Lendas e Narrativas (Tomo II) - 12

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marinheiro que capitaneava o outro marinheiro, e havendo mettido
a bordo os nossos bahus, que, pelo leve e desempedido, podiam
servir-nos de botes de salvação em caso de naufragio, saímos
da caldeira de Saint-Hélier com uma brisa forte da terra, que
brevemente nos arremessou para o largo. Era muito depois do meio
dia. Algumas nuvens brancas do lado do poente recortavam as suas
franjas irregulares sobre o chão do céu, que a luz do sol tornava
de um azul desbotado. Raras e diaphanas, aquellas nuvenzinhas
balouçavam-se no ar, ao que parecia, mais voluptuariamente do
que nós, que sentiamos arfar, pinchando d'entre as vagas crespas,
o nosso pequeno baixel. Pouco a pouco esses vapores accumulados,
cujos contornos occidentaes barravam orlas de ouro, engrossaram,
tomando fórmas determinadas. Depois, correndo gradualmente mais
rapidas, e interpondo-se entre os raios do sol já inclinados e
o vulto rugoso das aguas, lhes remendavam o dorso semelhante á
pelle mosqueada do tigre. Este jogo da luz dava ao mar um aspecto
verdadeiramente accorde com a sua natureza. Que é elle, de feito,
senão a mais terrivel das bestas-feras?
E o vento refrescava de instante a instante, e os mastros do
chasse-marée principiavam a soltar de quando em quando um gemido
doloroso, curvando-se para as vélas quadrangulares retesadas
diante delles.
O grumete ía ao leme: o marinheiro, que representava e resumia
a companha, de bruços e com os joelhos sob o ventre, no ademan
de um gato que se apresta a saltar sobre o murganho immovel de
terror, parecia examinar os novellos de nuvens tenebrosas, que
se rolavam no horisonte e cresciam para nós, como uma visualidade
de camara obscura. A barlavento o arraes ou capitão (_capitaine_
lhe chamavamos nós pelo menos) que representava e resumia a
officialidade do navio, com o corpo torcido, e encostado á amurada,
firmando a barba nos braços cruzados em cima da borda, tambem
parecia esquadrinhar o céu e o mar. Dir-se-hia que o encapellar
das ondas se regulava e media pelas rugas que successivamente
augmentavam em numero e profundeza na fronte tostada do antigo
marujo. Um susto vago e inexplicavel como que pairava no meio
de nós. Era que a postura e o gesto daquelles dous homens tinham
um não sei que sinistro e mysterioso, semelhante ao bofar morno
do vento que precede e annuncia a procella.
Nós os passageiros, assentados n'uma especie de canapé mal
affeiçoado, que circumdava a coberta á pôpa, tinhamos insensivelmente
cahido em completo silencio; ou, para falar com mais exacção, nós
os portuguezes eramos os que nos haviamos calado; porque nem o
cão, nem os tres inglezes tinham proferido, aquelle um só ladro,
estes um só grasnido desde o momento em que saltaram a bordo, na
abra de Saint-Hélier. O unico ruído que sussurrava era o ranger
do baixel, e o sibilo de vento embatendo em nós, e abysmando-se
nos nossos ouvidos, o que nos fazia escutar um som semelhante
ao do pinhal que se estorce e vérga ao redemoinharem-lhe por
entre as ramas os mil braços da tempestade nocturna.
Dos tres inglezes um velho de cabeça inteiramente branca e rosto
inteiramente vermelho dava certidão, nas cans, de que a agua
do baptismo passára por alli havia muitos annos, na côr da tez
dava-a de que tambem não havia poucos que elle, levado de um
sancto respeito pela materia do principal sacramento, abjurára de
coração o tocar-lhe com os labios, contentando-se de humedece-los
com os tres liquidos fundamentaes de todos os contentamentos
possiveis entre os netos dos kimhris e saxonios--o rhum, o vinho
e a cerveja. Dos outros dous, um mostrava ser inglez de cincoenta
annos, outro de quarenta; o primeiro, magro, da altura de cinco
para seis pés craveiros, faces encovadas, nariz meridional, ou
antes judaico, isto é, prominente e adunco, tez não tanto morena
como macilenta: o segundo, typo saxonico, isto é, rosto largo
e achatado, olhos azues, guedelhas louras, bôca profundamente
vincada nas extremidades do beiço inferior, de aspecto aborrido
e orgulhoso, como se todo o fumo de carvão de pedra britannico
o cercasse com a sua auréola de gloria nacional. De resto não
havia que duvidar-lhes da patria: indicava-a o cheiro dos seus
vestidos, suavemente impregnados do fartum sebaceo de carneiro, e
aromatisados com os effluvios nauseantes da infusão do chá preto,
os quaes constituem a formula odorifera da sociedade politica
chamada os tres reinos unidos.
Pois tambem ha cheiros nacionaes?--dirá o leitor.--Que duvida!
Cada nação tem a sua crença, a sua lingua, e o seu cheiro. O credo
inglez é representado não sei ao certo por quantos centenares
de seitas, que se mandam reciprocamente para o inferno, desde
a igreja anglicana, em que os bispos e arcebispos (poetas,
amphytriões, millionarios e politicos) bradam anathema contra
as vaidades, luxo e cubiça de Roma, até os methodistas, que vão
para os seus templos caçar as inspirações de cima, inspirações
que muitas vezes são papadas por velha fanatica e tonta, e ouvidas
pelos seus irmãos com uma compunção que daria vinte comedias a
Gil Vicente se hoje vivesse, e viajasse pelo _Might Empire_ do
vapor e da cerveja.
A brisa, que ao saírmos de Jersey era em pôpa, rodou successivamente
para noroeste, e antes do pôr do sol soprava já violenta do lado
do oeste. Nós seguiamos, pouco mais ou menos, o rumo do sul, e a
mudança do vento, posto que ameaçadora, tinha sido momentaneamente
uma vantagem de commodidade: o chasse-marée corria á bolina, e
por isso o seu arfar se tornára mais suave. No horisonte, quasi
pela pôpa, divisavamos ainda o promontorio de Noirmont, e pela
nossa esquerda prolongavam-se quasi imperceptivelmente as costas
de França, como uma linha negra lançada ao través dos mares.
O silencio que reinava a bordo dava certa melancolia solemne ao
quadro do céu nublado, das vagas revoltas, e da terra que parecia
quasi desvanecer-se na orla das solidões do oceano.
O inglez velho, que ía justamente assentado á minha direita, a
pouco mais de meia milha de Saint-Hélier começou a empallidecer.
O ar marinho é inimigo figadal do fastio, e por isso, teriamos
apenas navegado duas horas, quando começámos a experimentar, nós
os portuguezes pelo menos, a immutabilidade inflexivel desse axioma
dietetico. Tirámos algumas das nossas provisões, e pozemo-nos a
despachar os requerimentos do estomago. Offereci ao velho que
tomasse parte naquella refeição; mas elle recusou, declarando-se
_sea-sick_ (enjoado); todavia para não perder, como verdadeiro
inglez, os prós da minha boa vontade, entendeu que podia trocar
uma obra de misericordia por outra, e, deixando-se escorregar do
banco ao convez, fincou-me sobre os joelhos a cabeça entontecida,
e cerrou os olhos. Recommendei então a Deus os meus pobres ossos
cruraes, ameaçados de chegarem a França em estado de para nada
prestarem, visto ser a cabeça do velho uma verdadeira cabeça
ingleza; dura, pesada, e macissa, como o governo da Companhia
na Asia.
Porque não repellia eu a familiaridade ominosa do bom do inglez;
de um homem cuja nação, como portuguez, tenho a obrigação moral
de desamar? Era porque em contrario havia duas considerações
igualmente moraes. Uma cabeça branca é sempre respeitavel, ainda
que assente sobre o tronco ermo de coração de um filho da
Gran-Bretanha. Além d'isso, o cesto de verga em que íam as nossas
provisões estava alli como um espectro, que me embargava sacudir
a fronte do ancião para o travesseiro macio do convez gordurento.
O porque desta acção sympathica do cesto sobre o meu espirito
di-lo-hei em breves palavras: é uma historia como qualquer outra.
Miss Parker de Plymouth era uma donzella de sessenta annos;
excellente creatura, que nos hospedára por dous mezes naquella
cidade, mediante a bagatella de tres shellings semanaes por cabeça.
A Inglaterra, como todos sabem, é o paiz da franca e sincera
hospitalidade. Eramos ahi nove portuguezes, em seis camas e tres
aposentos, o que dava certo ar pythagorico e mysterioso á familia,
que, dirigida por Miss Parker, podia servir de modelo ás outras
ninhadas de emigrados que ainda viviam em Plymouth. Ninguem tinha uma
patroa como nós, e os seus _lodgings_ eram a perola das albergarias de
Plymouth. A principio havia-se encarregado de nos preparar a comida;
mas poucos dias podémos resistir aos abominaveis temperos do paiz.
É precisa uma raça de estomagos que ainda fosse antropophaga no
meado do quinto seculo da era christan para luctar vantajosamente
com a cosinha d'Inglaterra, e estes estomagos só os inglezes
os possuem, segundo o testemunho do seu historiador Gibbon. Os
nossos cederam a tão dura prova, e vimo-nos obrigados a dispensar
Miss Parker do mister de nos envenenar. Quanto ao mais eramos
verdadeiramente seus filhos em espirito, em espirito, digo, porque,
afóra muitas reflexões pias de que se dignava fazer-nos, a nós
pobres idolatras do catholicismo, obrigava-nos a respeitar o
domingo no pleno rigor da igreja anglicana; isto é, a morrer
de tedio e tristeza, prohibindo em sua casa todo o genero de
divertimento, ainda o mais innocente, desde pela manhan até sol
posto, momento em que naquelle abençoado paiz Deus cede ao diabo
o resto do dia dominical, e em que a devassidão e a embriaguez,
tripudiando nos prostibulos e nas tabernas, se vingam das dez ou
doze horas de sermões impertinentes dos _clergymen_, e de psalmos
desafinados pelas vozes roufenhas e prosaicas da turbamulta,
debaixo das abobadas sanctas, poeticas e venerandas das antigas
igrejas catholicas, repartidas hoje em camarotes de theatro pela
pureza aristocratica e beata do protestantismo inglez.
Miss Parker foi o unico folego vivo da Gran-Bretanha, a quem, na
minha estada em Inglaterra, devi um beneficio: quando partimos
para Jersey deu-nos um cabazinho em que levassemos a nossa
matalotagem, e derramou algumas lagrymas ao despedir-se de nós.
Aquelle cabazinho era o que estava ante mim, e me sustinha em
cima dos joelhos a cabeça do velho. Sobre as vagas procellosas
do canal da Mancha eu soldava assim as minhas contas com a
Inglaterra.
O vento continuava a rodar para sudoeste, e os nossos dous
marinheiros colheram parte do panno e mudaram algum tanto de rumo:
depois tornaram a assentar-se na mesma postura em que estavam, e
tudo voltou ao anterior silencio, que só era interrompido pelo
marulho das ondas espalmando-se no costado do chasse-marée.
Mas um flagicio, mais abominavel ainda que os condimentos ferozes
da cozinha ingleza, veio cortar atrozmente este silencio triste,
que representava no meio de nós a previsão de imminente procella.
O inglez alto, de gesto esguio, e nariz hebraisante, tinha-se
assentado ao pé do outro inglez affeiçoado pelo typo saxonico,
no topo esquerdo da banqueta corrida á pôpa. Duas ou tres vezes,
desde que levámos ferro, elle dirigiu ao companheiro uma rosnadura,
a que este respondeu com o estirado monossyllabo _Yes_. Á quarta
vez, aquella resposta laconica foi proferida com certa melopéa
de resignação, que cortava os fios da alma, e acompanhada de um
volver d'olhos azues, em que se pintava uma supplica de piedade.
Mas o inglez aguçado carregou o sobr'olho, e, mettendo a mão ao
seio, poz-se a procurar o que quer que era na algibeira interior
de uma das quatro sobrecasacas que tinha vestidas. Eu observava esta
scena; sabia o que póde o spleen, e o receio de algum anglicidio
passou-me pela mente, ao contemplar o aspecto torvo de um e o gesto
confrangido e timido de outro. O vento sibilava violento, as aguas
começavam a tingir-se de negro, e o céu estava completamente
toldado; era meio poema britannico. Um tiro de pistola e um cadaver
baldeando no mar completariam uma epopéa. Nas feições do inglez
esgrouviado parecia-me ler duas palavras--Spleen e Poeta--e por
isso os meus temores não eram tão infundados, como, no primeiro
momento, talvez os tenha julgado o leitor.
E o mais era que eu acertára farejando em Mr. Graham Senior (eram
os dous inglezes irmãos, segundo depois soubemos) um fazedor das
regrinhas, que na lingua ingleza correspondem ao que nas linguas
do meio-dia é e se chama versos. O honrado Mr. Graham não procurava
na algibeira o amago e substancia da idealidade e poesia britannicas,
a pistola suicida. Não! Era cousa mais atrozmente assassina; era um
quaderno grosso de letra microscopica, em que provavelmente se
continham as suas inspirações ineditas! Estava explicada a longa
taciturnidade dos dous. O perverso meditava aquelle fratricidio
intellectual desde a partida de Saint-Hélier, e os quatro grunhidos
abafados que lhe ouviramos tinham sido quatro tentativas para predispor
a victima. De feito, quando elle sacou o alentado canhenho, Mr. Graham
Junior parecia inteiramente resignado.
Aquelle atenazador das orelhas do proximo começou a sua leitura
pela primeira pagina. Era um algoz de consciencia, e já se podia
prever que tinha a boa tenção de atormentar-nos emquanto durasse o
dia, que felizmente se inclinava a seu termo. Como me foi possivel,
percebi aos trinta ou quarenta versos que era um poeta da eschola
de Pope, ou como quem o dissesse entre nós, um poeta da Arcadia.
Cá teria falado em Jove, Marte e Neptuno, nas musas, nos zagaes,
nas nymphas, na tuba de Calliope, ou na sanfona não sei de que
deusa: lá, nas inspirações de Mr. Graham, eram as paixões, os
vicios, os affectos personalisados quem fazia o serviço dos seus
poemas: aqui a esperança, alli o desalento; ora a temperança, logo
a desenvoltura. Aquella poesia frigidissima fazia-me lembrar do
Olympo, do Pindo e da Castalia dos nossos arcades, e de algum modo
me consolava das miserias domesticas, ao vêr que a poesia cadaverica
das fórmas e convenções não vivia unicamente entre nós, mas ainda
ousava no canal da Mancha misturar as suas semsaborias academicas
com o bramido terrivel do vento, e com o ferver estrepitoso das
vagas, que entoavam accordes a sublime invocação da procella.
O poeta esguio declamava as suas regrinhas lentamente e com todos
os requebros da melopea ingleza, genero de canto semelhante ao
gemer rabugento de uma creança na primeira dentição. O pobre
diabo, posto que provavelmente acreditasse que nenhum de nós o
entendia, pensava por certo que, nova especie de Orpheu, bastavam
os sons das suas palavras harmoniosas para nos arrebatarem e
extasiarem, a nós selvagens da Europa, como com tanta graça e
verdade denominam os escrevinhadores de John Bull os habitantes
da Peninsula! Pensava assim, de certo; porque de quando em quando
volvia para nós os olhos com aquelle sorriso de complacencia
estupida, que é peculiar na cara de um inglez vaidoso e contente
de si.
Um dos exemplos mais lamentaveis da cegueira do espirito humano
é a persuasão em que os escriptores de Inglaterra estão de que
possuem uma lingua litteraria falada; isto é, que os sons quasi
inarticulados do seu chilrear e grunhir correspondem sufficientemente
aos grupos de caractéres alphabeticos, de que elles se servem para
representarem os proprios pensamentos. Todavia a lingua escripta
de Inglaterra nada tem que ver com a linguagem em que a nação se
exprime: são dous typos diversissimos, que dão fórma sensivel
ao pensamento. Abri um livro escripto em qualquer outro idioma da
Europa, e fazei ler por elle um estrangeiro completamente ignorante
desse idioma: o natural do respectivo paiz, aquelle que o falou
desde a infancia entenderá tudo ou quasi tudo, se escutar essa
leitura. Fazei a mesma experiencia com um livro inglez: o natural
de Inglaterra não entenderá provavelmente uma unica palavra. É
que na realidade entre este povo, em tudo singular, os signaes
chamados letras não tem um valor constante e determinado, e por
isso não podem corresponder rigorosamente a um som.
A Inglaterra ha visto nascer no seu gremio grandes poetas. Shakspeare
e Byron bastariam para lhe dar uma celebridade immensa. Mas a
sua poesia reside toda no pensamento, na essencia da arte. As
fórmas externas são rudes, barbaras, ou fluctuantes. Shakspeare e
Byron foram dous selvagens, um porque estava além da civilisação,
outro porque estava áquem della; mas foram talvez as duas almas
mais sublimemente poeticas da Europa. Porque, pois, não souberam
ajunctar a melodia material ás harmonias intimas das suas ideas?
Foi porque não podiam converter em palavras humanas o intoleravel
grasnido dos seus compatriotas.
Uma cousa que sempre me acontece em ouvindo falar um inglez é
notar as mysteriosas analogias que ha constantemente entre a lingua
de qualquer povo e os seus habitos de moralidade. Considerae por
exemplo a lingua alleman: é um idioma perfeitamente accentuado;
os vocabulos escriptos correspondem rigorosamente aos falados:
não ha ahi luxo inutil de letras: todas se proferem; todas
representam um som ou uma articulação. Os caractéres do alphabeto
nunca serviram para enganar o estrangeiro. Não achaes n'isto
uma expressão do animo leal, franco e singelo daquelle povo?
A _Deutsche Treue_, a _fé germanica_, não se reflecte como em um
espelho da lingua desse paiz? Agora escutae um inglez: dous terços
de cada palavra, como a representam os signaes alphabeticos, não
se proferem: devora-os o leitor: são uma armadilha para obrigar
os labios peregrinos a darem syllabadas: o inglez pronuncia com
os dentes cerrados, como se temesse que essas palavras-ouriços
lhe fizessem, ao perpassarem, os labios em sangue. Não achaes
n'isto um typo de cubiça e avareza? Um pensamento enganoso? O
algodão tecido á sorrelfa com a lan? Não descubris lá o pensamento
do tractado de Methuen, ou do desembarque de Quiberon? Não se
revela no coaxar das rans de Wordsworth e dos poetas dos lameiros
o _British Interest_?
Taes eram as reflexões em que eu estava embebido emquanto o poeta
mastareu acreditava ter-nos enleiados a todos com as mellifluas
toadas do seu poetico lavor. A noite, entretanto, tombando de
castello em castello de nuvens, lançava sobre o dorso do mar
revolto o seu manto de obscuridade. O sectario de Pope cedeu
então ás trévas: fechou o canhenho, e resguardou-o outra vez
dos olhos profanos debaixo da meia fabrica de Leeds, que fora
absorvida na mole immensa dos seus quatro casacões.
Mr. Graham Junior, apenas seu respeitavel irmão cessou de ler,
volveu para elle o rosto melancholico, e murmurou, depois de
um suspiro:
"_Aye!--Very good!_"
Com os tres _Yes_ precedentes fazia a conta de seis palavras, ou
grasnos, que despendêra naquelle dia Mr. Graham Junior.
Dous inglezes ridiculos são incontestavelmente as duas cousas
mais ridiculas deste mundo.
O temporal que se preparára durante a tarde desfechou em cima
de nós com o cerrar da noite. O vento saltára inteiramente ao
sul, de modo que nos ficava ponteiro. As vagas accumulavam-se
em serras, que, alçando-se e topando em cheio, se enlaçavam e
confundiam como dous luctadores furiosos. Depois a mais possante,
sumindo debaixo de si o grande vulto da sua contraria, erguia
o topo esguio, que vacillava um instante, e cahia desfeita em
catadupas de escuma nos valles profundos cavados momentaneamente
em volta della. A lucta daquelles vagalhões gigantes, em pé sobre
o abysmo das aguas, estreitando-se e despedaçando-se como as
hyenas e tigres n'um circo romano, vista assim ao lusco-fusco
sob um ceu achatado e cinzento, era uma sublime peleja! Todos
os espectaculos da terra--dos homens ou da natureza--que são,
ou que valem, comparados com a colera da procella que passa no
oceano? Menos que farça semsabor de titeres comparada com o Hamlet
ou com o Othelo representados por Betterton ou por Garrick. O
mysterio dos mares é de todas as obras da creação aquella em que
mais profundamente o Senhor estampou o seu verbo; a inscripção
indelevel e indubitavel, que narrará perpetuamente ao genero
humano o seu infinito poder.
O chasse-marée havia-se posto á capa. O vento não consentia já que
surdissemos avante, e o arraes, depois de uma breve conferencia á
prôa com o seu companheiro, veio declarar-nos que seria impossivel
seguir o rumo de Saint-Maló; que era necessario pôr a prôa nas
costas da Normandia, e dirigirmo-nos a Granville; e finalmente,
que só ahi poderiamos tocar em terra na manhan seguinte. Recebemos
esta desagradavel nova com mais heroica resignação, se é possivel,
que a de Mr. Graham Junior ao levar a sova poetica das inspirações
fraternas. E que não nos resignassemos! A immutabilidade do nosso
destino proclamavam-n'a os silvos do vento, e, o que mais era, a
declaração do arraes. Um capitão de qualquer baixel é o absolutismo
incarnado: as suas decisões equivalem á fatalidade moslemica. Em
muitos sermões politicos, que é a espécie mais impertinente do
genero litterario--sermão--tenho lido comparações fulminantes
contra os tyrannos, buscadas no despotismo asiatico. Se eu cahisse
na miseria de fazer eloquencia politica, não ía tão longe busca-las.
Saltava no primeiro hiate, chasse-marée, ou sloop, e travando do
arraes dizia ao mundo: _ecce homo_; eis-aqui a flôr, a maravilha, o
ideal de todos os despotismos possiveis. Os que andam incommodando
Attila, Kulikan, ou Timur, para afferir por elles os tyrannetes
quasi-ridiculos da Europa moderna, são dissertadores d'agua-doce,
que (para me servir de uma phrase do auctor de Micer Harold)
nunca pozeram a mão sobre a juba crespa do oceano. Tyrannia e
arraes são synonimos: digam o que quizerem os extirpadores
implacaveis das synonimias.
Maitre Jean Legris era um verdadeiro arraes normando: duro,
carrancudo, e inexoravel como os piratas do seculo duodecimo seus
antepassados, de que tão pavorosas memorias restam nas costas
de Portugal e de Galliza. Ouvimo-lo com magoa, mas com respeito,
porque não havia replicar. O chasse-marée obedecia ao leme, o leme
ao marinheiro, o marinheiro ao capitão, e o capitão, pactuando
com o vento, resolvêra empalmar-nos Saint-Maló e a Bretanha,
para nos dar em troco Granville e a Normandia. Por isso, antes
de nos communicar as suas intenções, mestre João tinha dado a
pôpa á tempestade e tomado o rumo de leste. Contava d'antemão
com a obediencia, que não lhe podiamos refusar.
Emfim anoitecera: a unica luz que viamos nas campinas do ceu
e das aguas era aquella especie de branquejar phantastico e
transitorio da escuma, que é para o luar o que um retrato de
morte-côr para um vulto original--menos que frouxissima claridade,
e mais que o crepusculo esbranquiçado e indeciso de um corpo
alvo e que mal se divisa no meio das trevas.
O chasse-marée, galgando por cima das ondas, no meio do refluxo
dellas, devia parecer, visto de longe, um baixel mysterioso e
infernal, perseguido por espectros que surgiam successivamente dos
abysmos, e que em roda delle dançavam danças maldictas, involtos
em seus alvos sudarios.
Bem importavam a Mr. Graham, o fratricida psychologico, aquellas
solemnes tristezas de uma noite procellosa! Tirou um frasquinho
de aguardente que trazia a tiracollo, bebeu um largo trago, e
alevantou-se, dirigindo-se á escotilha da especie de camara que
nos ficava de baixo do tombadilho. Era um pinheiro! Quando o
vi em pé receei que o sul o partisse; mas nem sequer rangeu.
Se me não mente um calculo rapido, Mr. Graham era, ao menos
physicamente, um poeta da força de oitenta cavallos, medida
britannica: era um poeta de alta pressão: era um poeta _warranted_,
para me exprimir como os laconicos letreiros de todas as peças
de fazendas inglezas falsificadas. Mr. Graham Junior seguiu Mr.
Graham Senior, _non passibus aequis_, como mais curto que era.
Ouvimos lá embaixo ainda dous ou tres regougos; depois tudo cahiu
de novo em silencio.
O velho, que se me encostára sobre os joelhos, apenas viu os
seus compatriotas buscarem acolheita para a noite, ergueu-se,
e cambaleando chegou á ingreme escada que conduzia á estreita
camara. Poz um pé no primeiro degrau, poz o outro no segundo,
tornou a pôr aquelle no ar, e disse com o corpo no fundo--pan!
Era o som d'um _cask_ de cerveja cahindo de vinte pés d'altura.
Ouviu-se-lhe um grito rouco e mais dous grunhidos dos seus
respeitaveis patricios. Tinha arrebentado o saxonio, ou espalmado
o poeta? Talvez ambas as cousas. Corremos a acudir-lhes levados
pelo primeiro impulso de humanidade. Os primeiros impulsos, nestes
casos, não prestam nem para Deus, nem para o diabo, porque são
estupidamente involuntarios. Seja isto dicto, com paz do leitor,
como desculpa da nossa caridade, e como descargo de consciencia
nacional.
Para clareza desta importante narração é de saber, que apenas
viraramos de rumo, o marinheiro substituíra o grumete no governo
do leme, como ministro responsavel de mestre João, e o grumete
fôra assentar-se á proa no logar que deixára o seu successor,
exactamente como um ministro demittido, que vae tomar assento
nos bancos da opposição. D'alli olhava para o tombadilho, fazendo
a segunda, com um assobiar monotono, ao bramido do vento.
Chegámos dous ou tres á escotilha onde soára o baque do velho.
Iamos a descer, a risco de nos despenharmos tambem, quando a
cabeça de Mr. Graham Senior começou a surgir como uma visão de
Manfredo:
_What dost thou see?--_
_I see a dusk and awful figure rise._
Á luz da bitacula, que enviava um raio frouxo ao rosto do grumete,
o poeta acenou-lhe que se approximasse, sem se dignar sequer de
olhar para nós humildes creaturas, que haviamos parado em roda
de sua grandeza.
O rapaz chegou-se a Mr. Graham.
"_Brandy!_[1]"--rosnou este, com o aspecto temerosamente carrancudo
e imperativo de um Nelson dando a ordem de accommetter na batalha
de Trafalgar. Dizendo e fazendo, mostrava o seu frasco de aguardente
virado de boca para baixo. O rapaz poz-se de novo a assobiar.
Nós então ousámos perguntar a sua extensão se por ventura succedêra
algum fracasso aos seus compatricios. Elle lançou-nos um olhar
obliquo, e em voz mais alta bradou ao grumete:
"_Rhum!_"
"Não ha:--respondeu o rapaz entre dous assobios.
"_Bring rhum, boy!_--insistiu o cantor da temperança, já colerico,
e fazendo-se desentendido.
"_Chien d'anglais_, não percebes?..."--exclamou o grumete na sua
lingua nativa, com um gesto de impaciencia; e accrescentou
voltando-se para nós:
"Que diz este diabo?"
"Que lhe ponhas para alli cachaça:"--ia eu a dizer, paraphraseando
em francez os trez monosyllabos britannicos, quando fui interrompido
por um mugido, subito, incisivo, retumbante, que sobrelevou o rugir
da tempestade. Soltara-o Mr. Graham, que, cerrando os punhos,
com todos os ademanes de um professor de sôcco, crescia já para
o pobre grumete, o qual avaliára erradamente a linguistica do
poeta. Elle percebêra ás mil maravilhas as duas personalidades
de _cão_ e _diabo_, que ousára dirigir-lhe o imberbe e enfarruscado
normando.
Felizmente para este, uma onda galgando exactamente nesse momento
a pôpa, veio lavar o tombadilho, e em forte balanço, fazendo
perder o equilibrio ao filho da Gran-Bretanha, o estendeu ao
comprido na agua que passava em demanda da prôa, com grave perigo
do precioso manuscripto do casacão. Estirado sobre a tilhá do
chasse-marée, e colleando e bufando para se alevantar, Mr. Graham
representava soffrivelmente o papel de um congro tirado naquelle
instante do mar. Quando elle, emfim, pôde concluir o plagiato
que fizera ao tombo do seu velho compatriota, o grumete tinha-se
já retirado ao anterior posto, sobre os escovens, e continuava
o seu acompanhamento de assobio ao estrepitar do vento.
Mr. Graham meditou um momento. Parece que o abalo da quéda e
a frescura da agua lhe modificaram poderosamente o orgão da
_combatividade_; porque, sem dizer palavra, desceu outra vez para
a limitada camara da fragil embarcação.
Este incidente, que passára com grande rapidez, podia ter dado
motivo a uma séria desavença entre o arraes e o poeta, porque
mestre João mostrava-se demasiado cioso da propria auctoridade,
para não consentir que um dos seus subditos fosse punido por
haver recusado uma cousa que talvez não houvesse realmente a
bordo, e por ter dicto duas verdades duras a um conterraneo dos
nevoeiros e dos beef-steaks. Mas porque não se exprimiu Mr. Graham
de modo que o grumete o entendesse? Como imaginou elle que o pobre
rapaz podesse perceber os seus tres monosyllabicos grunhidos?
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