Lendas e Narrativas (Tomo II) - 02

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Trinam os rouxinoes nos balseiros, murmuram ao longe as aguas
dos regatos; ramalha a folhagem brandamente com a viração da
manhan: vae uma linda madrugada.
E Inigo Guerra galga manso e manso os carris empinados, trepa
de barrocal em barrocal, e apesar de seu muito esforço, sente
bater-lhe o coração com ancia desacostumada.
Onde as matas faziam alguma clareira, ou as penhas alguma chapada,
D. Inigo parava um pouco tomando o folego, e pondo-se a escutar.
Muito havia que andava embrenhado: o sol ía alto, e o dia calmoso:
ao canto do rouxinol seguira o piar da cigarra.
E encontrou uma fonte que rebentava de rochedo negro, e saltando
de aresta em aresta vinha cahir em almacega tosca, onde o sol
parecia dançar no bolir das ondasinhas, que fazia o despenho
da cascata.
D. Inigo assentou-se á sombra da rocha, e tirando a sua monteira
matou a sêde que trazia, e poz-se a lavar o rosto e a cabeça
do suor e pó, que não lhe faltava.
O mastim, depois de beber, deitou-se ao pé delle, e com a lingua
pendente arquejava de cansado.
De repente o cão poz-se em pé, e arremetteu com um grande ladro.
D. Inigo volveu os olhos: um jumento silvestre pascia na orla
da clareira juncto de um frondoso carvalho.
"Tarik!--gritou o mancebo--Tarik!"--Mas Tarik ía avante e não
escutava.
"Ai, deixa-o correr, meu filho! Não é para o teu mastim levar
a melhor desse onagro."
Isto dizia uma voz que, lá em cima no alto da penha, começou de
soar.
Olhou: linda mulher estava ahi assentada, e com um gesto amoroso
e um sorriso d'anjo para elle se inclinava.
"Minha mãe! minha mãe!--bradou Inigo Guerra alevantando-se: e
lá comsigo dizia:
--Vade retro! Sancto Hermenegildo me valha!"
E como molhára a cabeça, sentiu que os cabellos se lhe iam alçando
de arripiados.
"Filho, na bôca palavras dôces; no coração palavras damnadas.
Mas que importa, se és meu filho? Dize o que queres de mim, que
será tudo feito a teu talante e vontade."
O moço cavalleiro nem acertava a falar com medo. Já a este tempo
Tarik gemia uivando debaixo dos pés do onagro.
"Captivo está de mouros ha annos meu pae D. Diogo Lopes:--disse
por fim titubeando.--Quizera me ensinasseis, senhora, o modo
como hei-de salva-lo."
"Seu mal, tão bem como tu, eu sei. Se podesse ter-lhe-hia accorrido,
sem que viesses requere-lo; mas o velho tyranno do ceu quer que
elle pene tantos annos quantos viveu com a ... com a que sandeus
chamam Dama Pé-de-Cabra."
"Não blasphemeis contra Deus, minha mãe, que é enorme
culpa:--interrompeu o mancebo cada vez mais horrorisado.
"Culpa?! Não ha para mim innocencia nem culpa:--replicou a dama
rindo ás gargalhadas.
Era um rir de dorminte, triste e medonho. Se o diabo ri, como
aquelle deve de ser o rir do diabo.
O cavalleiro não pôde dizer mais palavra.
"Inigo!--proseguiu ella--falta um anno para cumprir-se o captiveiro
do nobre senhor de Biscaia. Um anno passa depressa: mais depressa
eu t'o farei passar. Vês tu aquelle valente onagro? Quando uma
noite acordando o achares ao pé de ti, manso como um cordeiro,
cavalga nelle sem susto, que te levará a Toledo, onde livrarás
teu pae.--E bradando accrescentou:--Estás por isto, Pardalo?"
O onagro fitou as orelhas, e em signal de approvação começou a
azurrar; começou por onde ás vezes academias acabam.[2]
Depois a dama poz-se a cantar uma cantiga de bruxas, acompanhando-se
de um psalterio, de que tirava mui estranhas toadas:
Pelo cabo da vassoura,
Pela corda da polé,
Pela vibora que vê,
Pela Sura e pela Toura.
Pela vara do condão,
Pelo panno da peneira,
Pela velha feiticeira,
Do finado pela mão,
Pelo bode rei da festa,
Pelo capo inteiriçado,
Pelo infante dessangrado
Que a bruxa chupou á sésta;
Pelo craneo alvo e lustroso
Em que sangue se libou,
E do irmão, que irmão matou,
Pelo arranco doloroso;
Pelo nome de mysterio
Que em palavras se não diz
Vinde já precitos vis;
Vinde ouvir o meu psalterio!
E dançae-me aqui na terra
Uma dança doudejante,
Que entonteça n'um instante
O meu filho Inigo Guerra.
Que elle durma um anno inteiro,
Como em somno de uma hora,
Juncto á fonte que alli chora,
Sobre a relva deste outeiro.
Emquanto a dama cantava estas cantigas, o mancebo sentia um
quebramento nos membros que crescia cada vez mais, e que o obrigou
a assentar-se.
E logo, logo, ouviu-se um ruido abafado como de trovões e de
ventanias engolfando-se em covoadas: depois o céu começou de
toldar-se, e cada vez era mais cris, até que, emfim, apenas uma
luz de crepusculo o allumiava.
E a mansa almacega refervia, e os penedos rachavam, e as arvores
torciam-se, e os ares sibilavam.
E das bolhas da agua da fonte, e das fendas dos rochedos, e d'entre
as ramas dos robles, e da vastidão do ar via-se descer, subir,
romper, saltar ... o quê?--Cousa muito espantavel.
Eram mil e mil braços sem corpos, negros como carvão, tendo nos
cotos uma aza, e na mão cada um uma especie de facho.
Como a palha que o tufão levanta na eira, aquella multidão de
candeias cruzava-se, revolvia-se, unia-se, separava-se, remoinhava,
mas sempre com certa cadencia, como que dançando a compasso.
A D. Inigo andava a cabeça á roda: as luzes pareciam-lhe azues,
verdes, e vermelhas, mas corria-lhe pelos membros uma languidez
tão suave, que não teve animo para fazer o signal da cruz, e
afugentar aquelle bando de Satanazes.
E sentia-se esvaecer, e pouco a pouco adormecia, e d'alli a pouco
roncava.
Entretanto no castello tinham dado pela sua falta. Esperaram-no
até a noite; esperaram-no uma semana, um mez, um anno, e não o
viam voltar. O pobre Brearte correu por muito tempo a serra;
mas o sitio em que o cavalleiro jazia, isso é que não havia lá
chegar.

3
Inigo acordou alta noite: tinha dormido algumas horas; ao menos
elle assim o cria. Olhou para o céu, viu estrellas: apalpou ao
redor, achou terra: escutou, ouviu ramalhar as arvores.
Pouco a pouco é que se foi recordando do que passára com sua
malaventurada mãe; porque a principio não se lembrava de nada.
Pareceu-lhe então ouvir respirar ali perto: affirmou a vista:
era o onagro Pardalo.
"Já agora meio enfeitiçado estou eu--pensou elle:--corramos o
resto da aventura, a vêr se posso salvar meu pae."
E pondo-se em pé encaminhou-se para o valente animal, que já
estava enfreado e sellado: cujos eram os arreios, isso sabia-o
o diabo.
Hesitou, todavia, um momento: tinha seus escrupulos--a boas horas
vinham elles--de cavalgar naquelle corredor infernal.
Então ouviu nos ares uma voz vibrada, que cantava mui entoado:
era a voz da terrivel Dama Pé-de-Cabra:
Cavalga, meu cavalleiro,
No alentado corredor;
Vae salvar o bom senhor;
Vae quebrar seu captiveiro.
Pardalo, não comerás
Nem cevada nem aveia,
Não terás jantar nem ceia,
Rijo e leve voltarás.
Nem açoute nem espora
Requer elle, oh cavalleiro!
Corre, corre bem ligeiro,
Noite e dia a toda a hora.
Freio ou sella não lhe tires,
Não lhe fales, não o ferres,
Na carreira não te aterres,
Para traz nunca te vires.
Upa! firme!--ávante, ávante!
Breve, breve, a bom correr!
Um minuto não perder,
Bem que o gallo ainda não cante.
"Vá!--gritou Inigo Guerra com uma especie de phrenesi, que nelle
produzíra aquelle cantar estranho; e d'um pulo cavalgou no quedo
onagro.
Mas apenas se firmou na sella, pst!--ei-lo que parte!

4
Postoque em paz com os christãos, os mouros de Toledo tem pelas
torres, cubelos e adarves seus atalaias e vigias, e nos montes
que dizem para a fronteira de Leão seus fachos e almenaras.
Mas se o rei leonez soubesse como descuidosa jaz Toledo: como ao
anoitecer se deixam dormir vigias, se deixam de accender fachos,
quebraria seus juramentos, e faria contra aquellas partes uma
repentina arrancada.
Salvo ter de ir depois ao seu confessor dizer _confiteor Deo_, e
_peccavi_; porque o quebrar juramento, ainda que seja a cães descridos,
dizem ser feio peccado.
Era a hora do luscofusco: ao sol posto os de Toledo, mirando
para a banda do norte, viram lá muito ao longe vir correndo uma
nuvem negra, ondeando e fazendo voltas no céu, como a estrada
as fazia na terra por entre os montes: dir-se-hia que vinha
embriagada.
Era primeiro um pontinho; depois crescêra e crescêra: quando
anoiteceu estava já perto e cubria um grande espaço.
O almuhaden, subindo á torre da mesquita, chamava os crentes de
Malamede para a oração da tarde.
Mas com a sua voz esganiçada misturou-se o estourar dos trovões:
era como um tiple e um baixo.
E passou um tufão de vento, que embrenhando-se e remoinhando
nas barbas longas e brancas do almuhaden, lhe fustigou com ellas
a cara.
Começou então a cahir uma corda de chuva, que nem moços nem velhos
se lembravam de ter visto cousa semelhante em nenhuma parte.
Aqui verieis os esculcas a aninharem-se nas guaritas das torres;
os roldas e sobre-roldas a fugirem pelos adarves; os facheiros
a sumirem-se debaixo das almenaras: os hadjis a acolherem-se ás
mesquitas molhados até os ossos; as velhas, que tinham saído ao
vozear do almuhaden, levadas pelas torrentes das ruas tortuosas
e estreitas, bradando por Mafoma e por Allah. E a agua cahindo
cada vez mais!
Dous unicos movimentos fazem então os moradores de Toledo: uns
fogem, outros agacham-se. E a agua cahindo cada vez mais!
O pavor quebra todos os animos: os cacizes esconjuram a procella:
os faquires penitentes gritam que se acaba o mundo, e que lhes
deixe os seus haveres aquelle que quizer salvar-se. E a agua
cahindo cada vez mais!
A salvação de Toledo foi não se terem fechado suas portas: se
assim não succedesse, dentro do recincto dos muros morria toda
a mourisma affogada.

5
Na prisão estava D. Diogo encostado ás grades de ferro. O pobre
velho entretinha-se a ouvir aquelle medonho chover; porque a
noite era comprida, e elle não tinha que fazer mais nada.
Mas como o terreiro ante a sua gaiola de feras era rodeado de
muros, a chuva não podia escoar-se toda, e vinha crescendo de
modo que já elle sentia os pés molhados.
E tambem começou a ter medo de morrer, apesar da sua miseria.
Bem sabia D. Diogo que a morte é a maior dellas todas; que não
era o senhor de Biscaia atheu, philosopho, nem parvo.
Mas lá divisa um vulto alvacento, que saltou por cima do palanque;
e sente ao mesmo tempo no meio do terreiro--plash!--
E ouviu uma voz que dizia:--Nobre senhor D. Diogo, onde é que
vós vos achaes!"--
"Que vejo e ouço?!--exclamou o velho.--Um trajo que não alveja,
não é trajo d'ismaelita; uma voz que não fala algaravia, não é
d'infiel; um salto de tal altura não é de cavalleiro do mundo.
Por vossa fé dizei-me, sois anjo, ou sois Sanctiago?"
"Meu pae, meu pae!--acudiu o cavalleiro--já não conheceis a fala
de Inigo? Sou eu que venho salvar-vos."
E D. Inigo descavalgou, e travando das grossas reixas tentava
allui-las: a agua dava-lhe já pelos artelhos, e elle não fazia
nada.
Cheio de afflicção o mancebo quiz invocar o nome de Jesus; mas
lembrou-se de como alli viera, e o bento nome expirou-lhe nos
labios.
Todavia Pardalo pareceu adivinhar o seu intimo pensamento; porque
soltou um gemido agudo e prompto, como se o houvessem tocado
com um ferro em braza.
E empurrando com a cabeça D. Inigo, voltou a anca para a grade.
Pan!--foi o som que se ouviu. Com um só couce a reixa estava
no chão, e as hombreiras de pedra tinham voado em mil rachas.
Quer m'o creiam quer não, di-lo a historia: eu com isto não perco
nem ganho.
D. Diogo, esse ficou-o crendo; porque uma lasca de pedra bateu-lhe
nos dous ultimos dentes que tinha, e metteu-lh'os pela goela
abaixo. Por isso elle com a dôr não podia dizer palavra.
Seu filho fê-lo cavalgar ante si, e cavalgando após elle,
bradou:--Meu pae, estaes salvo!"
E Pardalo de um pulo galgou de novo o palanque. Pois tinha bons
quinze palmos!
Pela manhan não havia signal de chuva; o ar estava limpo e sereno,
e quando os mouros foram vêr o que succedêra a D. Diogo Lopes,
não lhe acharam sequer o rasto.

6
D. Inigo e seu pae, o velho senhor de Biscaia, passam as portas
de Toledo com a rapidez da frecha: n'um abrir e fechar d'olhos
ficam-lhe para traz muros, torres, barbacans e atalaias. A batega
vae diminuindo: rasgam-se as nuvens, e vêem-se já reluzir algumas
estrellas, que parecem outros tantos olhos com que o céu espreita
através do negrume o que se passa cá em baixo.
A estrada, pelas descidas e subidas dos recostos, converteu-se
em leito de torrente, nos plainos converteu-se em lago.
Mas pelos lagos e torrentes o valente onagro rompia ávante, bufando
como um damnado.
Não subiram bem um monte, já descem pelo outro recosto abaixo;
ainda bem não chegaram a uma clareira, já sentem em profunda
floresta gotejarem-lhes em cima os ramos agitados das arvores.
Pouco mais é de meia-noite, e os topos nevados do Vindio recortam
o chão estrellado do céu já limpo, semelhantes aos dentes de uma
serra gigante capaz de dividir cêrceo o hemispherio austral do
hemispherio boreal.
E Pardalo investe sempre em galope desfeito com as montanhas
disformes, e desce aos valles temerosos, e cada vez mais ligeiro,
como o seu nome o indica, parece menos quadrupede que passaro.
Mas que ruido é esse que sobreleva ao do vento? Que é isso que,
lá ao longe, ora alveja ora reluz nas trevas, como uma alcateia de
lobos involtos em sudarios brancos, com os olhos só descobertos,
e despregando em fio pelo fundo do valle abaixo?
É um rio caudal e furioso, com o seu manto de escuma, e com as
escamas angulosas de seu dorso eriçado, onde batem e chispam
os raios das estrellas em mil reflexos quebrados.
Negreja sobre o rio uma ponte, ao meio desta um vulto esguio.--"Será
um marco, uma estatua?"--pensaram os cavalleiros. Pinheiro não
póde ser: não consta que em taes sitios nasçam.
Pardalo ria-se de rios; pontes, fazia tanto cabedal dellas como
de um retraço de palha. Todavia, bem que podesse de um pulo salvar
vinte ribeiras como aquella, foi-se direito á ponte; porque não
era animal que fizesse africas escusadas.
Semelhante a relampago se arrojou o onagro áquelle passo estreito...
Mas, tá!... Ei-lo que de repente pára.
E tremia como varas verdes, e arquejava com violencia: os dous
cavalleiros olharam.
O vulto esguio era um cruzeiro de pedra alevantado a meia ponte:
por isso Pardalo emperrava.
Então d'entre uns altos choupos, que da margem d'além se meneavam,
um pouco mais abaixo daquelle sitio, ouviu-se uma voz fadigosa
e trémula que cantava:
Para traz, para traz, a galgar.
Já!
De redor, de redor vem passar
Cá!
Que não ha nada aqui que te empeça!
Buz,
Nem palavra, vós dous! Fugi dessa
Cruz!
"Sancto nome de Christo!"--exclamou D. Diogo benzendo-se ao escutar
aquella voz que bem conhecia, mas que depois de tantos annos
não esperava alli ouvir, porque seu filho não lhe dissera que
meio achára para o salvar.
Apenas o grito do velho soou, assim elle como D. Inigo foram
bater contra o poyal do cruzeiro, onde ficaram de bruços, involtos
em lodo. O onagro ao sacudi-los de si soltára um rugido de
besta-fera. Sentiram então um cheiro intoleravel de enxofre e
de carvão de pedra inglez, que logo se percebia ser cousa de
Satanaz.
E ouviram como um trovão subterraneo; e a ponte balançava como
se as entranhas da terra se despedaçassem.
Apesar do seu grande terror, e de clamar pela Virgem Santissima,
D. Inigo abriu um cantinho do olho para vêr o que se passava.
Nós os homens costumâmos dizer que as mulheres são curiosas. Nós
é que o somos. Mentimos como uns desalmados.
Que veria o cavalleiro? Um fojo aberto bem proximo delle sobre
a ponte, e que depois rompia pela agua.
E depois pelo leito do rio; e depois pela terra dentro, dentro;
e depois pelo tecto do inferno, que outra cousa não podia ser
um fogo muito vermelho que reverberava daquella profundidade.
Tanto era assim, que ainda lá viu passar de relance um demonio
com um desconforme espeto nas mãos em que levava um judeu empalado.
E Pardalo descia remoinhando por esse boqueirão, como uma penna
cahindo em dia sereno do alto de uma torre abaixo.
Aquella vista fez perder os sentidos a D. Inigo, que, indo tambem
a chamar por Jesus, achou que não podia proferir este nome sagrado.
De terror tanto o velho como o moço ficaram alli em desmaio.
Quando tornaram a si, com o romper do sol claro, conheceram o
sitio em que se achavam. Era a ponte proxima á aldêa de Nusturio,
no alto da qual campeava o castello construido por D. From o
saxonio, avoengo de D. Diogo Lopes, e primeiro senhor de Biscaia.
Nenhum vestigio restava do que alli se passára; os dous, moídos
e cheios de lodo e pisaduras, foram-se arrastando como poderam
até encontrar alguns villãos, a quem se deram a conhecer, e que
os levaram a casa.
Festas que em Nusturio se fizeram por sua vinda, cousa é que não
vos direi; porque não tarda a hora de ceiar, resar, e deitar.

7
D. Diogo pouco tempo viveu: todos os dias ouvia missa; todas
as semanas se confessava. D. Inigo, porém, nunca mais entrou na
igreja, nunca mais resou, e não fazia senão ir á serra caçar.
Quando tinha de partir para as guerras de Leão viam-no subir á
montanha armado de todas as peças, e voltar de lá montado n'um
agigantado onagro.
E o seu nome retumbou em toda a Hespanha; porque não houve batalha
em que entrasse que se perdesse, e nunca em nenhum recontro foi
ferido ou derribado.
Diziam á bôca pequena em Nusturio que o illustre barão tinha pacto
com Belzebuth. Olhem que era grande milagre!
Meio precíto era elle por sua mãe; não tinha que vender senão
a outra metade da alma.
Por oitenta por cento de lucro ne recibo de um egresso a dá ahi
inteira ao démo qualquer onzeneiro, e crê ter feito uma limpa
veniaga.
Fosse como fosse, Inigo Guerra morreu velho: o que a historia
não conta é o que então se passou no castello. Como não quero
improvisar mentiras, por isso não direi mais nada.
Mas a misericordia de Deus é grande. Á cautela resem por elle
um _Pater_ e um _Ave_. Se não lhe aproveitar, seja por mim. Amen.
* * * * *
[1] Um jumento silvestre não seria mui delicado manjar
para mesa moderna; mas o uso da carne asinina na idade média
era vulgar: ainda em muitos dos nossos foraes apparece marcado
entre as portagens o quanto devia pagar este genero de vianda.
[2] O Diccionario da Academia, que ficou interrompido
no fim da letra A, acaba na palavra _azurrar_.


O BISPO NEGRO
(1130)

1
Houve tempo em que a sé abandonada de Coimbra era formosa; houve
tempo em que essas pedras, ora tisnadas pelos annos, eram ainda
pallidas, como as margens areentas do Mondego[1]. Então o luar,
batendo nos lanços dos seus muros, dava um reflexo de luz suavissima,
mais rica de saudade que os proprios raios daquelle planeta guardador
dos segredos de tantas almas, que crêem existir nelle, e só nelle,
uma intelligencia que as perceba.
Então aquellas ameias e torres não haviam sido tocadas das mãos
de homens, desde que os seus edificadores as tinham collocado sobre
as alturas; e todavia já então ninguém sabia se esses edificadores
eram da nobre raça goda, se da dos nobres conquistadores arabes.
Mas, quer filha dos valentes do norte, quer dos pugnacissimos
sarracenos, ella era formosa na sua singella grandeza entre as
outras sés das Hespanhas. Ahi succedeu o que ora ouvireis contar.

2
Aproximava-se o meiado do duodecimo seculo. O principe de Portugal
Affonso Henriques depois de uma revolução feliz, tinha arrancado
o poder das mãos de sua mãe. Se a historia se contenta com o
triste espectaculo de um filho condemnando ao exilio aquella que
o gerou, a tradição carrega as tinctas do quadro, pintando-nos
a desditosa viuva do conde Henrique arrastando grilhões no fundo
de um calabouço. A historia conta-nos o facto; a tradição os
costumes. A historia é verdadeira, a tradição verosimil; e o
verosimil é o que importa ao que busca as lendas da patria.
Em uma das torres do velho alcacer de Coimbra, encostado entre
duas ameias, a horas que o sol fugia do horisonte, o principe
conversava com Lourenço Viegas o Espadeiro, e com elle dispunha
meios e apurava traças para guerrear a mourisma.
E lançou casualmente os olhos para o caminho que guiava ao alcacer,
e viu o bispo D. Bernardo, que, montado em sua nedia mula, cavalgava
apressado pela encosta acima.
"Vêdes vós--disse elle ao Espadeiro--o nosso leal D. Bernardo,
que para cá se encaminha? Negocio grave por certo o faz sair a
taes deshoras da crasta da sua sé. Desçamos á sala d'armas e
vejamos o que elle quer."--E desceram.
Grandes lampadarios ardiam já na sala d'armas do alcacer de Coimbra,
pendurados de cadeias de ferro chumbadas nos fechos dos arcos de
volta de ferradura, que sustentavam os tectos de grossa cantaria.
Pelos feixes de columnas delgadas, entre si separadas, mas ligadas
nos fustes por uma base commum, pendiam corpos de armas, que
reverberavam a luz das lampadas, e pareciam cavalleiros armados,
que em silencio guardavam aquelle amplo aposento. Alguns homens
de mesnada faziam retumbar as abobadas, passeando de um para
outro lado.
Uma portinha, que ficava em um angulo da quadra, abriu-se, e
d'ella saíram o principe e Lourenço Viegas, que desciam da torre:
quasi ao mesmo tempo assomou no grande portal de entrada o vulto
veneravel e solemne do bispo D. Bernardo.
"Guarde-vos Deus, bispo de Coimbra! Que mui urgente negocio vos
traz aqui esta noite?--disse o principe a D. Bernardo.
"Más novas, senhor. Trazem-me aqui a mim letras do papa, que ora
recebi."
"E que quer de vós o papa?"
"Que de sua parte vos ordene solteis vossa mãe..."
"Nem pelo papa, nem por ninguem o farei."
"E manda-me que vos declare excommungado, se não quizerdes cumprir
seu mandado."
"E vós que intentaes fazer?"
"Obedecer ao successor de S. Pedro."
"Quê? D. Bernardo amaldiçoaria aquelle a quem deve o bago pontifical;
aquelle que o alevantou do nada? Vós, bispo de Coimbra,
excommungarieis o vosso principe, porque elle não quer pôr a
risco a liberdade desta terra remida das oppressões do senhor
de Trava, e do jugo do rei de Leão; desta terra que é só minha
e dos cavalleiros portuguezes?"
"Tudo vos devo, senhor,--atalhou o bispo--salvo minha alma que
pertence a Deus, minha fé que devo a Christo, e a minha obediencia
que guardarei ao papa."
"D. Bernardo! D. Bernardo!--disse o principe suffocado em
colera--lembrae-vos de que affronta que se me fizesse, nunca ficou
sem paga!"
"Quereis, senhor infante, soltar vossa mãe?"
"Não! Mil vezes não!"
"Guardae-vos!"
E o bispo saíu sem dizer mais palavra. Affonso Henriques ficou
pensativo por algum tempo; depois falou em voz baixa com Lourenço
Viegas o Espadeiro, e encaminhou-se para a sua camara. D'ahi a
pouco o alcacer de Coimbra jazia, como o resto da cidade, no
mais profundo silencio.

3
Pela alvorada, muito antes de romper o sol no dia seguinte, Lourenço
Viegas passeava com o principe na sala d'armas do paço mourisco.
"Se eu proprio o vi, montado na sua boa mula, ir lá muito ao longe,
caminho da terra de Sancta Maria[2]! Na porta da sé estava pregado
um pergaminho com larga escriptura, que, segundo me affirmou um
clerigo velho que ahi chegára quando eu olhava para aquella carta,
era o que elles chamam o interdicto.--Isto dizia o Espadeiro,
olhando para todos os lados, como quem receiava que alguem o
ouvisse.
"Que receias, Lourenço Viegas? Dei a Coimbra um bispo que me
excommunga, porque assim o quiz o papa: dar-lhe-hei outro que
me absolva, porque assim o quero eu. Vem comigo á sé. Bispo D.
Bernardo, tarde será o arrepender-te da tua ousadia!"
D'alli a pouco as portas da sé estavam abertas, porque o sol
era nado, e o principe, acompanhado de Lourenço Viegas e de dous
pagens, atravessava a igreja, e dirigia-se á crasta, onde ao
som de campa tangida tinha mandado ajunctar o cabido, com pena
de morte para o que ahi faltasse.

4
Solemne era o espectaculo que apresentava a crasta da sé de Coimbra.
O sol dava com todo o brilho de manhan purissima por entre os
pilares que sustinham as abobadas dos cubertos, que cercavam o
pateo interior. Ao longo desses cubertos caminhavam os conegos
com passos lentos, e as largas roupas ondeavam-lhes ao bafo suave
do vento matutino. No topo da crasta estava o principe em pé,
encostado ao punho da espada, e um pouco atras delle Lourenço
Viegas e os dous pagens. Os conegos íam chegando, e formavam
um semicirculo a pouca distancia d'elrei, em cuja cervilheira
de malha de ferro ferviam buliçosos os raios do sol.
Toda a clerezia da sé estava alli apinhada, e o principe, sem
dar palavra e com os olhos fitos no chão, parecia involto em
fundo pensar. O silencio era completo.
Por fim Affonso Henriques ergueu o rosto carrancudo e ameaçador,
e disse:
"Conegos da sé de Coimbra, sabeis a que vem aqui o infante de
Portugal?"
Ninguem respondeu palavra.
"Se o não sabeis, dir-vo-lo-hei eu,--proseguiu o principe:--vem
assistir á eleição do bispo de Coimbra."
"Senhor, bispo havemos. Não cabe ahi nova eleição--disse o mais
velho e auctorisado dos conegos que estavam presentes, e que
era o _adayão_.
"Amen:--responderam os outros.
"Esse que vós dizeis;--bradou o infante, cheio de colera--esse
jamais o será. Tirar-me quiz elle o nome de filho de Deus; eu
lhe tirarei o nome de seu vigario. Juro que nunca em meus dias
porá D. Bernardo pés em Coimbra: nunca mais da cadeira episcopal
ensinará um rebelde a fé das sanctas escripturas! Elegei outro:
eu approvarei vossa escolha."
"Senhor, bispo havemos. Não cabe ahi nova eleição:--repetiu o
adayão.
"Amen:"--responderam os mais.
O furor de Affonso Henriques subiu de ponto com esta
resistencia:--"Pois bem!"--disse elle, com a voz presa na garganta,
depois de um olhar terrivel que lançou pela assembléa, e de alguns
momentos de silencio.--"Pois bem! Saí d'aqui, gente orgulhosa e
má! Saí, vos digo eu. Alguem por vós elegerá um bispo..."
Os conegos, fazendo profundas reverencias, encaminharam-se para
as suas cellas, ao longo das arcarias da crasta.
Entre os que alli se achavam, um negro, vestido de habitos clericaes,
tinha estado encostado a um dos pilares, observando aquella scena:
os seus cabellos revoltos contrastavam pela alvura com a pretidão
da tez. Quando o principe falava, elle sorria-se e meneava a
cabeça como quem approvava o dicto. Os conegos começavam a
retirar-se, e o negro ía apoz elles. Affonso Henriques fez-lhe
um signal com a mão. O negro voltou para trás.
"Como has nome?"--perguntou-lhe o principe.
"Senhor, hei nome Çolleima.[3]"
"És bom clerigo?[4]"
"Na companhia não ha dous que sejam melhores."
"Bispo serás, D. Çolleima. Vae tomar teus guisamentos, que hoje
me cantarás missa."
O clerigo recuou: naquella face tisnada viu-se uma contracção
de susto.
"Missa não vos cantarei eu, senhor:--respondeu o negro com voz
trémula;--que para tal auto não tenho as ordens requeridas."
"D. Çolleima, repara bem no que te digo! Sou eu que te mando
vás vestir as vestiduras de missa. Escolhe: ou hoje tu subirás
os degraus do altar-mór da sé de Coimbra, ou a cabeça te descerá
de cima dos hombros, e rolará pelas lageas deste pavimento."
O clerigo curvou a fronte.
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