá na pequenina chavena dourada. Eu
no entanto olhava a condessa.
Estava originalmente linda. Tinha o vestido levemente decotado sobre o
seio. E o luar dava-lhe aquelle limbo poetico que todas as claridades
mysteriosas, ou venham de astros mortos ou de luzes desmaiadas, dão ás
figuras louras.
Havia um piano no terraço; a condessa sentou-se, e sob os seus dedos o
teclado de marfim, chorou um momento. O silencio, o infinito da luz, a
attitude contemplativa das cousas, o murmuroso chorar da agua nas bacias
de marmore, tudo nos tinha insensivelmente lançado n'um estado de suave e
vago romantismo...
De repente a condessa elevou a voz e cantou. Era a ballada do _Rei de
Thule_.
Alguem tinha traduzido aquella ballada em rimas populares. E era assim que
a condessa gostava de a dizer, em logar d'usar as palavras italianas com a
sua banalidade de _libretto_.
Houve outr'ora um rei de Thule
A quem, em doce legado,
Deixou a amante ao morrer
Um copo d'ouro lavrado.
Eu ficara junto do piano, fumando. Rytmel, de pé, encostado á balaustrada,
enlevado no penetrante encanto d'aquella canção, olhava a agua do tanque,
onde tremia a claridade da lua, conservando a taça na mão.
Os dedos da condessa volteavam no teclado de marfim; e a sua voz
continuava, triste como a propria ballada:
Sempre o rei achava n'elle
Um sabor da antiga magoa,
E se por elle bebia
Tinha os olhos rasos d'agua.
--Não cante mais, disse Rytmel de repente, voltando-se.
Á luz da lua eu vi-lhe os olhos humidos como os do rei da canção, e na sua
mão tremia a pequena chavena dourada.
Ella voltou para Rytmel um longo olhar triste, e a sua voz proseguiu,
vibrando mais saudosa no silencio:
N'alta esplanada normanda
Batida da fria onda
Reune os seus irmãos d'armas
A uma tavola-redonda...
Parou com as mãos esquecidas sobre o teclado:
--Foi talvez como n'uma noite d'estas, disse ella. Estamos em plena
legenda. O terraço batido da agua, a lua, os velhos amigos reunidos, a
lembrança da pobre amante, que se apaga na memoria d'elle, o presentimento
da morte... Que linda noite para o rei atirar a sua taça ao mar!
E cantou os derradeiros versos da ballada:
Foi-se com tremulos passos
Na amurada debruçar...
E com as suas mãos antigas
Atirou a taça ao mar!
Junto ao seu corpo real
Estão os pagens a velar
E a taça vae viajando
Por sobre as aguas do mar...
De repente Rytmel deu um pequeno grito: descuido, movimento, ou
irreprimivel impulso d'um coração que se revela, Rytmel deixara cahir a
pequena chavena ao tanque, entre as folhas dos nenufares.
A condessa ergueu-se, extremamente pallida, apertando com ambas as mãos o
coração: e com os olhos marejados de lagrimas, disse para Rytmel:
--O rei de Thule ao menos esperou que ella morresse!
Elle desculpava-se banalmente, como se todo o mal fosse perder-se aquella
fragil preciosidade de Sévres. A condessa deu-me o braço um pouco tremula,
e penetrámos na sala.
D'ahi a dias foi a catastrophe. Outros que a contem. Eu deponho aqui a
minha penna, com a consciencia de que ella foi sempre tão digna, quanto a
minha intenção foi sincera.


+AS REVELAÇÕES DE A. M. C.+

I

Senhor Redactor.--Dirigindo-lhe estas linhas, submetto-me á sentença de um
tribunal de honra, constituido para julgar a questão levantada perante o
publico pelas cartas do doutor *** estampadas n'essa folha. Obriguei-me a
referir quanto se passou por mim como actor d'esse doloroso drama, e venho
desempenhar-me d'este encargo. Possam estas confidencias, escriptas com o
mais consciencioso escrupulo, conter a lição que existe sempre no fundo de
uma verdade! A existencia intima de cada um de nós é uma parte integrante
da grande historia do nosso tempo e da humanidade. Não ha coração que,
desvendado nos seus actos, não offereça uma referenda ou uma contestação
aos principios que regem o mundo moral. Quando o romance, que é hoje uma
fórma scientifica apenas balbuciante, attingir o desenvolvimento que o
espera como expressão da verdade, os Balzacs e os Dickens reconstituirão
sobre uma só paixão um caracter completo e com elle toda a psychologia de
uma época, assim como os Cuviers reconstituem ja hoje um animal
desconhecido por meio d'um unico dos seus ossos.
* * * * *
Sabem que sou natural de Vizeu. Criei-me n'uma aldeia encravada entre dois
montes da Beira; açoitado de quando em quando por meu pae, quando lhe
esgalhava alguma arvore mimosa do quinteiro; abençoado por minha mãe como
a esperança dos seus velhos annos; coberto de prophecias de gloria, como o
pequeno Marcello da freguezia, pelo reitor, o qual algumas vezes depois de
lhe ajudar á missa, aos dez annos de idade, me argumentava na sachristia
as declinações latinas. Era escutado este prodigio por um auditorio
composto do sachristão e do thesoureiro, que com os chapeus debaixo do
braço, coçavam na cabeça e olhavam para mim arregalados e attonitos. A um
recanto, minha mãe sorria, com os olhos banhados de ternura, do fundo da
caverna formada em redor do seu rosto pela côca de uma ampla e poderosa
mantilha de panno preto.
Fiz depois os estudos preparatorios no lyceu da cidade, e vim finalmente
matricular-me em Lisboa na escola de medicina.
Vivo pobre, humilde e obscuramente, tenho a minha existencia adstricta a
uma pequena mezada, á convivencia de alguns companheiros de estudo e ao
trato de duas senhoras velhas e pobres, irmãs de um capitão reformado,
antigo aboletado de meu pae, em cuja casa de hospedes eu tenho por modico
preço a minha moradia na capital.
A unica luz que atravessava a sombra da minha vida de desterro, de
desconsolo e de trabalho, era a lembrança de Therezinha...
Therezinha! a doce, a meiga, a querida companheira, á qual eu consagro
principalmente estas paginas, que são o capitulo unico da minha vida que
ella não conhece, a confissão sincera, a historia completa do unico erro
de que posso accusar-me perante a sua innocencia, a sua bondade, e o seu
amor!
Therezinha! adorada flôr escondida entre as estevas dos nossos montes, que
ninguem conhece, que ninguem viu, de quem ninguem se occupa, e que no
emtanto inundas ineffavelmente a minha mocidade e a minha vida com o
sagrado perfume de um amor casto, puro, imperturbavel e calmo como a luz
das estrellas.
Se tu as entenderás, minha innocente amiga, estas palavras!
Se me perdoarás, tu, a enfermidade passageira e mysteriosa, cuja historia
eu ponho confiadamente nas tuas mãos, pedindo-te, não o balsamo da cura
para uma chaga que está fechada para sempre, mas o sorriso da benevolencia
e do perdão para a vaga e sobresaltada melancolia do convalescente
ajoelhado aos teus pés!
Como quer que tenha de ser, minha noiva, eu entendo cumprir perante a
minha consciencia um dever sagrado contando-te, sem omissões e sem
reticencias, tudo, absolutamente tudo, quanto se passou por mim. A verdade
é que te amo! que te amo, e que te amarei! Outra imagem, incoercivel,
vaporosa, vaga, perpassou por mim, mas esvaiu-se como a sombra de um sonho
doentio, varada sempre pelo teu olhar candido que atravez d'ella se fixava
e se embebia constantemente no meu.
Uma noite, ha dois mezes, recolhendo-me por volta das nove horas a minha
casa, que fica situada em um dos bairros excentricos de Lisboa, encontrei
parada uma carruagem de praça, cujo cocheiro altercava grosseiramente com
uma senhora, que estava em pé junto do trem, vestida de preto e coberta
com um grande veu de renda. Esta senhora trocou algumas palavras com outra
mais idosa que a acompanhava e disse ao cocheiro com uma voz singularmente
fina, tremula, delicada, musical, como nenhuma até então ouvida por mim:
--Onde quer que lhe mande pagar?... Não trago mais dinheiro.
--Importa-me pouco isso, respondeu o cocheiro. Quem não tem dinheiro anda
a pé. Já lhe disse á senhora quanto é que me deve pela tabella. Se não
paga o resto, chamo um policia. Se não traz dinheiro, dê-me um penhor.
Ella então bateu impacientemente com o pé no chão, ergueu a parte do veu
que lhe cobria o rosto, e principiou a descalçar convulsamente uma luva.
Suppuz que iria tirar um annel. O cocheiro apressou-se a passar as guias
pela grade da almofada e apeou. Tinha-me no emtanto approximado, e no
momento em que elle dava o primeiro passo, impellido por uma forte
commoção nervosa, estendi-lhe com as costas da mão uma bofetada que o fez
cambalear e cair de encontro á parelha. E dando-lhe em seguida uma libra,
que trazia no bolso:
--Ahi tem pela bofetada; contente-se com o que lhe deram pela corrida.
Diria que alguem por traz de mim suggerira estas palavras romanticas, a
tal ponto ainda hoje pasmo de as ter eu mesmo inventado como solução
d'effeito oratorio, para similhante contingencia!
O cocheiro levantou a moeda, examinou-a á luz da lanterna, subiu outra vez
á almofada, e partiu dizendo-me:
--Boa noite, meu amo!
Eu, atarantado, confuso, tirei machinalmente o chapeu, e titubiei algumas
palavras vagas, não sabendo como despedir-me da pessoa que tinha ao meu
lado.
Era a primeira vez que me achava perto de uma d'essas formosas senhoras da
sociedade, tenra, fina, delicada, como nunca vi ninguem! Tinha uma
carnação lactea e aveludada, como a petala de uma camelia,--prodigio de
mimo só comparavel ao de uma outra mulher que não conheço, e que uma noite
passou por mim no salão de S. Carlos, encostada no braço de um homem e
envolta em uma grande capa branca de listas côr de rosa.
Aquelles que as conhecem, que as vêem e lhes fallam todos os dias, é
possivel que se não impressionem com o aspecto d'estas creaturas
transcendentes. Para quem as encontra de perto pela primeira vez em sua
vida não ha cousa no mundo que mais perturbe. Homens habituados a arrostar
com as mais violentas commoções, a olharem denodadamente para o perigo,
para a desgraça ou para a gloria, tremem diante d'esta simples coisa: o
primeiro contacto de uma mulher elegante! D'ahi vem o velho prestigio
magnetico das rainhas sobre os pagens, das castellãs sobre os menestreis.
É uma sensação unica. O ser humano bestificado converte-se por momentos
n'um vegetal que vê.
Eu ficara immovel e mudo.
Ella correu-me de cima a baixo com um olhar rapido, e dizendo-me
_obrigada_ com uma commoção tremula, estendeu-me d'entre a nuvem negra das
suas rendas a mão de que tinha descalçado a luva.
Entreguei a minha grossa mão a essa mão delicada, magnetica, convulsa e
fria, e senti percorrer-me todos os nervos um estremecimento electrico
despedido do _shake-hands_ que ella me deu de um só movimento sacudido,
fazendo tinir os elos de uma grossa cadeia que lhe servia de bracelete.
Obrigado a dizer alguma coisa, soltei instinctivamente as palavras
monstruosas de uma formula que se usa em Vizeu, mas que estou bem certo
nunca até esse dia haviam sido ouvidas por tal creatura, e que certamente
lhe produziram o effeito do grito stridulo de um animal selvagem, escutado
pela primeira vez entre mattos desconhecidos.
Vergonha eterna para mim! essas palavras, que eu desgraçadamente
conservara no meu ouvido de provinciano e que a minha bocca deixou
bestialmente cair, foram estas:
--Para o que eu prestar estou sempre ás ordens.
E dizendo isto, tendo-o ouvido com horror a mim mesmo, voltei rapidamente
costas, e affastei-me a passos largos. Ia vexado, envergonhado, corrido,
como se houvesse proferido uma obscenidade sacrilega. Dava-me vontade de
me metter pelas paredes ou de me sumir pela terra dentro! Não me atrevia a
olhar para traz, mas parecia-me que ia envolto em gargalhadas
phantasticas, que não ouvia. Figurava-se-me que tudo se ria de mim, os
candeeiros, os cães noctivagos, as pedras da rua, os numeros das portas,
os letreiros das esquinas, os aguadeiros que passavam uivando com os seus
barris, e os caixeiros que pesavam arroz sobre o balcão ao fundo das
tendas.
Entrei precipitadamente em casa, subi as escadas, fechei-me por dentro e
puz-me a passear ás escuras no meu quarto.
Nas trevas appareciam-me illuminadas por um clarão satanico essas duas
mãos que pela primeira vez acabavam de se apertar na rua--a minha e a
d'ella--uma trigueira, aspera e quente, a outra branca, nervosa e gelada.
Depois entravam a reconstruir-se á minha vista os vultos completos das
pessoas.
Ella, de uma pallidez eburnea, com o perfil melancolico de uma madona a
que tivessem levado dos braços o seu bambino, movendo-se mollemente entre
rendas e setim com uma ondulação de sereia.
Eu, inteiriçado e embasbacado diante d'ella, não sabendo como segurar o
chapeu e a bengala, na mais flagrante e minuciosa ostentação dos meus
defeitos e da minha pobreza incaracterisada e burgueza. Ao lado de quanto
n'ella havia ideal, transcendente, ethereo, ia eu vendo, enormemente
avultado e saliente, quanto o meu aspecto offerecia mais baixo e mais vil:
o casaco comprado ao barato n'um algibebe; as botas de duas solas
torpemente desformadas e orladas de lama; as calças com umas joelheiras
que me dão ás pernas na posição vertical o desenho das de um homem que se
está sentando; os punhos da camisa amarrotados; e a ponta do dedo maximo
da mão direita sujo de tinta de escrever!
Eramos verdadeiramente os antipodas um do outro, postos na mesma latitude
pela estupidez do acaso, e separados logo para sempre por aquellas
palavras terriveis que me zuniam nos ouvidos como os prenuncios de uma
congestão:
«Para o que eu prestar estou sempre ás ordens!»
Não sei que extranha attracção amarrava o meu espirito á lembrança da
mulher que eu acabava de ver! Não era indefinida sympathia, não era
occulto desejo, não era um vago amor. Interrogava-me detidamente, e o
unico movimento que encontrava no meu coração--sinceramente o
confesso--era o do odio. Odio áquella mulher, odio inexplicavel,
monstruoso, como aquelle que imagino ser o de um engeitado á sociedade em
que nasceu!
A distincção aristocratica, a elegancia da raça d'aquella gentil creatura
aviltava-me, enfurecia-me, revolvia no meu interior esse fermento de
rebellião demagogica que todo o plebeu traz sempre escondido, como uma
arma prohibida, no fundo da sua alma.
Aquella mulher tinha certamente, um espirito menos culto do que o meu, uma
rasão menos firme, uma vontade menos forte, um destino menos amplo. Para
compensar estas depressões assistia-lhe uma superiodade repugnante,
inadmissivel: a que procede da casta. Um berço de luxo, uma constituição
delicada, um leito de pennas, a infancia resguardada na sombra, entre
estofos, sobre tapetes, ao som de um piano,--isto basta, para que fique
ridiculo, miseravel, desprezivel ao pé d'ella um homem que se creou ao
clarão do dia, á luz do sol, tendo por tapetes a aspereza das montanhas, e
por melodias o roncar das carvalheiras e o gemer dos pinhaes!
E entre mim e ella será isto perpetuamente uma barreira.
Ella ficará sempre bella, dominativa, seductora por natureza,
instinctivamente captivante, querida, amimada, estremecida, dentro da sua
zona de aromas, de veludos, de cristaes e de luzes!
Eu, entre a minha estante de pinho adornada com um boneco de gesso e a
minha cama de ferro coberta de chita, ficarei sempre tenebroso e
inutil,--desgraçado quando não quiser tornar-me tão ridiculo, e irrisorio
quando tiver a vaidade de não querer ser desgraçado!...
Accendi as duas torcidas do meu candeeiro de latão e tentei estudar.
Impossivel. As letras de um livro que tinha aberto diante de mim
percorri-as com a vista pelo espaço de tres ou quatro paginas,
machinalmente, sem comprehender o sentido de uma só palavra. Deixei o
livro e fiquei por algum tempo inerte, estupido, neutro, com a vista fixa
nas orbitas ôcas de uma caveira que tinha sobre a mesa, e que se ria para
mim com o escancellado sarcasmo que trazem da cova os esqueletos
desenterrados. Aborrecia-me a vida. Apaguei a luz, despi-me e deitei-me.
Tinham-me feito a cama n'esse dia com dois d'esses lençoes de folhos
engommados, com que minha mãe enriquecera liberalmente o meu bahú de
estudante. Estes lençoes tinham a aspereza do linho novo e o cheiro
caracteristico do bragal da provincia.
--Pobre mãe, coitada! pensava eu, deitado e embebido n'essa longinqua
exhalação olphactica da casa paterna. Coitada de ti, que na simplicidade
dos teus juizos julgaste dotar-me com um luxo que faria commoção em
Lisboa, orlando-me dois lençoes com esta enorme renda longamente
trabalhada por ti mesma nos teus bilros infatigaveis! Se soubesses que
este paciente lavor das tuas mãos em dois annos de applicação consecutiva,
ninguem aqui o admirou, ninguem o viu, ninguem attentou n'elle, a não ser
a criada, que esta manhã me perguntou, entre risadas sacrilegas, se os
padres na minha terra se embrulhavam nos meus lençoes em dias de missa
cantada! Que importa porém que o não apreciem os outros?... Toda esta
gente é má, corrupta, perversa! Agradeço-t'o eu, minha obscura, minha
velha amiga. Nos arabescos d'esta renda, que eu estou apalpando na mão e
que tu me consagraste, figura-se-me sentir o correr caprichoso e ondeado
das lagrimas que choraste emquanto o vento ramalhava nas arvores, a
saraiva estrepitava nas janellas, e tu desvelavas as tuas noites de
inverno, resignadamente ajoelhada junto do berço em que rabujava o teu
pequeno. Quando sinto no rosto o aspero contacto dos teus eriçados folhos
bordados, beijo-os piedosamente, beijo-os eu, como se fosse um anjo bom
que me tocasse com a ponta das suas azas purificadoras e brancas!
Mas além do cheiro do bragal, que me envolvia como um afago mandado de
longe, havia na minha cama outro perfume que contrastava singularmente com
este. Era o que aromatisava a pelle d'aquella mulher desconhecida, e que
me ficara na mão que ella apertou. Respirei-o com uma curiosidade
irritante, que me pungia e me dilacerava. Ai de mim! collei os labios na
mão aberta sobre o meu rosto, e principiei a sorver esse mysterioso
respiro de um paraiso ignoto e longinquo.
É monstruoso, infernal, o turbilhão das idéas que esse aroma extranho,
penetrante e cálido, me revolveu na cabeça.
Sentia os fogachos, as palpitações, a hallucinação da febre.
Quando pela manhã me levantei, sem haver dormido em toda a noite, tinha o
travesseiro inundado em lagrimas...
Perdôa-me, Therezinha! minha Therezinha, perdôa-me...
Não foi pensando em ti, meu puro anjo, que eu chorei tanto n'essa noite!

II

Soube d'ahi a dias que a senhora com quem me encontrára era a condessa de
W. A figura d'ella tinha-me ficado moldada na memoria como o rosto de um
cadaver em uma mascara de gesso. Estava no Rocio quando me disseram o seu
nome, ao vêl-a passar em carruagem descoberta.
Ia reclinada para o canto de uma victoria, quasi deitada, morbida,
abstrahida, indifferente, como se uma aureola invisivel a segregasse dos
aspectos e dos ruidos da rua, grosseiros de mais para lhe tocarem. Tinha
uma seducção hallucinante, vestida de verão, com uma simplicidade cheia de
mimo e de frescura, uma graça que se adivinhava mais do que se via e que
menos appetecia ver do que respirar. Levava no seio uma rosa côr de palha,
e uma pequena madeixa de cabellos finos, dourados, transparentes, soltos
do penteado, cahia-lhe na testa.
Cravei os olhos n'ella e tirei o meu chapeu; ella viu o meu cumprimento,
olhou-me, como se eu lhe apparecesse pela primeira vez, com a mesma
indifferença com que olharia para uma vidraça vasia ou para uma taboleta
sem distico, e proseguiu inalteravel e immovel como a imagem preguiçosa da
formosura arrebatada do seu pedestal por um cocheiro agaloado e por dois
cavallos a trote.
Continuei a passear com um amigo com quem estava e cobri tanto quanto[1]
pude com algumas palavras rancorosas a respeito da politica a commoção que
sentia.
Momentos depois, passou na mesma direcção que tinha tomado a carruagem da
condessa, um _coupé_ escuro, sem letras nem armas, com todas as cortinas
cerradas. Esta circumstancia, aliás naturalissima, encheu-me de indignação
e de rancor. Imaginei possivel que aquelle trem seguisse o da condessa e,
não sei por que processo do coração ou do espirito, nasceu-me o desejo de
arrombar essa carruagem e calcar aos pés o homem que lá estivesse dentro.
--Estás a tremer! disse-me o amigo a quem eu dera o braço.
--Não é nada... um estremecimento nervoso.
--Impallideceste, tens os beiços brancos e as orelhas encarnadas...
--Foi uma vertigem. Dá-me isto ás vezes.
--Ahi tens! é o effeito das vigilias e do abuso do tabaco nas funcções do
coração.
--E debilidade resultante da fome, exclamei eu sorrindo e mal podendo
conservar-me de pé. Adeus que vou jantar!
E entrei na primeira carruagem de praça que passou por nós, emquanto o meu
companheiro accrescentava:
--Agora estás afogueado e vermelho como lacre: toma ferro e bromureto.
Quando cheguei a casa tinha febre, e via por fóra do casaco o bater do
coração.
Não tornei mais a encontral-a senão na noite da catastrophe.
O meu romance mysterioso e absurdo acabou então, cedendo o seu logar á
tragedia em que entramos juntos.

III

Foi na noite de 20 de julho passado. Eu voltava de casa de Z... com quem
tinha estado até ás duas horas; ía chegar quando senti atraz de mim os
passos de duas mulheres. Parei. Ellas passaram por mim, descendo do
passeio em que eu estava, e caminhando apressadamente. Entrevi-as á luz de
um candieiro. Uma era alta, sêcca, direita, edosa; a outra--para que hei
de descrevel-a?--era ella. Um relance de olhos, e conheci-a logo.
Ia inquieta, arquejante, abafada em pranto e em soluços. Commoveu-me tanto
o aspecto passageiro d'essa grande angustia, d'essa dôr suprema n'aquella
formosa mulher ha poucos dias ainda tão patentemente feliz, radiosa,
intemerata, que eu daria n'esse momento a minha vida inteira, para a não
vêr assim dobrada na lama de uma rua escura e deserta, pelo que ha mais
violento, mais voluntario, mais hostil, mais implacavelmente humano: a
desgraça... Ella, a viva imagem da delicadeza e do mimo, expressão suprema
da belleza, do dominio, da omnipotencia terreal, via-a de repente
succumbir envolvida pela serpente cuja cabeça eu imaginava segura pelo seu
pé sobre um crescente de lua!
Fiquei por um momento perplexo. Por fim os meus passos apressaram-se para
ella, sahi-lhe ao encontro e disse-lhe convulsivamente:
--Senhora condessa de W..., vejo que chora. É certamente um successo
extraordinario e terrivel. V. Ex.^a parece-me só e desprotegida n'este
bairro; sómente em tão excepcionaes circumstancias eu poderia permittir-me
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