Lendas e Narrativas (Tomo II) - 06

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Teve a ventura (o rapaz, entende-se) de caír em graça á Bernardina.
Amoricos d'aqui, amoricos d'acolá, janella na cara a um, respostas
tortas a outro, segredar e rir de vizinhas, raivas de desprezados:
somma total--zás, uma sova mestra no Manuel da Ventosa, por ter
tido a negregada dita de merecer a preferencia daquella que era
o enlevo de todos os corações.
Mas enganaram-se. O amor redobrou com o sacrificio; os desprezos
cresceram com a vingança. O que começára por passatempo converteu-se
em paixão violenta: um fogo íntimo devorava a alma de Bernardina,
e desbotava-lhe as faces, d'antes tão frescas e rosadas como
as de um seraphim da peanha da Senhora da Conceição, obra de
esculptor insigne. No Manuel da Ventosa, isso não falemos: quando
melhorou da _doença_ andava entre parvo e abstracto: attribuia-o o
licenciado dos sitios a depressão cerebral produzida por alguma
ripada nas vertebras; mas, se existia depressão de cerebro, outra
era a sua origem. Certa mulher de virtude que havia na aldeia
jurava e tresjurava que o moço moleiro tinha a espinhela caída.
Historias. Eu, apesar de ser então uma creança, sabia bem onde
batia o ponto; por isso nunca fui para ahi.
Por encurtar razões: os dous amavam-se como loucos. As pessoas
desinteressadas achavam-nos um par completo; e com bom fundamento:
o Manuel da Ventosa era um galhardo mancebo, unico herdeiro de
ginja abastado, e Bernardina uma rapariga honesta. As beatas da
aldeia, ás quaes, conforme a direito, incumbia pôr ao soalheiro
a vida privada de cada uma, no capitulo da honra nunca se tinham
atrevido a ir devassar a barraquinha de Perpetua Rosa. Podia a
senhora Perpetua Rosa gabar-se dessa! E de feito, muitas vezes,
mettida no rio até os joelhos, em discussões acaloradas com as suas
illustres amigas, as outras lavadeiras pelo circulo de Lisboa,
a ouvi empraza-las para que formulassem precisamente certas
interpellações infundadas, rejeitando com desprezo alguns remoques
bernardos relativos a Bernardina, e appellando para a opinião
do paiz representada pelos seus orgãos, as beatas do soalheiro.
Mas se os dous se amavam com tanto extremo, e eram feitos e talhados
para puxarem o mesmo carro matrimonial, porque não íam pedir
ao padre prior o _conjungo vos_? Ahi é que certo animal torcia
certa parte do corpo, que eu e o leitor sabemos. Por não terem
pedido esclarecimentos sobre o facto é que as lavadeiras faziam
declamações vagas.
Eis o caso: o Bartholomeu da Ventosa era rico e avaro; mas
bestialmente avaro: Perpetua Rosa pobre, pobrissima. Por mal
de peccados fôra ella antigamente lavadeira do casal do moinho,
ou antes dos moinhos, porque para a exacção historica deve-se
advertir que o moleiro possuia dous. Uma vez, que levára grande
porção de roupa, tinha perdido tres saccas velhas e rotas.
Bartholomeu quando tal soube quiz morrer.--"Juro por esta--dizia
elle esbravejando e beijando os dous dedos indices cruzados sobre
a bôca:--juro que Perpetua Rosa me ha-de pagar as minhas tres
saccas novas em folha, que me perdeu, a desalmada!"--Mas nem
novas nem velhas; porque a verdade era que ella não tinha com que
as pagasse. Forçado foi, portanto, ao moleiro fartar a vingança
com ordenar-lhe que não lhe tornasse a rapar os pés á porta. Desde
este fatal dia nunca mais Bartholomeu da Ventosa pôde encarar com
a lavadeira: o seu odio vivia involto e aquecido na imagem das
tres saccas gravada naquelle coração de avarento. Assim para elle
seria cousa monstruosa e abominavel só o imaginar a possibilidade
de seu filho Manuel casar com Bernardina, a quem a pobreza fôra
de sobra para impedimento dirimente, quanto mais o ser filha de
semelhante mãe. Tal era a difficuldade insuperavel que se oppunha
á união dos dous amantes.
E os mezes íam passando, e as murmurações crescendo, e saltando
já das lavadeiras para as beatas. Tinham visto mais de uma vez
(dlzia-se: valha a verdade) o moço moleiro rondando a deshoras
a barraquinha da beira do rio. Havia tambem quem dissesse que
nas madrugadas de alguns domingos, quando a senhora Perpetua
Rosa saía para a missa das almas, se enxergava ao lusco fusco
um vulto, que, cosendo-se com os choupos, se aproximava da porta
da Bernardina, e... e etcaetera. Era muito vêr! Mas a cousa ía
correndo, e no fim de contas quem ganhava com essas historias
eram as linguas dos maldizentes, que se refocillavam na palangana
da murmuração, e o diabo que se lambia para, por estas e por
outras, os catrafilar a seu tempo.
Veio a quaresma: sancta quadra; mas que por isso mesmo é ás vezes
boa de mais. Desobriga vae, desobriga vem, sabe-se muita cousa.
O padre prior andava já com a pedra no sapato; porque elle não
era cégo nem mouco. Meu dicto, meu feito. Certo dia (por signal
que era uma sexta-feira), quando o sacristão veio abrir a porta
da igreja, estavam já no adro á espera Perpetua Rosa e Bernardina
para se confessarem. Não tardou o prior. Aviou-se a mãe: ajoelhou
a filha: persignou-se, benzeu-se, disse _mea culpa_, e começou
sua confissão.
Se isto fosse uma historia de polpa, cortesan e culta, viria neste
ponto o _casus foederis_ de eu tomar a postura tragica a la moda,
carregando as sobrancelhas, e dizendo em tom soturno e lento:--"O
que ahi se passou entre o veneravel ancião e a donzella ninguem
o soube!--!--!--!--Mysterio!--!--!--! Acontecimento horrivel e
fatal!--!--!--! As lagrymas ardentes do velho caíram sobre a
cabeça da infeliz ajoelhada a seus pés, cujo futuro (não o dos
pés, mas o da infeliz) era de maldicção!--!--!--!" Limitada,
porém, a minha narrativa a chan e plebéa recordação de um pobre
parocho d'aldeia, reflectirei em summa, que me não é licito revelar
o segredo do confessionario. Os sigillistas já deram que fazer
ao marquez de Pombal, cuja consciencia, como todos sabem, era
delicadissima em materias de orthodoxia catholica, e em tudo.
Calo-me, porque não quero caír no erro que elle condemnou. Direi
só que foi mui demorada a confissão de Bernardina, e que, ao
alevantar-se d'ante os pés do prior, ella trazia os olhos como
punhos: e digo-o, porque o viram os circumstantes, a saber, o
sacristão e a senhora Perpetua Rosa, que devotamente ía descabeçando
a penitencia em quanto a filha se desobrigava.
Ao sol posto desse mesmo dia o prior espairecia a vista pela veiga
coberta de verdura, assentado no cruzeiro, segundo o seu costume.
A brisa da tarde era fria e aguda, porque a primavera começava
apenas; mas o velho parocho parecia não a sentir, embebido em
cogitações; e tão fundas íam estas, que, em vez de traçar na terra
com a bengala as usuaes figuras geometricas, ou anti-geometricas,
conservava-a immovel e perpendicular, com as mãos cruzadas sobre
o castão, firmando a barba em cima. Conhecia-se-lhe no olhar e no
mecher tremulo dos beiços, que algum grande cuidado o inquietava.
E tanto assim, que nem reparou nos tres signaes das ave-marias,
deixando-se ficar sentado, e até, oh profanação! com o chapeu
na cabeça. Felizmente não passava ninguem naquelle momento, que
podesse notar a involuntaria irreverencia do distrahido pastor.
Mas um vulto assomou lá ao longe, e os olhos do velho brilharam
como animados por vida nova. Quem quer que era descia do monte,
e vinha para a banda do rio. O caminho passava perto do adro:
o prior ergueu-se, estendendo a mão, e brandindo a bengala na
direcção do vulto.

"Oh Manuel! psio, Manuel! chega á fala! Oh rapaz!"
O filho do moleiro (porque era elle) hesitou um pouco. Alguma
cousa lhe roía na consciencia. Mas vendo o prior em pé com ar
de quem estava resolvido a ir atravessar-se-lhe diante, cortou
para elle com o barrete azul e vermelho na mão.
"Boas tardes, padre prior: quer alguma cousa?"
"Quero que você chegue aqui, porque temos que falar."
O tom com que estas palavras foram proferidas, e mais que tudo
aquelle _você_, fizeram estremecer o Manuel da Ventosa. O prior
tractava todos por tu, e o você na bôca delle era presagio infallivel
de temporal.
O rapaz parou diante do velho com os olhos cravados no chão,
torcendo e destorcendo a orla do barrete que tinha entre as mãos.
O padre prior mediu-o de alto a baixo, e começou _ex abrupto_:
"Então que historias são estas da Bernardina, sô velhaco da conta
benta? Sabe o que fez, grandessissimo tractante? Aonde foi você
aprender isso? (Esta pergunta era asnatica). É a doutrina que
eu lhe ensinei em pequeno? De que tem servido os exemplos de
modestia e honra que lhe dá seu pae? De ser um vadío, um seductor,
um... Deixe estar: a cadeia não se fez para as aranhas, e elrei
nosso senhor (o bom do parocho puxava em politica para a eschola
historica) ainda não mandou queimar a náu de viagem..."
"Eu, padre prior... como lhe ía dizendo--interrompeu atarantado
o saloio, coçando na cabeça, e procurando atar o fio das suas
idéas inteiramente confundidas.
"Cale-se; não me responda:--proseguiu o velho parocho, achando
talvez pouco cinco perguntas para ouvir uma resposta.--Diga-me:
que tenções eram as suas enganando uma rapariga honesta?"
"Eu..."
"Não me replique; já lh'o disse. Lembre-se de que é o seu pastor
que lhe fala. Ahi está porque você ainda não veio desobrigar-se.
Pensava que, por ella ser miseravel e sua mãe uma triste viuva,
não tinham ninguem neste mundo? Enganou-se. Tem-me a mim. Saiba
que a poder que eu possa ha-de ír bater com o costado na India,
ou casar com a Bernardina."
Aqui o pobre rapaz atirou-se de joelhos a chorar aos pés do velho,
e exclamau soluçando:
"E é isso o que eu quero!... Juro-o por aquella arvore da bella
cruz que alli está..."
"Vera cruz, salvage! vera cruz!--interrompeu o prior, visivelmente
abrandado com o pranto, humildade, e declaração categorica do
moço moleiro.
"Mas, como eu ía dizendo--proseguiu este--por'mor daquella diabrura
das saccas meu pae não póde tragar a senhora Perpetua Rosa. Se lhe
falasse em tal, fazia-me os ossos tão miudos como a picadura da
mó. Se a Bernardina tivesse dote, ainda talvez elle consentisse...
Mas sem isto; bem lhe sabe do genio. Se o padre prior podesse
adivinhar o que me tenho ralado, havia de ter dó de mim. Não
como, não durmo, ando doudo. Não basta a massada que gramei...
Ahn! ahn! ahn!"
Chorava em berreiro, e o chôro não o deixava continuar. As lagrymas
começaram tambem a bailar nos olhos do prior, que ficou por alguns
momentos pensativo.
"Levanta-te, rapaz dos meus peccados:--disse elle por fim, puxando
pelo braço do moleiro.--Vamos; confessa a verdade: estás arrependido
do que fizeste?"
"Estou, sim senhor! Ahn! ahn!"
Nesta parte, apesar do chôro e soluços, parece-me que o saloio
mentia.
"Promettes casar com Bernardina, se teu pae consentir?"
"Prometto, sim senhor! Ahn!"
"Ora, pois, socega, e não chores. Deixa o caso por minha conta.
Volte para casa, e não me torne a rondar pela beira do rio. Entende?
Olhe que!..."
O prior estendeu a bengala para o lado dos moinhos, que assobiavam
lá no alto, e Manuel da Ventosa voltou cabisbaixo e a passos
lentos pelo caminho por onde viera. Sentia confusamente que se
aproximava a crise mais temerosa da sua vida.
Então o padre prior assentou-se outra vez no poial do cruzeiro,
e recaíu em profunda meditação. Depois de um bom quarto de hora,
poz-se em pé e encaminhou-se para o presbyterio. Tinha anoitecido.
De memoria de homens nunca ceiára tão tarde!
E andando, o velho sacerdote repetia aquellas palavras do livro
de Job, onde, entre parenthesis, ha mais philosophia que n'um
aduar inteiro de philosophos:
_Nudus egressus sum de utero matris meoe, et nudus revertar illuc_[2].
O porque o dizia, bem o sabia elle! Ceiou sem dar palavra: resou
o breviario: deitou-se, e apagou o candieiro. Contra o costume,
Fr.
Bernardo de Brito e Fr. Diogo do Rosario ficaram aquelle serão
na estante. A ama sentiu-o assoar-se, tomar tabaco, e escarrar
até muito tarde. Cousa rara! signal evidente de que tinha negocio
de vulto, que lhe embargava o dormir!
Peior foi pela manhan. Apenas luziu o buraco, o padre prior saltou
da cama; calçou os sapatos engraixados; vestiu a loba nova; pediu
o chapeu de tres ventos, a bengala de castão de prata, e os oculos
fixos, que só punha em dias de missa cantada, e disse á ama que
se aviasse com o almoço, porque tinha de saír cedo.
Emquanto a tia Jeronyma, para maior brevidade, fazia umas papas
de milho, o prior abriu um contador enorme, destes que os nossos
grandes amigos inglezes nos vão agora levando em logar de vinho
do Porto, tirou para fóra uma folha de papel almasso, e bradou:
"Jeronyma! oh Jeronyma!"
A velha chegou ao corredor da cozinha com o abano na mão.
"Estão quasi feitas:--disse ella.--Tenha paciencia um instantinho."
"Não é isso, mulher:--replicou o prior.--Ouve cá: vae ao forro
da escada e traze-me aquillo."
"Isso, eu lá ponho. Mas, com sua licença, d'onde veio maquia grossa?
Hontem não houve baptisado nem enterro..."
E a tia Jeronyma estendia a mão esquerda coberta com a ponta
do avental, para não sujar a maquia de que falava, e ao mesmo
tempo volvia olhos ávidos, ora para o bofete, ora para o prior.
"Qual carapuça!--replicou elle fazendo-se vermelho.--Tira-se;
não se põe. Faça o que lhe digo, e dê ao démo o que sabe."
A ama empallideceu. As palavras _tira-se; não se põe_ eram de ruim
agouro; mas vendo já o padre prior azedo, calou-se e obedeceu.
D'alli a pouco o velho parocho começava a tirar de um pé de meia
uma, duas, tres peças de ouro; foi tirando até setenta: restavam
apenas obra de uma duzia dellas.
"Basta:--rosnou o prior.--Póde occorrer uma doença. Então, Jeronyma,
vem essas papas?!"
E dizendo isto embrulhava muito bem as setenta peças na folha
de papel que tinha sobre o bofete, e mettia-as na algibeira da
loba.
"Guarde isso, Jeronyma:"--disse elle á ama, que entrava com as
papas. E empurrou pela mesa fóra o exangue pé de meia. A ama,
ao vêr aquella horrorosa sangria, esteve a ponto de largar a
frigideira no chão, e de deixar o bom do padre sem almoço.
Quando voltou para a cosinha, ouviu-a o prior soluçar.
"_Nudus egressus sum de utero matris meoe, et nudus revertar illuc._"
Murmurando esta profunda sentença da Biblia, o reverendo parocho
saiu pela porta fóra. A ama, vendo-o saír, andava como pasmada.
Nestas idas e voltas havia nascido o sol. O Bartholomeu da Ventosa,
afanado com a sua lida, em pé á porta de um dos moinhos, bracejava,
ralhava, praguejava como um possesso. Os brutos dos moços tinham-lhe
quebrado já duas cordas ao _enquerir_ as cargas de uma récua de
machos pimpões presa á argola do moinho.
De repente viu um castão de bengala saír-lhe por cima do hombro.
Voltou-se: era o prior.
"Olé, vossenhoria por aqui a estas horas?!... Psio, oh Zé Dorna,
olha o rabicho daquelle macho!... Grande novidade, padre prior!
grande novidade!... Raios te partam! Que tal'stá o filho do diabo?!"
Estas duas ultimas jaculatorias eram acompanhadas de dois
reverendissimos pontapés na barriga de uma das cavalgaduras, que
já estava carregada, e que parecia achar mais prudente deitar-se
em quanto as outras se aviavam.
O moleiro dava assim a modo d'umas lembranças de Napoleão dictando
ao mesmo tempo a dous secretarios.
"Falaste, Bartholomeu!--replicou o prior.--Novidade, e grande!
Ha quarenta annos que sou parocho desta freguezia, e é a primeira
vez que tal me succede. É negocio intrincado, e quero ouvir o teu
conselho, porque tens caixa para as cousas. Rapazes--accrescentou
dirigindo-se aos moços do moinho--safa d'aqui, que tenho que
dizer ao patrão em particular."
"Rua!--gritou o moleiro correndo com força ambas as mãos pelo
colete e pelos calções, donde saíu um nevoeiro de farinha.--Entre
vossenhoria."
O prior entrou, e foi assentar-se n'uma tripeça que estava a um
canto: Bartholomeu assentou-se sobre um sacco de trigo defronte
delle. Os dous velhos mediram-se com os olhos por momentos, como
se cada um delles tentasse ler no rosto do outro os pensamentos
que lhes vagavam na alma. A primeira idéa que occorreu ao moleiro
foi a de alguma festa que o parocho pretendia fazer, e para que
lhe vinha pedir dinheiro. Batia-lhe o coração com violencia,
e já imaginava trinta mentiras para evitar essa calamidade.
"Homem--disse por fim o prior--tenho em minha mão uma somma avultada;
mais de quinhentos mil réis (o moleiro estendeu o pescoço); pertencem
a um devoto, que os quer dar em dote a uma rapariga pobre desta
freguezia. Encarreguei-me do negocio, e deitei as minhas linhas
para dar no vinte. Mas temo não acertar, e venho bater comtigo.
És honrado, meu Bartholomeu, posto que um tanto sovina: falo-te
com o coração nas mãos, e..."
"Isso é o que dizem por ahi essas linguas perversas--interrompeu
o moleiro, fazendo-se vermelho de colera;--essas mandrionas do
soalheiro, porque lhes não metto no bandulho o meu remedio. Os
diabos me levem..."
"Tá, ta!--acudiu o prior.--Ajustaremos contas na desobriga. Vamos
agora ao que serve. Sem refolhos: a quem te parece que dêmos
este dote? Parafusa lá."
O moleiro poz-se a scismar, alevantando os olhos para o tecto,
estendendo e revirando a mandibula inferior, e batendo de quando
em quando na testa.
"Nada ... a Genoveva da Theresa não:--disse por fim.--Tal mãe,
tal filha. Aquella está arrumada."
"Nem pensar n'isso é bom:--retrucou o prior.--_Libera nos Domine._
Anda, vê se atinas."
"A Clara da Fonte tambem não..."
"Uhm!--rosnou o clerigo, abanando a cabeça.
"A Catharina Carriça menos. Heim?"
"Tó carapuça! Ahi vae já! Fundia-me o dote em menos de um anno
com tafularias tolas. Adiante."
O leitor póde prever que o Bartholomeu da Ventosa e o seu parocho
estavam no caso de duas linhas parallelas, que, prolongando-se
indefinidamente, nunca podem encontrar-se: o pensamento do prior
dirigia-se a Bernardina, e o moleiro já tinha affastado por tres
vezes do espirito essa lembrança como uma idéa importuna.
"Eu--disse elle finalmente, coçando na cabeça--tinha cá uma idéa...
mas não sei... Não digo nada... Acabou-se."
"Desembuxa lá, homem! Foi para te ouvir que vim aqui."
"Então sempre lh'o direi. Minha sobrinha Joanna é um anjo. Boa
rapariga! famosa rapariga! Meu irmão Barnabé não pede esmola,
é verdade; mas anda atrapalhadote. O casal dos Caniços arrasou-o
este anno: deve-me já vinte moedas, e..."
O prior cortou-lhe o enthusiasmo pelos seus parentes com uma
gargalhada estrondosa. O moleiro ficou de bôca aberta no meio
daquelle destampatorio.
"Oh, oh, oh! querias que o meu dote servisse para pagar as tuas
vinte moedas?! Não é assim?--E, voltando immediatamente ao seu
serio, proseguiu:--Bartholomeu! Bartholomeu! _Por causa da iniquidade
da sua avareza me irei, e o feri_: diz o propheta. A cubiça que
te cega ha-de baldear-te no inferno, como tu baldêas alli para
a ribanceira as mós que já não prestam. Queres mentir á tua
consciencia, enganar o teu pastor, quando elle te vem pedir que
o aconselhes? Isto não é bonito, Bartholomeu! Não é bonito!"
"Mas, padre prior..."
"Qual mas, nem meio mas! Deixemo-nos de historias. Bem diz o
dictado:--Fui a casa da vizinha envergonhei-me; vim á minha
remediei-me.--O melhor é seguir a primeira lembrança."
"Então, se vossenhoria já tinha posto o dedo..."
"Tinha, tinha!--retrucou o prior:--Queria só ver se tu concordavas
comigo: mas sacas-te com uma exquisitice de fazer arripiar. Não
temos feito nada, meu Bartholomeu: não temos feito nada!"
E dizendo e fazendo, o clerigo erguia-se como para saír.
"Pois diga vossenhoria--acudiu o moleiro ainda atrapalhado com
o _revertere_:--e enforcado morra eu se..."
"Não praguejes, homem! Ahi vae! Quem ha-de apanhar o dote é a
Bernardina d'ao pé do rio..."
A historia das saccas era espinha que ainda lhe estava atravessada
na garganta: ouvindo tal nome, o velho não pôde conter-se:
"Quem? A cara de fuinha da filha de Perpetua Rosa? O padre prior
está brincando. Olha as lesmas! Umas desmaseladas, e caloteiras!
Isso, nas unhas da mãe, era fogo viste, linguiça. Terçans me
matem..."
"Espera, homem, espera! Não é isso o que se diz na aldeia. Tu tens
osga ás pobres mulheres, e cega-te a paixão. Desmaseladas?! Basta
olhar para ellas; como andam limpas na sua miseria. Caloteiras?
coitadínhas! É porque não têm com que pagar ao Agostinho da tenda?
Pagar-lhe-hão agora. Quinhentos mil réis ainda ficam livres, e
Bernardina ha-de com elles achar um bom casamento."
Emquanto o prior falava, uma idéa bem-aventurada illuminára
subitamente a alma do moleiro. As suas tres saccas podiam não
estar perdidas de todo; podiam voltar melhoradas ao moinho. Sentiu
a colera desvanecer-se-lhe, como a nuvem negra que varre a brisa
do norte.
"É verdade que a gente ás vezes tem cá as suas birras:--disse
elle com certo ar que queria ser fino e saía parvo.--Cega-se
com as pessoas! Vossenhoria bem sabe o que faz: dê o dote a quem
quizer, que diante de mim ninguem ha-de tugir nem mugir contra
vossenhoria."
"Pois bem!--proseguiu o prior.--Esta lebre está corrida. Resta
achar um noivo para Bernardina. Isso é bico d'obra que requer
escolha e siso. Pensa no caso, Bartholomeu! Vamos a vêr se acertas
melhor desta vez. Agora outra cousa. Tu és capaz: tens sabido
guardar o teu dinheiro; saberás guardar o alheio. Eu para isso
não presto: sou um mãos-rotas. Aqui te deixo setenta louras,
que a seu tempo se hão-de entregar a quem tocarem. Incumbes-te
d'isto?"
"Vossenhoria manda:"--respondeu o moleiro, cujos olhos brilharam
com o fulgor devorante da avareza ao vêr rolar as peças, que
o prior tivera a cautela de desembrulhar sobre a grande arca
das maquias. O velho parocho usava de uma esperteza de Satanás
para fazer uma obra de Deus.
E, despedindo-se de Bartholomeu, saíu. O moleiro ficou em pé
e immovel. Estava, mal comparado, como o asno de Buridan entre
as duas medidas iguaes de cevada: nem se podia affastar do ouro,
nem ousava faltar á cortezia devida ao padre prior. A final,
por um movimento sublime de energia moral, correu pela porta
fóra atrás delle, que já ía a certa distancia. Neste correr
parecia-lhe sentir estalar o que quer que era dentro do coração.
"Se vossenhoria é servido do nosso almoço"--bradava o moleiro"--não
tarda ahi um credo. Pobre, mas de boamente."
"Obrigado! obrigado!"--respondeu o prior sem se voltar, brandindo
para trás a bengala, como quem dizia adeus. E pensava lá
comsigo:--"Fóra, miseravel sovina!"
Apenas o bom do clerigo dobrára a quina, do muro de uma quinta,
que se dilatava desde a encosta até a baixa do rio, truz!...
Com quem havia d'elle dar de rosto? Com o Manuel da Ventosa,
de espingarda ao hombro, rede ás costas, chumbeira e polvorinho
a tiracolo. O saloio ficou embaçado.
"Com que, sim, senhor! Já você por aqui me apparece a estas
horas,"--disse o prior com um gesto folgado, que forcejava por
ser colerico.--"Heim?"
"É verdade, padre prior!... Entreter um bocado... A manhan estava
boa."
"Pois não! Aos pardaes... bem sei! Ora corte-me para casa, e
vá ajudar seu pae, o pobre velho, que lá anda lidando... e você
feito caçador das duzias... Caçador! Pensava agora o sonso que
me enganava! Vamos marchando!"
Deu alguns passos para diante, emquanto o Manuel da Ventosa fazia
o mesmo em sentido contrario. Depois voltou-se de repente. O
saloio também parára a olhar para trás.
"Olé. Escuta cá, Manuel!"--O Manuel aproximou-se.
"Depois d'amanhan é necessario que você se bote aos pés de seu
pae, que lhe conte a boa obra que fez, e que lhe peça licença
para casar com Bernardina..."
"Pelo amor de Deus, padre prior!"--interrompeu o triste do rapaz
cheio de susto.--"Com os figados delle, põe-me os ossos n'um feixe."
"Não se perdia nada:"--acudiu o velho.--"Mas não é anno de fortuna.
Era melhor que se tivesse lembrado a horas. Faça o que lhe digo,
que não lhe ha-de succeder mal nenhum! Vamos."
"Se vossenhoria entende?!..."
"Entendo, sim, senhor. A paschoa não tarda; e passada a quaresma
você ha-de receber-se. Mas d'isto nem palavra! E córte!"
O tom com que o parocho proferiu estas palavras deu uma alma nova
ao Manuel da Ventosa. Imaginou logo que o padre prior tinha aplanado
o negocio. Não sabia se risse ou se chorasse. Instinctivamente
agarrou a mão do clerigo e beijou-a. A sua gratidão era sincera.
O padre prior sentia palpitar esse vivo sentimento naquellas mãos
callosas, que apertavam a sua mão enrugada, naquelles labios
ardentes, que pareciam devora-la. Conheceu que estava arriscado
a deslizar da habitual severidade, e, affastando-se rapidamente,
bradou com voz aspera, mas alguma cousa trémula:--"Deixa-me, pateta!
Deixa-me! ... e Deus te alumie para que seja esta a ultima das
tuas rapaziadas."
Fez bem em alongar-se: duas lagrymas lhe rolaram pelas faces abaixo.
Naquelle dia a tia Jeronyma chegou a desconfiar de que o padre
prior tinha a bola desarranjada. Toda a manhan não fez senão
cantarolar, ora um pedaço do _Tantum ergo_, logo um versiculo do
_Te Deum Laudamus_, e assim por diante. Até andou por mais de meia
hora a brincar com o gato do presbyterio. E, para resumir em
poucas palavras a extravagancia de que parecia possuido, baste
dizer que, ao descalçar-se, arrumou os çapatos para um canto,
e depois de ter lido um capitulo da chronica de Cister, pela
primeira vez da sua vida metteu na estante essa especie de
Carlos-Magno monastico sem o pôr de pernas ao ar. Aquelle coração
sentia dilatar-se na sancta paz do Senhor.
E porque não cabia o bom do padre na pelle? Porque tinha feito
felizes duas creaturinhas, sacrificando-lhes as suas economias
de quarenta annos. Elle achava isso uma cousa naturalissima; mas
a providencia dava-lhe uma parte da sua recompensa nessa alegria
suave e intima, que nunca pôde entrar nos palacios dos grandes e
poderosos do mundo; porque é o premio, não do beneficio insolente
da opulencia, mas sim da abnegação caridosa da humildade.
O padre prior tinha tido tempo de estudar individualmente o caracter
dos seus freguezes, e por isso seguíra aquelle caminho para chegar
ao fim moral que se proposera. De feito o velho moleiro andou
abstracto todo o dia. Pois de noite? Não pregou olho! Ás escuras
via diante dos olhos as setenta peças a reluzirem como uma visão
ao mesmo tempo celeste e infernal. Depois, naquellas horas longas
de vigilia punha-se a calcular a acção prodigiosa que ellas teriam
incorporadas com mais de outras tantas que elle tinha enterradas.
Era o que bastava para dar o harmonioso epitheto de _minha_ á azenha
do Ignacio Codeço, e pôr lá o seu Manuel a labutar, e a ganhar
dinheiro, muito dinheiro: e elle a tomar-lhe contas ao sabbado:
meia moeda ... uma moeda ... duas moedas; e a pilha-lo em uma
gaziva de seis vintens; e despertava daquella especie de extasi
ao atirar-lhe o primeiro pontapé. Era um regalo! Ria ás vezes
ao lembrar-se de uma que elle havia de pregar no outro dia ao
Agostinho da tenda. Essa estava segura. Ia-lhe comprar o _créto_ de
Perpetua Rosa por metade, por um terço, talvez.--"Oh sô Agostinho,
você não vê que isso é dinheiro perdido? Cinco mil réis! seis
mil réis! Vamos; é minha a divida."--E tripudiava na cama, e
assentava-se, lançando mão dos calções, para ir, para correr,
para voar, antes que algum diabo (pensava elle) fosse metter no
bico ao usurario do tendeiro a mudança de fortuna de Bernardina.
Chegava, naquelle fervor, a enfiar os calções mas recaía na cama
ao vêr, ou antes ao não vêr, que era escuro como breu. Momentos
havia em que as suas idéas tomavam outro curso: representava-se-lhe
seu irmão Barnabé a largar-lhe o casal dos Caniços pelas vinte
moedas e por mais umas trinta peças com que o engodava; e elle
a fazer estercar as terras, e alqueivar, e lavrar, e semear, e
mondar, e ceifar, e a ter na eira uma serra de trigo durazio,
e achar uma excommungada de uma velha pedinchona a furtar-lhe á
sorrelfa uma abáda daquelle grande trigo, e elle a desanca-la
com uma tranca. E saía desse pesadello de homem acordado a ranger
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