O Mysterio da Estrada de Cintra. Cartas ao Diário de Noticias - 03

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N'esta declaração, aliás pouco ingleza, a palavra _that_ acha-se escripta
por inteiro.
Voltando-se então para M. C.:
--Porque não apresentou logo este papel? perguntou o mascarado. Esta
declaração foi falsificada.
--Falsificada! exclamou o outro, erguendo-se com sobresalto ou com
surpreza.
--Falsificada; feita para encobrir o assassinato: tem todos os indicios
d'isso. Mas o grande, o forte, o positivo indicio é este: onde estão 2:300
libras em notas de Inglaterra, que este homem tinha no bolso?
M. C. olhou-o pasmado, como um homem que acorda de um sonho.
--Não apparecem, porque o senhor as roubou. Para as roubar matou este
homem. Para encobrir o crime falsificou este bilhete.
--Senhor, observou gravemente A.M.C., falla-me em 2:300 libras: dou-lhe a
minha palavra de honra que não sei a que se quer referir.
Eu então disse lentamente pondo os olhos com uma perscrutação demorada
sobre as feições do mancebo:
--Esta declaração é falsa, evidentemente, não percebo o que quer dizer
este novo negocio das 2:300 libras, de que só agora se falla; o que vejo é
que este homem foi envenenado: ignoro se foi o senhor, se foi outro que o
matou, o que sei é que evidentemente o cumplice é uma mulher.
--Não póde ser, doutor!, gritou o mascarado. É uma supposição absurda.
--Absurda!?... E este aposento, este quarto forrado de seda, fortemente
perfumado, carregado de estofos, illuminado por uma claridade baça coada
por vidros foscos; a escada coberta com um tapete; um corrimão engenhado
com uma corda de seda; ali aos pés d'aquella volteriana aquelle tapete
feito de uma pelle de urso, sobre a qual me parece que estou vendo o
vestigio de um homem prostrado? Não vê em tudo isto a mulher? Não é esta
evidentemente uma casa destinada a entrevistas de amor?...
--Ou a qualquer outro fim.
--E este papel? este papel de marca pequenissima, do que as mulheres
compram em Paris, na casa Maquet, e que se chama papel da Imperatriz?
--Muitos homens o usam!
--Mas não o cobrem como este foi coberto, com um _sachet_ em que havia o
mesmo aroma que se respira no ambiente d'esta casa. Este papel pertence a
uma mulher, que examinou a falsificação que elle encerra, que assistiu a
ella, que se interessava na perfeição com que a fabricassem, que tinha os
dedos humidos, deixando no papel um vestigio tão claro...
O mascarado calava-se.
--E um ramo de flôres murchas, que está ali dentro? um ramo que examinei e
que é formado por algumas rosas, presas com uma fita de veludo? A fita
está impregnada do perfume da pomada, e descobre-se-lhe um pequeno vinco,
como o de uma unhada profunda, terminando em cada extremidade por um
buraquinho... É o vestigio flagrante que deixou no veludo um gancho de
segurar o cabello!
--Esse ramo podiam ter-lh'o dado, podia tel-o trazido elle mesmo de fóra.
--E este lenço que encontrei hontem debaixo de uma cadeira?
E atirei o lenço para cima da mesa. O mascarado pegou n'elle avidamente,
examinou-o e guardou-o.
M. C. olhava pasmado para mim, e parecia aniquillado pela dura logica das
minhas palavras. O mascarado ficou por alguns momentos silencioso; depois
com voz humilde, quasi supplicante:
--Doutor, doutor, por amor de Deus! esses indicios não provam. Este lenço,
de mulher indubitavelmente, estou convencido que é o mesmo que o morto
trazia no bolso. É verdade: não se lembra que não lhe encontrámos lenço?
--E não se lembra tambem que não lhe encontrámos gravata?
O mascarado calou-se succumbido.
--No fim de contas eu não sou aqui juiz, nem parte, exclamei eu. Deploro
vivamente esta morte, e fallo n'isto unicamente pelo pezar e pelo horror
que ella me inspira. Que este moço se matasse ou que fosse morto, que
caisse ás mãos de uma mulher ou ás mãos de um homem, importa-me pouco. O
que devo dizer-lhe é que o cadáver não póde ficar por muito mais tempo
insepulto: é preciso que o enterrem hoje. Mais nada. É dia. O que desejo é
sair.
--Tem razão, vae sair já, cortou o mascarado.
E em seguida, tomando M. C. pelo braço, disse-me:
--Um momento! Eu volto já!
E sairam ambos pela porta que communicava com o interior da casa,
fechando-a á chave pelo outro lado.
Fiquei só, passeando agitadamente.
A luz do dia tinha feito surgir no meu espírito uma multidão de
pensamentos inteiramente novos e diversos d'aqueles que me haviam occupado
durante a noite. Ha pensamentos que não vivem senão no silencio e na
sombra, pensamentos que o dia desvanece e apaga; ha outros que só surgem
ao clarão do sol.
Eu sentia no cerebro uma multidão de idéas extremunhadas, que á luz
repentina da madrugada voejavam em turbilhão como um bando de pombas
amedrontadas pelo estridor de um tiro.
Machinalmente entrei na alcova, sentei-me na cama, encostei um braço no
travesseiro.
Então, não sei como, olhei, reparei, vi, com extranha commoção, sobre a
alvura do travesseiro, preso n'um botão de madreperola, um longo cabello
louro, um cabello de mulher.
Não me atrevi logo a tocar-lhe. Puz-me a contemplal-o, avida e longamente.
--Era então certo! ahi estás pois! encontro-te finalmente!... Pobre
cabello! apieda-me a simplicidade innocente com que te ficaste ahi,
patente, descuidado, preguiçoso, languido! Pódes ter maldade, pódes ter
malvadez, mas não tens malicia, não tens astucia. Tenho-te nas mãos,
fito-te com os meus olhos; não foges, não estremeces, não córas; dás-te,
consentes-te, facilitas-te, meiga, doce, confiadamente... E, no emtanto,
tenue, exigua, quasi microscopica, és uma parte da mulher que eu
adivinhava, que eu antevia, que eu procuro! É ella auctora do crime? é
inteiramente innocente? é apenas cumplice? Não sei, nem tu m'o poderás
dizer?
De repente, tendo continuado a considerar o cabello, por um processo de
espírito inexplicavel, pareceu-me reconhecer de subito aquelle fio louro,
reconhecel-o em tudo: na sua côr, na sua _nuance_ especial, no seu
aspecto! Lembrou-me, appareceu-me então a mulher a quem aquelle cabello
pertencia! Mas quando o nome d'ella me veio insensivelmente aos
labios,disse commigo:
--Ora! por um cabello! que loucura!
E não pude deixar de rir.
Esta carta vae já demasiadamente longa. Continuarei ámanhã.

VII

Contei-lhe hontem como inesperadamente havia encontrado á cabeceira da
cama um cabello louro.
Prolongou-se a minha dolorosa surpreza. Aquelle cabello luminoso,
languidamente enrolado, quasi casto, era o indicio d'um assassinato, d'uma
cumplicidade pelo menos! Esqueci-me em longas conjecturas, olhando,
immovel, aquelle cabello perdido.
A pessoa a quem elle pertencia era loura, clara de certo, pequena,
_mignonne_, porque o fio de cabello era delgadissimo, extraordinariamente
puro, e a sua raiz branca parecia prender-se aos tegumentos craneanos por
uma ligação tenue, delicadamente organisada.
O caracter d'essa pessoa devia ser doce, humilde, dedicado e amante,
porque o cabello não tinha ao contacto aquella aspereza cortante que
offerecem os cabellos pertencentes a pessoas de temperamento violento,
altivo e egoista.
Devia ter gostos simples, elegantemente modestos a dona de tal cabello, já
pelo imperceptivel perfume d'elle, já porque não tinha vestigios de ter
sido frisado, ou caprichosamente enrolado, domado em penteados
phantasiosos.
Teria sido talvez educada em Inglaterra ou na Allemanha, porque o cabello
denotava na sua extremidade ter sido espontado, habito das mulheres do
norte, completamente extranho ás meridionaes, que abandonam os seus
cabelos á abundante espessura natural.
Isto eram apenas conjecturas, deducções da phantasia, que nem constituem
uma verdade scientifica, nem uma prova judicial.
Esta mulher, que eu reconstruia assim pelo exame d'um cabello, e que me
apparecia doce, simples, distincta, finamente educada, como poderia ter
sido o protagonista cheio de astucia d'aquella occulta tragedia? Mas
conhecemos nós porventura a secreta logica das paixões?
Do que eu estava perfeitamente convencido é que havia uma mulher como
cumplice. Aquelle homem não se tinha suicidado. Não estava decerto só, no
momento em que bebera o opio. O narcotico tinha-lhe sido dado, sem
violencia evidentemente, por ardil ou engano, n'um copo d'agua. A ausencia
do lenço, o desapparecimento da gravata, a collocação do fato, aquelle
cabello louro, uma cova recentemente feita no travesseiro pela pressão de
uma cabeça, tudo indicava a presença d'alguem n'aquella casa durante a
noite da catastrophe. Por consequencia: impossibilidade de suicidio,
verosimilhança de crime.
O lenço achado, o cabello, a disposição da casa, (evidentemente destinada
a entrevistas intimas) aquelle luxo da sala, aquella escada velha,
devastada, coberta com um tapete, a corda de seda que eu tinha sentido...
tudo isto indicava a presença, a cumplicidade de uma mulher. Qual era a
parte d'ella n'aquella aventura? Não sei. Qual era a parte de A. M. C.?
Era o assassino, o cumplice, o occultador do cadaver? Não sei. M. C. não
podia ser extranho a essa mulher. Não era de certo um cumplice tomado
exclusivamente para o crime. Para dar opio n'um copo de agua não é
necessario chamar um assassino assalariado. Tinham por consequencia um
interesse commum. Eram amantes? Eram casados? Eram ladrões? E accudia-me á
memoria aquella inesperada referencia a 2:300 libras que de repente me
tinha apparecido como um novo mysterio. Tudo isto eram conjecturas
fugitivas. Para que hei de repetir eu todas as idéas que se formavam e que
se desmanchavam no meu cerebro, como nuvens n'um ceu varrido pelo vento?
Há de certo na minha hypothese ambiguidades, contradicções e fraquezas, ha
nos indicios que colhi lacunas e incoherencias: muitas cousas
significativas me escaparam por certo, ao passo que muitos pormenores
inexpressivos se me gravaram na memoria, mas eu estava n'um estado morbido
de perturbação, inteiramente desorganisado por aquella aventura, que
inesperadamente, com o seu cortejo de sustos e mysterios, se installara na
minha vida.
O senhor redactor, que julga de animo frio, os leitores, que
socegadamente, em sua casa, lêem esta carta, poderão melhor combinar,
estabelecer deducções mais certas, e melhor approximar-se pela inducção e
pela logica da verdade occulta.
Eu achava-me só havia uma hora, quando o mascarado alto entrou, trazendo o
chapeu na cabeça e no braço uma capa de casimira alvadia.
--Vamos, disse elle.
Tomei calado o meu chapéu.
--Uma palavra antes, disse elle. Em primeiro logar dê-me a sua palavra de
honra que ao subir agora á carruagem não terá um gesto, um grito, um
movimento que me denuncie.
Dei a minha palavra.
--Bem! continuou, agora quero dizer-lhe mais: aprecio a dignidade do seu
caracter, a sua delicadeza. Ser-me-hia doloroso que entre nós houvesse em
qualquer tempo motivos de desdem, ou necessidades de vingança. Por isso
affirmo-lhe: sou perfeitamente extranho a este successo. Mais tarde talvez
entregue este caso á policia. Por ora sou eu policia, juiz e talvez
carrasco. Esta casa é um tribunal e um carcere. Vejo que o doutor leva
d'aqui a desconfiança de que uma mulher se envolveu n'este crime: não o
supponha, não podia ser. No emtanto, se alguma vez lá fóra fallar, a
respeito d'este caso, em alguma pessoa determinada e conhecida, dou-lhe a
minha palavra de honra, doutor, que o mato, sem remorso, sem repugnancia,
naturalmente, como corto as unhas. Dê-me agora o seu braço. Ah!
esquecia-me, meu caro, que os seus olhos estão destinados a ter estas
lunetas de cambraia.
E, rindo, apertou-me o lenço nos olhos.
Descemos a escada, entrámos na carruagem, que tinha os stores fechados.
Não pude vêr quem guiava os cavallos porque só dentro do coupé achei a
vista livre. O mascarado sentou-se ao pé de mim. Via-lhe uma pequena parte
da face tocada da luz. A pelle era fina, pallida, o cabello castanho,
levemente annelado.
A carruagem seguiu um caminho, que pelos accidentes da estrada, pela
differença de velocidade indicando acclives e declives, pelas alternativas
de macadam e de calçada, me parecia o mesmo que tinhamos seguido na
vespera, no começo da aventura. Rodámos finalmente na estrada larga.
--Ah, doutor!, dizia o mascarado com desenfado, sabe o que me afflige? É
que o vou deixar na estrada, só, a pé! Não se póde remediar isto. Mas não
se assuste. O Cacem fica a dois passos, e ahi encontra facilmente
conducção para Lisboa.
E offereceu-me charutos.
Depois de algum tempo, em que fomos na maior velocidade, a carruagem
parou.
--Chegámos, disse o mascarado. Adeus, doutor.
E abriu por dentro a portinhola.
--Obrigado! accrescentou. Creia que o estimo. Mais tarde saberá quem sou.
Permitta Deus que ambos tenhamos no applauso das nossas consciencias e no
prazer que dá o cumprimento de um grande dever o derradeiro desenlace da
scena a que assistiu. Restituo-lhe a mais completa liberdade. Adeus!
Apertámo-nos a mão, eu saltei. Elle fechou a portinhola, abriu os stores e
estendendo-me para fóra um pequeno cartão:
--Guarde essa lembrança, disse, é o meu retrato.
Eu, de pé, na estrada, junto das rodas, tomei a photographia avidamente,
olhei. O retrato estava tambem mascarado!
--É um capricho do anno passado, depois de um baile de mascaras! gritou
elle, estendendo a cabeça pela portinhola da carruagem que começava a
rodar a trote.
Via-a affastando-se na estrada. O cocheiro tinha o chapeu derrubado, uma
capa traçada sobre o rosto.
Quer que lhe diga tudo? Olhei para a carruagem com melancolia! Aquelle
trem levava comsigo um segredo inexplicavel. Nunca mais veria aquelle
homem. A aventura desvanecia-se, tinha findado tudo.
O pobre morto, esse lá ficava, estendido no sophá, que lhe servia de
sarcophago!
Achei-me só, na estrada. A manhã estava nevoada, serena, melancolica. Ao
longe distinguia ainda o trem. Um camponez appareceu vindo do lado opposto
áquelle por onde elle desapparecia.
--Onde fica o Cacem?
--De lá venho eu, senhor. Sempre pela estrada, a meio quarto de legua.
A carruagem, pois, tinha-se dirigido para Cintra.
Cheguei ao Cacem fatigado. Mandei um homem a Cintra, á quinta de F., saber
se tinham chegado os cavallos; pedi para Lisboa uma carruagem, e esperei-a
a uma janella, por dentro dos vidros, olhando tristemente para as arvores
e para os campos. Havia meia hora que estava ali, quando vi passar a toda
a brida um fogoso cavallo. Pude apenas distinguir entre uma nuvem de pó o
vulto quasi indistincto do cavalleiro. Ia para Lisboa embuçado em uma capa
alvadia.
Tomei informações a respeito da carruagem que passara na vespera comnosco.
Havia contradicções sobre a côr dos cavallos.
Voltou de Cintra o homem que eu ali mandára, dizendo que na quinta de F.
tinham sido entregues os cavallos por um criado do campo, o qual dissera
que os senhores ao pé do Cacem, tinham encontrado um amigo que os levara
comsigo em uma caleche para Lisboa. D'ahi a momentos chegou a minha
carruagem. Voltei a Lisboa, corri a casa de F. O criado tinha recebido
este bilhete a lapis: _Não esperem por mim estes dias. Estou bom. A quem
me procurar, que fui para Madrid._
Procurei-o debalde por toda a Lisboa. Comecei a inquietar-me. F. estava
evidentemente retido. Receei por mim. Lembraram-me as ameaças do
mascarado, vagas mas resolutas. Na noite seguinte, ao recolher para casa,
notei que era seguido.
Entregar á policia este negocio, tão vago e tão incompleto como elle é,
seria tornar-me o denunciante de uma chimera. Sei que, em resultado das
primeiras noticias que lhe dei, o governador civil de Lisboa officiou ao
administrador de Cintra convidando-o a metter o esforço da sua policia no
descobrimento d'este crime. Foram inuteis estas providencias. Assim devia
ser. O successo que constitue o assumpto d'estas cartas está por sua
natureza fóra da alçada das pesquizas policiaes. Nunca me dirigi ás
authoridades, quiz simplesmente valer-me do publico, escolhendo para isso
as columnas populares do seu periodico. Resolvi homiziar-me, receando ser
victima de uma emboscada.
São obvias, depois d'isto, as rasões por que lhe occulto o meu nome:
assignar estas linhas seria patentear-me; não seria esconder-me, como
quero.
Do meu impenetravel retiro lhe dirijo esta carta. É manhã. Vejo a luz do
sol nascente atravez das minhas jelozias. Oiço os pregões dos vendedores
matinaes, os chocalhos das vaccas, o rodar das carruagens, o murmurio
alegre da povoação que se levanta depois de um somno despreoccupado e
feliz... Invejo aquelles que não tendo a fatalidade de secretas aventuras
passeiam, conversam, moirejam na rua. Eu--pobre de mim!--estou encarcerado
por um mysterio, guardado por um segredo!

P. S. Acabo de receber uma longa carta de F. Esta carta, escripta ha dias,
só hoje me veiu á mão. Sendo-me enviada pelo correio, e tendo-me eu
ausentado da casa em que vivia sem dizer para onde me mudava, só agora
pude haver essa interessante missiva. Ahi tem, senhor redactor, copiada
por mim, a primeira parte d'essa carta, da qual depois de ámanhã lhe
enviarei o resto. Publique-a, se quiser. É mais do que um importante
esclarecimento n'este obscuro successo; é um vestigio luminoso e profundo.
F... é um escriptor publico, e descobrir pelo estylo um homem é muito mais
facil do que reconstruir sobre um cabello a figura de uma mulher. É
gravissima a situação do meu amigo. Eu, afflicto, cuidadoso, hesitante,
perplexo, não sabendo o que faça, não podendo deliberar pela reflexão,
rendo-me á decisão do acaso, e elimino, juntamente com a letra do
autographo, as duas palavras que constituem o nome que firma essa longa
carta. Não posso, não devo, não me atrevo, não ouso dizer mais. Poupem-me
a uma derradeira declaração, que me repugna. Adivinhem... se poderem.
Adeus!


+INTERVENÇÃO DE Z.+

Nota do Diario de Noticias.--No original da carta publicada hontem havia
algumas palavras a lapis, nas quaes só fizemos reparo depois de impresso o
jornal. Essas palavras continham esta observação: _A photographia do
mascarado foi feita em casa de Henrique Nunes, rua das Chagas, Lisboa.
Talvez ahi possa haver noticia do sujeito photographado._
Antes de darmos á estampa a longa carta de F..., cuja primeira parte nos
foi hontem enviada pelo medico, é dever nosso tornar conhecida uma outra
importantissima que recebemos pela posta interna, assignada com a inicial
_Z._, e que temos em nosso poder ha já tres dias. Esta carta, que tão
estreitamente vem prender-se na historia dos successos que constituem o
assumpto d'esta narrativa, é a seguinte:
Senhor redactor do _Diario de Noticias_.--Lisboa, 30 de julho de
1870.--Escrevo-lhe profundamente indignado. Principiei a ler, como quasi
toda a gente em Lisboa, as cartas publicadas na sua folha, em que o doutor
anonymo conta o caso que essa redacção intitulou _O mysterio da Estrada de
Cintra_. Interessava-me essa narrativa e segui-a com a curiosidade
despreoccupada que se liga a um _canard_ fabricado com engenho, a um
romance á similhança dos _Thugs_ e de alguns outros do mesmo genero com
que a veia imaginosa dos phantasistas francezes e americanos vem de quando
em quando acordar a attenção da Europa para um successo estupendo. A
narração do seu periodico tinha sobre as demais que tenho lido o merito
original de se passarem os successos ao tempo que se vão lendo, de serem
anonymas as personagens e de estar tão secretamente encoberta a mola
principal do enredo, que nenhum leitor poderia contestar com provas a
veracidade do caso portentosamente romanesco, que o auctor da narrativa se
lembrara de lançar de repente ao meio da sociedade prosaica, ramerraneira,
simples e honesta em que vivemos. Ia-me parecendo ter diante de mim o
ideal mais perfeito, o typo mais acabado do _roman feuilleton_, quando
inesperadamente encontro no folhetim publicado hoje as iniciaes de um nome
de homem--A. M. C.--accrescentando-se que a pessoa designada por estas
lettras é estudante de medicina e natural de Vizeu. Eu tenho um amigo
querido com aquellas iniciaes no seu nome. É justamente estudante de
medicina e natural de Vizeu! O acaso não podia reunir tudo isto. Havia por
tanto o intuito de fazer cobardemente uma insinuação infamissima. Isto não
é licito a romancista nenhum.
A primeira impressão que senti foi a da repulsão e do tedio. Saindo de
casa pouco depois da leitura do seu periodico, procurei o meu amigo para
lhe ler a passagem que lhe dizia respeito, e pôr-me á sua disposição no
caso que precisasse de mim para pedir quanto antes á redacção do _Diario
de Noticias_ a satisfação de honra, que homens de educação e de brio não
poderiam de certo recusar a semelhante aggravo.
Em casa do meu amigo acabo porém de saber, cheio de confusão e de
surpresa, que elle desappareceu e que é ignorado o seu destino!
Este desapparecimento e a coincidencia achada na carta do doutor levam-me
desgraçadamente a acreditar que por extranhas fatalidades o meu infeliz
amigo se acha involuntariamente envolvido n'este tenebroso negocio. A data
do desapparecimento d'elle condiz perfeitamente com a que encontro na
carta do seu correspondente. É claro que ha pois em volta da pessoa de A.
M. C., uma intriga real, uma emboscada talvez, uma traição.
Serei tristemente obrigado a ter por veridica, no todo ou em parte, a
noticia que leio na sua folha?
Julgo do meu dever assegurar o seguinte:
Não sei o que o meu amigo A. M. C. ia fazer alta noite a essa casa
desconhecida, tendo uma chave d'ella, martello e pregos. Não sei porque se
declarou auctor do assassinato, negando-o depois. Ignoro a intima verdade
d'estas contradicções.
Mas o que sei, aquillo de que posso já dar testemunho, e não só eu, mas
amigos, mas numerosas pessoas, é que na noite que se mostra ter sido a do
assassinato elle esteve, até quasi de madrugada, em minha casa,
conversando, rindo, bebendo cerveja.
Saiu talvez ás tres horas da noite.
Declaro tambem, e isto póde ser egualmente apoiado por seguras
testemunhas: que ás nove horas da manhã do dia seguinte estive no quarto
d'elle. Ainda dormia, acordou sobresaltado á minha voz, e tornou a
adormecer em quanto eu procurava entre os seus livros um volume de Taine.
As donas da casa que o hospedam disseram-me que elle entrara pela
madrugada.
--Ali pela volta das tres e meia, conjecturavam ellas.
Ora da minha casa, d'onde saiu ás tres, até casa d'elle, onde entrou ás
tres e meia, o caminho que é longo, occupa justamente este espaço de
tempo.
Por consequencia, respondam: quando commetteu elle o crime? O emprego do
seu tempo está todo justificado: das nove da noite até á madrugada em
minha casa, n'uma conversa jovial e intima; da madrugada até ás nove, n'um
somno pacifico em sua propria casa.
Resta unicamente a meia hora do caminho, da qual não ha testemunhas. É
crivel que em meia hora podesse ir alguem a essa casa, preparar opio,
fazel-o beber a um homem, falsificar uma declaração e vir socegadamente
dormir? Tem isto logica?
Demais o crime foi commettido n'uma casa, o opio foi deitado n'um copo
d'agua, dado traiçoeiramente. O cadaver estava meio despido. Tudo isto
indica que entre o assassino e o desgraçado houve uma entrevista, tinham
conversado intimamente, tinham rido decerto; o que depois morreu tinha
talvez calor, poz-se livremente, tirou o casaco, contaram porventura
anedoctas, e n'um momento de sede, o opio foi dado n'um copo d'agua. E
tudo isto se faz em meia hora! em _meia hora!_ Devendo, meus senhores,
descontar-se d'esta meia hora o tempo que vae de minha casa á casa do
crime, e d'ahi a casa de A. M. C.! Póde isto ser?
Agora outro argumento: Eu conheço A. M. C.: o seu caracter é digno,
impeccavel; o seu coração é compassivo e simples; a sua vida é laboriosa e
isolada; não existe n'ella nem mysterio, nem aventura, nem pathetico:
estava para casar, sem romance, trivialmente.
Eu sabia de todos os seus passos, conhecia as suas relações. Estou certo
que nunca viu o assassinado, o qual, no dizer do doutor, parecia
extrangeiro, sem relações aqui, e domiciliado ha pouco tempo em Portugal!
Poderia ser um encontro casual, uma rixa inesperada? Impossivel. Se o
homem foi encontrado estendido n'um sophá, morto com opio!
Poderia M. C. ter sido assalariado para commetter este crime? Que loucura!
Um homem da sua intelligencia, do seu caracter, da sua elevação de
espírito! Além de que, hoje o emprego de homicida, regular e devidamente
retribuido como uma funcção publica, não existe nos costumes.
Póde-se conceber que um homem que premedita um crime esteja até ao momento
decisivo distrahido, espirituoso, desabotoando os seus paradoxos, bebendo
cerveja? E que depois vá socegadamente dormir, e que um amigo que o visite
na manhã seguinte encontre sobre a sua banca de cabeceira, uma chavena de
chá e um livro de historia?
E dê-se isto com um homem de caracter timido, de habitos modestos, homem
de estudo, sem energia de acção, e de uma notavel franqueza de impressões!
Se me perguntarem, porém, porque apparece M. C. de noite n'aquella casa
com um martello, com pregos, e se declara assassino,--isso não o sei
explicar.
Suspeito que haja uma grande influencia que peza sobre elle, alguem que
com promessas extraordinarias, com seducções indisiveis, o obriga a
apresentar-se como auctor do crime. M. C. evidentemente sacrifica-se. Por
quem, ignoro-o. Mas sacrifica-se, e na ignorancia de que estas dedicações
são sempre desapreciadas perante o trabalho da policia, quer expiar o
crime de outro; perde-se para salvar alguem.
Com que interesse? por que seducções? Não sei explicar. Elle, tão
indifferente ao dinheiro! tão rigido de costumes e de sensações!
Pois bem! M. C. póde sacrificar-se; póde-o fazer. Nós, seus amigos, é que
não podemos consentil-o. O seu corpo, que lhe pertence exclusivamente,
póde dal-o á infecção d'um carcere, ou ao peso d'uma grilheta. Mas o seu
caracter, a sua honra, a sua reputação, a sua alma, essa pertence tambem
aos seus amigos, e a parte que nos pertence havemos de defendel-a
corajosamente.
Não! M. C. não foi o assassino. Dil-o a evidencia, a fatal logica dos
factos, a terrivel mathematica do tempo, o conhecimento do seu caracter, e
a coherencia dos temperamentos, que é uma verdade nas sciencias
physiologicas. Não, não é o assassino. Se o diz, está louco, _mente_.
Digo-lh'o claramente, em frente, diante dos seus proprios olhos fitos
sobre os meus:--Se te declaras o auctor d'esse crime, _mentes_!
Elle tem de certo o senso moral transviado. Se me deixassem fallar-lhe!...
Esclareçam-lhe, pelo amor de Deus, aquella rasão cheia de escuras nuvens
da paixão e da dôr! Isto é afflictivo! Honra, amor, familia, esperança,
tudo esqueceu esse homem! Que se lembre, o desgraçado, que não é só n'este
mundo. Que se lembre que talvez a estas horas, no fundo da provincia, sua
mãe, suas irmãs, sabem já que elle está aqui apontado como assassino! Que
se lembre da terrivel deshonra, do seu futuro perdido, das horas
solitarias da prisão, da atroz vergonha de um interrogatorio publico, e do
echo profundo que faz na alma humana o ruido sinistro dos ferros da
grilheta.
Não ponho no fim d'esta carta o meu nome, porque presinto vagamente n'este
grupo de successos, confusamente conglobados perante a minha apreciação, a
passagem mysteriosa e fatal de um crime que vae poderosamente na direcção
do seu fito, esmagando e despedaçando os estorvos que o impecem. Ora eu
não quero que a publicidade do meu nome leve os cumplices no attentado de
que se trata, ou porventura a policia, a aniquillar ou a embaraçar de
qualquer modo a intervenção expontanea que eu proprio vou ter no
descobrimento dos reus. Conto com os meus recursos, mas preciso para os
pôr em pratica de toda a minha liberdade.
Creia-me, senhor redactor, etc--_Z._


+DE F... AO MEDICO+

I

Julho 21 à 1 hora da noite.
--Meu querido amigo.
--Ignoro se estás em tua casa, para onde te dirijo esta carta, ou se
continuas, como eu, permanecendo aqui em carcere privado. Em qualquer dos
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