O Mysterio da Estrada de Cintra. Cartas ao Diário de Noticias - 06

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E declarou que não fazia a viagem sem mim, que eu era a sua alegria, o seu
parceiro de Xadrez e o inventor das suas gravatas, que me roubava n'um
navio, e que me deixava seu herdeiro.
Cedi. A condessa estava encantada com a viagem; queria ter uma tempestade,
queria ir depois a Alexandria, á Grecia, e beber agua do Nilo; haviamos de
caçar os chacaes, ir a Meca disfarçados--mil planos incoherentes que nos
faziam rir...
Partimos n'um vapor francez para Gibraltar, onde deviamos tomar o paquete
da India.
Passámos no cabo de S. Vicente com um luar admiravel, que se erguia por
traz do cabo, dava uma dureza saliente e negra aos asperos angulos
d'aquella ponta de terra e vinha estender-se sobre a vasta agua como uma
malha de rede luminosa. O mar ali é sempre mais agitado. A condessa estava
na tolda, sentada n'uma cadeira de braços, de vime, a cabeça adormecida,
os olhos descançados, as mãos immoveis, uma sensação tão feliz na attitude
e no rosto.
--Sabe, disse-me ella de repente, baixo, com a voz lenta;--estou com uma
sensação tão feliz de plenitude, de desejos satisfeitos...
E mais baixo:
-- ... e de vago amor ... Sabe explicar-me isto?
Estavamos sós, no alto mar, sob um luar calmo, o conde dormia; a longa
ondulação da agua arfava como um seio, sob a luz; sentia-se já o magnetico
calor d'Africa. Eu tomei-lhe as mãos e disse-lhe n'um segredo:
--Sabe que está linda!
--Oh! primo! interrompeu ella rindo. Mas nós somos amigos velhos! Está
doido! O que é fallar de noite, sós, ao luar, em amor! Ah! meu amigo,
creia que o que senti, inexplicavel como é, não foi por si, graças a Deus,
foi por alguem que eu não conheço, que vou encontrar talvez, que não vi
ainda. Sabe? Foi um pressentimento... Ahi está! Como o luar é traiçoeiro,
meu Deus! E eu que estou velha!
Eu ia responder, rir. Uma luz brilhou a distancia na bruma nocturna: o
capitão approximou-se:
--Conhecem aquella luz?
--Nunca viajei n'este mar, capitão--respondi.
--São portuguezes, não?... Aquella luz é o pharol de Ceuta.
Era uma luz melancolica, e humilde. Nenhum de nós se importava com Ceuta.
D'ahi a momentos descemos á camara. Eu estava surprehendido, nunca tinha
ouvido á condessa palavras que caracterisassem tanto o estado do seu
coração. Achava-se n'aquelle periodo em que um amor pode apoderar-se para
sempre d'uma existencia.
Que succederia se lhe apparecesse um homem bello, nobre, forte, que lhe
dissesse de joelhos, uma noite, sob o luar como ha pouco, as coisas
infinitas da paixão?
Na manhã seguinte avistámos o môrro de Gibraltar. Desembarcámos. N'uma
praça, á entrada, um regimento inglez, de uniformes vermelhos, manobrava
ao som da canção do general Boum.
--Detesto os inglezes, disse a condessa.
--O quê?! gritou o conde com uma voz indignada. Os inglezes! Detestas os
inglezes?
E voltando-se para mim, com uma attitude profundamente pasmada e abatida:
--Detesta os inglezes, menino!

II

Sr. Redactor.--Em Gibraltar fomos para _Club House-Hotel_. Os quartos
abriam sobre a muralha do mar; viamos defronte, afogada n'uma luz
admiravel, uma linha de montanhas, e mais longe, do lado do estreito, nas
brumas esbatidas, a terra de Africa.
Fomos passeiar logo n'um d'aquelles carros de Gibraltar que são dois
bancos parallelos, costas com costas, assentes sobre duas rodas enormes,
puchados por um cavallo inglez robusto, rapido, e tendo já adquirido nas
convivencias hispanholas um espirito teimoso.
O bello passeio de Gibraltar é uma estrada, que, a meia vertente por cima
da cidade, contorna a montanha, e é orlada de _cottages_, de jardins, de
pomares, cheios já das extranhas e poderosas vegetações do Oriente, aloes,
nopaes, cactus e palmeiras; e vê-se sempre, atravez da folhagem, lá no
fundo, a azul immobilidade luminosa do Mediterraneo.
A condessa estava encantada: aquella luz ampla e magnifica, a agua pesada
pelo sol, o silencio religioso do espaço azul, as brumas vaporosas e róxas
das montanhas, a vigorosa força das vegetações, tudo dava áquella pobre
alma contraida uma expressão inesperada. Ria, queria correr, tinha
_verve_, e uma luz bailava-lhe nos olhos.
Fomos sentar-nos no jardim de Gibraltar. Os senhores inglezes
artilharam-no talvez um pouco de mais. Não ha fontes, mas ha estatuas de
generaes; as pyramides de balas estão encobertas pelas moitas de rosas, e
a estupida impassibilidade dos canhões assenta sob arbustos de magnolias.
Mas que serenidade! Que silencio abstracto e divino! Que ar immortal!
Parece que as cousas, os seres vegetaes, a terra, a luz, tudo está parado,
absorto n'uma contemplação, suspenso, escutando, respirando sem rumor! Em
baixo está o Mediterraneo, liso como um setim, delicado, coberto de luz.
Mais longe vaporisadas, docemente esbatidas nas nevoas azues, as duras
fórmas do monte Atlas. Nada se move: apenas ás vezes uma pomba passa,
voando com uma serenidade ineffavel. Um momento veiu-nos de baixo, onde
passava um regimento de Highlanders, o som das _cornemuses_ que tocavam as
arias melancolicas das montanhas da Escocia. E os sons chegavam-nos doces,
ethereos, como se fossem habitantes sonoros do ar.
A condessa tinha ficado sentada, e immovel, calada, penetrada d'aquella
admiravel serenidade das cousas, da beleza da luz, do somno da agua, dos
vivos aromas.
--Não é verdade, disse, que dá vontade de morrer aqui, brandamente, só...
--Só? perguntei eu.
Ella sorriu, com os olhos perdidos na bella decoração do horisonte
luminoso.
--Só... disse ella, não!
--Ah! minha rica prima, cuidado! cuidado! observei eu. Começa-se scismando
assim vagamente, vem um pequeno sonho bem innocente, acampa no nosso
coração, começa, a caval-o, e depois, querida prima, e depois...
--E depois vae-se jantar, disse o conde que tinha chegado ao pé de nós,
radiante por ter apertado a mão de um coronel inglez, e colhido um cacto
vermelho.
Descemos ao hotel. Á noite passeavamos no Martillo. Era a hora de
recolher; uma fanfarra ingleza tocava uma melopéa melancolica. Ouviu-se no
mar um tiro de peça.
--Chegou o paquete da India, disse o nosso guia. E no alto do morro um
canhão respondeu com um echo cheio e poderoso.
--Desembarcam, no dia em que chegam, os passageiros? perguntei.
--Os militares quasi sempre, senhor. Vão desembarcar lá em baixo, com
licença do governador.
Quando pelas 10 horas entrámos, depois de termos passeiado ao luar nas
esplanadas, sentimos na sala de _Club-House_, ruido, vozes alegres,
estalar de rolhas, toda a feição de uma ceia de homens. A condessa subiu
para o seu quarto. Eu entrei na sala, com o conde. Officiaes inglezes que
vinham de Southampton, e que iam para a estação de Malta, tinham
desembarcado, e ceavam.
Nós tinhamo-nos sentado, bebendo cerveja, quando tive occasião de
approximar d'um dos officiaes inglezes que estava proximo de mim o frasco
de mostarda. O frasco caiu, sujou-me, elle sorriu com polidez, eu ri
alegremente, conversámos, e ao fim da noite passeiavamos ambos pelo braço,
na esplanada que ficava defonte das janellas do hotel e que está sobre o
mar. Havia um amplo e calado luar que espiritualisava a decoração
admiravel das montanhas, a vasta agua immovel.
Eu tinha sympathisado com aquelle official, já pelo seu perfil altivo e
delicado, já pela feição original do seu pensamento, já por uma gravidade
triste que havia na sua attitude. Era moço, capitão de artilheria, e
batera-se na India. Era loiro e branco; mas o sol do Indostão tinha
amadurecido aquella carnação fresca e clara, aprofundado a luz dos olhos,
e dado aos cabellos uma côr fulva e ardente.
Passeiavamos, conversando na esplanada, quando, repentinamente, abriu-se
uma janella, e uma mulher com um penteador branco, apoiou-se levemente na
varanda, e ficou olhando o horisonte luminoso, a melancolia da agua. Era a
condessa.
O luar envolvia-a, empallidecia-lhe o rosto, adelgaçava-lhe o corpo, dava
á sua forma toda a espiritualisação de uma figura de antiga legenda: o seu
penteador caia largamente ao redor d'ella, em grandes pregas quebradas.
--Que linda! disse o official parando, com um olhar admirado, e profundo.
Quem será?
--Somos um pouco primos, disse eu rindo. É casada. É a condessa de W.
Parte para Malta ámanhã no paquete. A bordo levar-lhe-hei o meu amigo para
a entreter contando-lhe historias da India. Adora o romanesco aquella
pobre condessa! Em Portugal, nem nos romances o ha. Caçou o tigre,
capitão?
--Um pouco. Falla o inglez sua prima?
--Como uma portugueza, mal; mas ouve com os olhos, e adivinha sempre.
Separámo-nos.
--Arranjei-lhe um romance, um lindo romance, prima--disse eu entrando na
sala, onde o conde escrevia cartas, cachimbando;--um romance onde se caçam
tigres com rajahs, onde ha bayaderas, florestas de palmeiras, guerras
inglezas, e elephantes...
--Ah! como se chama?
--Chama-se Captain Rytmel, official de artilheria, 28 annos, em viagem
para Malta, bigode loiro, um pouco da India nos olhos, muito da Inglaterra
na excentricidade, um perfeito _gentleman_.
--Um bebedor de cerveja! disse ella, desfolhando a flôr de cactus.
--Um bebedor de cerveja! gritou o conde erguendo a cabeça com uma
indignação comica. Minha querida, diante de mim, pelo menos, não digas
isso se não queres fazer-me cabellos brancos! Estimo os inglezes e
respeito a cerveja. Um bebedor de cerveja! Um moço d'aquella perfeição!...
murmurava elle, fazendo ranger a penna.
Ao outro dia subiamos para bordo do paquete da India, o _Ceylão_. Eram 7
horas da manhã. O morro de Gibraltar mal acordada tinha ainda o seu
barrete de dormir feito de nevoeiro. Havia já viajantes e officiaes sobre
a tolda. O chão estava humido, havia uma confusão violenta de bagagens, de
cestos de fructa, de gaiolas de aves; a escada de serviço via-se cheia de
vendedores de Gibraltar. A condessa recolheu-se á _cabine_, para dormir um
pouco. Ás 9 horas quasi todos os passageiros que tinham entrado de
Gibraltar e os que vinham de Southampton estavam em cima; o vapor
fumegava, os escaleres affastavam-se, o nevoeiro estava desfeito, o sol
dava uma côr rosada ás casa brancas de Algesiras e de S. Roque, e ouvia-se
em terra o rufar dos tambores.
A condessa, sentada n'uma cadeira indiana, olhava para as pequenas
povoações hispanholas que assentam na bahia.
O official inglez, Captain Rytmel, conversava a distancia com o conde, que
adorava já a sua figura captivante e altiva, as suas aventuras da India, e
a excentrica fórma do seu chapeu, que elle trazia com uma graça distincta
e audaz. O capitão tinha na mão um album e um lapis.
--Captain, disse-lhe eu tomando-lhe o braço, vou leval-o a minha prima, a
senhora condessa. Esconda os seus desenhos, ella é implacavel e faz
caricaturas.
A condessa estendeu ao inglez uma pequena mão, magra, nervosa, macia, com
umas unhas polidas como o marfim de Dieppe.
--Meu primo disse-me, Captain Rytmel, que tinha mil historias da India
para me contar. Já lhe digo que lhe não perdôo nem um tigre, nem uma
paisagem. Quero tudo! adoro a India, a dos Indios, já se vê, não a dos
senhores inglezes. Já esteve em Malta? é bonita?
--Malta, condessa, é um pouco de Italia e um pouco de Oriente. Surprehende
por isso. Tem um encanto extranho, singular. De resto é um rochedo.
--Demora-se em Malta? perguntou a condessa.
--Uma semana.
A condessa estava torcendo a sua luva; ergueu os olhos, pousou-os no
official, tossiu brandamente, e com um movimento rapido:
--Ah! vae deixar-me ver o seu album.
--Mas, condessa, está branco, quasi branco; tem apenas desenhos lineares,
apontamentos topographicos.
--Não creio; deve ter paisagens da India, ha de haver ahi um tigre, pelo
menos, a não ser que haja uma bayadera!
E com um gesto de graça victoriosa, tomou o album da mão do official.
O capitão fez-se todo vermelho. Ella folheou o livro e de repente deu um
pequeno grito, córou, e ficou com o album aberto, os olhos humidos,
risonhos, os labios entreabertos. Olhei: na pagina estava desenhada uma
mulher com um penteador branco, debruçada a uma janella, tendo defronte um
horisonte com montanhas e o mar. Era o retrato perfeito da condessa. Elle
tinha-a visto assim na vespera, ao luar, á janella do _Club-House_.
O conde tinha-se approximado.
--Como! como! És tu, Luiza! Mas que talento! É um homem adoravel, capitão.
Que desenho! Que verdade!
--Oh! não! não! disse o capitão. Hontem estava no meu quarto, em
_Club-House_; instinctivamente tinha o album aberto, e o lapis, sem eu
querer, sem intenção minha, espontaneamente, fez este retrato. É um lapis
que deve ser castigado.
--O quê! gritou o conde, é um lapis encantado. Capitão, está decidido que
vae jantar commigo, logo que cheguemos a Malta. Já o não largo, meu caro!
Ha de ser o nosso _cicerone_ em Malta. Mas que talento! Que verdade!
E fallando em portuguez para a condessa:
--E um bebedor de cerveja, hein?
N'esse momento uma sineta tocou: era o almoço.

III

Talvez extranhe, senhor redactor, a escrupulosa minuciosidade com que eu
conto estes factos, conservando-lhes a paizagem, o dialogo, o gesto, toda
a vida palpavel do momento. Não se admire. Nem tenho uma memoria
excepcional, nem faço uma invenção phantasista. Tenho por costume todas as
noites, quando fico só, apontar n'um livro branco os factos, as idéas, as
imaginações, os dialogos, tudo aquillo que no dia o meu cerebro cria ou a
minha vida encontra. São essas notas que eu copio aqui.
Á mesa do almoço estavam já sentados os passageiros. O nosso logar era ao
pé do capitão. O commandante do _Ceilão_ era um homem magro, esguio, com
uma pelle muito vermelha, d'onde sahiam com a hostil aspereza com que as
urzes saem da terra, duas duras suissas brancas.
Ao seu lado sentavam-se duas excentricas personalidades de bordo: o
_Purser_, que é o commissario que vela pela installação dos viajantes e
pelos regulamentos de serviço, e mr. Colney, empregado do correio de
Londres. O _Purser_ era tão gordo que fazia lembrar um grupo de homens
robustos mettidos e apertados n'uma farda de marinha mercante. Mr. Colney
era alto e secco, com um immenso nariz agudo e enristado, em cuja ponta
repousava pedagogicamente o aro de ouro dos seus oculos burocraticos. O
_Purser_ tinha uma fraqueza que o dominava--era o desejo de fallar bem
brazileiro. Tinha viajado no Brazil, admirava o Maranhão, o Pará, os
grandes recursos do imperio. A todo o momento se approximava de mim para
me perguntar certas subtilezas de pronuncia brazileira. Mister Colney,
esse, era gago e tinha a mania de cantar cançonetas comicas. Os outros
passageiros eram officiaes, que iam tomar serviço na India, algumas
_misses_ alegres e loiras, um _clergiman_ com doze filhos, e duas velhas
philantropicas, pertencentes á Sociedade educadora dos pequenos
patagonios.
Logo que Captain Rytmel entrou na sala, seguindo a condessa, um homem que
se debatia gulosamente no prato com a anatomia de uma ave fria, encarou-o,
ergueu-se, e com uma alegria ruidosa gritou:
--_Viva Dios!_ É Captain Rytmel! Eh! querido! mil abraços! Está gordo,
hombre, está mais gordo!
Envolvia-o nos braços robustos, olhava-o ternamente com dois grandes olhos
negros. Captain Rytmel depois do primeiro instante de surpreza, em que se
fez pallido, apressou-se a ir apertar a mão a uma senhora, extremamente
bella, que estava sentada ao pé d'aquelle homem guloso e expansivo, o qual
era um hispanhol, negociante de sedas, e se chamava D. Nicazio Puebla.
A senhora, que se chamava Carmen, era cubana, e segunda mulher de D.
Nicazio; era alta, de fórmas magnificas, com uma carnação que fazia
lembrar um marmore pallido, uns olhos pretos que pareciam setim negro
coberto de agua, e cabellos annelados, abundantes, d'esses a que
Beaudelaire chamava _tenebrosos_. Vestia de seda preta e com mantilha.
--Estavam em Gibraltar? perguntou Captain Rytmel.
--Em Cadix, meu caro, disse D. Nicazio. Viemos hontem. Vamos a Malta.
Volta para a India? Ah! Captain Rytmel, que saudade de Calcuttá! Lembra-se
hein?
--Captain Rytmel--disse sorrindo friamente Carmen--esquece depressa, e
bem!
No emtanto nós olhámos curiosamente para Carmen Puebla. O conde achava-a
_sublime_. Eu admirado tambem, disse á condessa:
--Que formosa creatura!
--Sim! Tem ares d'uma estatua malcreada, respondeu ella seccamente.
Olhei para a condessa, ri:
--Oh prima! É uma mulher adoravel, que devia ser em miniatura para se
poder trazer nos berloques do relogio; uma mulher que de certo vou roubar,
aqui no alto mar, n'um escaler; uma mulher cujos movimentos parecem musica
condensada! Oh prima! confesse que é perfeita... Menino! accrescentei para
o conde, passa-me depressa a soda, preciso calmantes...
No emtanto Captain Rytmel, sentado junto de Carmen, fallava da India, de
velhos amigos de Calcuttá, de recordações de viagens. A condessa não
comia, parecia nervosa.
--Vou para cima, disse ella de repente, mandem-me chá.
Quando a viu subir, Rytmel ergueu-se, perguntando ao conde:
--Está incommodada a condessa?
--Levemente. Precisa de ar. Vá-lhe fazer um pouco de companhia, falle-lhe
da India. Eu, não posso deixar este _carril_...
Eu tinha interesse em ficar á mesa defronte da luminosa Carmen,
concentrei-me sobre o meu prato. O capitão tinha tomado logo o seu
excentrico chapeu indio, orlado de veus brancos.
Ao vel-o seguir a condessa, a hispanhola empallideceu. Momentos depois
ergueu-se tambem, tomou uma larga capa de seda á maneira arabe de um
_bournous_, enrolou-a em roda do corpo, e subiu para a tolda, apoiada
n'uma alta bengala de castão de marfim.
O almoço tinha acabado. Fallava-se da India, do theatro de Malta, de lord
Derby, dos Fenians; eu enfastiava-me, fui apertar a mão ao commandante, e
fumar para cima um bom charuto, sentindo a brisa fresca do mar.
A condessa estava sentada n'um banco á pôpa; ao pé d'ella o capitão
Rytmel, n'um _pliant_ de vime.
Carmen passeava rapidamente ao comprido da tolda; ás vezes, firmando-se
nas cordagens, subia o degrau que contorna interiormente a amurada, e
ficava olhando para o mar, emquanto a sua mantilha e a sua capa se enchiam
de vento, e lhe davam uma apparencia ondeada e balançada, que a
assimilhava áquellas divindades que os esculptores antigos enroscavam no
flanco dos galeões!

IV

D. Nicazio Puebla, que o _Purser_ me apresentara já, viera fumar para o pé
de mim.
--Esteve na India, Caballero? perguntei-lhe eu.
--Dois annos, em Calcuttá. Foi lá que conheci o capitão Rytmel.
Conviviamos muito. Jantavamos sempre juntos. Fui á caça do tigre com elle.
Cacei o tigre. Deve ir a Calcuttá! Que palacios! Que fabricas!
--O capitão é um valente official.
--É alegre. O que nós riamos! E bravo, então! Se lhe parece! Salvou-me a
vida.
--N'alguma caçada.
--Eu lhe conto.
Tinhamo-nos approximado da pôpa, fallando. N'este momento vi eu a
hispanhola encaminhar-se para o logar em que a condessa fallava com
Rytmel, e com uma resolução atrevida, a voz altiva, dizer-lhe:
--Capitão, tem a bondade, dá-me uma palavra?
A condessa fez-se muito pallida. O capitão teve um movimento colerico, mas
ergueu-se e seguiu a hispanhola.
Eu approximei-me da condessa.
--Quem é esta mulher? Que quer?... disse-me ella toda tremula.
Eu soceguei-a e dirigi-me a D. Nicazio.
--Viu aquelle movimento de sua mulher?
--Vi.
--É inconveniente: e o cavalheiro responde de certo pelas phantasias ou
pelos habitos d'aquella senhora...
--Eu! gritou o hispanhol, eu não respondo por coisa alguma. O senhor que
quer? É um monstro essa mulher! Livre-me d'ella, se póde! Olhe: quel-a o
senhor? Guarde-a. Está sempre a fazer d'estas scenas! E não lhe posso
fazer uma observação! É uma furia, usa punhal!
--Esta mulher, fui eu dizer á condessa, é uma creatura sem consideração e
parece que sem dignidade. Não a olhe, não a escute, não a perceba, não a
presinta. Se houver outra inconveniencia eu dirijo-me ao commandante, como
se ella fosse um grumete insolente. É pena... é terrivelmente linda!
A hispanhola no entanto, junto da amurada, fallava violentamente ao
capitão Rytmel que a escutava frio, impassivel, com os olhos no chão.
O conde subiu n'este momento. Outras senhoras vieram, os grupos
formavam-se, começavam as leituras, as obras de costura, o jogo _do
boi_...
Eu approximei-me de D. Nicazio e disse-lhe sem lhe dar mais importancia:
--Então esta sua senhora dá-lhe desgostos?
--É sempre aquillo com o capitão. Foi desde a tal caçada ao tigre... Quer
que lhe conte?...
--Diga lá.
Sentei-me na tenda onde se fuma, accendi um charuto, cruzei as pernas,
recostei a cabeça e, emballado pelo lento mover do navio, cerrei os olhos.
--Um dia em Calcuttá, começou o hispanhol, dia de grande calor...
Mas não, senhor redactor. Eu quero que esta historia a saiba do proprio
capitão. Ahi tem a tradução fiel de uma das mais vivas paginas de um dos
seus albuns de impressões de viagem.
* * * * *
...«Sabes, escrevia elle a um amigo, que o sonho de todo o negociante que
chega á India é caçar o tigre.
D. Nicazio Puebla quiz caçar o tigre. Sua mulher Carmen decidiu
acompanhal-o. Essa, sim, que tinha a coragem, a violencia, a necessidade
de perigos de um velho explorador Hundodo! Eu estimava aquella familia.
Combinámos uma caçada com alguns officiaes meus amigos, então em Calcuttá.
A duas leguas da cidade sabiam os exploradores que fora visto um tigre.
Tinha mesmo saltado, havia duas noites, uma palliçada de bambus, na
propriedade d'um doutor inglez, antigo colono, e tinha devorado a filha de
um malaio. Dizia-se que era um tigre enorme, e formosamente listrado.
Partimos de madrugada, a cavallo. Um elephante, com um palanquim, levava
Carmen. Um boi conduzia agua em bilhas encanastradas de vime. Iam alguns
officiaes de artilheria, cipaios, tres malaios e um velho caçador
experimentado, antigo brahmane, degenerado e devasso, que vivia em
Calcuttá das esmolas dos nababos e dos officiaes inglezes. Era destemido,
meio louco, cantava extranhas melodias do Indostão, adorava o Ganges, e
dormia sempre em cima de uma palmeira.
Nós levavamos espingardas excelentes, punhaes recurvados, espadas de dois
gumes, curtas, á maneira dos gladios romanos, e o terrivel tridente de
ferro que é a melhor arma para a lucta com o tigre. Ia uma matilha de
cães, forte e dextra, da confiança dos malaios.
Ás 11 horas do dia penetravamos em plena floresta. O tigre devia ser
encontrado n'uma clareira conhecida. Iamos calados, vergando ao peso
implacavel do sol, entre palmeiras, tamarindos, espessuras profundas, n'um
ar suffocado, cheio d'aromas acres. Toda aquella natureza estava
entorpecida pela calma: os passaros, silenciosos, tinham um vôo pesado; as
suas pennas coloridas, vermelhas, negras, roxas, doiradas, resplandeciam,
sobre o verde negro da folhagem. O ceu mostrava uma côr de cobre ardente;
os cavallos marchavam com o pescoço pendente; os cães arquejavam; o boi
que levava a agua mugia lamentavelmente; só o elephante caminhava na sua
pompa impassivel, em quanto os malaios para esquecer a fadiga, diziam, com
a voz monotona e lenta, cantigas de Bombaim.
Estavamos ainda distantes do tigre: nem os cavallos tinham rinchado, nem o
elephante soltara o seu grito melancolico e doce. Todavia achavamo-nos
proximo da clareira.
Eu cheguei ao palanquim de Carmen e bati nas cortinas. Carmen
entreabriu-as: estava pallida da fadiga do sol e do prazer do perigo; os
olhos reluziam-lhe extraordinariamente. Anciava pela lucta, pelos tiros,
pelo encontro da fera. Pediu-me uma cigarrette e um pouco de cognac e
agua...
Eu desde que a conhecia tinha muitas vezes olhado Carmen com insistencia,
e tinha visto sempre o seu olhar negro e acariciador envolver-me
respondendo ao meu.
Tinha-lhe algumas vezes dado flores, e uma noite que n'um terrasso em
Calcuttá, olhavamos as poderosas constellações da India, o ceu pulverisado
de luz, ella tinha um momento esquecido as suas mãos entre as minhas. A
sua belleza perturbava-me como um vinho muito forte. E alli, n'aquella
floresta, sob um céo affogueado, entre os aromas das magnolias, Carmen
apparecia-me com uma belleza prestigiosa, cheia de tentações, a que se não
foge.
--Ah Carmen, disse eu, quem sabe os que voltarão a Calcuttá!
--Está rindo, capitão...
--Na caçada do tigre póde-se pensar n'isto: o tigre é astuto; tem o
instincto do inimigo mais bravo e do que é mais lamentado.
--Ninguem hoje seria mais lamentado que o capitão.
--Só hoje?
--Sempre, e bem sabe por quê.
De repente o meu cavallo estacou.
--O tigre! o tigre! gritaram os malaios.
Os cavallos da frente recuaram; os cipaios entraram nas fileiras da
caravana. Os cães latiam, os malaios soltavam gritos guturaes, e o
elephante estendia a tromba, silencioso. De repente, houve como uma pausa
solemne e triste, e um vento muito quente passou nas folhagens.
Estavamos defronte de uma clareira coberta de um sol faiscante. Do outro
lado havia um bosque de tamarindos: era ali decerto que a fera dormia.
Voltei-me para D. Nicazio: vi-o pallido e inquieto.
--D. Nicazio! dê o primeiro tiro, o signal d'alarma!
D. Nicazio picou rapidamente o cavallo para mim, murmurou com uma voz
suffocada:
--Quero subir para o elephante. Carmen não deve estar só; póde haver
perigo...
Fallei aos malaios, que desdobraram a estreita escada de bambu, por onde
se sobe ao dorso dos elephantes. O Carnak dormia encruzado no vasto
pescoço do animal. D. Nicazio subiu com avidez, arremeçou-se para dentro
do palanquim, e de lá, pela fenda das cortinas, espreitava com o olho
faiscante e medroso.
Mas estão foi Carmen que não quiz ficar dentro do palanquim, pediu,
gritou, queria montar a cavallo, sentir o cheiro á fera.
--Tirem-me d'aqui, tirem-me d'aqui! Não fiz esta jornada toda para ficar
dentro d'uma gaiola...
Não havia sella em que mulher montasse, nem cavallo bastante fiel; não se
podia consentir que Carmen descesse. Mas eu tive uma idéa extranha,
perigosa, tentadora, imprevista: era pôl-a á garupa do meu cavallo.
Disse-lh'o.
Ella teve um gesto de alegria, quasi se deixou escorregar, agarrando-se ás
cordas do palanquim, pelo ventre do elephante; correu, pôz o pé no meu
estribo, enlaçou-me a cintura, e com um lindo pulo, sentou-se á garupa. Os
officiaes exclamavam que era uma imprudencia. Ella queria, instava e
apertava-me contra a curva do seu peito, rindo, jurando que nem as garras
do tigre a arrancariam d'alli...
Os malaios preparavam os tridentes, dispunham a matilha. Eu, como levava
Carmen á garupa, tinha-me collocado atraz do grupo, cerrado, com os pés
firmes nos estribos, attento, os olhos fitos na espessura dos tamarindos.
Mas nem se ouviam rugidos, nem um estremecimento de folhagem.
Carmen apertava-me exaltada.
--Vá! Vá! pediu-me ella baixo. O tigre, o tigre! Dê o signal.
Ergui um rewolver e disparei. O echo foi cheio e poderoso. E logo ouviu-se
um rugido surdo, lugubre, rouco, que era a resposta do tigre. Estava
perto, entre os primeiros tamarindos. A matilha rompeu a ladrar...
--Que ninguem se alargue! disse o velho brahmane, que tinha trepado a uma
palmeira, e de lá olhava, farejava, ordenava!
Todos conservavam a espada ou tridente inclinado em riste, esperando o
salto do tigre. Eu déra uma _cuchilla_ a Carmen, tinha na mão da redea um
forte rewolver e na outra um punhal curvo...
De repente os arbustos estremeceram, as altas hervas curvaram-se,
sentiu-se um bafo quente, um cheiro de sangue, e o tigre veiu cair, com um
rugido, diante dos caçadores, no meio da clareira, estacado, e immovel.
Era muito comprido, de pernas curtas e espessas, a cabeça ossea, os olhos
fulvos, ferozes, n'um movimento perpetuo e convulsivo; e a lingua vermelha
como sangue coalhado, pendia-lhe fóra da bocca.
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