Lendas e Narrativas (Tomo II) - 04

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de armas voou a soccorre-lo; mas o ultimo golpe d'Almoleimar
fôra o brado da sepultura para o fronteiro de Béja: os ossos do
hombro do bom velho estavam como triturados, e as carnes rasgadas
pendiam-lhe para um e outro lado involtas nas malhas descosidas
do lorigão.

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Entretanto os mouros íam de vencida: Mem Moniz, D. Ligel, Godinho
Fafes, Gomes Mendes Gedeão, e os outros cavalleiros daquella
lustrosa companhia tinham practicado maravilhosas façanhas. Mas
entre todos tornava-se notavel o Espadeiro. Com um pesado montante
nas mãos, cuberto de pó, suor e sangue, pelejava a pé; que o
seu agigantado ginete cahíra morto de muitos tiros de frecha e
lançadas. De roda delle não se viam senão cadaveres e membros
destroncados, por cima dos quaes trepavam, para logo recuarem
ou baquearem no chão, os mais ousados cavalleiros arabes. Como
um promontorio de escarpados alcantis, Lourenço Viegas estava
immovel e sobranceiro no meio do embate daquellas vagas de
pelejadores, que vinham desfazer-se contra o terrivel montante
do filho de Egas Moniz.
Quando o Fronteiro cahiu, o grosso dos mouros fugia já para alem
do pinhal; mas os mais valentes pelejavam ainda á roda do seu
capitão mal ferido. O Lidador tinha sido posto em cima d'umas andas,
feitas de troncos e franças de arvores; e quatro escudeiros, que
restavam vivos dos dez que comsigo trouxera, o haviam transportado
para a caga da cavalgada. O tinir dos golpes era já mui frouxo,
e sumia-se no som dos gemidos, pragas, e lamentos, que soltavam
os feridos derramados pela veiga ensanguentada. Se os mouros,
porém, levavam, fugindo, vergonha e damno, a victoria não saíra
barata aos portuguezes. Viam perigosamente ferido o seu velho
capitão, e tinham perdido alguns cavalleiros de conta, e a maior
parte dos homens de armas, escudeiros e pagens.
Foi n'este ponto, que ao longe se viu erguer uma nuvem de pó,
que voava rapida para o logar da peleja: mais perto, aquelle
turbilhão rareou, vomitando do seio um basto esquadrão de arabes;
os mouros que fugiam, deram volta e gritaram:
"Ali-Abu-Hassan! Só Deus é Deus, e Mohammed o seu propheta!"
Era, com effeito, Ali-Abu-Hassan, rei de Tangere, que estava
com seu exercito sobre Mertola, e que viera com mil cavalleiros
em soccorro de Almoleimar.

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Cansados do largo combater, reduzidos a menos de metade em numero,
e cubertos de feridas, os cavalleiros de Christo invocaram o seu
nome, e fizeram o signal da cruz. O Lidador perguntou com voz
fraca a um pagem, que estava ao pé das andas, que nova revolta
era aquella.
"Os mouros foram soccorridos por um grosso esquadrão:--respondeu
tristemente o pagem.--A Virgem Maria nos acuda, que os senhores
cavalleiros parece recuarem já."
O Lidador cerrou os dentes com força, e levou a mão á cincta.
Buscava a sua boa toledana.
"Pagem, quero um cavallo. Onde está a minha espada?
"Aqui a tenho, senhor. Mas estaes tão quebrado de forças!...."
"Silencio! A espada, e um bom ginete."
O pagem deu-lhe a espada, e foi pelo campo buscar um ginete,
dos muitos que andavam já sem dono. Quando voltou com elle, o
Lidador, pallido e cuberto de sangue, estava em pé, e dizia,
falando comsigo:
"Por Sanctiago, que não morrerei como villão de Behetria, onde
entrou cavalgada de mouros!"
E o pagem ajudou-o a montar a cavallo.
Ei-lo vae o velho Fronteiro de Béja! Semelhava um espectro erguido
de pouco em campo de finados: debaixo de muitos pannos involtos
no braço e hombro esquerdo levava a propria morte; nos fios da
espada, que a mão direita mal sustinha, levava porventura ainda
a morte de muitos outros!

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Para onde mais travada e accesa andava a peleja se encaminhou
o Lidador. Os christãos affrouxavam diante daquella multidão
d'infiéis, entre os quaes mal se enxergavam as cruzes vermelhas
pintadas nas cimeiras dos portuguezes. Dous cavalleiros, porém, com
vulto feroz, os olhos turvados de colera, e as armaduras crivadas
de golpes, sustinham todo o peso da batalha. Eram estes o Espadeiro
e Mem Moniz. Quando o Fronteiro assim os viu offerecidos a certa
morte, algumas lagrymas lhe cahiram pelas faces, e esporeando
o ginete, com a espada erguida abriu caminho por entre infiéis
e christãos, e chegou aonde os dous, cada um com seu montante
nas mãos, faziam larga praça no meio dos inimigos.
"Bem vindo, Gonçalo Mendes!--disse Mem Moniz.--Quizeste assistir
comnosco a esta festa de morte? Vergonha era, de feito, que
estivesses fazendo teu passamento, com todo o repouso, deitado
lá na çaga, em quanto eu, velha dona, espreito os mouros com
meu sobrinho juncto desta lareira...."
"Implacaveis sois vós outros, cavalleiros de Riba-Douro,"--respondeu
o Lidador em voz sumida,--"que não perdoaes uma palavra sem malicia.
Lembra-te Mem Moniz de que bem depressa estaremos todos diante
do justo juiz."
"Velhos sois; bem o mostraes!"--acudiu o Espadeiro.--"Não cureis de
vans porfias, mas de morrer como valentes. Demos nestes perros,
que não ousam chegar-se a nós. Ávante, e Sanctiago!"
"Ávante, e Sanctiago!"--responderam Gonçalo Mendes e Mem Moniz:
e os tres cavalleiros deram rijamente nos mouros.

8
Quem hoje ouvir recontar os bravos golpes que no mez de Julho
de 1170 se deram na veiga da frontaria de Béja, nota-los-ha de
fabulas sonhadas; porque nós homens corruptos e enfraquecidos
por ocios e prazeres de vida afeminada, medimos por nosso animo
e forças as forças e o animo dos bons cavalleiros portuguezes
do seculo doze; e todavia esses golpes ainda soam através das
eras nas tradições e chronicas, tanto christans como agarenas.
Depois de deixar assignadas muitas armaduras mouriscas, o Lidador
vibrára pela ultima vez a espada, e abríra o elmo e o craneo
de um cavalleiro arabe. O violento abalo que soffreu, fez-lhe
rebentar em torrentes o sangue da ferida, que recebêra das mãos de
Almoleimar, e cerrando os olhos, cahiu morto ao pé do Espadeiro,
de Mem Moniz, e de Affonso Hermigues de Bayão, que com elles se
ajunctára. Repousou finalmente Gonçalo Mendes da Maia de oitenta
annos de combates!
Já a este tempo christãos e mouros se haviam descido dos cavallos,
e pelejavam a pé. Traziam-se assim á vontade, e recrescia a crueza
da batalha. Entre os cavalleiros de Béja espalhou-se logo a nova da
morte do seu capitão, e não houve ahi olhos que ficassem enxutos.
O despeito do proprio Mem Moniz deu logar á dor, e o velho de
Riba-Douro exclamou entre soluços:
"Gonçalo Mendes, és morto! Nós todos quantos aqui somos, não
tardará que te sigamos; mas ao menos, nem tu nem nós ficaremos
sem vingança!"
"Vingança!"--bradou o Espadeiro, com voz rouca, e rangendo os
dentes. Deu alguns passos, e viu-se o seu montante reluzir como
uma centelha em céu procelloso.
Era Ali-Abu-Hassan: Lourenço Viegas o conhecêra pelo timbre real
do morrião.

9
Se já vivestes vida de combates em cidade sitiada, tereis visto
muitas vezes um vulto negro, que em linha diagonal corta os ares,
sussurrando e gemendo. Rapido, como um pensamento criminoso em
alma honesta, elle chegou das nuvens á terra, antes que vos
lembrasseis do seu nome. Se encontrou na passagem angulo de torre
secular, o marmore converte-se em pó; se atravessou pelas ramas
de arvore basta e frondosa, a folha mais virente e fragil, o
raminho mais tenro é dividido, como se com cutelo subtilissimo
mão de homem lhe houvera cerceado attentamente uma parte: e,
todavia, não é um ferro açacalado: é um globo de ferro; é a bomba,
que passa, como a maldicção de Deus. Depois, debaixo della o
chão achata-se, e a terra espadana aos ares; e como agitada,
despedaçada por cem mil demonios, aquella machina do inferno
estoura, e de roda della ha um zumbir sinistro: são mil fragmentos;
são mil mortes que se derramam ao longe. Então faz-se um grande
silencio, e após o silencio vêem-se corpos destroncados, poças
de sangue, arcabuzes quebrados, e ouve-se o gemer dos feridos
e o estertor de moribundos....
Tal desceu o montante do Espadeiro, bôto já de milhares de golpes,
que o cavalleiro tinha descarregado. O elmo de Ali-Abu-Hassan
faiscou, voando em pedaços pelos ares, e o ferro christão,
esmigalhando o craneo do infiél, abriu-o até os dentes.
Ali-Abu-Hassan cahiu.
"Lidador! Lidador!"--disse Lourenço Viegas, com voz comprimida.
As lagrymas misturavam-se-lhe nas faces com o suor, o pó, e o
sangue do agareno, de que ficou coberto. Não pôde dizer mais
nada.
Tão espantoso golpe aterrou os mouros: os portuguezes seriam já
apenas sessenta entre cavalleiros e homens d'armas; mas pelejavam
como desesperados, e resolvidos a morrer. Mais de mil inimigos
juncavam o campo de involta com os christãos. A morte de
Ali-Abu-Hassan foi o signal da fugida.
Os portuguezes, senhores do campo, celebravam com prantos a victoria.
Poucos havia que não estivessem feridos; nenhum que não tivesse
as armas falsadas e rotas. O Lidador e os demais cavalleiros de
grande conta, que naquella jornada tinham acabado, atravessados em
cima de ginetes foram conduzidos a Béja. Após aquelle tristissimo
prestito íam os cavalleiros a passo lento, e um sacerdote templario,
que fôra na cavalgada, com a espada cheia de sangue mettida na
bainha, psalmeava em voz baixa aquellas palavras do livro da
Sabedoria:
"_Justorum autem animæ in manu Dei sunt, et non tanget illos tormentum
mortis._"
* * * * *


O PAROCHO DA ALDEIA
(1825)

PROLOGO.

Como a philosophia é triste e arida! Ás vezes, na primavera,
o vento norte atira-se pelas encostas, tombando dos visos da
serra, como se uma intelligencia vivesse n'elle, intelligencia
de maldade e destruição. De noite e de dia os troncos das arvores
torcem-se e gemem, as ramas açoutam-nos, e despedaçam-se involtas
nos braços longos e flexiveis da ventania: o demonio do septentrião
sibilla no meio dellas um zumbido entre de lamento e d'escarneo.
Debalde o bosque estende saudoso por um momento os seus mais altos
raminhos para o sol que se vae alevantando no oriente: a rajada
despega de novo da cumiada da montanha; o bosque curva-se para o
meio-dia; e galgando por cima daquellas mil frontes inclinadas
das plantas gigantes, das rainhas magestosas da vegetação, os
turbilhões da atmosphera agitada rolam pela planicie coberta
já de relva entresachada das primeiras florinhas. Então, relva
e florinhas murcham-se esmagadas pelas mãos da procella, que
tudo alcançam, fustigam e desbaratam. Os carvalhos frondosos e
as boninas rasteiras, com a fronte pendida para a terra, como
outros tantos symbolos do desalento, não ousam ergue-la para o
céu. É que, rugindo, a rajada cahe da montanha em perenne catadura.
Ás vezes, como por brinco infernal, o vento finge adormecer um
instante, e depois remoinha e apruma os topos das arvores e as
corolas das flores, mas é para logo as vergar com mais força,
e apupar com o silvo insolente aquella rapida esperança, que
se desvaneceu tão breve.
E quando o vento acalma é para saltar ao ponente ou ao sul. A
rajada já não silva da montanha: uma bafagem tepida vem da banda
do mar; mas o ceu está toldado e o ar humido: o dia passa
melancholico e pesado sobre a bonina que a nortada açoutou: ella
não pôde saudar o sol no oriente: está pendida e murcha como a
ventania a deixára. A noite vem encontra-la n'uma especie de
torpor, que é existir, mas que não é vegetar, e ainda menos viver.
Como a florinha do campo a alma por onde passou a procella da
philosophia, esse turbilhão transitorio de doutrinas, de systemas,
de opiniões, de argumentos, pende desanimada e triste; e na claridade
baça do septicismo, que torna pesada e fria a atmosphera da
intelligencia, não póde aquecer-se aos raios esplendidos do sol
de uma crença viva.
Com Kant o universo é uma duvida: com Locke é duvida o nosso
espirito: e n'um destes abysmos vem precipitar-se todas as
philosophias.
A arvore da sciencia, transplantada do Eden, trouxe comsigo a
dor, a condemnação e a morte: mas a sua peior peçonha guardou-se
para o presente: foi o scepticismo.
Feliz a intelligencia vulgar e rude, que segue os caminhos da vida
com os olhos fitos na luz e na esperança postas pela religião além
da morte, sem que um momento vacille, sem que um momento a luz se
apague ou a esperança se desvaneça! Para ella não ha abraçar-se
com a cruz em impeto de agonia, e clamar a Jesus:--"Creio, creio,
oh Nazareno! Creio em ti, porque a tua moral é sublime; porque
eras humilde e virtuoso; porque filho da raça soffredora e austera
chamada o povo, eras meu irmão, e não podias, tão bom, tão singelo,
tão puro enganar teu pobre irmão. Creio, creio, oh Nazareno! porque
até a hora do expirar na ignominia, até a hora da grande prova,
nunca desmentiste a tua doutrina. Creio, creio, oh Nazareno!
porque tu só nos explicaste o mysterio desta associação monstruosa
da saude e do ouro, do poderio e dos crimes a um lado; a da
enfermidade e da pobreza, da servidão e da innocencia a outro;
porque nos explicaste como os destinos humanos se compensavam além
do sepulchro. Creio, creio, oh Nazareno! porque só tu soubeste
revelar a consolação á extrema miseria sem horisonte, e os terrores
á completa felicidade sem termo na vida, collocando no logar do
destino a providencia, e do nada a immortalidade! Creio, creio,
oh Nazareno! porque a intensidade do teu viver é um impossivel
humano; a victoria da tua doutrina severa contra a philosophia e
o paganismo um milagre; a gloria do teu nome de suppliciado maior
que todas as glorias das mais altas e virtuosas intelligencias
do mundo. Mas foste, na verdade, um Deus?"
Não, o animo vulgar que nunca vacillou na fé, que nunca discutiu
o Verbo, nunca julgou o Christo, possuido do insensato orgulho
da sciencia, esse não sabe a dolorosa oração do que pede a Deus
o crer; ignora quanto fel encerra a interrupção contínua de cada
phrase, de cada palavra daquelle tormentoso orar; ignora o que
é atirar-se aos pés da cruz por um impulso quasi phrenetico do
coração, sentir a voz gelida, pesada, cruel do entendimento dizer-lhe
tranquillamente--_quem sabe!_"--e cahir desanimado no lethargo da
duvida, d'onde muitas vezes bem tarde se alevanta o espirito,
opprimido e quebrado, porque nelle pelejaram horas largas o instincto
religioso e o demonio implacavel a que chamam sciencia.
A sociedade é bem injusta quando ás faces do desgraçado, que
assim lucta comsigo mesmo, sacode o lodo da injuria, dizendo-lhe:
--hypocrita!--porque escondeu aos que o rodeiam, não as certezas,
que não as tem, mas as duvidas terriveis da intelligencia, e lhes
revelou só as inspirações, os desejos, as saudades do coração!
--Hypocrita?! Tanto como o que, havendo-se transviado da estrada
e cahido em fojo profundo, dorido, coberto de pisaduras e feridas,
e ensanguentando as mãos e o rosto nas urzes do despenhadeiro,
lidasse por saír delle e voltar ao caminho suave e plano, e bradasse
aos que visse ao longe:--"não vos affasteis para aqui!"--Hypocritas
são aquelles que mentem aos que os escutam; que simulam a paz do
descrer tranquillo, quando vae lá dentro o tumultuar das incertezas.
Como Satanaz elles dizem que o inferno é o ceu; dizem que a
irreligiosidade tem o segredo do repouso e da ventura, quando o que
ella dá é inquietação e desesperança.
Feliz a alma vulgar e rude que crê, e nem sequer sabe que a duvida
existe no mundo! Está certa de que além da morte ha vida; conhece
as suas condições; conhece-as como lh'as ensinaram, como conhece
as condições dos corpos. Para ella as noites não tem os pesadellos
monstruosos, nem os dias as meditações febris em que o sceptico
involuntario se debate na orla do possivel, que toca por um lado
nas solidões do nada, por outro na immensidade de Deus.
Mas ainda mais feliz a intelligencia superior ás do vulgo, aquella
que a Providencia destinou á missão do poeta, nos annos da infancia
e da juventude, antes que o arido bafo da sciencia a queimasse
passando por cima della! Nesse espirito e nessa idade a religião
não está só nos preceitos e nos dogmas; está na natureza inteira.
A alegria de Deus, o aspirar das fragrancias celestes, a toada
suavissima dos hymnos dos anjos, descem a ella nos raios do sol
quando nasce e quando desapparece; tremulam no espelhar-se da
lua nas aguas; misturam-se no cicio das arvores; entretecem-se
com os mil gemidos da noite; vivem nas affeições domesticas, e
sanctificam o primeiro bater do coração pelo amor. Tudo então é
viçoso e puro, porque a alma poetica lhe empresta viço e pureza.
As harmonias moldadas, na virilidade, pelas leis das linguas e das
escholas, são apenas um eccho frouxo desses canticos da meninice
e da primeira mocidade, que se evaporam sem se escreverem, que
são um oceano de delicias ineffaveis em que se embala mollemente
a imaginação e o sentir do homem, a quem o mundo ha-de chamar
poeta. Nessa epocha da vida elle não abstrahe do real para salvar
verdadeira e intacta a sua idealidade: faz mais; derrama esta,
que é a seiva intima do seu viver, pelo universo, e converte-o
n'uma cousa formosa, sancta, ideal, que o mundo está bem longe
de ser.
Depois vem outra epocha da vida, em que a felicidade é mentida,
mas ainda é felicidade, posto que já eivada de vaga inquietação, de
ambições desregradas, de esperanças mesquinhas e contradictorias.
São os annos qnc precedem e seguem immediatamente os vinte.
Abrem-se ante nós os caminhos do mundo como uma conquista. Gloria
d'artistas, poderio, opulencia, acções generosas e grandes, amor
sem termo, amizade sem perfidias, vida multiplicada indefinidamente
pela infinidade de affectos; que ha, emfim, que não sonhemos nessa
epocha de fervente loucura? A innocencia morreu, a poesia intima
e crente desbaratou-se, o sentimento religioso esmoreceu; mas
ficam os deleites dos sentidos, que nos embriagam; os applausos
das multidões aos nossos hymnos descorados, que ellas ainda julgam
energicos e brilhantes; applausos que nos desvairam: fica-nos
uma philosophia orgulhosa e insensata, que se crê profunda, uma
sciencia superficial, que se crê completa, pela qual dormimos
tranquillos sobre a negação de todas as idéas mysticas, e de
todas as lembranças de Deus.
Desta idade em diante é que chega o desfazer das illusões, até
das illusões do orgulho. A poesia suave e pura da infancia e da
puberdade passou: passa também o iris das paixões férvidas, das
ambições insaciaveis, da crença na propria energia. Começa então
o pardo crepusculo deste scepticismo, que, semelhante a herpes
lentos, vae lavrando por todas as nossas opiniões e affectos, e
os prostra e subjuga. Desde essa epocha a vida tem largas horas
de tedio, em que o existir é uma carga pesada, porque nos falta
um alicerce em que possamos firmar-nos; porque fluctuamos sobre
as nevoas densas do duvidar de tudo.
O materialismo incredulo já tirou das phases espirituaes dos
altos engenhos argumento contra a immortalidade. Com a sua logica
miope persuadiu-se de que via as enfermidades e a decadencia da
alma acompanharem as enfermidades e a decadencia do corpo; que
via o entendimento cachetico esmorecer com a decrepidez; quiz
que elle na morte ficasse perdido e annullado entre as cinzas
da sepultura. Se o materialismo soubesse que a vida das summas
intelligencias é a poesia, e que essa vida segue a ordem inversa
do desinvolvimento physico; se conhecesse que a energia intima
tem o seu apogeu nos annos debeis da infancia, e começa a
desvanecer-se quando os orgãos se fortalecem, elle não teria
achado a explicação do phenomeno nas suas tristes doutrinas.
Nos destinos eternos dos homens iria encontrar a razão desse
facto, que então veria á sua luz verdadeira. Os olhos da alma
vão-se pouco a pouco ennevoando no meio das trevas do mundo:
nesta atmosphera grosseira e corrupta ella resfolga a custo, e
com o diminuir dos alentos diminuem-se-lhe successivamente os
brios: cada dia lhe desfolha um affecto, lhe discute uma crença,
lhe mata uma esperança, lhe traz um desengano cruel. Entre o
espirito e o mundo partiram-se um a um todos os laços. Vós crêdes
que a mente se definha, e ella apenas dormita para despertar
vigorosa ao sol da eternidade, que rompe atrás do sepulchro.
Tomae-me esse octogenario tonto que foi um alto engenho: cavae
no deserto do seu coração gasto e frio, e arrancae-me de lá uma
daquellas paixões que ardem até o ultimo instante da existencia:
vibrae uma corda das que lhe davam na idade viril um som estridente:
dizei-lhe:--"teu filho querido foi arrastado ao tribunal como
criminoso; espera-o o supplicio se não houver uma voz eloquente
que o defenda: se ella se erguer será salvo; e tu foste na mocidade
o mais eloquente dos homens!"--Dizei-lhe isto, e vereis esse
engenho, que crêdes moribundo, atirar-se como um tigre ao meio
dos juizes, e achar toda a energia dos vinte e cinco annos para
defender aquella vida que a natureza ligou á sua pelas harmonias
mysteriosas da paternidade. Se as palavras, se o orgão extenuado
da linguagem não podér exprimir o pensamento daquella alma remoçada
subitamente, o gesto, o olhar, os meneios substituirão a lingua, e
se cansados e debeis não bastarem á violencia da idéa, o espirito
despedaçará o quasi cadaver, e despedindo-se da terra provará
que, se dormitava, não se extinguia, e que, despertando, partia
o vaso fragil que já não o podia conter.
Tal é o destino da intelligencia neste breve desterro: dous dias
conserva as recordações verdadeiras e puras da sua origem immortal:
outros dous alumia-se ao fogo fatuo das paixões e esperanças:
o resto delles revolve-se na lucta tormentosa das idéas, dos
affectos, dos desenganos: depois vem o dormitar da velhice, e
a regeneração da morte.
Eu, que já vou áquem do marco, onde começa o terceiro periodo da
vida humana, a sós ás vezes com as minhas recordações infantis,
ponho-me a comparar o aspecto prosaico e triste, que tem actualmente
para mim o universo, com as fórmas suaves e poeticas em que elle
me apparecia involto nesses tempos dourados. É uma comparação
amarga; mas a saudade que encerra consola do seu amargor.
Hoje a lua no crescente alevanta-se ao anoitecer de um dia sereno
do estio, e estende o manto de lhama de prata sobre a face levemente
crespa das aguas: os seus raios, transparecendo por entre o
verdenegro das copas do arvoredo, que se balouçam somnolentas,
descem tremulos sobre o chão pardo, e mosqueam-lhe a superficie
como um dorso de panthera. A viração tenuissima da tarde passa
e murmura um cicio quasi imperceptivel na folhagem. Em volta do
circulo alvacento que o luar esparge no ceu, scintillam algumas
estrellas no azul do firmamento, que parece o leito recamado de
saphyras em que se reclina a rainha da noite.
Ha quinze ou vinte annos uma tal noite tinha para mim um sem
numero de mysteriosas harmonias, que eu não sabia explicar, mas
que sabia sentir. Agora sei dizer-vos o que é a lua, a sua luz
refracta, a noite, a viração, o vulto das aguas encrespadas, as
estrellas, e as solidões do espaço; mas o que eu já não sei é
verter lagrymas de ineffavel contentamento, que se me escoavam
tepidas pelas faces ao contemplar as harmonias immateriaes e
intimas, que vagavam pela atmosphera tranquilla, como uns echos
longinquos de harpa angelica, tombando de astro em astro até
se derramarem na terra.
Dae-me uma nota só dos canticos que eu então escutava; dar-vos-hei
em troca toda a minha estupida e inutil sciencia!
Mas essa epocha da vida não voltará mais, porque não póde retroceder
uma unica onda do rio impetuoso do tempo! Depois da taça do mel
esgotada resta a do absinthio. Que se resigne e espere aquelle
que vae devorando os dias da duvida e do desalento. Chegará a
hora de renascer para a poesia e para a certeza: será a da morte.
A Providencia foi ainda generosa comnosco, consentindo-nos que
a espaços affastemos dos labios o calix do fel, e deixando que
nestes momentos rasguem o nosso longo e tedioso crepusculo alguns
raios transitorios de luz. A memoria é o instante de repouso,
e a saudade o clarão suave que nos illumina.
Recordar-se--consolar-se.
* * * * *

I
A ALDEIA E O PRESBYTERIO.

Uma das cousas que nas recordações da juventude ainda espiram
para mim poesia e saudade é a imagem de um velho prior d'aldeia
que conheci na minha meninice. Hoje tão bondosos, tão alegres,
tão veneraveis, ha-os por certo ahi, e muitos: eu é que não sei
conhecê-los. A auréola, que então rodeava as cans do sacerdote
ancião, desvaneceu-se pouco a pouco; desvaneceu-a a experiencia
do mundo, como tantas mil crenças e imaginações de outr'ora!
Elle morreu já, por certo; mas vivo que fosse, eu não sentiria
ao vê-lo, ao falar-lhe, aquella especie de alegria timida, de
confiança receiosa que nesse tempo o bom do velho me inspirava.
Parecia-me que estando ao pé delle estava mais perto de Deus,
cujo valído, por assim dizer, era o padre prior. Não sabia o
sacerdote essa lingua que eu cria falar-se no ceu, o latim, que
então era para mim cousa mysteriosa e sancta? Não trajava ás vezes
os trajos da côrte celeste, o amicto, a casula, o pluvial, com que
estavam vestidos alguns vultos de anjos pintados em tres ou quatro
antiquissimos quadros do presbyterio? Quando nas suas practicas,
depois da missa do dia, narrava os gosos da bemaventurança, os
tormentos do purgatorio, e os tractos intoleraveis do inferno,
não juraria qualquer que elle já peregrinára largos annos além
do sepulchro, ou que voz de cima lhe revelava tantas maravilhas
e tão solemnes terrores? Evidentemente o velho clerigo estava
mais perto dos degraus do throno divino que toda a outra gente,
e, por me servir da linguagem politica, exercia em nome do céu
uma delegação na terra; era uma especie de _missus dominicus_ da
Providencia. E quando elle, apezar dos meus tenros annos, me
escolhia para acolyto, para estafar a porção de latim do missal,
que as rubricas inexoraveis subtrahiam ao seu imperio, sorriam-me
as esperanças, algum tanto vaidosas, de obter de Deus deferimento
ás minhas pretenções infantis, como costumam sorrir ao requerente,
a quem deputado de grande conta mostra familiaridade na presença
de omnipotente ministro.
Hoje o latim do padre prior parecer-me-hia um tanto barbaro,
e talvez barbarissima a sua prosodia: nas vestes sacerdotaes
acharia os trajos romanos do imperio atravessando, immutaveis
como a igreja, por entre as transformações da moda e do luxo;
nos quadros do presbyterio riria da ignorancia e mau gosto do
pobre pintor; e nas descripções das venturas e tormentos da outra
vida descubriria unicamente uma incarnação grosseira em imagens
materiaes das revelações profundas do espiritualismo christão.
É que nesse tempo tudo me chegava aos olhos da alma alumiado,
risonho, variegado, porque tudo transparecia através de um prisma
de sete côres, da innocencia singela e credula da infancia; e hoje
tudo me parece como a folha que cahiu da arvore no outono, murcho
e desbotado, passando através da atmosphera nevoenta e triste da
sciencia e do orgulho. Então o velho parocho affigurava-se-me
mais que um homem; hoje, na escala das desigualdades humanas,
provavelmente só acharia para elle um bem modesto logar.
A aldeia em que o bom do clerigo pastoreava o seu rebanho espiritual
estava assentada na falda de um monte, e pouco inferior a ella
dilatava-se uma veiga, que ao longe, lá bastante ao longe, ía
bater no mar. No alto da povoação ficava o presbyterio. Era a
igreja, segundo hoje se me affigura (e tenho-a bem presente)
daquelle gosto duvidoso entre a architectura christan que expirava,
e a da restauração romana, que ainda se não comprehendia: era
um desses templosinhos construidos nos fins do reinado de D.
Manuel e durante o de D. João III, de que tão grande numero resta
ainda pelas parochias de Portugal, e que são mais um argumento
de que os nobres conquistadores da India, donatarios das terras
e padroeiros das igrejas, não voltavam do oriente com as mãos
vazias. A devoção nesses tempos era um objecto de luxo: edificar
uma igreja ou uma capella equivalia a ter hoje um camarote em S.
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