O Mysterio da Estrada de Cintra. Cartas ao Diário de Noticias - 05

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fitavam; os seus labios não voltarão outra vez a approximar-se dos labios
que se collavam nos d'elle!
Eu não choro a tua memoria, porque não te conheço, porque nunca nos
encontrámos, porque não sei quem és. Mas não quero insultar a dôr que
adeja sobre a tua morte, deixando-me dormir na mesma casa em que jazes
insepulto, em quanto alguem te espera vivo no mundo.
Foi impelido por estes sentimentos, meu querido amigo, que eu me levantei
da cama em que me estendera e vim para a mesa em que ceei, passar a noite
escrevendo-te estas longas paginas, que de certo estimaremos ler um dia,
em disposição de espírito bem differente d'aquella em que ambos nos
achamos hoje.
Tinha em pouco mais de meio a narração que te estou fazendo, quando o
silencio que me envolvia, cortado apenas pelo fremito da minha penna no
papel, foi interrompido pelas vozes dos mascarados fallando baixo no
aposento que atravessei antes de entrar n'aquelle em que estou. Tinha
terminado o paragrapho anterior a este quando o mesmo rumor se repetiu, e
tive então curiosidade de escutar o que se dizia. Approximei-me da porta e
collei o ouvido ao buraco da fechadura, pelo qual nada via. Não sendo
natural que os nossos aprisionadores estejam ás escuras, é provavel que
haja um corredor, uma passagem ou um pequeno quarto entre aquelle em que
eu me acho e o quarto proximo em que elles fallam. Não podia perceber o
que diziam. Apenas de quando em quando alguma palavra solta e destacada me
chegava ao ouvido. Dispunha-me a vir continuar a escrever ou a terminar
esta carta, quando um levantou mais a voz e eu ouvi distinctamente estas
palavras:
--Mas as notas de banco, 2:300 libras em notas! Não as trazia elle?
--Sei que as trazia, dizia outra voz.
--É atroz então!
Estas palavras, unicas que ouvi, fizeram-me a impressão que podes
calcular!
É provado para mim que a casa a que fomos trazidos não é um simples ninho
consagrado a entrevistas d'amor, como eu primeiro suppuz. Das hypotheses
do prussiano é absolutamente necessario acceitar uma: isto ou é uma casa
de jogo ou uma loja maçonica. Assim o provam convincentemente os ruidos
que se ouviam na morada contigua. N'um retiro de paixões ternas não se
escancaram risadas a horas mortas ao som do dinheiro que telinta nas
mezas. A referencia dos vultos mysteriosos feita pela visinhança permitte
a suspeita de reuniões secretas. O tinir do ouro, as risadas, o mesmo
aspecto do _boudoir_ em que estivemos não consentem duvidar-se que esta
casa é uma caverna de jogo e de orgia.
As palavras que ha pouco ouvi suggerem-me sobre estas supposições a mais
tenebrosa suspeita.
O desgraçado que jaz ahi dentro podia ter sido victima de um homicidio,
premeditado com o intuito de roubar-lhe a quantia que elle trazia comsigo.
Occorre uma contradicção: na suggerida hypothese para que foram buscar um
medico? Explicam-n'o as palavras que ouvi. Os criminosos, que tinham
propinado opio á sua victima com o intuito de a roubarem, encontram
illudido este projecto com o desapparecimento das notas que lhe suppunham
na algibeira. N'esta conjectura sobrevem-lhes um recurso extremo: procurar
um medico que não possa denunciar o crime, mostrar-lhe o opio, e quererem
por esta prova de zelo, de solicitude, de confiança na sua innocencia,
affastar de si a presumpção do crime, e crear as difficuldades de um
mysterio! É possivel que eu não attinja exactamente a verdade do que se
passou. O indubitavel porém é que o desapparecimento já constatado da
somma que o assassinado trazia comsigo não póde adunar-se dentro d'esta
casa com a probidade e com a honra.
Depois d'isto é quasi escusado dizer-te qual é a determinação que vou
tomar. O meu visinho prussiano é um homem um tanto phantastico, mas
parece-me sincero e honrado. Vou fechar esta carta, subscriptal-a e
pedir-lhe que a lance no correio. Acharei facilmente meio de a passar para
o quarto d'elle. Se conseguir arrombar completamente, sem que me
presintam, o tapamento que serve de fundo ao armario, passarei eu em vez
de expedir a carta. No caso contrario, apenas se abrir aquella porta,
precipito-me sobre a pessoa ou pessoas que me embargarem o passo, e
abrirei o meu caminho como todo o homem de bem que em sua consciencia
delibera passar por cima de meia duzia de miseraveis.
Se te achas aqui, encarcerado como eu, por Deus juro-te que nos veremos
ámanhã. Se estás solto, se receberes esta carta, e vinte e quatro horas
depois não souberes de mim, escreve a Frederico Friedlann, _posta
restante, Lisboa_. Elle te procurará no logar que indicares e te dirá onde
estou.--Adeus.--_F_
* * * * *
Nota.--Juntamente com a carta publicada achavam-se as seguintes folhas de
papel escriptas pela mesma lettra das cartas do medico, anteriormente
publicadas n'esta folha:
F... não appareceu. No mesmo dia, dois dias e tres dias depois de haver
recebido a extensa carta que elle me dirigiu e de que enviei logo a
primeira parte, depois as seguintes, a essa redacção, procurei por todos
os meios ter noticias d'elle. Foram inuteis todos os esforços que
empreguei. Escrevi a Frederico Friedlann. Não houve resposta. Mandei ao
correio e soube que ainda ali se achava a carta que lhe dirigi e na qual
lhe aprasava uma entrevista.
Estou vivamente inquieto, sobresaltado, cuidadoso.
F... é um homem arrebatado, irascivel, pundonoroso até o delirio. Receio
do seu caracter e da violencia das suas determinações uma explosão que
teria podido talvez ser-lhe fatal.
Apresso-me porém a declarar-lhe, senhor redactor, que discordo
completamente da opinião d'elle emquanto á qualidade moral das pessoas com
quem estivemos reunidos na casa onde encontrámos o cadaver.
O mascarado alto, com quem tive occasião de fallar por mais tempo, não
póde ser uma assassino cobarde. F... demorou-se pouco tempo comnosco, não
pôde attentar nos individuos que o rodeavam. Ouviu apenas uma phrase, que
para mim proprio é ainda inexplicavel e terrivel, e baseou n'ella a sua
indignação e o seu odio.
Eu tratei apenas com um d'esses homens--o mais alto--mas com este fallei
incessantemente durante todo o espaço de uma noite. Não podia estudar-lhe
os movimentos da physionomia, mas via-lhe os olhos grandes, luminosos,
scintillantes. Ouvia-lhe a voz metallica, pura, clara, vibrante,
obedecendo naturalmente, na modulação das inflexões, ao fluxo e ao refluxo
dos sentimentos.
Nas discussões que tivemos, na conversação que travámos, nos diversos
incidentes que acompanharam o inquerito de A. M. C., escutei-lhe sempre
com interesse, com sympathia, algumas vezes com admiração, a palavra
sincera, facil, despresumida, espontanea, original, pittoresca sem
litteratismo, eloquente sem propositos oratorios,--limpido espelho de uma
alma energica, integra, perspicaz e sensivel. Tinha arrebatamentos
enthusiasticos, indignações convictas, concentrações melancolicas, que se
via provirem d'esse fundo de lagrimas, que todas as naturezas
priveligiadamente boas e honestas têem no intimo da sua essencia.
Pareceu-me finalmente um coração leal e honrado, e não é facil enganar-se
por este modo, depois de uma provação suprema e definitiva como aquella em
que nos achámos, um homem com a minha experiencia do mundo e a minha
pratica dos fingimentos humanos. Estas são, senhor redactor, as principaes
considerações que do principio logo me impediram de tornar publico o nome
do meu amigo violentamente retido em carcere privado. F... é um homem
conhecido, é quasi um homem celebre; em Lisboa ninguem ha que não conheça
o seu nome entre os escriptores mais applaudidos, ninguem que não distinga
a sua figura altiva, esmerada, picante, entre os vultos extremamente
uniformes dos passeios, das salas e dos theatros.
Se eu communicasse á policia o desapparecimento do meu amigo, é quasi
seguro que ella encontraria meio de o descobrir. Mas não equivaleria isto
a denunciar simultaneamente como criminosos o mascarado alto e os seus
companheiros que eu todavia considero innocentes?
A carta de F..., apesar da revelação que encerra sobre o desapparecimento
das 2:300 libras, confirma por outro lado a convicção em que eu me acho.
Na carta de F... encontra-se o seguinte periodo:
* * * * *
«Occorreu-me que teria um meio de desenganar-me se era effectivamente ou
se não era um amigo intimo que eu tinha ao meu lado: arrancar-lhe o
relogio: bastar-me-hia apalpal-o, ainda vendado como eu estava, para
reconhecer o dono. A ser o individuo que eu suppunha, a caixa do relogio
teria a lisura do esmalte e no centro a saliencia de um brasão.»
Ora o relogio a que n'estas linhas se allude, se bem lembrado está, é
exactamente o mesmo que descrevi na segunda carta que enviei a esse
periodico, o mesmo que usava o mascarado que ia sentado defronte de mim na
carruagem, e que eu lhe vi por algum tempo fóra da algibeira do collete,
suspenso na corrente. Logo, o mascarado que conduziu F... ao quarto em que
elle se acha preso, é effectivamente um amigo d'elle, intimo e particular.
Posso eu, sem semear remorsos que mais tarde entenebrecerão talvez a minha
vida com uma sombra eterna, denunciar á policia uma particularidade, um
nome, uma circumstancia positiva, que a ponha no encalço d'este crime e no
descobrimento das pessoas, innocentes ou culpadas, que circulam fatalmente
em torno d'elle?
As mesmas noticias que lhe tenho dado, as cartas que precipitadamente
comecei a escrever-lhe, e que hoje, posto que acobertado pelo anonymo, me
vejo na obrigação moral de concluir e desenlaçar, não serão já perante a
severidade incorruptivel, despreocupada e fria dos homens de bem, uma
traição aos imprescriptiveis deveres da amisade, um aggravo á
inviolabilidade do sigillo, uma offensa a esse culto intimo que se baseia
na delicadeza, no melindre, no primor,--culto que para as almas honradas
constitue uma parte dos principios supremos da primeira das religiões--a
religião do caracter?
Mas podia tambem calar-me? ficar mudo, impassivel, inerte, neutro, diante
d'este successo obscuro mas tremendo? Podia acaso acceitar na
impassibilidade e no silencio a responsabilidade terrivel de um homicidio
tenebroso, do qual sou eu a unica testemunha com iniciativa, com
liberdade, com faculdade de acção?...
Decidam-no as pessoas que por um momento quizerem imaginar-se nas
circumstancias excepcionaes e unicas em que eu estou.
Na onda de conjecturas, de planos, de determinações, de obstaculos em que
me achei envolvido, assoberbado, só, escondido, inquieto, nervoso, sem um
unico momento que perder, uma só cousa me occorreu, possivel, clara,
solvente: publicar anonymamente o que me succedera, entregar por este modo
á sociedade a historia da minha situação e esperar dos outros, do publico,
a solução do problema que eu não sabia resolver por mim.
Nem uma palavra de conselho, de analyse, de critica!
Estou profundamente triste, abatido, doente. Preciso de liberdade. Não
posso ficar eternamente immovel, como um condemnado, com o pesado fuzil de
um segredo soldado a um pé.
Dois dias depois de receber esta minha carta, senhor redactor, terei
partido para fóra do paiz. As ambulancias do exercito francez precisam de
cirurgiões. Vou alistar-me como facultativo. O meu paiz dispensa-me, e eu,
como todo o homem na presença dos infortunios irremediaveis, sinto a doce
necessidade de ser util. Fica sabendo o meu destino. Um dia saberá o meu
nome.
Despedindo-me--seguramente para sempre--dos seus leitores, cuja attenção
tenho largamente prendido com a narrativa d'este caso lugubre, seja-me
permittido acrescentar uma derradeira palavra:
A. M. C., cujo nome não ouso delatar escrevendo-o por extenso n'esta
pagina, A. M. C., que eu não incriminei nem denunciei, apesar de tudo
quanto em contrario quiz allegar o amigo d'elle que sob a letra Z. veiu
defendel-o n'este mesmo logar, A. M. C., quaesquer que sejam as causas que
o levaram a intervir nas circumstancias que rodeiam o crime, conhece-o
interiormente, tem o fio do trama que eu debalde procurei achar.
Se estas linhas chegarem aos olhos d'esse moço, uma coisa lhe peço em nome
da sua honra e da sua dignidade, em nome da honra e da dignidade das
pessoas envolvidas em tão extranho successo. Procure no correio uma carta
que lhe dirijo n'esta mesma data. N'essa carta verá quem eu sou, onde
poderá enviar as suas cartas ou vêr-me e fallar-me pessoalmente. Se a sua
idade, se as condições da sua posição na sociedade, se os interesses da
sua carreira, a tranquillidade da sua familia, a incompetencia da sua
auctoridade, ou outra qualquer razão o impedirem de acompanhar este
acontecimento até á ultima das suas consequencias, arrancando a um tal
mysterio a secreta verdade que elle envolve, dirija-se a mim,
collaboraremos juntos n'essa obra, que tenho por meritoria e honrada. Eu
acceitarei clara e abertamente para todas as consequencias e para todos os
effeitos a responsabilidade que d'ahi provenha, e terei meio de salvar o
seu nome, a sua pessoa e a sua honra de qualquer suspeita que o ensombre
ou o macule.
Emquanto a ti, meu querido e meu honrado F..., não creio que sejas victima
de uma emboscada traiçoeira e indigna! O teu unico perigo está, a meu vêr,
no teu impaciente melindre, nos teus delicados escrupulos, no teu valor,
finalmente, e no teu brio.
Que te matassem cobardemente no carcere clandestino que ha pouco tempo
ainda tu illuminavas com a tua pachorra e a tua alegria, não póde ser. Que
a esta hora tenhas sido obrigado a jogar a tua vida trocando em desaggravo
de honra uma estocada ou um tiro com algum dos teus mysteriosos
commensaes, isso acho logico, e é possivel.
Punge-me não sei que vago e triste presentimento... Meu pobre F...! Se
estará destinado que não nos tornemos a vêr! Se o dia fatal em que
regressámos ambos de Cintra, descuidados, contentes, suspirando com as
nossas alegrias, sorrindo com os nossos infortunios, terá acaso de ser o
ultimo d'essa doce convivencia que por tanto tempo nos juntou!...
E são as amarguras alheias, são as desgraças dos outros que nos arrastam
envolvidos no turbilhão implacavel e terrivel da crua solidariedade
humana!
Que remedio?!
Se a vida é isto, aceitemol-a corajosamente como ella é, e ávante!
aprenda-se a ser desgraçado, visto que é essa a mais segura maneira de se
ser feliz!


+Segunda carta de Z+

Senhor redactor.--Acabo de vêr publicada na sua folha de hoje uma carta em
que o doutor..., com uma insistencia malevola, torna a inculcar, como
cumplice no attentado de que elle se fez o historiador voluntario, o meu
pobre amigo A. M. C.
Disse-lhe na minha primeira carta, senhor redactor, que eu ia com o
auxílio unico da minha coragem e da minha astucia, pôr-me ao serviço da
curiosidade de todos, procurando penetrar e desfiar a tenebrosa historia
que ha mais d'uma semana, vem todos os dias successivamente, no folhetim
do seu jornal, apresentar deante d'um publico attonito um quadro
mysterioso e lugubre.
Não pude, porém, descobrir nada: indagações, interrogatorios, visitas aos
logares, tudo foi inutil. A historia perde-se cada vez mais n'uma nevoa
que a afoga: e o meu pobre M. C. lá está ainda--não sei se n'um retiro
voluntario, se n'uma sequestração forçada.
Na impossibilidade de descobrir, physicamente, por essas ruas, a verdade,
resolvi ir buscal-a ás mesmas cartas do doutor. Analysei-as, decompul-as
palavra por palavra. E sem contar os processos, apresento os resultados.
O _Mysterio da estrada de Cintra_ é uma invenção: não uma invenção
litteraria, como ao principio suppuz, mas uma invenção criminosa, com um
fim determinado. Eis aqui o que pude deduzir sobre os motivos d'esta
invenção:
Ha um crime; é indubitavel; é claro. Um dos cumplices d'este crime é o
doutor ***. Elle está envolvido no anonymo: não tenho por isso duvida em
apresentar esta accusação formal. Se o seu nome fosse conhecido, se as
suas cartas estivessem assignadas, eu, só com provas judiciarias, me
atreveria a escrever esta grave affirmativa.
Sim, o doutor *** é o cumplice d'um crime: o meu pobre amigo M. C. é um
desgraçado incauto, sobre quem se querem fazer recahir as suspeitas que se
possam ter já, e as provas que mais tarde venham a juntar-se. Este crime,
que existe, apparece-nos envolvido nas roupas litterarias d'um mysterio de
theatro. As cartas do doutor *** são um romance pueril. Vejamos.
É possivel que n'uma cidade pequena como Lisboa, em que todos são
visinhos, amigos de _tu_, e parentes, o doutor *** que parece ser um homem
notado na sociedade, vivendo n'ella, frequentando as suas salas e os seus
theatros, não conhecesse nenhum d'estes quatro mascarados, que pelas suas
indicações pertencem a essa mesma sociedade, se sentam nos mesmos sofás,
escutam a mesma musica nos mesmos salões e nos mesmos theatros?
Uma mascara de velludo preto não basta para disfarçar um conhecido. O seu
cabello, o seu andar, a sua estatura, a sua figura, a sua voz, as suas
mãos, a sua _toillete_, são bastantes para revelar, trahir o individuo. O
doutor *** pois nunca os tinha visto? O quê? Pois eram tão galantes, tão
distinctos, governam tão bem as suas parelhas, fallam tão bem as suas
linguas, pareciam tão ricos, e o doutor *** um medico, um homem
relacionado, um velho dilletante de S. Carlos, nunca os viu, nunca os
percebeu, n'esta terra, em que toda a vida se concentra nos doze palmos de
lama do Chiado! E F... tem um amigo intimo entre os mascarados, diante de
si, na carruagem, joelho com joelho, e não o reconhece, pelas mãos, pelos
olhos, pelo corpo, pelo silencio até! Comedia!
E o menos conhecido, o menos celebre dos rapazes de Lisboa, mascara-se no
carnaval de Turco, enche-se de barbas, cobre-se de plumas, veste-se de
Mephistopheles, de Ci-devant, ou de Melão, e não ha ninguem que no salão
de S. Carlos, não diga ao passar por elle: _lá vae fulano!_ E é de noite,
ás luzes, e as mulheres olham-nos, e estamos distrahidos, e não estamos
n'uma estrada, de dia, surprehendidos e violentados! Tanto nos conhecemos
todos! Comedia! Comedia!
E aquelles mascarados, são tão innocentes, tão ingenuos, que vão procurar,
n'um momento tão perigoso, o homem que pelas suas relações, pela sua
posição, pela sua intelligente penetração, mais facilmente os poderia
reconhecer.
Se lhes era repugnante serem descobertos, para que procuraram aquelle
homem? Se lhes era indifferente, para que se mascararam?
E depois, para que era um medico? Era para verificar a morte? Para acudir?
Para salvar? N'esse caso então que homens são esses, que em logar d'ir á
botica mais proxima, a casa do primeiro medico rapidamente, logo,
logo,--vão em socego mascarar-se nos seus quartos, para irem ao
crepusculo, para uma charneca, a duas legoas de distancia, representar os
velhos episodios de floresta dos dramas de Soulié?
Suppunham por ventura que elle estava morto? Para que era então um medico,
uma testemunha? E se não receavam as testemunhas para que punham nos seus
rostos uma mascara, e nos olhos dos surprehendidos um lenço de cambraia?
Comedia! Comedia sempre!
Veja-se o doutor *** diante do cadaver: não ha ali uma palavra que seja
scientifica: desde a serenidade das feições até á dilatação das pupillas,
tudo é falso n'aquella descripção symptomatica.
E que homens são, o doutor *** e o seu amigo F... que na rua d'uma cidade,
dentro d'uma casa, com os braços livres, não deitam a mão àquelles
mascaras? Como é que, sendo generosos e altivos supportam certas
violencias humilhantes? Como é que, sendo honestos e dignos, acceitam pela
sua attitude condescendente uma parte da cumplicidade?
E A. M. C.! Como o representam ali, pueril, nervoso, timido, imbecil e
coacto! Elle d'uma tão grande força de temperamento! d'uma tão energica
coragem! d'um tão altivo sangue frio! Como se póde acreditar n'aquella
astucia infantil, com que o doutor *** o envolve?
--O que admira é que não deixasse vestigios o arsenico!
--Mas foi o opio! responde M. C., segundo conta o doutor ***.
Qual é a imbecil ingenuidade do homem que possa descer a esta simplicidade
lôrpa?
E emfim, que mulher é aquella, que ahi se entrevê? Porque a quer o
mascarado salvar? Que roubo é aquelle de 2:300 libras? Sejamos logicos:
dado o typo do mascarado, cavalheiroso e nobre, como é que elle, vendo que
o crime teve por origem o roubo, procura salvar e tem considerações por
uma mulher que mata para roubar?
Se elle suspeita que o crime commetido por essa mulher teve por mobil a
paixão, como explica o roubo?
Demais, se desconfiava que ella estivesse envolvida n'aquelle facto, se
estava tão ligado com ella que a queria salvar, por que a não procurou
logo, por que a não interrogou, em logar de ir surprehender gente para as
estradas, e vir fazer _tableau_ em volta d'um cadaver?
Ah! como toda esta historia é artificial, postiça, pobremente inventada!
aquellas carruagens como galopam mysteriosamente pelas ruas de Lisboa!
aquelles mascarados, fumando n'um caminho, ao crepusculo, aquellas
estradas de romance, onde as carruagens passam sem parar nas barreiras, e
onde galopam, ao escurecer, cavalleiros com capas alvadias! Parece um
romance do tempo do ministerio Villele. Não fallo nas cartas de F... que
não explicam nada, nada revelam, nada significam--a não ser a necessidade
que tem um assassino e um ladrão de espalmar a sua prosa ôca, nas columnas
d'um jornal honesto.
Deducção: o doutor *** foi cumplice d'um crime; sabe que ha alguem que
possue esse segredo, presente que tudo se vae espalhar, receia a policia,
houve alguma indiscrição; por isso quer fazer poeira, desviar as
pesquisas, transviar as indagações, confundir, obscurecer, rebuçar,
enlear, e em quanto lança a perturbação no publico, faz as suas malas, vae
ser cobarde para França, depois de ter sido assassino aqui!
O que faz no meio de tudo isto o meu amigo M. C. ignoro-o.
Senhor redactor, peço-lhe, varra depressa do folhetim do seu jornal essas
inverosimeis invenções.--Z.


NARRATIVA DO +MASCARADO ALTO+

I

Senhor redactor.--A pessoa que lhe escreve esta carta é a mesma que n'essa
aventura da estrada de Cintra, popularisada pela carta do doutor ***,
guiou a carruagem para Lisboa. Sou já conhecido, com a minha mascara de
setim preto e a minha estatura, por todas as pessoas que tenham seguido
com interesse a successiva apparição d'estes segredos singulares; eu era
nas cartas do doutor *** designado pelo--_mascarado mais alto._--Sou eu.
Nunca suppuz que me veria na necessidade lamentavel de vir ao seu jornal
trazer tambem a minha parte de revelações! Mas desde que vi as accusações
improvisadas, sem analyse e sem logica, contra o doutor*** e contra mim,
eu devia ao respeito da minha personalidade e á consideração que me merece
a impeccavel probidade do doutor *** o vir affastar todas as contradicções
hypotheticas e todas as improvisações gratuitas, e mostrar a verdade real,
implacavel, indiscutivel. Detinha-me o mais forte escrupulo que póde
dominar um caracter altivo: era necessario fallar n'uma mulher, e arrastar
pelas paginas de um jornal, o que ha no ser feminino de mais verdadeiro e
de mais profundo: a historia do coração. Hoje não me retêem essas
considerações; tenho aqui, diante da pagina branca em que escrevo, sobre a
minha mesa, este bilhete simples e nobre:--«Vi as accusações contra si e
os seus amigos, e contra aquelle dedicado doutor ***. Escreva a verdade,
imprima-a nos jornaes. Esconda o meu nome com uma inicial falsa apenas. Eu
já não pertenço ao mundo, nem ás suas analyses, nem aos seus juizos. Se
não fizer isto, denuncio-me á policia.»
Apesar porém d'estas grandes e sinceras palavras, eu resolvi nada revelar
do crime, e contar apenas os factos anteriores que me tinham ligado com
aquelle infeliz moço, tão fatalmente morto, motivado a sua presença em
Lisboa, e determinado esse desenlace passado n'uma alcova solitaria, n'uma
casa casual, ao desmaiado clarão de uma vela, ao pé de um ramo de flores
murchas. Outros, os que o sabem, que contem os transes d'essa noite. Eu
não. Não quero ouvir apregoar pelos vendedores de periodicos a historia
das dores mais profundas d'um coração que estimo.
Senhor redactor, ha tres annos a casa onde eu mais vivia em Lisboa,
aquella em que tinha sempre o meu talher, e a minha carta de _whist_, onde
ria as minhas alegrias, e fazia confidencias das minhas tristezas, era a
casa do conde de W. A condessa era minha prima.
Era uma mulher singularmente attrahente: não era linda, era peior: tinha a
_graça_. Eram admiraveis os seus cabellos loiros e espessos; quando
estavam entrelaçados e enrolados, com reflexos d'uma infinita doçura de
ouro, parecia serem um ninho de luz. Um só cabello que se tomasse, que se
estendesse, como a corda n'um instrumento, de encontro á claridade,
reluzia com uma vida tão vibrante que parecia ter-se nas mãos uma fibra
tirada ao coração do sol.
Os seus olhos eram d'um azul profundo como o da agua do Mediterraneo.
Havia n'elles bastante imperio para poder domar o peito mais rebelde; e
havia bastante meiguice e mysterio, para que a alma fizesse o extranho
sonho de se affogar n'aquelles olhos.
Era alta bastante para ser altiva; não tão alta que não podesse encostar a
cabeça sobre o coração que a amasse. Os seus movimentos tinham aquella
ondulação musical, que se imagina do nadar das sereias.
De resto, simples e espirituosa.
Dizer-lhe que os meus olhos nunca se demoraram amorosamente na pureza
infinita da sua testa, e na curva do seu seio seria d'um extranho orgulho.
Tive sim, nos primeiros tempos em que fui àquella casa, um amor
indefinido, uma phantasia delicada, um desejo transcendente por aquella
doce creatura. Disse-lh'o até; ella riu, eu ri tambem; apertámo-nos
gravemente a mão; jogámos n'essa noite o _écarté_; e ella terminou por
fazer n'uma folha de papel a minha caricatura. Desde então fomos amigos;
nunca mais reparei que ella fosse linda; achava-a um digno rapaz, e estava
contente. Contava-lhe os meus amores, as minhas dividas, as minhas
tristezas: ella sabia ouvir tudo, tinha sempre a palavra precisa e
definitiva, o encanto consolador. Depois, tambem, ella contava-me os seus
estados de espírito nervosos, ou melancolicos.
--Estou hoje com os meus _blue decils_, dizia ella.
Faziamos então chá, fallavamos baixo ao fogão. Ella não era feliz com o
marido. Era um homem frio, trivial e libertino; o seu pensamento era
estreito, a sua coragem preguiçosa, a sua dignidade desabotoada. Tinha
amantes vulgares e grosseiras, fumava impiedosamente cachimbo, cuspia o
seu tanto no chão, tinha pouca orthographia. Mas os seus defeitos não eram
excepcionaes, nem destacavam. Lord Grenley dizia d'elle admirado:
--Que homem! não tem espírito, não tem mão de redea, não tem _ar_, não tem
grammatica, não tem _toilette_, e todavia não é desagradavel.
Mas a natureza fina, aristocratica, da condessa, tinha occultas
repugnancias, com a presença d'esta pessoa trivial e monotona. Elle no
emtanto estimava-a, dava-lhe joias, trazia-lhe ás vezes um ramo de flores,
mas tudo isso fazia indifferentemente, como guiava o seu _dog-cart_.
O conde tinha por mim um enthusiasmo singular: achava-me o mais
sympathico, o mais intelligente, o mais bravo; pendurava-se orgulhosamente
do meu braço, citava-me, contava as minhas audacias, imitava as minhas
gravatas.
Em tempo a condessa começou a descorar e a emagrecer. Os medicos
aconselhavam uma viagem a Nice, a Cadix, a Napoles, a uma cidade do
Mediterraneo. Um amigo da casa que voltava da India, onde tinha sido
secretario geral, fallou com grande admiração de Malta. O paquete da India
havia soffrido um transtorno; elle tinha estado retido cinco dias em
Malta, e adorava as suas ruas, a belleza da pequena enseada, o aspecto
heroico dos palacios, e a animação petulante das _maltezas_ de grandes
olhos arabes...
--Queres tu ir a Malta? disse uma noite o conde a sua mulher.
--Vou a toda a parte; mas, não sei porquê, sympathiso com Malta. Vamos a
Malta. Venha tambem, primo.
--Está claro que vem! gritou o conde.
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