Lendas e Narrativas (Tomo II) - 08

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uma nacionalidade mais rapidamente que todos os outros elementos
que tendem a compôr as nações. Considerae as cruzadas; essa multidão
de homens nascidos em paizes diversos, entre os quaes não ha nenhuma
communidade de interesses, antes muitas vezes odios sangrentos e
fundos. Lá na Asia, em frente do islamismo, formam um só povo;
são irmãos, porque ajoelham todos ante o mesmo altar; combatem
todos pela mesma idéa religiosa. Olhae para os mussulmanos: vêde
o koran agglomerando, assimilando o beduino e o egypcio, o alarve
do Atlas e o negro de El-Sudan. Onde quer que um pensamento grande
precisa de toda a energia de uma unidade social para se desenvolver
e realisar, lá haveis de encontrar a religião produzindo essa
energia.
Se isto é assim, qual culto, entre os de todas as parcialidades
christans, será mais efficaz em gerar essa unidade forte do amor
patrio, que dá, não tanto a vida activa e exterior, como uma vida
intima, escondida, tenaz, que resiste á morte e á dissolução social?
Serão essas mil variações do protestantismo, que diariamente se
vão subdividindo, e condemnando umas pelas outras; essas crenças
incertas, em que o filho já despreza o culto que o pae seguiu, e
o neto desprezara o de ambos? Quando e onde, não dizemos na mesma
cidade e na mesma rua, mas na mesma familia, em quanto o marido
dorme ao som monotono do sermão anglicano, sublime de trivialidade
e tedio, a mulher dá representações de Bedlam[1] n'uma senzala de
quakers ou de methodistas, póde-se acaso dizer que ahi a religião
é laço que impeça a morte do corpo da republica, não nos dias de
ventura e prosperidade exterior, em que é facil conservar pelo
orgulho a unidade nacional, mas nas epochas de calamidade e
decadencia? Parece-nos pouco provavel. Ahi, as prisões moraes
da familia são apenas habitos humanos, e não estão harmonisadas
e sanctificadas por se prenderem no céu: o primeiro sopro das
paixões ou da desventura as reduzirá a pó. A historia tambem
no-lo diz, e a historia não é senão a prophecia do futuro.
O protestantismo accusa o catholicismo de se haver afastado da
pureza christan antiga, e gaba-se de ter revocado o christianismo
ás suas tradições primitivas. O discutir tal materia, em relação
ás doutrinas, fôra insensato: os tempos dessa argumentação
consummaram-se; tudo por este lado está dicto de parte a parte.
Quanto, porém, ás formulas exteriores do nosso culto, são essas que
ainda hoje attrahem os insulsos motejos da imprensa protestante;
é o culto catholico principalmente que dá origem áquellas graças
inglezas, tão agudas como a intelligencia dos habitantes do
_Bethnal-Green_ de Londres ou do _Winds_ de Glasgow, embrutecidos
pela fome, pela embriaguez e pela immundicie; tão brilhantes e
leves como o fumo de carvão de pedra, que constitue a atmosphera
britannica. Diariamente são accommettidas as duas nações das
Hespanhas nos seus habitos religiosos por homens que empregariam
melhor o tempo em estudar os cancros asquerosos que devoram moral
e materialmente a classe popular no seu proprio paiz, e em pedir
á riqueza, só poderosa, só respeitada, só insolente, mais alguma
caridade para com os muitos milhões dos seus compatricios, que
lidam, cheios de fome e de frio, cubertos de farrapos e vermes,
para accumularem aos pés de bem poucos homens as fortunas
incalculaveis e quasi fabulosas que alimentam o luxo desenfreado
de Londres, da Roma, ou antes da Babilonia moderna.
Por certo que no culto catholico se tem introduzido abusos, e
para isso contribue muitas vezes o proprio clero, menos instruido,
menos bem educado, moralmente, que o clero anglicano. Mas em que
é culpado o culto da pouca instrucção dos seus ministros, e dessa
falta de educação moral, que diversas causas, alheias á religião,
têm trazido e trazem ainda? É a igreja que recommenda a ignorancia?
São os abusos consequencias logicas das doutrinas catholicas? Eis
o que cumpriria se provasse, como não é difficultoso mostrar,
que o protestantismo, querendo annullar as pompas e espectaculos,
as formulas externas e brilhantes do catholicismo, matou tudo
o que a crença do Calvario tinha de uncção, de consolações, de
affectos para o commum dos seus sectarios, e converteu a religião
n'uma certa metaphysica nevoenta, que foge á comprehensão das almas
rudes e vulgares, quebrando todos os esteios, a que nesta vida de
tristezas e dores ellas se encostavam para confiarem no céu, e
consolarem-se na esperança; porque esses arrimos, necessarios á
sua fraqueza intellectual, eram o unico meio de subirem até o throno
de Deus, e descerem de lá armadas de resignação para continuarem
a luctar com as tempestades da existencia. O protestantismo foi
só feito para os ditosos e abastados da terra!
Vêde aquella casinha, tão humilde e só, no meio de um descampado.
Lá, sobre camilha dura e rota, delira em accesso febril um filho,
unico amparo da mãe idosa, que véla chorando ao pé delle. Na
sua solidão e miseria nenhuns soccorros humanos póde esperar
a pobre velha, cujas mãos trémulas em vão tentam conchegar as
roupas, que o febricitante arroja, murmurando afflicto com o
ardor que o devora. Uma lampada de ferro, que allumia frouxa o
aposento, arde no canto opposto diante de uma grosseira e affumada
imagem da Virgem. A triste mãe volve para lá os olhos embaciados
da idade e das lagrymas, e sente que não se acha inteiramente
abandonada. Alli está outra mãe que tambem derramou pranto por
um filho; pranto mil e mil vezes mais amargoso que o seu. Ella
ha-de comprehender-lhe a afflicção e valer-lhe, porque é boa, e
poderosa ante Deus. Ei-la, a pobre velha, que trôpega se arrasta,
e ajoelha aos pés da imagem, e cruza as mãos enrugadas, e ora;
ora com fé viva. Na procella de terrores que a cercam começa a
bruxulear uma luz de esperança: espera, porque crê na possibilidade
da intercessão e dos milagres; e anima-se, e a tempestade da
sua alma asserena-se, e a dor mitiga-se, porque, no meio das
lagrymas e das resas, ella pensa lá comsigo que aquella imagem
trouxe já muitas consolações a seus paes, a ella mesma, e a toda a
familia, e que a Virgem Sanctissima ha-de acudir-lhe ao seu filho,
que desde pequenino gostava de ir apanhar as flores campestres
para enfeitar a Senhora, e que tantas vezes á noite antes de se
deitar ía pôr-se de joelhos alli onde ella estava, e resar uma
salve-rainha. E quantas vezes, depois destas orações ardentes, volve
Deus olhos compassivos para a morada da miseria e da amargura, e
obra, não um milagre inutil, mas o beneficio que faria qualquer
medico, se na habitação solitaria houvesse a possibilidade de
se buscarem os soccorros da sciencia humana!
Dirá o protestantismo que isto é idolatria? Que! Ignora, acaso,
o mais grosseiro catholico que acima dessa imagem está o espirito
puro que ella representa, e que acima desse espirito está Deus? O
catholicismo no seu culto das imagens, nas suas festas, nas suas
_visualidades_, como vós lhes chamaes, commetteu o grave erro de suppôr
que a maioria do genero humano não era composta de philosophos, nem
capaz de um espiritualismo absoluto; de abstrahir inteiramente das
cousas sensiveis para remontar ao céu. O catholicismo lembrou-se
das doutrinas do Christo; accommodou-se á curta comprehensão
dos pequenos e humildes. Vós tendes um evangelho mais fidalgo
e altivo. O protestantismo convem por isso ao Reino-Unido, onde
os quatrocentos mil senhores do solo são tudo, e são nada quinze
ou vinte milhões de servos de gleba e de mendigos.
E como deixaria elle de ser exclusivo, aristocratico, orgulhoso? Essa
crença, ou antes essa infinidade de crenças, unidas só em guerrear
a igreja de dezoito seculos, e que no dia em que lhes faltasse o
inimigo commum se despedaçariam mutuamente, não podem deixar de
viver de um mysticismo perfumado, de um culto inintelligivel para
o povo. Desde que a reforma substituiu á auctoridade e á tradição
a sciencia humana, o raciocinio e a discussão, saíu do templo para
a eschola; transformou-se de fé em theoria. Então o christianismo
deixou de ser uma cousa practica e positiva para todos os homens:
os espiritos grosseiros e ignorantes acceitaram-n'o como um costume
que acharam no mundo, sem affecto nem má vontade, e as imaginações
desregradas fizeram cada qual uma religião a seu modo. Deram uma
biblia ao ganhapão, ao porcariço, ao belforinheiro, e por esse
facto constituiram-n'o theologo, sancto-padre, e até concilio.
Creram ter estendido ao genero-humano a maravilha das linguas de
fogo que desciam sobre os apostolos, e ficaram muito contentes
de si. As multidões é que ficaram tristes e desconsoladas, porque
tinham desapparecido de redor dellas todos os symbolos, todas as
imagens, que lhes serviam como de marcos miliarios para buscarem
a Deus.
Affigurae-vos, de feito, o exemplo da mãe idosa e miseravel,
que vê em transes mortaes o filho, seu unico abrigo; buscae este
exemplo ou outro qualquer, porque entre os pequenos não são raras
nem pouco variadas as occasiões de asperos infortunios. Lançae-a
no seio do protestantismo. Qual refugio lhe offerecerá a religião;
refugio immediato, solido, esperançoso? A biblia? Tambem nós
sabemos que thesouros encerra a biblia: tambem nós sabemos quantas
vezes as suas paginas divinas têm feito dilatar em torrentes de
lagrymas as negras aperturas do coração: tambem nós sabemos que
dessa fonte inexhaurivel mana a resignação e a paz: a igreja
catholica sabia-o muitos seculos antes de vós existirdes. Mas
quem vos assegura que a pobre velha achará a passagem analoga
á sua situação; que encontrará nas palavras do livro sacrosanto
o conforto de que carece, e a esperança do soccorro immediato e
sobre-humano de que não menos precisa? Quem vos assegura, emfim,
que ella saberá ler? Ou é que no paiz dos quakers a inspiração
tambem faz de mestre-eschola, como exercita o mister de mestre
de theologia?
E depois, não sabeis que a dor moral do homem do povo tem gemidos
e queixumes; é estrepitosa, delirante, sincera? que não se reporta,
não se esconde, e vem ao gesto, aos meneios, aos olhos, á voz,
como a dor physica! Julgae-la acaso semelhante ao _spleen_ do dandy,
ou ao devorar intimo e calado das almas, a quem a educação e a
sciencia ensinaram a dignidade das grandes agonias? Estes taes,
exteriormente tranquillos, podem encostar-se ao braço, fitar
os olhos no livro aberto ante si, e aspirar naquellas paginas
sublimes e profundas o halito consolador que dellas espira. Mas
para o homem do povo, quasi primitivo, quasi selvagem, cujos
olhos nadam em pranto, e que se estorce e brada flagellado pela
afflicção, a biblia é nesses instantes inutil, porque é impossivel.
Deixae-lhe a imagem do sancto, o crucifixo, o voto, o altar
domestico, a lampada accesa ante o vulto do martyr ou da Virgem:
deixae-lhe o ajoelhar, o gemer, o resar, o fazer promessas. Deixae
os symbolos materiaes da confiança na providencia á imbecilidade
da natureza humana, aliás, crendo anniquilar a superstição e a
idolatria, não fareis senão matar a vida moral e religiosa do
povo.
Se nos dias, desgraçadamente mui communs, das máguas extremas só
o catholicismo tem conforto para o homem rude, nos de contentamento
só o catholicismo tem festas que convertam para a gratidão e
para Deus o seu goso interior, que tende a trasbordar em risos
e folgares. O simples repouso do domingo, para o que, condemnado
a lavor indefesso durante a semana inteira, compra á custa de
suor e cansaço um pouco de pão duro e grosseiro, é uma alegria
semelhante á do preso, que, adormecendo em ferros, despertasse
livre. Aquelle coração precisa de dilatar-se, aquelles sentidos
de recrearem-se, aquelle espirito murcho e triste de se tornar
viçoso, de desabrochar de novo ao sol da vida, ao menos n'alguns
desses dias reservados ao descanço. É então que o catholicismo
lhe offerece as pompas das suas solemnidades; o templo illuminado,
os canticos dos sacerdotes, as harmonias do orgão, o espectaculo
brilhante das vestes sacerdotaes e dos adornos do altar, os
ramilhetes povoando os degraus do sanctuario, ou juncando o
pavimento, o incenso embalsamando a atmosphera. E como tudo isto
é para as multidões, o culto trasborda do estreito recincto e
derrama-se pelas ruas, pelas praças, pelos campos em procissões,
em cirios, em romarias, e o povo fluctua, folga, resa, tripudia,
esquece-se dos seus destinos de miseria e trabalho, ama a religião
que o consola, e voltando ás suas habituaes fadigas, leva para o
meio dellas a saudade do dia-sancto e as recordações affectuosas
da igreja.
E o protestantismo? O protestantismo despedaçou os vultos dos
sanctos, prohihiu os oragos, as procissões e as romagens: esfarrapou
alvas, casulas, amictos, pluviaes; apagou as luzes; varreu as
flores; assoprou o incenso. Fechou-se na celebração do domingo;
e fez bem! bem ao povo, a quem para tedio e tristeza, nos paizes
protestantes, sobeja o domingo. E porque fez elle isto? Foi porque
essas cousas eram superstições papistas: as imagens idolatria,
a agua benta agua lustral, as vestes sacerdotaes indecencias
ridiculas, as ceremonias visagens, a missa mentira. Passagens
de biblia e compridos sermões ficaram bastando ao culto externo,
e se alguma cousa deixaram ainda a este, poetica e attractiva,
foi o canto dos psalmos e as harmonias do orgão; porque, como
todos sabem, nas agapas dos christãos primitivos cantavam-se os
psalmos ao som do orgão!! Os protestantes são indubitavelmente
antiquarios eruditos, mas, sobretudo, logicos.
Qual foi o resultado desta reformação insensata de instituições
antigas e venerandas? Foi que o culto se tornou n'um habito machinal,
n'uma acção que se practíca na impossibilidade de se practicar
outra. A policia vigia sobre isso. Deixe ella ao domingo abrir as
lojas, os passeios, os estabelecimentos publicos, os espectaculos,
as fabricas e as officinas; deixe correr nas veias do corpo social
o sangue comprimido, e os templos dos districtos d'Inglaterra mais
fervorosos no protestantismo ficarão tão ermos como as igrejas da
Irlanda, onde o reitor préga ao sacrista o suado sermão, que ha-de
um dia, impresso, allumiar o mundo, emquanto o seu recalcitrante
rebanho, á porta do presbyterio solitario, ouve ajoelhado na rua
a missa que em altar portatil lhe diz o pobre clerigo catholico,
verdadeiro e legitimo pastor, a quem incumbe o consola-los, bem
como ao parocho protestante pertence... o que? Fazer predicas
ás paredes, e comer os dizimos, sacramento, que, de certo, o
puritanismo protestante achou n'algum alfarrabio velho ter sido
instituido por Christo!
Temos ouvido lamentar ás pessoas de boa fé excessiva, destas
que estudam as nações nas apparencias, e não na vida intima,
que o catholicismo não tome entre nós a severidade e decencia
exterior do culto anglicano; que o dia consagrado ao Senhor não
seja guardado pontualmente; que as nossas igrejas não offereçam
na celebração dos officios divinos a gravidade, o silencio, a
ordem, o aceio de um templo protestante, nas horas destinadas
á oração. No estado actual das sociedades, em que o fervor dos
primeiros tempos christãos tem esfriado, em que, tanto entre
catholicos como entre protestantes, a religião deixou de ser o
primeiro, ou, ao menos, o exclusivo negocio dos homens, o que
elles desejam seria impossivel, e se absolutamente um bem,
relativamente um grande mal; porque as causas que facilitam esse
estado de cousas em Inglaterra são a prova mais clara da morte,
se não de uma certa religião vaga, em que os espiritos mais
cultivados se alevantam até ao pé do throno de Deus, ao menos
da religião positiva, practica, definida, morta e enterrada ha
muito na mina de carvão de pedra chamada Gran-Bretanha.
Já dissemos que não é tanto o sentimento religioso que guarda em
Inglaterra a decencia do culto, como a admiravel policia ingleza.
Quem não o sabe? Quem ignora que naquelle paiz a religião tem a
natureza de outra qualquer formula material da sociedade; que
é uma cousa como o regimento, a nau de guerra, o _workhouse_? Ao
christão um vigario, uma biblia, e a cadeia se perturbar o officio
divino; ao soldado um coronel, uma espingarda, e uns açoutes se
mecher a cabeça na fórma; ao marinheiro um commodóro, um posto
juncto da amurada, e um mergulho por baixo da quilha se offender
a disciplina; ao miseravel que vae cahir no workhouse um director
implacavel, uma atafona, e ração curta para aprender a deixar-se
estalar á mingua sem pedir esmola. A cada instituição suas condições,
sua sancção penal, seus destinos: o regimento serve para provar
aos chartistas que a melhor organisação politica possivel é a
que faz morrer annualmente milhares de obreiros de fadiga, de
fome, e de febres putridas sobre uma pouca de palha fetida e
humida, no fundo de subterraneos; a nau serve para civilisar
a India pelas contribuições, e moralisar a China pelo opio; o
workhouse serve para curar radicalmente os que não têm nem pão nem
camisa, do vicio infame da mendicidade; emfim a igreja dominante
_(established church)_ serve para sustentar de dizimos muitas familias
honradas com as modestas e reformadas prebendas anglicanas, entre
as quaes nenhuma excede a vinte mil libras esterlinas _per annum_,
ou, em moeda portugueza, a obra de uns mesquinhos duzentos mil
cruzados.
O templo catholico é commummente o symbolo da completa igualdade:
lá não ha distincções, senão para os ministros do culto; e quando o
orgulho humano, que forceja sempre por invadir ainda as cousas mais
sagradas, vae ahi profanamente estender o tapete aristocratico, e
collocar sentinellas, o povo murmura, e murmura em voz alta; porque
sabe que na sociedade christan só ha um Grande e Poderoso, que é
Deus. Os nossos habitos, as nossas idéas são que o mais commodo, o
mais distincto logar no templo pertence ao que primeiro o occupou.
O catholicismo entendeu que diante da magestade do Creador os
vermes cobertos de brocado não o são menos que os vermes cobertos
de farrapos. Assim o vulgo dos fiéis precipita-se como torrente
através dos umbraes da igreja; estrepita nas lageas do pavimento
com os seus sapatos ferrados; roça com o burel grosseiro as finas
sedas dos nobres e abastados; afasta com as mãos callosas os
grupos alindados dos peralvilhos; esquece-se, emfim, dos respeitos
humanos, que se guardam, e devem guardar, cá fóra. Como, pois,
obter a ordem, as attenções, o silencio? O nosso povo é rude
e mal educado (não o gabâmos por isso; mas o vulgacho inglez
leva-lhe, em bruteza, incomparavel vantagem); o nosso povo conserva
dentro do templo os habitos ruidosos, inquietos, grosseiros da
praça publica. E poderia elle despi-los de subito ao entrar na
casa de Deus? Prova acaso o borborinho, que ahi sôa, desprezo
pela religião? Examinae os que parecem estar com menos respeito
e decencia; os que falam e se agitam: são aquelles entre os quaes
o christianismo iria achar os seus martyres, se viessem de novo os
tempos em que a crença do Crucificado precisava de ser revalidada
pelo sangue dos seguidores da cruz. Que esses pobres tontos, que
nos motejam sem nos conhecerem, venham estudar o catholicismo
portuguez, se d'isso são capazes, e saberão se nós falâmos verdade.
Nestas consequencias, tão logicas, tão rigorosas do caracter
primitivo da religião christan, e do estado das classes inferiores
da sociedade, poz cobro a igreja anglicana. É verdade que
Jesu-Christo, segundo o Evangelho, _na traducção vulgata_, chamou
principalmente os pobres e humildes; e se no templo ha quem valha
mais que outrem, não são por certo aquelles que o Filho de Deus
achava mais anchos para entrarem no reino dos céus, do que um
camello para entrar no fundo de uma agulha. A igreja reformada
entendeu provavelmente que outra era a interpretação do Evangelho;
porque é corrente que os catholicos nunca souberam grego, desde S.
Jeronymo até Angelo Policiano, ou Ayres Barbosa, para o poderem
interpretar bem. Assim, em Inglaterra, aquellas tão formosas e
vastas cathedraes da idade média, a que só falta um culto poetico
e consolador para serem sublimes, repartiram-se em camarotes de
theatro, fechados á chave, e alguns até com todos os requisitos
desse _comfort_, que só os inglezes conhecem bem. As jerarchias
do dinheiro e do sangue estão lá rigorosamente guardadas: pelo
logar dos stallos, e pelo seu luxo, os espiritos habituados á
topographia da _Church_ podem orçar o numero d'avós ou os milhares
de libras que possue cada filho da igreja anglicana: o commum
dos villãos, empurrados para ao pé da porta, lá perdem em parte
os deliciosos periodos do sermão do reitor, encarregado de
acalentar... queremos dizer de conservar puros na fé averiguada
e decretada pela grande theologa chamada a rainha Isabel, os
seus _dizimados_ freguezes.
E o vulgo? Os homens do trabalho, da fome, dos farrapos? Os tres
quartos da população ingleza? Esses? Esses lá têm o templo da
esperança e do consolo: lá tem o _gin's palace_ (palacio da genebra),
a taberna. Na sua incrivel miseria, os homens que não podem encontrar
Deus, porque a igreja anglicana lh'o collocou n'uma atmosphera
nebulosa, onde o não descortinam; porque o templo os repelle;
porque o _priest_ com seu aristocratico, polido e perfumado sermão,
não póde substituir a entidade exclusivamente catholica chamada o
missionario, sublime de persuasão, de energia e de virgem rudeza;
os miseraveis, dizemos, atiram-se desorientados aos braços da
embriaguez, porque a embriaguez tem o esquecimento, tem a sua
horrivel alegria. Lá, no _gin's shop_, estendendo o braço cadaverico
e vacillante para a destruidora bebida, sorvendo-a com phrenesi,
essa especie de brutos com fórma humana resumem no seu aspecto
e meneios, e na decadencia de todos os sentimentos de pudor,
as ultimas consequencias moraes do protestantismo.
Que nos seja permittido citar as proprias palavras de um escriptor
moderno[2], que, melhor talvez que ninguem, pintou o estado presente
das ultimas classes em Inglaterra, e que em todos os factos que
narra se funda ou nas proprias observações, ou nos documentos
officiaes publicados pelo governo inglez. Perfeitamente imparcial
a respeito da Gran-Bretanha, o seu testemunho é o que mais a
proposito podemos neste ponto invocar.
"A seriedade e o silencio com que este licôr ardente (a genebra)
é tragado, fazem arripiar. É como se o povo assistisse a um officio
divino. Consummado o sacrificio, vão-se assentando no banco de
madeira corrido em frente do balcão, e alli ficam quedos, mudos,
como arrebatados em ineffavel extasi. Depois, passados alguns
minutos, voltam ao balcão, tornam a beber, e repetem até se lhes
acabar o dinheiro. Vae-se assim a ultima mealha. E têm animo
de affrontarem o morrer de fome, elles e seus filhos, para se
embriagarem. Provou-se pelos inqueritos feitos por causa da lei
dos pobres, que as esmolas em dinheiro, dadas pelas parochias,
íam cahir inteiras na taberna, e só aproveitavam ao taberneiro.
_A povoação infima da Inglaterra está de tal modo atolada no seu
lodaçal, que não ha ahi caridade que possa desempega-la._"
"Sabem todos quão rigoroso preceito ecclesiastico e civil é o
guardar o domingo em Inglaterra. A unica excepção da regra é a
taberna. Lojas, tudo fechado; logares de honesto ou instructivo
recreio, como hortos botanicos e museus, o mesmo. Só o _gin's shop_
se abrirá de par em par a quem empurrar a porta com o pé. O caso
está em que pareça cerrada: duas meias portas solidas, que se fechem
por si, fazem a festa: janellas fechadas: dentro lusco-fusco,
como em sanctuario, e até sua luz de gaz. Tomadas estas cautelas,
plena licença, licença auctorisada para se venderem bebidas todo
o dia sem lhe faltar hora. E é neste paiz que os caminhos de
ferro estão devolutos por todo o tempo do officio divino, em
honra do domingo! Emquanto, em Manchester, eu me espantava das
largas que se davam ás tabernas, apresentava-se á camara dos
Lords um bill para prohibir o transporte das mercadorias pelos
canaes no sagrado dia do domingo! Nesta cidade de Manchester ha
jardins zoologicos e botanicos, que o povo frequenta gostoso; mas
não se obtem da pontualidade anglicana que estejam patentes no dia
sancto; e os bispos, tão escrupulosos no mais, são indifferentes
pelo que toca aos _gin's shops_, abertos publicamente e frequentados
ao domingo. Não é singular que a cousa unica permittida ao povo
seja o embriagar-se?"
Não!--diriamos nós ao auctor do excellente livro que havemos
citado.--O governo e a igreja da Gran-Bretanha sabem que entre a
horrivel miseria das classes laboriosas, a embriaguez e o suicidio
não ha uma quarta cousa para suavisar a agonia dos tractos que a
primeira dá ao homem do povo. A religião, que falava aos sentidos
do vulgacho, e por meio delles ao seu espirito, mataram-n'a;
e como a morte não tem remedio, o protestantismo, creança de
dous dias, mas já sem vigor e esfalfada, encommenda á religião
das pipas o salvar os malaventurados obreiros, não do suicidio
moral, mas ao menos do physico.
Dir-se-ha que o povo não está entre nós n'uma situação analoga á
do povo inglez, para o catholicismo ser posto á prova? Felizmente
isso é verdade. Mas já houve tempos quasi semelhantes, posto que
ainda inferiores em terribilidade, aos que vão correndo para
a gente miuda de Inglaterra. Era quando a peste devastava as
nossas cidades e ermava os nossos campos, levando-nos ás vezes
mais de um terço da população. Ahi existem innumeraveis monumentos
dessas epochas desastrosas: que appareça um só por onde se prove
que o desalento popular buscasse conforto no vinho e aguardente.
Pois, cá, o remedio não era caro! O que achâmos são as preces,
as romarias, as procissões, as lagrymas, os votos, o sentimento
exaltado da confiança e da resignação na Providencia. Achâmos
a pequena differença que vae de um christão a um bruto.
"E os irlandezes?"--Oh, bem sabemos que os irlandezes, catholicos
como nós, na sua miseria monstruosa têm cahido, se é possivel,
ainda mais fundo que os inglezes. Mas, em rigor, esses catholicos
na intenção e na crença podem acaso sê-lo no culto que aviventa o
espirito? Onde lhes deixou o protestantismo os seus templos, os
seus sacerdotes, os seus costumes religiosos? O vulgacho irlandez
é o argumento mais dolorosamente persuasivo da necessidade dessas
festas, dessas alegrias, dessas fórmas materiaes do culto. Sem ellas,
o catholico miseravel embrutece-se como o miseravel protestante;
e o seu embrutecimento vem, por outra parte, recordar-nos de
que não é possivel achar um nome, que qualifique devidamente o
descaro com que o anglicanismo, inquisidor implacavel e tenaz
de tres seculos, nos lança em rosto as trinta mil verdades e
as sessenta mil mentiras, que, com justissimo horror, se relatam
da Inquisição.
Eis o que nós podemos responder aos insulsos dicterios com que é
diariamente vilipendiado o catholicismo portuguez: e não dizemos
tudo; não dizemos metade. Quanto aos motejos que nos dirigem como
nação pobre, pequena, fraca, isso não passa de uma covardia,
que só deshonra a quem a practíca. Trabalhemos por levantar-nos
da nossa decadencia. Será essa a mais triumphante resposta.
E com estas deambulações de patriotismo religioso saltámos a
pés junctos pela historia do padre prior. No capitulo seguinte
daremos satisfação plena ao pio e benigno leitor.
* * * * *
[1] Bedlam, como a maior parte dos leitores sabem, é
o mais famoso hospital de doudos em Inglaterra.
[2] Buret, _De la misère des classes laborieuses_ (1842),
Liv. 2. cap. 4.

VI
BARTHOLOMEU DA VENTOSA.

A quem não tem succedido nas horas de solidão, no silencio da
noite em que não póde dormir, ou no pino de dia calmoso, ao
atravessar o bosque cerrado e sombrio, onde só se ouve o zumbir
e o ferver dos insectos; a quem não tem succedido engolfar-se
n'uma vaga meditação, e, por assim dizer, tombar de pensamentos
em pensamentos, presos por fio tão tenue, tão imperceptivel para
a consciencia, que, depois dessa especie de devaneio, pretender
remontar da ultima á primeira idéa seria baldado empenho, por
falta de transições naturaes e logicas? E todavia, a alma, que,
nessa situação, como que perde o sentimento da vida externa lá
achou, no seu incessante cogitar, uma ponte invisivel para transpôr
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