Lendas e Narrativas (Tomo II) - 09
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os abysmos que a fria, coixa e orgulhosa razão humana suppõe
existirem, quasi a cada passada, no mundo da intelligencia. Quando
o espirito se desata dos corpos; quando a imaginação, depurando
o senso intimo, o faz repellir a materia, fechando-se, como a
mimosa pudica, á acção grosseira dos sentidos externos, o homem
alevanta-se até o viver de além da morte, a luz dos anjos allumia-lhe
as profundezas mais obscuras do universo ideal, e elle sabe quaes
os caminhos e valles que unem as suas cumiadas brilhantes, unicos
pontos que se podem enxergar da terra. O primeiro que disse "_em
tudo está tudo_" teve uma destas revelações da imaginação pura,
revelação completa do ideal, que não é mais do que a fusão da
variedade absoluta e infinita na infinita e absoluta unidade.
Mas estes momentos, em que somos illuminados pelo sol da vida
celestial, passam rapidos: o espirito cahe logo dentro dos limites da
sua existencia de provança e desterro, e recordando-se confusamente
daquellas inspirações passageiras, sorri-se e chama-lhes sonhos,
abusões, desvarios. É que a pobre e suberba razão, myope advogada
do lodo e do crepusculo, rejeita com horror as cogitações puras
e luminosas, que Deus faculta ás vezes ao miseravel ente, creado
quasi anjo por elle, e a quem o primeiro raciocinio que se fez
na terra converteu em insensato e precíto.
E a que vem estas metaphysicas aqui? De que utilidade são ellas
para a historia do parocho da aldeia, e da festa do orago, ha
tanto tempo interrompida, e que até agora não tem passado de
divagações por objectos sem ligação com a vida e costumes do
reverendo padre prior?--"Venha o padre prior: venha a festa--dirão
alguns--e deixemo-nos dessas metaphysicas modernas, que escorregam
por entre os dedos, e não passam de feixe de maravalhas ao pé
daquellas grandes philosophias dos ideologos, que até um sapateiro
era capaz de estudar batendo a sola e apertando o ponto; philosophia
de pão pão, queijo queijo; philosophia substancial; philosophia
d'ouvir, vêr, cheirar, gostar, e apalpar, roliça, atoucinhada,
confortativa. Se era necessario algum troço da sciencia do _atqui_ e
_ergo_ para atar estes capitulos ou capituladas da chronica aldeian,
porque não recorrer ao clarissimo Condillac, ao bis-clarissimo
Tracy? Para que parafusar em entes de razão impalpaveis, em
armadilhas que trescalam ás parvoices germanicas, quando estava
ahi á mão a philosophia do senso commum, que é o senso patagão
e russo, tupinamba e sueco, chim e dinamarquez, emfim o senso
de todo o mundo?"
Ai, leitor, que ahi bate o ponto! Quem me dera isso! Quem me dera
poder explicar por um capitulo tantos, paragrapho tantos, daquelle
sancto homem de Locke, o que me succedeu ao escrever esta famosa
historia, e lançar na balança da tua inflexivel justiça uma desculpa
de obra grossa dos meus rodeios, desvios e viravoltas na ordem e
disposição destes importantes estudos! Por mais que scismasse,
por mais que afferisse pelos bons principios ideologicos o meu
trabalho, sabia-me tudo torto: era querer levantar uma bóla com um
gancho, ou firmar a taboa-rasa do philosopho inglez sobre uma das
pontas de um dilemma. Como ageitar a minha narração deambulatoria
pelas regras do methodo? Impossivel, impossibilissimo! Fiz então
como Constantino Magno. Não achando escapula nem esperança na
religião da materia em que me crearam, fugi para a religião dos
espiritos, e por uma theoria de abstracção _subjectiva_ expliquei,
como Deus me ajudou, as minhas, aliás inexplicaveis, divagações.
Encostado a ella como a uma columna de basalto (de basalto, porque
as de marmore e de bronze estão muito safadas do uso quotidiano)
rir-me-hei do mais abalisado doutor, que venha perguntar-me qual
é a ordem logica das minhas idéas. A resposta está no que expuz:
pontes intellectuaes, invisiveis, inappreciaveis pelas regras
ordinarias do methodo; pontes que unem o branco ao preto, o circular
ao anguloso, o proximo ao remoto. Fecho-me nisto. A imaginação
que assim o fez, é porque assim devia ser: está muito bem feito,
ao menos no mundo da idealidade pura. Foi lá que eu passei de
um veneravel parocho d'aldeia, portuguez velho em costumes, em
linguagem, em crenças, vulto poetico e sancto, para um inglez
impertigado, monosyllabico, iconoclasta, libertador de pretos
alheios, escravisador de saxões e irlandezes brancos; n'uma palavra
galgei de um a outro pólo da humanidade. Foi lá, que eu pude
tombar, rolar, precipitar-me do catholicismo suave, consolador,
festivo, ameigador dos miseraveis, despresador dos poderosos
suberbos, symbolisador, no seu culto, da igualdade ante Deus,
para o anglicanismo perfumado, espartilhado, casquilho, tezo,
aristocratico, nevoento, dizimador, intolerante, enxotador dos
mendigos, camaroteiro dos templos; pude tombar, rolar, precipitar-me
do vertice brilhante, d'onde derrama a sua eterna claridade o
puro espirito do christianismo, no charco onde o mergulhou e
affogou a vontade de um tyranno devasso do seculo XVI, e a van
presumpção de sua filha, a pura, generosa, e sábia Isabel, especie
de concilio Niceno de carne e osso para o protestantismo inglez.
Dou vinte annos a todos os ideologos para explicarem por outro
systema a transição monstruosa e incomprehensivel, que fiz a
semelhante respeito nestes gravissimos estudos. Idealisei um
inglez (foi façanha!), idealisei o meu bom prior, e no mundo
da razão pura lá achei que havia entre essas existencias,
infinitamente oppostas, uma affinidade: qual, não sei eu dizer,
porque o esqueci: e ainda que me lembrasse, não saberia exprimi-lo.
Dada esta explicação aos pechosos, vamos ás promettidas duas
palavras sobre a festa.
Era um dia ardente de julho, a 27, cousa certissima para o leitor,
em consequencia das minhas profundas investigações chronologicas. O
sol ia alto: a igreja parochial, involta no manto tricolor--branco,
amarello, e vermelho--cal, ochre, rôxo-terra--parecia rir no seu
jubilo. Um moço do Bartholomeu da Ventosa, rapazote de quinze
annos, quatro mezes, vinte quatro dias, e vinte tres horas e
tres quartos completos (por ter nascido a uma segunda-feira, á
meia noite menos um quarto, de dous para tres de março) neste
grande dia do orago pilhára ao moleiro duas graças a um tempo,
a de deixar em descanço o seu tonel das Danaides, a implacavel
joeira, e a de poder assistir á festa e ouvir a missa cantada
e o sermão, em vez de ir acabar o pesado somno da madrugada á
missa das almas. Gabriel, que assim se chamava o rapaz, ou antes
_Graviel_, segundo a mais euphonica pronuncia saloia, vestiu logo
pela manhan as suas calças e jaqueta de bombazina em folha, e o
seu colete vermelho, engenhado de um do patrão a trôco de dous
mezes de soldada, calçou as botifarras novas, e enterrou o barrete
azul e encarnado na cabeça, derrubando-o para traz, e sem fazer
caso do almoço (pois era uma açorda que os anjos a comeriam)
desandou, outeiro abaixo, pela volta das sete e trinta e cinco
minutos da manhan, caminho da parochia. Via-se que um grande
negocio lhe occupava o espirito, por isso que levava os olhos
cravados no campanario, e sem fazer caso das trilhas, cortava
por entre as restevas, escorregando, aqui, nas pedras soltas,
levando-as, acolá, diante dos bicos agudos das botifarras. Chegou.
O sacristão, que estava á porta da igreja, apenas o lobrigou
poz-se a rir, porque logo entendeu o verso. Gabriel era um dos
maiores pimpões em repicar sinos que havia entre a rapaziada
do logar, mas desde que entrára para casa do tio Bartholomeu,
nunca mais puzera pés no campanario. Nos meneios, no gesto, no
olhar lhe revia a sêde, a ancia, a saudade das harmonias risonhas,
doudas, estrugidoras de um repique desenganado. Vinha tão cégo,
que só viu João Nepomuceno (assim se chamava o sacristão) quando
deu de rosto com elle. Estacou embatucado; tirou o barrete, e
começou a coçar a região occipital, olhando de revez para o
sacristão, que se encostára á hombreira, com as mãos cruzadas
atraz das costas, assobiando o _Veni Creator_.
"É-lé Graviel!--disse este por fim com um sorriso.--Você hoje
campou. O patrão é festeiro; fica o moinho a dormir! Heim? Galdére;
não é assim? Mas, cos dianhos! não sei como não vieste cá dormir.
Bota os olhos acolá para o arraial. Vês? Duas bolaxeiras, e a tia
Sezila com queijadas; e disse. Ainda nem sequer o Chico appareceu
para começar o repique. Pois para isso não é cedo, que a missa
da festa é ás dez em ponto. Já o padre Chaparro e frei José dos
Prazeres estão na sancrestia, e dizem que não tarda ahi frei
Narciso, que vem servir de mestre de ceremonias."
"Oh sô João de Permecena!--acudiu o saloio, que tornára, ao ouvir
o nome do Chico, a enterrar o barrete na cabeça, mas desta vez
á banda--com a sua licença, ha-me de perdoar: não sei o que fez
em chamar n'um dia destes aquelle jimento do Chico para tocar
os sinos. Aquillo!? Ora, deixa-me rir. Ha-de-a fazer bonita;
não tem duvida? Olhe, sempre lhe digo..."
"Não digas nada: bem sei. Mas que dianho querias tu com uma cravella
de doze que dá a menza da irmandade, e nicles? Mesmo o Chicho,
deu-me agua pela barba para o resolver. Se aquillo são uns dianhos
d'uns fonas!"
"Pois se vocemecê quer--interrompeu Gabriel, em cujos olhos se
accendia o desejo, o deleite, e a esperança--eu lá vou. Hoje o
patrão deu-me licença até ás trindades. Salto na torre, e vae
tudo raso. Toco até aquella cantiga de Lisboa, que dizem que canta
um tal Catragena em S. Calros: ... totro, trão-balão, re-pim,
piri-pim-pão."
Enthusiasmado, o moço do moleiro cantarolava, imitando os sons de
um sino, ou antes de um tacho, a musica horrendamente aleijada,
esfarrapada, assassinada do dueto de Assur e Semiramis: _La sorte
piu fiera_. Se Rossini alli chegasse de subito, ou não a conhecia,
ou enganava-se. O sacristão estava enlevado.
"Homem!--disse elle quando Gabriel parou--bom era isso: mas o
Chico está ajustado; e já agora....."
"É que o Chico é o seu padagoz: ha-me de dar licença que lho
diga, senhor João de Permecena!--interrompeu o moço do moleiro,
vendo apagar-se a luz que lhe illuminára o espirito.--Pois eu
tocava ahi a desbancar ainda por menos: bastava que me pagasse
um arratel de bolaxas e dous berimbáus."
"Eu cá não tenho padagozes, homem! Cos dianhos!--replicou o
sacristão.--Se elle não estiver aqui ás oito, dou-te a chave da
torre, e são hoje teus os sinos. Quando quizeres terás as bolaxas
e os berimbáus."
A proposta de Gabriel penetrára como um balsamo suave na alma
do sacristão: fazia a despeza com seis e meio, e economisava o
resto para a igreja, isto é, para si, como representante della.
Gabriel saltou acima do parapeito do adro e poz-se a olhar para
o lado onde morava o Chico. Batia-lhe o coração com força. Ás oito
horas devia nascer para elle um dia de gloria e contentamento, ou
de desdouro e zanguinha. Deram as oito.--"Viva!--bradou, saltando
ao terreiro, e correndo ao sacristão.--Venha!--proseguiu, lançando
mão da chave da torre com tal violencia, que João Nepomuceno
por um triz não foi a terra. Ia-lhe quebrando um dedo.
"Dianho!... Safa, alimaria! Forte doido!... Oh Graviel! Ouve cá,
Graviel! Olha que está passada a corda da garrida..."
Qual Gabriel, nem meio Gabriel! Tinha desapparecido, semelhante
a um foguete. O sacristão levantou os olhos para o campanario
e viu já as cordas a bambearem e a desembaraçarem-se, como as
tranças da nobre dama nas mãos subtis de aia geitosa. Gabriel
era, sem a menor sombra de duvida, a flor e nata da rapaziada
curiosa da aldeia.
Uma pancada retumbante e sonora no sino grande, a qual se repetiu
lentamente algumas vezes, foi como um mensageiro, despedido por
montes e valles, a annunciar um dia de repouso e folgares para
o homem do campo, curvado sob o sol ardente nas ceifas e mais
trabalhos ruraes do estio, durante os longos dias de trabalho.
Era como o romper de uma vasta symphonia. Gradualmente os outros
sinos misturaram as suas vozes argentinas com a do primeiro, e
a atmosphera esplendida vibrou ondeando em tempestade de notas
que se cruzavam, cortavam, interrompiam, luctavam em barbara
harmonia. A principio Gabriel, pausado e lento, lançava
successivamente uma ou outra mão a esta ou áquella corda: pouco
a pouco os seus movimentos tornaram-se mais rapidos, e os sons
que transudavam por todas as aberturas, pelos minimos poros da
torre, começavam a assemelhar-se ao granizo do noroeste, que de
instante a instante se torna mais espesso, ao passo que a nuvem
corre mais perpendicular. Era, por fim, um remoinho, um delirio,
uma furia sonorosa. Gabriel estava tomado de campanomania; mãos,
pés, dentes, tudo repicava. Ennovelado, como um gatinho que quer
agarrar e ao mesmo tempo repellir um dixe que colheu ás unhas,
o bom do rapaz, com os olhos faiscantes e desvairados, parecia
possesso: trepava, bracejava, careteava, tropeava, agachava-se,
torcia-se, pulava, volteava, como se estivesse recebendo por
todos os lados e a cada instante descargas electricas. Insensivel
á matinada infernal, que lhe estrepitava nos ouvidos, Gabriel
dirigia palavras de amor, d'ameaça, de incitamento aos sinos,
como se elles podessem ouvi-lo. Queria communicar-lhes o seu
ardor e enthusiasmo de dilettante; e como se o entendessem,
dir-se-hia que, no contínuo vaivem, elles oscillavam tremulos
de prazer, e tentavam desprender da pedra os braços robustos
e voarem, como as aves que tambem soltavam livremente as suas
harmonias pela amplidão dos ceus.
No fim de duas horas de lida a natureza recuperou os seus direitos.
Alagado em suor, perdido o alento, esgotados os brios e as forças,
Gabriel affrouxára pouco e pouco. A estrepitosa e horrenda caricatura
do duetto de Semiramis fôra o canto do cysne. A viveza doudejante
do repique converteu-se n'um tocar lento e solemne, que ora imitava
o dobre de finados, ora os tres signaes melancholicos que indicam
o fim do dia que expira.
Tambem era tempo. No seu banco parte dos festeiros, cubertos
de fitas e medalhas, esperavam já impacientes que o prior, o
padre Chaparro, e frei José dos Prazeres saissem da sacristia
para começar a missa. No coreto as rebecas chiavam cada vez com
odio mais figadal entre si, ao passo que os _virtuosos_ faziam
todas as diligencias possiveis para as pôr de accordo comsigo
mesmas e com os outros instrumentos. A gente, não só da aldeia,
mas tambem dos casaes e logares vizinhos, affluindo de contínuo,
enchia a igreja, e o apertão, que ía a maior, principiava a avariar
os chapeus, os schalls e os vestidos das aldeans mais opulentas,
que tinham obtido transfigurar-se horrendamente com os trajos
das peralvilhas da capital, os quaes harmonisavam tão bem com
aquelles corpos mal acepilhados e robustos, com aquelles rostos
morenos e rosados, como os instrumentos da revoltosa orchestra
se afinavam entre si.
Era um escandalo, profundo escandalo, para as beatas da freguezia,
para as almas repassadas de patriotismo saloio vêr as novidades de
vestuarios, que as corruptoras influencias de Lisboa íam exercendo
nos antigos costumes, viciados por essas escusadas louçainhas. A
honestidade das raparigas, entendiam aquellas matronas de virtude
tão solida como as suas sapatas, tinha ido por ares e ventos
involta nos farrapos das humilhadas saias de baeta vermelha, das
abandonadas roupinhns de panno azul, e das pyramidaes carapuças.
A devassidão, embrulhada nos vestidos de chita, de lan e de seda,
e mettida entre o forro dos chapeus de palha, penetrára no seio
das familias. Tudo estava perdido, e a moral ía cada vez a peior,
diziam ellas com a philosophia macissa que o judicioso Horacio já
gastava ha dous mil annos, e que é a mentira mais trivial, mais
velha e mais tola que se conhece no mundo. Nas suas reflexões
piedosas as respeitaveis decanas da aldeia esqueciam, ou antes
ignoravam, o unico motivo serio que havia para lamentar aquella
transformação. Era que esses trajos tornavam contrafeitas as
raparigas aldeians; matavam a poesia campestre; associavam ao
idyllio a walsa e o whist, e como que impregnavam a atmosphera,
pura, brilhante e livre, dos miasmas repugnantes que povoam o
ambiente pesado e abafadiço de tertulia cortesan.
Mas, antes de proseguirmos nesta gravissima historia, é necessario
que trepemos áquella encosta que fica defronte do presbyterio, e
que vejamos o que é feito de um nosso conhecimento antigo, roda
indispensavel para o andamento da machina de successos que vamos
tecendo. Quem não vê que falâmos do nosso jovial e praguejador
Bartholomeu, sancto velho, se não fosse um desalmadissimo avaro?
O moleiro, desde que o filho casára, andava-lhe tudo á medida
dos seus desejos. Era ganhar dinheiro como milho, e o futuro
da familia dos Ventosas surgia brilhante no horisonte. O Manuel
estava de feito aposentado na azenha do Ignacio Codeço, e com
uma labutação de por ahi além. As peças do padre prior tinham
feito o milagre sonhado por Bartholomeu, e ainda haviam sobejado
algumas, que o honradissimo moleiro associára ás do seu mealheiro
para arranjar o casal dos Caniços, de cuja venda já lhe dera
palavra seu irmão Barnabé, a quem elle, havia dous mezes, não
deixava de dôr d'ilharga para que lhe tornasse as suas vinte
moedas, que lhe eram indispensaveis, dizia o matreiro saloio,
para pagar uma divida contrahida com um usurario de Lisboa por
causa do casamento do seu Manuel, que se víra obrigado a arrumar.
E como Barnabé, que tambem era saloio e manhoso, lhe objectasse
que só vendendo o casal dos Caniços lh'as poderia pagar de prompto,
e que era uma de seiscentos achar comprador que désse o que elle
valia, Bartholomeu, acceso em amor fraterno, lhe declarou que
o maldicto usurario dera a entender, que, se elle Bartholomeu
tivesse umas terras que lhe empenhasse, esperaria pelo dinheiro
com quaesquer cinco por cento ao mez; que por isso, vendo-se
naquelles apertos e afflicções, faria o sacrificio de lhe tomar o
casal pelas vinte moedas e mais o que fosse justo, que iria pedir ao
mesmo usurario; porque--accrescentava elle, quasi chorando--vão-se
os anneis e fiquem os dedos. Que ficaria arrasado, e a bem dizer
a pedir esmola; porque, como elle Barnabé lhe affirmava todas as
vezes que lhe ía pedir o seu dinheiro, as excommungadas das terras
apenas davam para o fabrico. Emfim, tão despejadas mentiras pregou
ao irmão, tanto o atenazou, taes artes teve de lhe converter as
sétas em grelhas, que as bichas pegaram, e Barnabé deu o sim,
a risco de estourar os ossos á tia Vicencia, sua respeitavel
consorte, á minima pegadilha, ou de rebentar de paixão como um
satanaz alguma noite na cama, se não desabafasse daquella grande
magua com uma boa massada na mulher, consolação que para um
verdadeiro saloio é nas afflicções o supra-summum dos prós e
precalços matrimoniaes.
A Providencia temperou as cousas deste mundo de modo que se podem
symbolisar todas as felicidades delle n'uma ameixa saragoçana.
Doçuras, succo, belleza externa, sim-senhor; tudo quanto quizerem:
mas, no fim de contas, travo e mais travo ao pé do caroço. É o
que explica, pê á pá sancta Justa, a theoria das compensações
d'Azaís. Mais um caso, para mostrar as carradas de razão que Azaís
tinha na sua grande cenreira a este respeito, é o que succedeu
ao moleiro, no dia em que Barnabé acabou de se resolver sobre o
casal dos Caniços. Tinha sido justamente no dia da festa pela
manhan, que Barnabé fôra com a sua Joanna á missa das almas, e
viera pelo moinho almoçar com o irmão, que não lhe mostrou a
melhor cara a principio, mas que até mandou fazer uma fritada
de meia quarta de linguiça e tres ovos (um botou-se fóra, porque
estava gôro) quando soube ao que elle vinha. Bartholomeu não
cabia em si de contente: obrigou a sobrinha a levar atados no
avental obra de dous arrateis de farinha para fazer umas raivas,
pondo lá o assucar e os ovos, e mandando-lhe metade dellas; e
por mais que pae e filha se escusassem de acceitar o seu favor,
embirrou, e não houve torcê-lo. Estava naquelle dia capaz de
lhes dar de presente metade da sua fortuna, e mais era, dizia
elle, um pobre de Christo. Logo que se foram, Bartholomeu deitou
a correr para casa, fechou-se no seu quarto, abriu, umas após
outras, as vinte gavetas de um contador, mecheu e remecheu em
todas ellas, tornou a fechar, e fazendo contas de cabeça, começou
a passear de um para outro lado do aposento, com as mãos cruzadas
nas costas, e entregue ás suas cogitações.
Os adornos ou guarnição do quarto consistiam em um leito de casados
de pau-sancto de pés torneados e cabeceira redonda, thalamo nupcial,
agora enluctado pela sempre chorada morte da tia Genoveva da
Ventosa, mãe de Manuel da Ventosa, e mulher que fôra do honrado
Bartholomeu da Ventosa, que, para falar como os poetas, solitaria
rolla (ou rollo ou rolho) naquelle ninho silencioso se encouchava
triste nas longas noites de inverno, ai, outr'ora tão felizes! O
contador ficava defronte, e ao lado um bofete, e sobre o bofete
um oratorio forrado de damasco amarello com sanefa encarnada. Sete
sanctos povoavam o larario da defuncta moleira: S. Servulo, Sancto
Onofre, S. Miguel, S. Sebastião, S. Gregorio, Sancto Antonio, e
S. João Baptista; este ultimo no centro e em peanha mais elevada;
Sancto Antonio á sua direita, com um cordão de ouro lançado ao
pescoço e dando multas voltas ao redor do corpo. Como supplemento,
por cima da cabeceira da cama, uma lamina da Senhora da Conceição,
e dous registos, um de Sancta Barbara, outro de Sancta Rita; no
tardoz da porta uma cruz de S. Lazaro pregada com massa. Uma arca
da India, com ferrolho de correr e pregaria de grandes cabeças
chatas de duas pollegadas de diametro, e quatro cadeiras de costas
e assentos de couro lavrado completavam a mobilia do aposento. No
canto do bofete, quasi á borda, estavam cravados um cruzado-novo
e um tostão falsos, memorias dolorosas de um mono que pregára
certo padeiro de Lisboa ao moleiro, na compra de uns saccos de
farinha, historia, que, se eu a contasse, havia de fazer arripiar
o pello aos leitores mais do que as novellas de Anna Radcliffe.
"Dez centos de mil réis! Chumba-lhe!"--dizia o velho esfregando
as mãos, como um botecudo esfrega dous páus de que quer tirar
lume, e passeando com passos curtos e rapidos de um para outro
lado.--"É isso! cem peças, sete centos e meio; quatrocentos pintos,
dous centos menos oito; fazem nove centos e meio menos oito:
duzentas cravellas de doze, meio cento menos dous: oito e dous
dez: dez centos menos dez: oitenta de seis fazem duas moedas:
duas moedas dez mil réis menos um cruzado: oito meios tostões
quatro tostões: quatro tostões com ... justamente, dez centos.
Ah sô Barnabé, quer setecentos? Heim? Com vinte moedas que já
lá andam a juro, parece-me....! Quer ou não quer?"--"Homem, isso
é muito pouco..."--"Pouco?! E doze moedas foro?"--"As terras dão
bem para isso: só a Abrunhosa..."--"Pois se dão, homem, paga-me
as vinte moedas. Ah, embatucas? Oh, oh, ih, ih, ih!.."
E Bartholomeu ria a bom rir daquelle dialogo que phantasiava
travar como irmão. De repente, porém, as feições contrahidas
pelo riso se lhe immobilisaram diante de uma idéa fatal. Barnabé
podia dar com a lingua nos dentes ácerca do negocio, n'alguma
noite em que fosse para a tenda do Agostinho jogar a bisca a
vinho, segundo o seu costume, e sair um atravessador a picar-lhe
o lanço; o Bento Rabixa, por exemplo, que tinha muito caroço, e
que era um dos da tripeça da bisca. Vinham-lhe calafrios com tal
pensamento. Uma palavra, uma allusão perderia, talvez, tudo. Era
verdadeira agonia a sua. Costumado a implorar o céu nas grandes
afflicções, Bartholomeu por uma daquellas subtilezas moraes dos
avaros, que sabem conciliar a devoção com o seu vicio hediondo,
ajoelhou diante do oratorio, e com lagrymas e fervorosas suplicas
começou a pedir a S. João Baptista fizesse com que Barnabé não
tugisse nem mugisse a similhante respeito. Nas suas orações
passou-lhe, talvez, pela cabeça a idéa de um estupor na lingua
de Barnabé. Desconfio: não o affirmo; porque não gósto de cousas
dictas no ar. O que é certo é que procurou dar a entender ao
sancto que teria duas vélas accesas e uma esmola para a sua festa,
se as cousas lhe saissem a geito, exprimindo-se, todavia, por
tal arte que não ficasse absolutamente preso pela palavra, e
podesse roer a corda depois de se pilhar servido.
Em quanto o moleiro se debatia nestas tempestades de ambição,
passava-se no presbyterio a scena que já descrevi entre João
Nepomuceno e Gabriel. A principio Bartholomeu, embebido nos seus
calculos, temores e rogativas, nem sequer ouvíra os repiques
variados e harmonicos, com que o rapaz do moinho rompêra o seu
grande e festivo concerto; mas pouco a pouco o motim dos sinos
crescêra a ponto, que só os defunctos do cemiterio poderiam ficar
indifferentes a tão retumbantes bellezas musicaes. Na aldeia já
ninguem se entendia no meio dessa procella de sons, que, trepando
pelos outeiros ao redor, e precipitando-se para os valles além,
iam levar o ruido da festa e a gloria de S. Pantaleão ás povoações
vizinhas. Penetrando pelos ouvidos do moleiro, aquellas vibrações
desalmadas fizeram-n'o despertar do extasi de sovinaria devota
que o arrebatava. Ergueu-se, chegou-se á janella, alçou a adufa,
poz-se a mirar o relogio de sol do campanario, piscando os olhos
e fazendo com a mão uma especie de pala para os defender da luz,
e depois de se affirmar por um pedaço, deixando cahir de golpe a
adufa, correu á arca, murmurando:--"nove horas! Já mais de nove
horas! Esta só por trezentos milheiros de diabos! E ainda tenho
de me vestir! Com seiscentos diabos! D'aqui a nada estão lá os
outros. Ora o diabo!.."
Estas imprecações em razão descendente, que o moleiro tinha sempre
na bôca por um mau habito, que todas as prégações e remoques
do padre prior não haviam podido fazer perder áquella lingua
damnada de Bartholomeu, nasciam de uma circumstancia na verdade
séria. A funcção d'igreja devia de começar ás dez horas, e elle
era um dos festeiros. O padre prior tantas voltas dera que o
obrigára a sê-lo, e a esportular uma moeda para as despezas.
Devemos acreditar que nunca o teria alcançado, se não fosse o dote
de Bernardina, sobre o que o moleiro tremia que o velho clerigo
deixasse escapar alguma palavra. Elle aproveitára habilmente o
caso para passar por bom pae e generoso, e ao mesmo tempo para
se esquivar ao menor acto de beneficencia o resto da sua vida,
affirmando que se empenhára até os olhos para comprar e reparar
a azenha do Ignacio Codeço e estabelecer lá o seu rapaz, quando
a verdade era que, comprada e reparada a azenha, posta a casa
aos noivos, adquiridos seis machos, paga a soldada de tres mezes
a dous moços, provída a dispensa, e deixadas algumas moedas para
as despezas diarias, ainda um certo numero de louras do padre
prior tinham ido cahir, como já disse, no escaninho onde jaziam
sem ver sol nem lua aquellas que o moleiro acabava de contar.
Obrigado por semelhante consideração, e á força de rogativas
do parocho e das picuinhas de outros irmãos da Irmandade do
Sanctissimo, que se tinham mettido no negocio, o moleiro achava-se
elevado a uma situação que estava longe de ambicionar. Perdida a
moeda, que elle havia de chorar toda a sua vida, importava-lhe
não perder a consideração e valia na festa, que por tão alto e
raivado preço comprára; era o risco que via imminente, ao menos
em parte, se não estivesse a ponto de saír da sacristia para a
capella-mór no prestito dos festeiros.
O dia começára bem; mas ía-se tornando aziago.
Apesar de velho, curto e barrigudo, o moleiro, não vendo nenhum
outro meio de esquivar o contratempo que receiava, apressou-se o
mais que pôde em se adornar com o aceio e pontualidade que requeria
o acto. Do fundo da arca saíu o arsenal completo para os dias de
vêr a Deus. Era respeitavel pela antiguidade! Monumentos de mais
felizes epochas, os arreios esplendidos de Bartholomeu constavam
de uns calções de gorgorão côr de tabaco, de um colete de veludo
verde, e de uma casaca azul de abas largas e gola estreita (isto
passava ha bem dezoito annos) antipoda da casaca peralvilha dos
casquilhos daquelle tempo. As menudencias do trajo diplomatico
do moleiro compunham-se de um chapéu armado, de um pescocinho
com bofes, de umas meias de algodão brancas, e d'uns sapatos
existirem, quasi a cada passada, no mundo da intelligencia. Quando
o espirito se desata dos corpos; quando a imaginação, depurando
o senso intimo, o faz repellir a materia, fechando-se, como a
mimosa pudica, á acção grosseira dos sentidos externos, o homem
alevanta-se até o viver de além da morte, a luz dos anjos allumia-lhe
as profundezas mais obscuras do universo ideal, e elle sabe quaes
os caminhos e valles que unem as suas cumiadas brilhantes, unicos
pontos que se podem enxergar da terra. O primeiro que disse "_em
tudo está tudo_" teve uma destas revelações da imaginação pura,
revelação completa do ideal, que não é mais do que a fusão da
variedade absoluta e infinita na infinita e absoluta unidade.
Mas estes momentos, em que somos illuminados pelo sol da vida
celestial, passam rapidos: o espirito cahe logo dentro dos limites da
sua existencia de provança e desterro, e recordando-se confusamente
daquellas inspirações passageiras, sorri-se e chama-lhes sonhos,
abusões, desvarios. É que a pobre e suberba razão, myope advogada
do lodo e do crepusculo, rejeita com horror as cogitações puras
e luminosas, que Deus faculta ás vezes ao miseravel ente, creado
quasi anjo por elle, e a quem o primeiro raciocinio que se fez
na terra converteu em insensato e precíto.
E a que vem estas metaphysicas aqui? De que utilidade são ellas
para a historia do parocho da aldeia, e da festa do orago, ha
tanto tempo interrompida, e que até agora não tem passado de
divagações por objectos sem ligação com a vida e costumes do
reverendo padre prior?--"Venha o padre prior: venha a festa--dirão
alguns--e deixemo-nos dessas metaphysicas modernas, que escorregam
por entre os dedos, e não passam de feixe de maravalhas ao pé
daquellas grandes philosophias dos ideologos, que até um sapateiro
era capaz de estudar batendo a sola e apertando o ponto; philosophia
de pão pão, queijo queijo; philosophia substancial; philosophia
d'ouvir, vêr, cheirar, gostar, e apalpar, roliça, atoucinhada,
confortativa. Se era necessario algum troço da sciencia do _atqui_ e
_ergo_ para atar estes capitulos ou capituladas da chronica aldeian,
porque não recorrer ao clarissimo Condillac, ao bis-clarissimo
Tracy? Para que parafusar em entes de razão impalpaveis, em
armadilhas que trescalam ás parvoices germanicas, quando estava
ahi á mão a philosophia do senso commum, que é o senso patagão
e russo, tupinamba e sueco, chim e dinamarquez, emfim o senso
de todo o mundo?"
Ai, leitor, que ahi bate o ponto! Quem me dera isso! Quem me dera
poder explicar por um capitulo tantos, paragrapho tantos, daquelle
sancto homem de Locke, o que me succedeu ao escrever esta famosa
historia, e lançar na balança da tua inflexivel justiça uma desculpa
de obra grossa dos meus rodeios, desvios e viravoltas na ordem e
disposição destes importantes estudos! Por mais que scismasse,
por mais que afferisse pelos bons principios ideologicos o meu
trabalho, sabia-me tudo torto: era querer levantar uma bóla com um
gancho, ou firmar a taboa-rasa do philosopho inglez sobre uma das
pontas de um dilemma. Como ageitar a minha narração deambulatoria
pelas regras do methodo? Impossivel, impossibilissimo! Fiz então
como Constantino Magno. Não achando escapula nem esperança na
religião da materia em que me crearam, fugi para a religião dos
espiritos, e por uma theoria de abstracção _subjectiva_ expliquei,
como Deus me ajudou, as minhas, aliás inexplicaveis, divagações.
Encostado a ella como a uma columna de basalto (de basalto, porque
as de marmore e de bronze estão muito safadas do uso quotidiano)
rir-me-hei do mais abalisado doutor, que venha perguntar-me qual
é a ordem logica das minhas idéas. A resposta está no que expuz:
pontes intellectuaes, invisiveis, inappreciaveis pelas regras
ordinarias do methodo; pontes que unem o branco ao preto, o circular
ao anguloso, o proximo ao remoto. Fecho-me nisto. A imaginação
que assim o fez, é porque assim devia ser: está muito bem feito,
ao menos no mundo da idealidade pura. Foi lá que eu passei de
um veneravel parocho d'aldeia, portuguez velho em costumes, em
linguagem, em crenças, vulto poetico e sancto, para um inglez
impertigado, monosyllabico, iconoclasta, libertador de pretos
alheios, escravisador de saxões e irlandezes brancos; n'uma palavra
galgei de um a outro pólo da humanidade. Foi lá, que eu pude
tombar, rolar, precipitar-me do catholicismo suave, consolador,
festivo, ameigador dos miseraveis, despresador dos poderosos
suberbos, symbolisador, no seu culto, da igualdade ante Deus,
para o anglicanismo perfumado, espartilhado, casquilho, tezo,
aristocratico, nevoento, dizimador, intolerante, enxotador dos
mendigos, camaroteiro dos templos; pude tombar, rolar, precipitar-me
do vertice brilhante, d'onde derrama a sua eterna claridade o
puro espirito do christianismo, no charco onde o mergulhou e
affogou a vontade de um tyranno devasso do seculo XVI, e a van
presumpção de sua filha, a pura, generosa, e sábia Isabel, especie
de concilio Niceno de carne e osso para o protestantismo inglez.
Dou vinte annos a todos os ideologos para explicarem por outro
systema a transição monstruosa e incomprehensivel, que fiz a
semelhante respeito nestes gravissimos estudos. Idealisei um
inglez (foi façanha!), idealisei o meu bom prior, e no mundo
da razão pura lá achei que havia entre essas existencias,
infinitamente oppostas, uma affinidade: qual, não sei eu dizer,
porque o esqueci: e ainda que me lembrasse, não saberia exprimi-lo.
Dada esta explicação aos pechosos, vamos ás promettidas duas
palavras sobre a festa.
Era um dia ardente de julho, a 27, cousa certissima para o leitor,
em consequencia das minhas profundas investigações chronologicas. O
sol ia alto: a igreja parochial, involta no manto tricolor--branco,
amarello, e vermelho--cal, ochre, rôxo-terra--parecia rir no seu
jubilo. Um moço do Bartholomeu da Ventosa, rapazote de quinze
annos, quatro mezes, vinte quatro dias, e vinte tres horas e
tres quartos completos (por ter nascido a uma segunda-feira, á
meia noite menos um quarto, de dous para tres de março) neste
grande dia do orago pilhára ao moleiro duas graças a um tempo,
a de deixar em descanço o seu tonel das Danaides, a implacavel
joeira, e a de poder assistir á festa e ouvir a missa cantada
e o sermão, em vez de ir acabar o pesado somno da madrugada á
missa das almas. Gabriel, que assim se chamava o rapaz, ou antes
_Graviel_, segundo a mais euphonica pronuncia saloia, vestiu logo
pela manhan as suas calças e jaqueta de bombazina em folha, e o
seu colete vermelho, engenhado de um do patrão a trôco de dous
mezes de soldada, calçou as botifarras novas, e enterrou o barrete
azul e encarnado na cabeça, derrubando-o para traz, e sem fazer
caso do almoço (pois era uma açorda que os anjos a comeriam)
desandou, outeiro abaixo, pela volta das sete e trinta e cinco
minutos da manhan, caminho da parochia. Via-se que um grande
negocio lhe occupava o espirito, por isso que levava os olhos
cravados no campanario, e sem fazer caso das trilhas, cortava
por entre as restevas, escorregando, aqui, nas pedras soltas,
levando-as, acolá, diante dos bicos agudos das botifarras. Chegou.
O sacristão, que estava á porta da igreja, apenas o lobrigou
poz-se a rir, porque logo entendeu o verso. Gabriel era um dos
maiores pimpões em repicar sinos que havia entre a rapaziada
do logar, mas desde que entrára para casa do tio Bartholomeu,
nunca mais puzera pés no campanario. Nos meneios, no gesto, no
olhar lhe revia a sêde, a ancia, a saudade das harmonias risonhas,
doudas, estrugidoras de um repique desenganado. Vinha tão cégo,
que só viu João Nepomuceno (assim se chamava o sacristão) quando
deu de rosto com elle. Estacou embatucado; tirou o barrete, e
começou a coçar a região occipital, olhando de revez para o
sacristão, que se encostára á hombreira, com as mãos cruzadas
atraz das costas, assobiando o _Veni Creator_.
"É-lé Graviel!--disse este por fim com um sorriso.--Você hoje
campou. O patrão é festeiro; fica o moinho a dormir! Heim? Galdére;
não é assim? Mas, cos dianhos! não sei como não vieste cá dormir.
Bota os olhos acolá para o arraial. Vês? Duas bolaxeiras, e a tia
Sezila com queijadas; e disse. Ainda nem sequer o Chico appareceu
para começar o repique. Pois para isso não é cedo, que a missa
da festa é ás dez em ponto. Já o padre Chaparro e frei José dos
Prazeres estão na sancrestia, e dizem que não tarda ahi frei
Narciso, que vem servir de mestre de ceremonias."
"Oh sô João de Permecena!--acudiu o saloio, que tornára, ao ouvir
o nome do Chico, a enterrar o barrete na cabeça, mas desta vez
á banda--com a sua licença, ha-me de perdoar: não sei o que fez
em chamar n'um dia destes aquelle jimento do Chico para tocar
os sinos. Aquillo!? Ora, deixa-me rir. Ha-de-a fazer bonita;
não tem duvida? Olhe, sempre lhe digo..."
"Não digas nada: bem sei. Mas que dianho querias tu com uma cravella
de doze que dá a menza da irmandade, e nicles? Mesmo o Chicho,
deu-me agua pela barba para o resolver. Se aquillo são uns dianhos
d'uns fonas!"
"Pois se vocemecê quer--interrompeu Gabriel, em cujos olhos se
accendia o desejo, o deleite, e a esperança--eu lá vou. Hoje o
patrão deu-me licença até ás trindades. Salto na torre, e vae
tudo raso. Toco até aquella cantiga de Lisboa, que dizem que canta
um tal Catragena em S. Calros: ... totro, trão-balão, re-pim,
piri-pim-pão."
Enthusiasmado, o moço do moleiro cantarolava, imitando os sons de
um sino, ou antes de um tacho, a musica horrendamente aleijada,
esfarrapada, assassinada do dueto de Assur e Semiramis: _La sorte
piu fiera_. Se Rossini alli chegasse de subito, ou não a conhecia,
ou enganava-se. O sacristão estava enlevado.
"Homem!--disse elle quando Gabriel parou--bom era isso: mas o
Chico está ajustado; e já agora....."
"É que o Chico é o seu padagoz: ha-me de dar licença que lho
diga, senhor João de Permecena!--interrompeu o moço do moleiro,
vendo apagar-se a luz que lhe illuminára o espirito.--Pois eu
tocava ahi a desbancar ainda por menos: bastava que me pagasse
um arratel de bolaxas e dous berimbáus."
"Eu cá não tenho padagozes, homem! Cos dianhos!--replicou o
sacristão.--Se elle não estiver aqui ás oito, dou-te a chave da
torre, e são hoje teus os sinos. Quando quizeres terás as bolaxas
e os berimbáus."
A proposta de Gabriel penetrára como um balsamo suave na alma
do sacristão: fazia a despeza com seis e meio, e economisava o
resto para a igreja, isto é, para si, como representante della.
Gabriel saltou acima do parapeito do adro e poz-se a olhar para
o lado onde morava o Chico. Batia-lhe o coração com força. Ás oito
horas devia nascer para elle um dia de gloria e contentamento, ou
de desdouro e zanguinha. Deram as oito.--"Viva!--bradou, saltando
ao terreiro, e correndo ao sacristão.--Venha!--proseguiu, lançando
mão da chave da torre com tal violencia, que João Nepomuceno
por um triz não foi a terra. Ia-lhe quebrando um dedo.
"Dianho!... Safa, alimaria! Forte doido!... Oh Graviel! Ouve cá,
Graviel! Olha que está passada a corda da garrida..."
Qual Gabriel, nem meio Gabriel! Tinha desapparecido, semelhante
a um foguete. O sacristão levantou os olhos para o campanario
e viu já as cordas a bambearem e a desembaraçarem-se, como as
tranças da nobre dama nas mãos subtis de aia geitosa. Gabriel
era, sem a menor sombra de duvida, a flor e nata da rapaziada
curiosa da aldeia.
Uma pancada retumbante e sonora no sino grande, a qual se repetiu
lentamente algumas vezes, foi como um mensageiro, despedido por
montes e valles, a annunciar um dia de repouso e folgares para
o homem do campo, curvado sob o sol ardente nas ceifas e mais
trabalhos ruraes do estio, durante os longos dias de trabalho.
Era como o romper de uma vasta symphonia. Gradualmente os outros
sinos misturaram as suas vozes argentinas com a do primeiro, e
a atmosphera esplendida vibrou ondeando em tempestade de notas
que se cruzavam, cortavam, interrompiam, luctavam em barbara
harmonia. A principio Gabriel, pausado e lento, lançava
successivamente uma ou outra mão a esta ou áquella corda: pouco
a pouco os seus movimentos tornaram-se mais rapidos, e os sons
que transudavam por todas as aberturas, pelos minimos poros da
torre, começavam a assemelhar-se ao granizo do noroeste, que de
instante a instante se torna mais espesso, ao passo que a nuvem
corre mais perpendicular. Era, por fim, um remoinho, um delirio,
uma furia sonorosa. Gabriel estava tomado de campanomania; mãos,
pés, dentes, tudo repicava. Ennovelado, como um gatinho que quer
agarrar e ao mesmo tempo repellir um dixe que colheu ás unhas,
o bom do rapaz, com os olhos faiscantes e desvairados, parecia
possesso: trepava, bracejava, careteava, tropeava, agachava-se,
torcia-se, pulava, volteava, como se estivesse recebendo por
todos os lados e a cada instante descargas electricas. Insensivel
á matinada infernal, que lhe estrepitava nos ouvidos, Gabriel
dirigia palavras de amor, d'ameaça, de incitamento aos sinos,
como se elles podessem ouvi-lo. Queria communicar-lhes o seu
ardor e enthusiasmo de dilettante; e como se o entendessem,
dir-se-hia que, no contínuo vaivem, elles oscillavam tremulos
de prazer, e tentavam desprender da pedra os braços robustos
e voarem, como as aves que tambem soltavam livremente as suas
harmonias pela amplidão dos ceus.
No fim de duas horas de lida a natureza recuperou os seus direitos.
Alagado em suor, perdido o alento, esgotados os brios e as forças,
Gabriel affrouxára pouco e pouco. A estrepitosa e horrenda caricatura
do duetto de Semiramis fôra o canto do cysne. A viveza doudejante
do repique converteu-se n'um tocar lento e solemne, que ora imitava
o dobre de finados, ora os tres signaes melancholicos que indicam
o fim do dia que expira.
Tambem era tempo. No seu banco parte dos festeiros, cubertos
de fitas e medalhas, esperavam já impacientes que o prior, o
padre Chaparro, e frei José dos Prazeres saissem da sacristia
para começar a missa. No coreto as rebecas chiavam cada vez com
odio mais figadal entre si, ao passo que os _virtuosos_ faziam
todas as diligencias possiveis para as pôr de accordo comsigo
mesmas e com os outros instrumentos. A gente, não só da aldeia,
mas tambem dos casaes e logares vizinhos, affluindo de contínuo,
enchia a igreja, e o apertão, que ía a maior, principiava a avariar
os chapeus, os schalls e os vestidos das aldeans mais opulentas,
que tinham obtido transfigurar-se horrendamente com os trajos
das peralvilhas da capital, os quaes harmonisavam tão bem com
aquelles corpos mal acepilhados e robustos, com aquelles rostos
morenos e rosados, como os instrumentos da revoltosa orchestra
se afinavam entre si.
Era um escandalo, profundo escandalo, para as beatas da freguezia,
para as almas repassadas de patriotismo saloio vêr as novidades de
vestuarios, que as corruptoras influencias de Lisboa íam exercendo
nos antigos costumes, viciados por essas escusadas louçainhas. A
honestidade das raparigas, entendiam aquellas matronas de virtude
tão solida como as suas sapatas, tinha ido por ares e ventos
involta nos farrapos das humilhadas saias de baeta vermelha, das
abandonadas roupinhns de panno azul, e das pyramidaes carapuças.
A devassidão, embrulhada nos vestidos de chita, de lan e de seda,
e mettida entre o forro dos chapeus de palha, penetrára no seio
das familias. Tudo estava perdido, e a moral ía cada vez a peior,
diziam ellas com a philosophia macissa que o judicioso Horacio já
gastava ha dous mil annos, e que é a mentira mais trivial, mais
velha e mais tola que se conhece no mundo. Nas suas reflexões
piedosas as respeitaveis decanas da aldeia esqueciam, ou antes
ignoravam, o unico motivo serio que havia para lamentar aquella
transformação. Era que esses trajos tornavam contrafeitas as
raparigas aldeians; matavam a poesia campestre; associavam ao
idyllio a walsa e o whist, e como que impregnavam a atmosphera,
pura, brilhante e livre, dos miasmas repugnantes que povoam o
ambiente pesado e abafadiço de tertulia cortesan.
Mas, antes de proseguirmos nesta gravissima historia, é necessario
que trepemos áquella encosta que fica defronte do presbyterio, e
que vejamos o que é feito de um nosso conhecimento antigo, roda
indispensavel para o andamento da machina de successos que vamos
tecendo. Quem não vê que falâmos do nosso jovial e praguejador
Bartholomeu, sancto velho, se não fosse um desalmadissimo avaro?
O moleiro, desde que o filho casára, andava-lhe tudo á medida
dos seus desejos. Era ganhar dinheiro como milho, e o futuro
da familia dos Ventosas surgia brilhante no horisonte. O Manuel
estava de feito aposentado na azenha do Ignacio Codeço, e com
uma labutação de por ahi além. As peças do padre prior tinham
feito o milagre sonhado por Bartholomeu, e ainda haviam sobejado
algumas, que o honradissimo moleiro associára ás do seu mealheiro
para arranjar o casal dos Caniços, de cuja venda já lhe dera
palavra seu irmão Barnabé, a quem elle, havia dous mezes, não
deixava de dôr d'ilharga para que lhe tornasse as suas vinte
moedas, que lhe eram indispensaveis, dizia o matreiro saloio,
para pagar uma divida contrahida com um usurario de Lisboa por
causa do casamento do seu Manuel, que se víra obrigado a arrumar.
E como Barnabé, que tambem era saloio e manhoso, lhe objectasse
que só vendendo o casal dos Caniços lh'as poderia pagar de prompto,
e que era uma de seiscentos achar comprador que désse o que elle
valia, Bartholomeu, acceso em amor fraterno, lhe declarou que
o maldicto usurario dera a entender, que, se elle Bartholomeu
tivesse umas terras que lhe empenhasse, esperaria pelo dinheiro
com quaesquer cinco por cento ao mez; que por isso, vendo-se
naquelles apertos e afflicções, faria o sacrificio de lhe tomar o
casal pelas vinte moedas e mais o que fosse justo, que iria pedir ao
mesmo usurario; porque--accrescentava elle, quasi chorando--vão-se
os anneis e fiquem os dedos. Que ficaria arrasado, e a bem dizer
a pedir esmola; porque, como elle Barnabé lhe affirmava todas as
vezes que lhe ía pedir o seu dinheiro, as excommungadas das terras
apenas davam para o fabrico. Emfim, tão despejadas mentiras pregou
ao irmão, tanto o atenazou, taes artes teve de lhe converter as
sétas em grelhas, que as bichas pegaram, e Barnabé deu o sim,
a risco de estourar os ossos á tia Vicencia, sua respeitavel
consorte, á minima pegadilha, ou de rebentar de paixão como um
satanaz alguma noite na cama, se não desabafasse daquella grande
magua com uma boa massada na mulher, consolação que para um
verdadeiro saloio é nas afflicções o supra-summum dos prós e
precalços matrimoniaes.
A Providencia temperou as cousas deste mundo de modo que se podem
symbolisar todas as felicidades delle n'uma ameixa saragoçana.
Doçuras, succo, belleza externa, sim-senhor; tudo quanto quizerem:
mas, no fim de contas, travo e mais travo ao pé do caroço. É o
que explica, pê á pá sancta Justa, a theoria das compensações
d'Azaís. Mais um caso, para mostrar as carradas de razão que Azaís
tinha na sua grande cenreira a este respeito, é o que succedeu
ao moleiro, no dia em que Barnabé acabou de se resolver sobre o
casal dos Caniços. Tinha sido justamente no dia da festa pela
manhan, que Barnabé fôra com a sua Joanna á missa das almas, e
viera pelo moinho almoçar com o irmão, que não lhe mostrou a
melhor cara a principio, mas que até mandou fazer uma fritada
de meia quarta de linguiça e tres ovos (um botou-se fóra, porque
estava gôro) quando soube ao que elle vinha. Bartholomeu não
cabia em si de contente: obrigou a sobrinha a levar atados no
avental obra de dous arrateis de farinha para fazer umas raivas,
pondo lá o assucar e os ovos, e mandando-lhe metade dellas; e
por mais que pae e filha se escusassem de acceitar o seu favor,
embirrou, e não houve torcê-lo. Estava naquelle dia capaz de
lhes dar de presente metade da sua fortuna, e mais era, dizia
elle, um pobre de Christo. Logo que se foram, Bartholomeu deitou
a correr para casa, fechou-se no seu quarto, abriu, umas após
outras, as vinte gavetas de um contador, mecheu e remecheu em
todas ellas, tornou a fechar, e fazendo contas de cabeça, começou
a passear de um para outro lado do aposento, com as mãos cruzadas
nas costas, e entregue ás suas cogitações.
Os adornos ou guarnição do quarto consistiam em um leito de casados
de pau-sancto de pés torneados e cabeceira redonda, thalamo nupcial,
agora enluctado pela sempre chorada morte da tia Genoveva da
Ventosa, mãe de Manuel da Ventosa, e mulher que fôra do honrado
Bartholomeu da Ventosa, que, para falar como os poetas, solitaria
rolla (ou rollo ou rolho) naquelle ninho silencioso se encouchava
triste nas longas noites de inverno, ai, outr'ora tão felizes! O
contador ficava defronte, e ao lado um bofete, e sobre o bofete
um oratorio forrado de damasco amarello com sanefa encarnada. Sete
sanctos povoavam o larario da defuncta moleira: S. Servulo, Sancto
Onofre, S. Miguel, S. Sebastião, S. Gregorio, Sancto Antonio, e
S. João Baptista; este ultimo no centro e em peanha mais elevada;
Sancto Antonio á sua direita, com um cordão de ouro lançado ao
pescoço e dando multas voltas ao redor do corpo. Como supplemento,
por cima da cabeceira da cama, uma lamina da Senhora da Conceição,
e dous registos, um de Sancta Barbara, outro de Sancta Rita; no
tardoz da porta uma cruz de S. Lazaro pregada com massa. Uma arca
da India, com ferrolho de correr e pregaria de grandes cabeças
chatas de duas pollegadas de diametro, e quatro cadeiras de costas
e assentos de couro lavrado completavam a mobilia do aposento. No
canto do bofete, quasi á borda, estavam cravados um cruzado-novo
e um tostão falsos, memorias dolorosas de um mono que pregára
certo padeiro de Lisboa ao moleiro, na compra de uns saccos de
farinha, historia, que, se eu a contasse, havia de fazer arripiar
o pello aos leitores mais do que as novellas de Anna Radcliffe.
"Dez centos de mil réis! Chumba-lhe!"--dizia o velho esfregando
as mãos, como um botecudo esfrega dous páus de que quer tirar
lume, e passeando com passos curtos e rapidos de um para outro
lado.--"É isso! cem peças, sete centos e meio; quatrocentos pintos,
dous centos menos oito; fazem nove centos e meio menos oito:
duzentas cravellas de doze, meio cento menos dous: oito e dous
dez: dez centos menos dez: oitenta de seis fazem duas moedas:
duas moedas dez mil réis menos um cruzado: oito meios tostões
quatro tostões: quatro tostões com ... justamente, dez centos.
Ah sô Barnabé, quer setecentos? Heim? Com vinte moedas que já
lá andam a juro, parece-me....! Quer ou não quer?"--"Homem, isso
é muito pouco..."--"Pouco?! E doze moedas foro?"--"As terras dão
bem para isso: só a Abrunhosa..."--"Pois se dão, homem, paga-me
as vinte moedas. Ah, embatucas? Oh, oh, ih, ih, ih!.."
E Bartholomeu ria a bom rir daquelle dialogo que phantasiava
travar como irmão. De repente, porém, as feições contrahidas
pelo riso se lhe immobilisaram diante de uma idéa fatal. Barnabé
podia dar com a lingua nos dentes ácerca do negocio, n'alguma
noite em que fosse para a tenda do Agostinho jogar a bisca a
vinho, segundo o seu costume, e sair um atravessador a picar-lhe
o lanço; o Bento Rabixa, por exemplo, que tinha muito caroço, e
que era um dos da tripeça da bisca. Vinham-lhe calafrios com tal
pensamento. Uma palavra, uma allusão perderia, talvez, tudo. Era
verdadeira agonia a sua. Costumado a implorar o céu nas grandes
afflicções, Bartholomeu por uma daquellas subtilezas moraes dos
avaros, que sabem conciliar a devoção com o seu vicio hediondo,
ajoelhou diante do oratorio, e com lagrymas e fervorosas suplicas
começou a pedir a S. João Baptista fizesse com que Barnabé não
tugisse nem mugisse a similhante respeito. Nas suas orações
passou-lhe, talvez, pela cabeça a idéa de um estupor na lingua
de Barnabé. Desconfio: não o affirmo; porque não gósto de cousas
dictas no ar. O que é certo é que procurou dar a entender ao
sancto que teria duas vélas accesas e uma esmola para a sua festa,
se as cousas lhe saissem a geito, exprimindo-se, todavia, por
tal arte que não ficasse absolutamente preso pela palavra, e
podesse roer a corda depois de se pilhar servido.
Em quanto o moleiro se debatia nestas tempestades de ambição,
passava-se no presbyterio a scena que já descrevi entre João
Nepomuceno e Gabriel. A principio Bartholomeu, embebido nos seus
calculos, temores e rogativas, nem sequer ouvíra os repiques
variados e harmonicos, com que o rapaz do moinho rompêra o seu
grande e festivo concerto; mas pouco a pouco o motim dos sinos
crescêra a ponto, que só os defunctos do cemiterio poderiam ficar
indifferentes a tão retumbantes bellezas musicaes. Na aldeia já
ninguem se entendia no meio dessa procella de sons, que, trepando
pelos outeiros ao redor, e precipitando-se para os valles além,
iam levar o ruido da festa e a gloria de S. Pantaleão ás povoações
vizinhas. Penetrando pelos ouvidos do moleiro, aquellas vibrações
desalmadas fizeram-n'o despertar do extasi de sovinaria devota
que o arrebatava. Ergueu-se, chegou-se á janella, alçou a adufa,
poz-se a mirar o relogio de sol do campanario, piscando os olhos
e fazendo com a mão uma especie de pala para os defender da luz,
e depois de se affirmar por um pedaço, deixando cahir de golpe a
adufa, correu á arca, murmurando:--"nove horas! Já mais de nove
horas! Esta só por trezentos milheiros de diabos! E ainda tenho
de me vestir! Com seiscentos diabos! D'aqui a nada estão lá os
outros. Ora o diabo!.."
Estas imprecações em razão descendente, que o moleiro tinha sempre
na bôca por um mau habito, que todas as prégações e remoques
do padre prior não haviam podido fazer perder áquella lingua
damnada de Bartholomeu, nasciam de uma circumstancia na verdade
séria. A funcção d'igreja devia de começar ás dez horas, e elle
era um dos festeiros. O padre prior tantas voltas dera que o
obrigára a sê-lo, e a esportular uma moeda para as despezas.
Devemos acreditar que nunca o teria alcançado, se não fosse o dote
de Bernardina, sobre o que o moleiro tremia que o velho clerigo
deixasse escapar alguma palavra. Elle aproveitára habilmente o
caso para passar por bom pae e generoso, e ao mesmo tempo para
se esquivar ao menor acto de beneficencia o resto da sua vida,
affirmando que se empenhára até os olhos para comprar e reparar
a azenha do Ignacio Codeço e estabelecer lá o seu rapaz, quando
a verdade era que, comprada e reparada a azenha, posta a casa
aos noivos, adquiridos seis machos, paga a soldada de tres mezes
a dous moços, provída a dispensa, e deixadas algumas moedas para
as despezas diarias, ainda um certo numero de louras do padre
prior tinham ido cahir, como já disse, no escaninho onde jaziam
sem ver sol nem lua aquellas que o moleiro acabava de contar.
Obrigado por semelhante consideração, e á força de rogativas
do parocho e das picuinhas de outros irmãos da Irmandade do
Sanctissimo, que se tinham mettido no negocio, o moleiro achava-se
elevado a uma situação que estava longe de ambicionar. Perdida a
moeda, que elle havia de chorar toda a sua vida, importava-lhe
não perder a consideração e valia na festa, que por tão alto e
raivado preço comprára; era o risco que via imminente, ao menos
em parte, se não estivesse a ponto de saír da sacristia para a
capella-mór no prestito dos festeiros.
O dia começára bem; mas ía-se tornando aziago.
Apesar de velho, curto e barrigudo, o moleiro, não vendo nenhum
outro meio de esquivar o contratempo que receiava, apressou-se o
mais que pôde em se adornar com o aceio e pontualidade que requeria
o acto. Do fundo da arca saíu o arsenal completo para os dias de
vêr a Deus. Era respeitavel pela antiguidade! Monumentos de mais
felizes epochas, os arreios esplendidos de Bartholomeu constavam
de uns calções de gorgorão côr de tabaco, de um colete de veludo
verde, e de uma casaca azul de abas largas e gola estreita (isto
passava ha bem dezoito annos) antipoda da casaca peralvilha dos
casquilhos daquelle tempo. As menudencias do trajo diplomatico
do moleiro compunham-se de um chapéu armado, de um pescocinho
com bofes, de umas meias de algodão brancas, e d'uns sapatos
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